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DA JEAN-LUC NANCY PHILIWE LACCUE·LABARTHE • escuta facebook.com/lacanempdf Jean-Luc Nancy Philippe-Lacoue Labarthe O TÍTULO DA LETRA (Uma leitura de Lacan} Traducão de Sergio Joaquim de Almeida Revisão Técnica de Durval Checchinato © by Éditions Galilée, 1973 © ·by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa Nancy, Jean-Luc. O titulo da letra : uma leitura de Lacan / Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe ; tradução de Sérgio Joaquim de Almeida ; revisão técnica Durval Checchi nato. -- são Paulo : Escuta, 1991. Bibliografia. 1. Lacan, Jacques, 1901-1981 I. Lacoue- Labarthe, Philippe II. Titulo. 91-1468 CDD-150.195 lndices para catálago sistemático: 1. Lacan, Jacques : Teoria psicanalítica 150.195 Editora Escuta Ltda. Rua Dr. Homem de Mello, 351 05007 São Paulo, S.P. Tel.: (011) 65-8950 1991 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 9 POSICIONAMENTO. • • • . . . . . . . • • • . . • • . . . . . . . . 13 UM GIRO DE LEITURA. . . . . . . . . • . • . . • . . . . • • • . 17 PRIMEIRA PARTE A LÓGICA DO SIGNIFICANTE................. 29 1. A ciência da letra. . . . • . . . • • . • . . . . • . . . . • • • • 35 2. O algoritmo e a operação ..••...•.••... '. . • • • 41 3. A árvore do significante. • . • . • • • • • • . . . . . • • • . 59 4. A significância. • • • . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . 69 SEGUNGA PARTE A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE. • • • • . . . . • . • • 87 1. A estratégia. • . • . . • • . • . . . . . • • . • . • . • . . • • • • 95 2. O sistema e a combinação. . . . . . . • . . . . . . . . . . . 113 3. A verdade "homologada". . . . . • . . . . • • . . . • • • • 141 APRESENTACÃO , O titulo da letra é um livro importante sob múltiplos aspectos. Primeiro porque versa sobre a teoria do significante em Lacan, de maneira muito precisa. Segundo, porque sua publicação é super- oportuna nesse momento do movimento psicanalítico no Brasil. Embora tupiniquinamente, podemos dizer, mutatis mutandi, que a situação da psicanálise no Brasil corresponde de alguma manei- ra à vivida em França quando da publicação do livro. A psicanáli- se tomou vulto, ampliou suas fronteiras quanto à formação de no- vos analistas e quanto ao volume apreciável de novas publicações e traduções. Esse texto, parece-me, vem propiciar uma ordenação teórica considerável sobre o específico do significante e sua função científica na teoria e clínica da psicanálise. Lacan institui o signo como algoritmo da lingüística e o significante como algo- ritmo da psicanálise. O significante é episteme no sentido pleno do postulado bachelardiano. Isto é de importância fundante para a psicanálise como ciência, embora ciência da significância e do particular. É nisto que se institui a psicanálise como ciência es- pecífica do inconsciente do homem. Além disso, este livro coloca precisões importantes dirimindo dúvidas quanto à ba"a e a resist€ncia. Há leituras diversas do al- goritmo psicanalítico, mas a que aqui os autores propõem me pa- rece ser a correta, de quebra sancionada por Lacan. A resistência não vem do significado e muito menos da significação. Ela é a 10 O TÍTULO DA LETRA própria barra. E é por isso que a autonomização do significante descoberta por Lacan na clínica é menos importante que a pró- pria barra. A importância da barra está em que é ela que institui o significante. Daí a apreciação de Lacan: "Posso dizer de certo modo que, se se trata de ler,jamais eu fui tão bem lido". Ao apresentar este livro sinto-me em posição muito curiosa. Estamos publicando um livro sobre o significante em Lacan que o mesmo Lacan apreciou em termos contundentemente positivos. Lacan elogiou em seus seminários, como fiéis interpretadores de seu pensamento, Maud Mannoni, Serge Leclaire e, é claro, J. A. Miller ... Mas estes faziam parte de seus seminários. Os autores de O título da letra, porém, deles não participavam. Por isso, quando Lacan interrompe o Seminário "Encore" (pp. 62-63) para longa- mente os elogiar, penso que temos um critério apreciável. Lacan com a palavra: É o que faz com que hoje, e de maneira que parecerá talvez pa- ra alguns um paradoxo, eu lhes aconselhe a ler um livro do qual o mínimo que se pode dizer é que ele me diz respeito. Esse livro se chama Le titre de la lettre (O título da letra), e foi publicado pelas edições Galilée, coleção À la lettre. Não lhes falarei dos seus autores, que me parecem no caso representar antes o papel de pífaros. Não é, se tanto, diminuir seu trabalho, pois direi que, quanto a mim, é com a maior satisfação que o li. Desejaria submeter este au- ditório à prova desse livro, escrito com as piores intenções, como vocês poderão constatar nas trinta últimas páginas. Eu não poderia senão encorajar demais sua difusão. Posso dizer de certo modo que, se :,e trata de ler, jamais fui tão bem lido - com tanto amor assim. Seguramente, como se verifica com a inclinação do livro, é um amor do qual o mínimo que se pode dizer é que seu estofo habitual na teoria analítica não pode deixar de ser evocado. Mas é dizer demais. Talvez mesmo seja dizer demais colocar lá dentro, de uma maneira qualquer, os sujeitos. Seria talvez reco- nhecê-los demais enquanto sujeitos, por evocar os sentimentos deles. Digamos então que é um modelo de boa leitura, a ponto de poder dizer que lamento não ter jamais conseguido, daqueles que me são próximos, nada que seja equivalente. Os autores acreditaram dever limitar-se - e, meu Deus, por que não cumprimentá-los por isso, já que a condição de uma leitura é evidentemente que a si mesma ela imponha limites - a um artigo, recolhido aos meus Escritos, que se chama A instância da letra.Par- tindo do que me distingue de Saussure e que faz com que eu tenha, APRESENTAÇÃO 11 como eles dizem, me desviado dele, eles conduzem de um assunto a outro, a esse impasse, que eu designo, respeitante ao que é, no dis- curso analítico, da abordagem da verdade e de seus paradoxos. Aí está algo que, sem dúvida, no fim, e não tenho que sondá-lo de outro modo, escapa àqueles que se impuseram esse extraordinário traba- lho. Tudo se passa como se fosse justamente do impasse aonde meu discurso é feito para conduzi-los, que eles se tenham por quites, e que se declarem - ou me declarem, o que dá na mesma no ponto em que chegam - estar confusos. Por aí fica completamente indica- do que vocês mesmos se enfrentem com a conclusão deles, as quais vocês verão que podem ser qualificadas de sem-cerimônias. Até es- sas conclusões, o trabalho prossegue de uma maneira que não posso senão reconhecer um valor de esclarecimento completamente sur- preendente - se isso puder por acaso esclarecer um pouco suas fi- leiras, por mim eu só veria vantagens, mas, depois de tudo, não es- tou certo de que - por que, já que vocês são sempre tão numerosos aqui, não confiar em vocês? - nada enfim os desencoraje. À parte, então, essas trinta ou vinte últimas páginas - na ver- dade, foram apenas estas que eu li em diagonal - as outras ser- lhes-ão de um conforto que, em suma, posso lhes desejar. À página 93 do mesmo seminário, Lacan assim resume a mensagem do livro: "como o indica o pequeno livro que os fiz ler sob o título de O titulo da letra, é bem duma subordinação do sig- no em relação ao significante que se trata em tudo o que lhes avancei". Pena que Lacan tenha visto "as piores intenções nos autores" porque escreveram as últimas trinta páginas que ele leu em dia- gonal. Lacan soube reconhecer a dependência de sua formação médica: Clérambault, "notre seul maitre en psychiatrie"; soube guardar sempre o maior respeito à pessoa de Freud, seu verda- deiro mestre em psicanálise, mas teve pouca humildade para re- conhecer sua constante dependência de Martin Heidegger. E nos- sos autores foram muito felizes ao excluírem Lacan de um sim- plório heideggerismo e colocá-lo no plano da cxÃ11@eux , que o leitor se dê o trabalho de uma leitura sobre o "Logos", Das We- sen der Sprache, sobretudo Das Wo,te os compare com o tex- to "Função e campo da fala", "A instância da letra no incons- ciente", "Direção do tratamento", "Variantes do tratamento típi- co" etc. Há momentos em que não sabemos se estamos em Heideg- ger ou em Lacan. Um simples exemplo: "O homem fala, pois, 12 O TÍTULO DA LETRA mas é porque o símbolo o fez homem". (L.). "O homem é ho- mem enquanto é aquele que fala". "É a palavra que faz o ho- mem, que o torna homem" (H.). Os exemplos de pontos de vista filosófico de idêntico pensar poderiam se multiplicar a vontade. Opino, pois, que não se deve colocar à parte essas trinta pá- ginas. Elas fazem jus à afirmação do próprio Lacan na "Instân- cia" (p. 528): "quando falo de Heidegger ou antes quando o tra- duzo, esforço-me para deixar à palavra que ele profere sua signi- ficância soberana". Não é outra, a meu ver, a leitura que os autores fazem de Heidegger em Lacan. Sim, mais que a Platão, Aristóteles, Kant, Hegel, Descartes ... é a Heidegger que Lacan deve sua fundamen- tação filosófica do inconsciente. O algoritmo lacaniano se funda- menta num tripé: Freud ( o sonho é um "enigma"), Saussure ("é o ponto de vista que cria o objeto") e Heidegger (toda sua filosofia da linguagem, sobretudo os estudos sobre poesia: "o ser do sendo e o ser em vista da verdade"; a palavra é o "sentido do ser", "a casa do ser"). Quinta da Peroba, maio 1991 Durval Checchinato POSICIONAMENTO O trabalho que apresentamos a seguir vem em formato de "livro" apenas porque o número de páginas excedia os limites de uma publicação em revista. É inevitável, sem dúvida, que tal apre- sentação (por pouco voluminosa que seja) corra pelo menos o risco de produzir um dos efeitos que nossa cultura agrega ao "li- vro" até em (a partir de?) sua materialidade - uma espécie de efeito de encadernação (em toda metaforicidade, é claro ... ) - e que se venha a pensar, desta forma, que tal teria sido a intenção de ser "um livro sobre Lacan". A leitura deverá dissipar tal efeito; pelo menos, é o que espe- ramos. Nada há aqui que vá além - a não ser por indicações ou sugestões - do exercício de deciframento de um texto de Lacan. O que equivale a dizer, em particular, que este mesmo texto não é visto nem interrogado fora dos limites da situação que lhe é própria: na cronologia das obras de Lacan a princípio; más também quanto à sua posição ou à sua função de texto "teórico", no sentido em que se verá ser tomado esse termo, o qual reme- terá ao endereço universitário do texto como à articulação, que faz dele o objeto, do discurso psicanalítico sobre os discursos científi- co e filosófico. Só essa função, tão-somente ela, terá legitimado, e 14 O TÍTULO DA LETRA limitado, nosso trabalho. Ver-se-á, por outro lado, não haver na- da aqui que suponha - mesmo que fosse por provisão, e contra- riamente, talvez, a certas aparências - a idéia ou o horizonte de uma "interpretação" exaustiva e sistemática da obra de Lacan; nada, caso se prefira, que vise a seu esgotamento ou a sua satu- ração significante ( com que direito, em que discurso arriscar-se- iam a isso?). As indicações avançadas, aqui ou acolá, em direção a outros textos de Lacan valem apenas no regime que quisemos dar-lhes, aquele das notas plurais e dispersas. Este trabalho foi, antes de tudo, suscitado pelo indecidfvel* da ( ou na) questão da "interpretação" de Lacan (isto é, logo - embora não imediata- mente - de Freud); e é nele que se manteve. Nada melhor, pois, para, de uma vez, colocar estas páginas "no lugar delas" do que estas poucas precisões empíricas: tratou- se, num primeiro estágio, de um trabalho proposto no interior do Grupo de pesquisas sobre as teorias do signo e do texto da Univer- sidade de Ciências Humanas de Strasbourg (fevereiro de 1972). Um segundo estágio foi apresentado num seminário animado por Jacques Derrida, Rua Ulm, em maio de 1972. A versão final não sofreu outras modificações que não aquelas que dependem das condições, algo diferentes, da publicação. Os dois signatários elaboraram este texto em comum. Se ti- veram que dividir entre si a redação definitiva por capítulos, tal não se deu sem que o curso do trabalho tenha imposto, aqui ou ali, certas passagens redigidas em comum, por vezes, até, inter- venções pontuais de um "estilo" no outro. Nesse jogo de escritas, cujas diferenças mais marcadas são, sem dúvida, localizáveis, po- der-se-á ler que este trabalho, sem ser um "livro", não é, de ma- neira alguma, uma leitura simples. • No original, indécidable (neologismo em francês), palavra que tem sua origem em décider; criamos o neologismo em português para garantir a riqueza do termo. (N. do T.) POSICIONAMENTO 15 Resta ainda, porém, antes de encetar esta leitura - e porque é preciso, também, sacrificar às leis do gênero - remeter a seu lugar o que vemos servir de título a este trabalho: O título da letra. É evidente que é preciso um título. Sabe-se, porém, hoje, que não é quase mais possível propor um sem descobrir um pouco to- da sua riqueza semântica. E sujeitar-se-ia alguém, aliás, a esco- lhê-lo por outros motivos? Se nos fixamos neste é, pois, porque parecia oferecer-nos um certo número de recursos. Entre outros, o do título enquanto significa aquele documento que estabelece um direito, atesta uma propriedade ou uma qualidade - e é, com efeito, este título da letra lacaniana que será necessário produzir, decifrar, autenticar. Ou, ainda, aquele do título enquanto designa quanto de ouro ou de prata tem uma moeda - e sabe-se bem que se a palavra é prata, o ouro é, apesar de tudo, o silêncio ... No entanto, ele pode, muito simplesmente, ser lido: o títu- lo: da letra - ou: sobre a letra - o que são maneiras, tanto uma como a outra, de anular nosso título, deixando-o identificar-se com o título do texto de Lacan que iremos ler. É a razão pela qual este "título" nós o largaremos aqui para não mais (quase) voltar a ele. E o limiar deste trabalho será mar- cado pelo único índice de seu sub-título: (Uma leitura de Lacan). UM GIRO DE LEITURA Vocês me provam que leram meus Escrit~ o que, aparentemente, não é tido como necessário para con- seguir entender-me. (Lacan, "Radiophonie", Scilicet nº 2/3, p. 55.) A publicação dos Escritos foi, como pode-se ler, um pedido de leitura.1 Descobre-se, depois de tudo, que tal leitura ainda está por ser feita. O tempo da leitura é sempre tardio e a de Lacan não escapa à regra; e menos ainda, no seu caso, uma vez que ela tem sido, sem dúvida, acentuada por tudo aquilo que, nos Escritos ou relacionado com eles, pôde converter o pedido em desejo, isto é, frear ou interdizer a própria leitura; a autoridade ( que não dei- xa de ser sem mistério) da análise, a constituição de uma Escola, a produção, enfim, ou a repetição, pela fala lacaniana, desses mesmos efeitos. · Não será o caso, por isso, de realizar o desejo - de afivelar uma significação de Lacan - mas, sim, de tentar obedecer à du- pla lei pela qual este "texto" dá-se a ler e deporta ou reporta sem cessar as condições de sua leitura. Assim fazendo, espera-se, no entanto, mostrar que não é possível, de fato, fazer a economia do 1. Cf., também, em Scilicet nº 1 (Seuil, 1968), "La méprise du sujet sup- posé savoir", e "Raison d'un échec". 18 O TÍTULO DA LETRA desvio pela leitura - no sentido mais e mais paciente do ter- mo - mesmo que fosse para sair, pouco a pouco, do leito do seu curso único e forçado, tornando-se a própria leitura este trans- bordamento, no ( ou pelo) texto leitor, do texto lido. Uma tal leitura não existe sem "razões", mesmo não poden- do haver simples justificativa para um gesto que, necessariamen- te, se transporta para fora de si mesmo e, de início, fora da ordem e da autoridade às quais submete-se o comentário clássico ( o qual tem razões, ou tem só uma, que a leitura conhece, mas não co- nhece sozinha ... ). Por isso é que não nos recusaremos a produzir, como se deve, pelo menos algumas de nossas razões - mesmo quedevêssemos fingir antecipar aquilo do qual só a leitura po- derá dar a volta. Por que (e, portanto, como) ler Lacan? Por que (como) ler w1i texto de Lacan? De início, ler Lacan é, sem dúvida, ler esse discurso mediante o qual viu-se (afinal) colocada a questão de uma verdadeira re- lação da psicanálise com a ordem "teórica" em geral. De fato, sabe-se que, até antes de Lacan (há que se dizer, no entanto, que cm grande parte é a ele que devemos tal saber ... ), a ciência e a filosofia - ou as autoridades constituídas sob esses nomes - partilharam ambas o seu "acolhimento" à psicanálise entre algumas atitudes clássicas: o silêncio ( desconhecimento ou negação), a hostilidade declarada, a anexação, o confisco ou a consagração aos fins, que permaneceram imutáveis, de tal ou qual aparelho teórico. Mais precisamente, nada foi pensado que não tenha a forma do "acolhimento", isto é, da subordinação da psi- canálise a um fundamento, a uma justificação, a uma verdade - equivale dizer também, na maioria das vezes, a uma norma, é cla- ro.2 2. É preciso excetuar desta evocação, é claro, isto e aqueles que já empu- nhavam uma subversão da autoridade teórica como tal, fossem quais fossem, aliás, suas relações com a psicanálise: principalmente Georges Bataille, cujo no- me veremos surgir em nossa leitura. UM GIRO DE LEITURA 19 O próprio Freud não obstante suas declarações sobre o caráter revolucionário da análise - manteve-a em sua essência, dentro do estatuto de uma ciência regional, submissa, nem que fosse por antecipação, a outras jurisdições teóricas além da sua.3 A intervenção de Lacan consistiu em romper com o sistema do "acolhimento" para fazer com que a própria psicanálise inter- viesse, precisamente, no campo teórico - até vir a propor como que um novo traçado de toda a configuração e de uma e da outra, e de um dentro do outro. Na verdade, é sabido que, a princípio, tratava-se de endireitar ou retificar a prática psicanalítica na medida em que esta, retor- nada de seu exi1io fora da Europa, seguia a via de um "reforço do ego"4 sob a égide do psicologismo e do pragmatismo anglo- saxões, isto é, a via do reforço das resistências do "narcisismo" ou do somatório de suas "identificações imaginárias"5 e em que sua finalidade, social e política, era aquela do "alma-a-alma liberal" acomodado à européia, isto é, à moda da "compreensão jasper- siana" e ao "personalismo à falta".6 Para despojar a psicanálise dessa função ortopédica, era ne- cessário, portanto, reajustá-la a si mesma. E essa é a razão pela qual o empreendimento prático implicava uma reconstrução teó- rica. Pelo menos, assim é que o discurso de Lacan foi instituído: de acordo com o regime de uma articulação do "teórico" em ci- ma do "prático", e de acordo com o movimento de uma reconsti- tuição da identidade própria, por meio de um retorno às origens. 3. Por certo que não se trata, neste caso, senão do mais manifesto discurso de Freud e, além disso, neste mesmo discurso, dos efeitos de uma certa prudên- cia deliberada. Mas, aqui, não nos aplicaremos a ler Freud. 4. La psychanalyse et son enseignement. Écrits, p. 454. Cf. todo este tex- to. - As referências aos Écrits remetem à edição completa lançada pela Seuil (coleção "Le champ freudien") em 1966. Elas serão daqui em diante anotadas por E. - e não serão colocadas em notas quan{o pertencerem ao texto que esti- vermos a ler. Tudo que se segue supõe que, a todo o instante, se possa reler, des- se texto, bem mais do que vamos citar. 5. Idem. 6. La science et la vérité, E. 867. 20 O TfTULO DA LETRA Conhecem-se os grandes traços dessa instituição: a verdade de Freud exigia, para ser articulada, o recurso a outras ciências que não aquelas que pareciam delimitar seu campo (biologia e psicologia). Era preciso, pois, construir, para constituir o discurso, psicanalítico em geral, um sistema inteiro de empréstimos, ape- lando à lingüística, à etnologia estrutural, à lógica combinatória. Este processo mesmo, no entanto, tornava necessário o discurso de sua própria legitimidade, ou seja, um discurso epistemológi- co - ou, antes, na medida em que se via constituir-se, dessa for- ma, não apenas uma ciência, mas uma cientificidade inédita, um discurso sobre a epistemologia. E o conjunto da operação repre- sentava definitivamente uma passagem explícita do discurso da análise pelo discurso filosófico - a mesma passagem que Freud, se bem que a tivesse sempre implicitamente evocado ou indicado, não tivesse jamais praticada como tal. É bem essa passagem, portanto, que temos que considerar aqui. Com a condição, no entanto, de nos entendermos. Isso não quer dizer que seja o caso, aqui, de apreciar as moda- lidades dessa passagem para avaliar sua legitimidade ou medir- lhe a pertinência. Isso suporia dispormos de algo como que uma verdade de Freud. Ora, nossa leitura não só não será guiada por nada similar, como nem fará apelo algum ao domínio próprio da análise mesma e, menos ainda, à sua prática - ou, como Lacan a nomeia, à "clínica"7• Se assim é (e, tal situação não é, seguramen- te, sem paradoxo), o é, sem dúvida, por razão de competência - 7. É, certamente, também, o limite próprio de nossa leitura, já o coloca- mos mais acima. Nada, portanto, será prejulgado quanto ao discurso mais especi- ficamente "clínico" de Lacan. Decifrar-se-á tão-somente o que possibilita ulte- riormente (de acordo com um processo que ficaria por analisar) a determinação de uma "clínica" pelo e no discurso teórico, a teoria da análise e a análise como teoria. Mas nem é preciso dizer que - uma vez estando em jogo, precisamente, a trama de conjunto da operação lacaniana - este limite não é um no sentido em que "trataríamos" apenas "de um aspecto" desta operação. Se a pura juris- dição do teórico deve ser aqui, embaralhada, não temos mais, também, que reco- nhecer seu alter ego: que pretenderia apresentar-se como a pura autoridade da "prática" em si. UM GIRO DE LEITURA 21 mas é, também, e a princípio, em razão do próprio texto de Lacan e da passagem (pelo filosófico) filosófica que ali é efetuada. 8 A "verdade freudiana" - fórmula que voltaremos a encontrar - só acontece nesse texto mesmo: não se pode pressupô-la, tem-se mais é que decifrá-Ia. Ver-se-á que, de certa maneira, é para além dele mesmo somente que este trabalho dará acesso a uma leitura de Freud e isto bem mais do que ele de fato teria anteci- pado. Trata-se, por conseguinte, de examinar o que a análise pro- duz quando passa para o campo teórico, a fim de poder perguntar o que pensa de um empreendimento que se dá menos na subor- dinação ao "teórico" do que como uma inte,venção nesse teórico, a partir de um "de fora" que quer interpelar a própria teoria e ar- razoar sobre ela. Poder-se-ia, com certeza, conduzir este exame sobre o con- junto dos textos de Lacan - o que equivaleria a presumir ali um sistema, legível ou, antes, visível como tal, fora da diversidade dos textos cujo lugar seria ele. A questão de uma sistematicidade la- caniana (ao menos, no interior de um escrito) virá aqui a seu tempo; para abordar a leitura, no entanto, não são necessárias outras presunções que não as do próprio Lacan, isto é, em parti- cular: - a vontade de deslocar (ou de adiantar-se ao?) o discurso sistemático da teoria, em nome de uma revolução freudiana que impõe "a necessidade de abaixar a soberba que faz parte de todo monocentrismo•'9. Assim Lacan pode declarar que "(seus) enun- ciados nada têm de comum com um exposto teórico que se justi- fica por um fechamento"1º; 8. Assim é, aliás, que o próprio Lacan especifica seus Escritos em relação ao conjunto de seu ensinamento: eles "buscam cercar o essencial da matéria de (seus) seminários" e "além do mais, eles introduzem o essencial desta matéria no contexto de uma crítica epistemológica do ponto de vista psicanalítico da época em cima do domínio estudado". (Entrevista com J. Lacan, em: A. RiffletaLemai- re, Jacques Lacan, Bruxelles,Dessart, 1970, p. 405). 9. "Radiophonie", Scilicet, n° 2/3, p. 73. 10. Entrevista com A. Rifflet-Lemaire, op. cit., 405. 22 O TÍTULO DA LETRA - a vontade, por conseguinte, de produzir cada intervenção como uma unidade acabada de palavra ou de texto, que reúne na enunciação, cada vez, todo o investimento do trabalho e procras- tina, no mesmo gesto, a totalização dos enunciados. É melhor, portanto, ler um texto de Lacan. Equivale a dizer que vale mais ler, em certo sentido, cada um de seus textos en- quanto local de concentração e instância de repetição de todos os outros; e vale mais ler um deles, como aquele texto único que pretente ser, com o que uma semelhante vontade não pode deixar de conotar: a fonte do evento, da proferição circunstancial e, por- tanto, da palavra falada.11 Tratar-se-á, pois, de decifrar aquilo que, fundado sobre um modo que se pretende inédito, chega ao teóri- co. A leitura dirigir-se-á a um "texto" do qual ignora, logo de iní- cio, o estatuto e o regime próprios e ao qual, necessariamente, deverá propor a questão - se isso pode ainda ser o objeto de uma questão - de sua natureza e de seu investimento de texto. Dito de outra forma, esta leitura buscará obedecer a este movimento em que toda "questão" de leitura é conseguida: o que há ali do texto de Lacan (?) - se se trata mesmo de um texto (?) - em que sentido, se há aqui um "sentido" (?) - e até onde? Leremos a Instância da letra no inconsciente ou a razão após Freud. Este escrito12 é marcado por sua data e por sua circunstância. Pronunciado e ridigido em 1957, situa-se, mais ou menos, no meio do período durante o qual, entre duas exclusões sucessivas 11. O lugar do discurso de Lacan é o seminário e não o "escrito", como te- remos oportunidade de redizê-lo. Quando falamos do discurso de Lacan é preci- so, portanto, entender ao mesmo tempo a determinação teórica do lugar e do la- ço dos conceitos e o "discurso" no sentido lingüístico de "fala estendida" ( cf. R Barthes, Élements de sémiologie, I. 1. 3.). 12. Lembrado várias vezes por Lacan seguidamente, com certa insistência. Cf. em especial "Radiophonie", passim, e "Lituraterre" em Littérature, nº 3, La- rousse, 1971, p. 5. "Seria, por acaso, letra morta que teria colocado como título destes trechos que disse Écrits ... , da letra a instdncia, como razão do inconscien- te?" etc. - Assinalaremos bem rapidamente que não é o caso, por isso, de privi- UM GIRO DE LEITURA 23 provocadas pelas sociedades de psicanálise in loco, o trabalho de Lacan produziu seus mais evidente~ efeitos de ruptura no campo da prática e da instituição psicanalíticas. O mesmo ano assistiu ao aparecimento, no número precedente de A psicanálise, o Seminá- rio sobre "a carta roubada", texto-chave que abrirá os Escritos. 13 Esta carta, tomada a Poe para sua platéia de analistas, Lacan coloca em sua Instância para um público universitário: os estu- dantes da Sorbonne que o convidaram.14 É assim que se dá a ver- dadeira primeira intervenção de Lacan na Universidade e, de al- guma forma, é o símbolo - até o ato mesmo - da passagem no "teórico" ( dever-se-ia correr o risco de dizer: a passagem para o ato - o acting out - teórico?). Na Instância, a psicanálise articula sua teoria para ela mesma, no campo teórico considerado como tal - ou articula-se sobre a teoria. Veremos como este escrito deve ser lido como o texto da articulação. Em todo o caso, já é esta a posição que lhe confere seu preâmbulo, redigido para sua publicação. E é decifrando, aqui, brevemente, o essencial deste preâmbulo, que empenharemos nossa leitura - por meio deste pré-texto que por si mesmo é uma leitura, por Lacan, da ocasião de seu discurso, ou uma inscrição do discurso em sua ocasião. Tal inscrição faz-se sobre um triplo registro: 1. A Instância é um discurso universitário - ou, pelo menos, dirigido aos universitários, de acordo com a universitas de uma certa comunicação - a "generalidade necessária" (E. 494) - pressuposta desde o instante em que Lacan não se dirige mais aos legiar este escrito. Por várias razões, outros escritos são, por certo, pelo menos tão importantes quanto ele dentro do dispositivo lacaniano (A carta roubada, A significação do Fálus, subversão do sujeito, por exemplo). Resta, por um lado, que estes textos são difíceis de ler, sem o discurso que os guarnece; por outro lado, é à propriedade ( e não ao "privilégio") te61ica deste escrito que nossa leitura se aplica - no torneio próprio assumido ou representado aí pelo teórico. 13. Este texto, oriundo de um seminário de 1955, traz, no entanto, como o assinala Lacan (E. 61), as marcas da teoria tal como fora elaborada na época da sua redação, que antecede, de pouco, a da Instância. 14. Cf. E. 908. 24 O TÍTULO DA LETRA únicos técnicos da análise; ao mesmo tempo, este discurso é es- pecificado pela "qualificação ... literária" (id.) de seus ouvintes. Desta forma, o que a Universidade designa como letras, e em par- ticular como literatura, demonstrará ouvir à elaboração lacaniana da "letra". 2. Ao mesmo tempo, é um discurso científico - ou, pelo menos, e mais amplamente, é um discurso considerado na ordem do saber e para nela ser o discurso de uma certa verdade; em todo caso, de um certo "verídico" (id.). Prefaciando o início de sua ex- posição, Lacan descarta, aqui, de pronto o mau ( o falso) saber de referência que poderia ser, em particular, a etnolingüística de Sa- pir e de Jespersen; determina a finalidade de seu propósito na denúncia e na recusa de qualquer "falsa identidade" (id.) da psi- canálise. 3. Por conseguinte, tal discurso só é também um discurso aos analistas (e, como tal, discurso "de formação" - id.) pela me- diação, se podemos assim dizer, dos dois outros discursos - e é essa mediação que dá todo seu peso à ocasião da qual Lacan sou- be "pegar o viés" (id.) para seu discurso. A universitas litterarum, onde se comunica um certo saber das letras, é o lugar que Freud quis para a formação prévia do analista - e é a partir desse lugar que o discurso pode pretender produzir "a verdadeira" identida- de (id.) da psicanálise. O investimento é, pois, principalmente o de um discurso obedecendo às exigências da universitas e da ciência. O próprio texto de Lacan inscreve-se como discurso em suas linhas e entre suas linhas. Se Lacan pôde dizer: "Sempre coloco balizas para que as pessoas possam reencontrar se_u caminho em meu discur- so"15, é porque, de fato, é possível - senão fácil de ali assinalar o rumo e o itinerário do conceito (processos, importações ou pro- duções propriamente conceituais). Desta forma, o menor paradoxo desse texto votado à sub- versão da autoridade "clássica" do discurso não é aquele tipo de 15. "Radiophonie", Sci/icet nº 2/3, p. 13. UM GIRO DE LEITURA 25 reconstrução de um outro discurso clássico, à qual parece dar procedimento por meio de todo seu movimento. É preciso, ainda, lçr este paradoxo - e, para isso, começar por nada recusar à lei- tura universitária, isto é, ao comentário, com aquilo que sua ca- minhada pode ter de pesado e de ingrato, de redutor também, ou de extenuante, em relação aos efeitos mais salientes da fala laca- niana. Poder-se-á, ao menos, por aí, garantir-se de não perder demais, por excesso ou por falta, as determinações mais decisivas. O "texto" de Lacan encontra, pois, a nosso ver, nesse regime, seu primeiro estatuto: aquele que convém à fórmula e ao em tor- no do "comentário de texto". Por isso é que começaremos por comentar, escolhendo fazê-lo em cima da primeira parte do ex- posto (O sentido da letra), onde se instala a teoria da letra. Mas, além desse comentário, será o caso de decifrar o que pode apenas aparecer como uma repetição da primeira parte nas duas partes seguintes (A letra no inconsciente, A letra, o ser e o outro), repetição destinada a permitir a articulação da teoria da letra sobre a própria psicanálise, isto é, como veremos, a articu- lação de Saussure e de Freud,ela mesma articulada, ao final de tudo, sobre um outro registro ainda ou por um outro persona- gem, um outro nome que, a seu tempo, haverá de aparecer. A lei- tura deverá, a partir daí, complicar seu giro na proporção desse jogo da repetição e da articulação. Isto equivale a dizer que ela terá que fazer, em particular, com que o preâmbulo dê como que um regime duplo, ou misto, do que está exposto. Com efeito, diz Lacan, não é um "escrito" (E. 493), se o es- crito ''se distingue pela prevalência do texto" (id.) e se esse texto - esse facteur ( carteiro; fator) do discurso" (id.) que permanece suspenso entre o mensageiro dos correios e o parâmetro matemá- tico cuja própria exposição promete dar-nos o "sentido" (id.) - for, ele mesmo, especificado pelo "restringimento ... que não deve deixar ao leitor outra saída que sua entrada" {id.). Entendamos, na medida em que o "texto" permite aqui entender, que a palavra texto recupera, a esta altura, o valor do ideal ( do absoluto) do dis- curso na necessidade constrangedora de seu processo conceituai e na circularidade sem resto que disso resulta - e que este ideal, aqui, não deve "prevalecer". 26 O TÍTULO DA LETRA A exposição estará, pois, "entre o escrito e a palavra falada" (id.), uma vez que, desta última, "as medidas diferentes são es- senciais para o efeito de formação que eu procuro" (E. 494). Será preciso ler, por conseguinte, aquilo que, no meio do caminho, desvia-se do discurso ou desarranja-o; será preciso ler entre a es- cuta ( do discurso) e a leitura ( do texto). Para nossa leitura, o texto de Lacan, ou aquilo que, pelo menos, interrogaremos como um tal texto, no "sentido forte" da palavra como se diz (mas, aqui, precisamente, no sentido menos determinável, de acordo com uma lógica discursiva do sentido), deverá, portanto, ser procurado nesse desvio, ou como essa meia-ausência que se anuncia para ser decriptada nas entrelinhas ou, até, entre as frases. Mais exata- mente, quem sabe, a questão do texto, aqui, deverá tornar-se a do desvio ou do não-desvio, nesta exposição de Lacan, entre o dis- curso dado a ouvir (a compreender, a decifrar, talvez a crer) e o texto dado a ler. Nosso comentário - reconstrução e transcrição num discurso decididamente manifesto - deverá, é certo, desde então ser, por sua vez16, destruído. Não se terá consentido em tal encaminha- mento simplesmente para a ele se resignar, e é no sentido de tra- balhar os resultados do comentário para exceder-lhe (em todos os sentidos da palavra) o estatuto que a leitura, obedecendo ao mo- tivo complexo do "texto" lacaniano, deverá arriscar-se - sem que se possa indicar, por antecipação, a que volta, isto é, a que texto uma tal destruição poderá dar lugar nem se deverá ser produzida por causa do texto de Lacan, ou apesar dele, ou segundo alguma outra figura menos simples. Assim agindo, teremos, por fim, que reconhecer que a leitura deve, desta forma, passar pela decifração de um certo jogo da metáfora no texto de Lacan. Tal metáfora é justamente ela que, 16. A respeito dos comentários fdtos até aqui sobre Lacan, é necessário di- zer, pelo menos, que não são exatamente empregados como comentários no "tex- to" que queriam interpretar ou repetir. Não é preciso dizer que não estamos a falar, aqui, dos textos ou das exposições que, em se apresentando expressamente sob uma referência constante a Lacan, até como uma "reprise" de seus termos, nem por isso quiseram ser comentários: assim, em particular, "Da estrutura na psicanálise" por M. Safouan, in Estrutura e psicanálise, Cultrix, São Paulo. UM GIRO DE LEITURA 27 na epígrafe do preâmbulo (E. 493), d.omina de antemão todo o texto da Instância: Extraída das Profecias de Da Vinci, esta epígrafe pertence a um conjunto de textos - de um gênero combinado - cujos títu- los, é sabido, funcionam constantemente como metáforas do con- teúdo da profecia. Aqui, "as crianças de fraldas" metaforizam uma servidão, ela mesma marcada pela submissão de uma língua a uma outra língua, que reduz a primeira ao meio-mutismo de uma "língua" de paixões. A profecia é, pois, por sua vez, para La- can, metáfora ou alegoria tanto do inconsciente enquanto lingua- gem quanto de repressão social ( e psicanalítica - no sentido das psicanálises de "falsa identidade") desse mesmo inconsciente - ou, ainda, da verdade que é enunciada em Freud e em Lacan. O que a exposição irá estabelecer é que o inconsciente não produz seu "sentido", a não ser na metáfora. O texto de Lacan se precavém, pois, em epígrafe, contra o que ele deve exibir e traba- lhar. Que uma epígrafe só se torne legível no decorrer do texto do qual, sempre, é uma certa figura, eis aí sua situação e sua função clássica. Mas, que esta legibilidade reconduza, como a um regime próprio dela, ao próprio funcionamento metafórico - da epígrafe ou a uma literalidade da metáfora, é o que parece selar o trajeto de discurso de Lacan dentro desse próprio tropa. Destarte, o úl- timo "estado" do "texto" lacaniano, que comandará a última vol- ta da leitura, deverá ser esse tipo de metaforicidade generalizada ou de identificação com ( e da) a metáfora. Por ora, aproveitaremos somente a ocasião para inscrever aqui, por nossa vez e sem nos pronunciarmos, ainda, sobre seu funcionamento, a epígrafe de nossa leitura: ... somos forçados a trabalhar com os termos Termini científicos, isto é, com a língua figurada própria die eigene Bildersprache da psicolo- gia (mais exatamente: da psicologia das profundezas). Não podería- mos, sem isso, descrever absolutamente nada dos processos que lhe correspondem e nem mesmo teríamos podido percebê-los. É bem possível que as carências de nossa descrição desvanecer-se-iam se já pudéssemos substituir os termos psicológicos pelos termos fisiológi- cos ou químicos. Estes também pertencem, certamente, não só a uma linguagem figurada, mas a uma linguagem que há muito tempo nos é familiar e que é, talvez, igualmente mais simples. (Freud, "Au-delà du principe de plaisir", in G. W., t. XIII, p. 65.) 28 O TÍTULO DA LETRA Agora, sem dúvida, é possível (re)começar a ler. O primeiro momento - o do comentário - será, se nos é permitido retomar uma fórmula produzida em outra situação pa- ra intitular a teoria lacaniana em seu todo17, o de uma lógica do significante. 17. MILLER, J. A. "La suture. Élements pour une logique du signifiant", Cahiers pour l'analyse, n° 1. Exceto a condensação, esta fónnula obedece à letra de Lacan: cf., por exemplo, E. 468 e 469 etc. PRIMEIRA PARTE A LÓGICA DO SIGNIFICANTE Trata-se, agora, de decifrar - e igualmente, portanto, para começar a criar uma espécie de subtítulo pelo qual se anuncie es- ta primeira parte: O sentido da letra. Convém, por certo, entendê-lo de início, precisamente em vá- rios sentidos, isto é (mesmo que a nota possa parecer, neste ca- so, um tanto quanto forçada), de acordo com o sentido que se queira dar ao termo sentido e, bem entendido, o valor que se atribuirá ao genitivo. Seja o caso, por exemplo, e para nisso insis- tir bastante: a significação do conceito de letra; ou, então: o senti- do que a letra produz ( ou até: o sentido que é a letra); ou até, ain- da: ter o sentido da letra, assim como se diz "ter senso dos negó- cios". Mas indispensável é, também, por certo relacioná-lo com o título geral: a Instância da letra no inconsciente ou a razão após Freud, do qual pode-se dizer que seja apenas a primeira moeda- gem. O comentário de um título supõe sempre que se tenha termi- nado a leitura do texto que ele comanda. Não se trata, pois, de arriscar-se a isso nem por artimanhas. Mas uma vez que, apesar de tudo é necessário situar, pelo menos, o texto que temos que ler (é uma regra clássica) permitindo-nos fazer, sobre tal título, duas observações prévias: A primeira será a respeito do uso da palavra, ou do conceito, instância - ficando entendido, se nos é facultado antecipar um ~/. 32 O TÍTULO DA LETRA pouco, que falar de conceitoexigirá, doravante, que se tome um certo número de precauções, se é verdade que em Lacan o con- ceito pode ser reconhecido, construído, como neste caso, sobre um jogo de palavra (para não dizer: sobre o jogo de sua palavra). Sabe-se, com efeito, que instance designa, na sua origem, de acordo com Littré, uma solicitação que pressiona (pede-se insis- tentemente ... ), um argumento, ou mesmo um processo (na medida em que um processo supõe acusação e defesa a que, por conse- guinte, opõem-se ali argumentos). Daí, por extensão, o sentido fi- xou-se depois, na língua clássica, como autoridade judiciária ( diz- se: um juiz, um tribunal de instância). No entanto, no francês moderno corrente, tal precisão do termo perdeu-se mais ou me- nos e quase só se emprega instance no sentido bem amplo de au- toridade tendo o poder de decisão (sentido, aliás, que Littré ignora e que Robert apresenta como neologismo). A instância da letra é, portanto, a autoridade da letra. E, além disso, se é verdade que no uso contemporâneo, que não é necessariamente um uso incor- reto, ecoa, ainda, o primeiro sentido do latim instare ( estar em pé), tal valor é, ainda, reforçado e o título visaria, aqui, a posição dominante da letra, o lugar de destaque que ela ocupa, de onde tem poder de decisão e exerce autoridade, de onde, em outras pa- lavras, rege e legisla. É preciso também, no entanto, contar com a possibilidade de um Witz, de uma palavra: instância é, de fato, quase insistência e, aliás, em seu primeiro sentido, insistir é fazer instância, perseverar em pedir. Sem dúvida, em parte alguma, pelo que conhecemos, a palavra é explicitamente sublinhada por La- can.1 A insistência aparece, no entanto, como o veremos, no pró- prio texto (E. 502) e sabe-se que se trata, sim, de um conceito importante do discurso lacaniano: é o conceito pelo qual é mar- cada a especificidade da cadeia significante como, para dizê-lo ra- pidamente, a iminência, isto é, o reportar indefinido do sentido que está no princípio do automatismo de repetição, do Wiederho- /ungszwang de Freud.2 A instância da letra seria, pois, talvez também, nesse sentido, sua insistência - algo como o suspenso 1. A não ser, recentemente, em "Lituraterre" (in Littérature, nº 3, outubro de 1971, p. 5). 2. Cf., por exemplo, E. 11, 557. A LÓGICA DO SIGNIFICANTE 33 do sentido. Isso não deixa de complicar a interpretação do subtí~ tulo da primeira parte.3 A segunda observação a fazermos diz respeito à duplicação do título: a instância da letra ... ou a razão após Freud. Duplicação totalmente clássica, isto é também, possivelmente, completamen- te paródica. Duplicação exigindo em todo caso que se esteja aten- to ao deslize de sentido do qual ela pode ser a ocasião (premedi- .. , tada). Pelo menos isto fica marcado aí: é que, após Freud, desde(, a intervenção de uma certa ruptura ou um certo corte operado com Freud, a razão não é mais, doravante, o que antes podia-se reparar sob tal palavra, mas é, no inconsciente, a iiistância ( ou in- sistência) da letra. Isto quer dizer duas coisas: a razão é a letra e aquilo que passa, a partir de então, no e pelo inconsciente (sen- do o efeito estilístico aqui visado aquele, evidentemente, da antí- tese, no sentido retórico da palavra). Fosse ela acrescentada por jogo, esta "precisão" confirma, em todo o caso, o que já se pôde ler, de passagem, no preâmbulo: que este texto é proposto, de imediato, abertamente, como um textofilosófico .. Uma certa visa- da do inconsciente, uma certa visada no inconsciente, do que ali predomina e, como tal, o determina, a tomada em consideração da letra e do que nela está em jogo quanto ao sentido, tudo isso diz respeito à definição da razão em geral, ratio ou logos, e é em 3. Tudo isto pode, com efeito, ser sustentado sob a condição de não omitir que fora um ano antes (em 1956) que Benveniste propusera o conceito de "instância do discurso" para designar "os atos discretos e cada vez únicos por meio dos quais a língua é atualizada em palavra falada por um locutor". (Proble- mes de lingui.stique générale, p. 251). Ora, esta definição servia precisamente, co- mo se sabe, para conduzir a análise da "natureza dos pronomes", na qual se constituía, em homenagem a R Jakobson, que mais tarde a reformulará (les Em- brayeurs ... , in Essai.s de lingui.stique générale, p. 178 e ss.), a teoria da enun- ciação e dos "indicadores" do discurso - de que teremos que falar de novo, é claro. Mas não se há de esquecer, também, que, em Aristóteles, a · EV<M'O'.O'L<; designa na teoria da refutação, o obstáculo que é oposto ao arrazoado de um ad- versário (Rhétorique, II, 25, 1402a); cf. Premiers analytiques, II, 26, Topiques, VIII, 2, 157ab. Esta "instância" é, em particular, aquela que a exceção opõe a uma pregação universal. Um exemplo deste topos parece ser este aqui, que avaliaremos dentro de seu mais "justo" valor. "em certas regiões, é bom sacrificar seu pai, entre os Tri- bailes, por exemplo, mas isto não é, de forma alguma, um bem" (Topiques, II, 11, 115b). 34 O TÍTULO DA LETRA suma tal evento, essa mutação ou essa reviravolta, que o texto toma como objeto. É pois, na perspectiva assim aberta pelo duplo jogo do título e do subtítulo, que encetaremos o comentário desta primeira par- te. Para a comodidade da exposição e porque é bem o caso de, como cm todo comentário, trabalhar por reconstituir, para apre- sentar seu arranjo, uma lógica (veremos bem até onde isto é possível...), nós proporemos um corte grosseiro do texto em qua- tro partes correspondendo às mais visíveis articulações. E, em o fazendo, cada uma dessas partes anunciar-se-á por um título (que, aliás, indicará menos o objeto e mais o que ali buscaremos ler).4 A primeira destas partes ocupa as duas primeiras páginas do texto, da página 495 até à primeira alínea da página 497. A este comentário daremos o título de: a ciência da letra. 4. Poder-se-ia ter igualmente perguntado, a propósito da "instância'', se bem que Lacan não faça alusão alguma a isso, se tal vocábulo não deveria ser tomado no sentido que Quine lhe deu em sua lógica. Trata-se, então - no rnso mais simples e mais geral - .ia ou das proposições que podem ser substiluídas por uma letra empregada como símbolo no cálculo. ''Toda proposição é a instân- cia de uma letra qualquer" (Quine, Logique élémentaíre, trad. J. Largeaull e B. Saint-Semin, Colin, 1972, p. 74). O título de Lacan deveria ser decifrado, então, assim: a proposição (o enunciado, o discurso) que, no inconsciente, é a instância de uma letra, que não é um símbolo qualquer mas a letra ou a própria-literalida- de ( o próprio simbólico). O texto todo ficaria, desta forma, colocado sob o signo de um desvio da lógica de que, de qualquer maneira, será preciso falar d<: nnvn. (Acrescentemos que o uso do termo por Quine provém, ele mesmo, da conser- vação, mais marcada em inglês do que em francês, dos valores compreendidos na ínstantía da escolástica, como - exemplo em apoio a uma asserção - instrumen- to de prova ou de manifestação em geral, signo ou marca.) 1 A CIÊNCIA DA LETRA Esta ciência, é verdade que não a veremos constituir-se de repente. Será o caso, antes (e é o objeto destas duas páginas), de definir-lhe o objeto, isto é, o conceito de letra. Com o intuito de recompor esquematicamente esta definição, poder-se-ia propor aqui: - a princípio, essencialmente, a letra designa a estnttura da ·,: linguagem na medida em que o sujeito nela está implicado. Esta implicação, sejam quais forem suas modalidades, não é somente inicial, mas é a fundadora de toda a lógica que vai estabelecer-se. Dizer que a letra é aquilo que implica o sujeito é, antes mesmo de "tomar-se a ·letra ao pé da letra" ( de acordo~ com a expressão da p. 495), tornar o sujeito na letra, o que aparecerá bem depressa, como se suspeita, como uma maneira de tomar o sujeito ao pé da letra. Esta literalização do sujeito é, se assim se pode dizer, dupla. De um lado, "a linguagemcom sua estrutura pré-existe à en- trada que cada um ali faz num momento de seu desenvolvimento mental" (E. 495). Isso explica o referir-se a Jakobson e, em parti- cular, a utilização do célebre texto sobre a afasia (Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia) uma vez que, pelo menos é o 36 O TÍTULO DA LETRA que Lacan retém por ora, a afasia, cuja causa pode bem ser anatômica, acha-se ali mais fundamentalmente determinada de acordo com a estrutura da linguagem, isto é, não-anatomicamen- te; e o é de tal forma que a instância, aqui, seja a própria estrutu- ra. Por outro lado, a literalização prende-se ao fato de o sujeito, como locutor, tomar emprestado à estrutura da linguagem o su- porte material de seu discurso: "designando como letra [diz Lacan] esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado à linguagem" (E. 495). Dois conceitos estão em jogo aqui: antes de tudo, o conceito de discurso concreto. Ele é determinado por sua relação, ao mesmo tempo, com a linguagem enquanto estrutura e com a fala (no sentido saussuriano, como execução individual da língua) para reter o elemento comum aos dois. Por sua vez, este elemento é duplamente especificado (e, aqui, tomaremos empres- tado do texto intitulado Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise algumas formulações) na "intersubjetividade da fa- la" na interlocução e na "transindividualidade" da linguagem ( e do sujeito): "seus meios, diz Lacan a propósito da psicanálise, são os da fala na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu domínio é aquele do discurso concreto enquan- to campo da realidade transindividual do sujeito"1• O segundo conceito em jogo é o de suporte material. Repor- tar-nos-emos aqui, a dois texi:os: de um lado, o Seminário sobre ''A carta roubada", onde se sabe que a partir da carta (a missiva) que dá seu título à novela de Poe e que, urge lembrar, está es- condida num lugar tão evidente que ninguém a enxerga, Lacan chama de materialidade do significante ao mesmo tempo a ap- tidão do significante para a localização, sua "re_lação com o lu- gar"2. Mas uma localização que, estranhamente, é sempre uma "ausência em seu lugar", se lugar tiver que designar um espaço na realidade objetiva - e seu caráter insecável - localização e in- secabilidade que atribuem, então, uma materialidade singular ( as- sim Lacan traduz o termo inglês odd) ao significante. Essa 1. E. 257. 2. E. 23. A CIÊNCIA DA LETRA 37 mesma materialidade singular no que tem de inquantificável. 3 De outro lado, Função e campo da fala, onde, partindo esta vez da questão da relação da linguagem com o corpo, a linguagem se de- signa como não sendo imaterial ("Ela é corpo sutil, diz Lacan, mas é corpo."4); isto se apóia tanto sobre certas formas de soma- tização, histérica por exemplo ("as palavras são tomadas em to- das as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar o histérico, identificar-se com o objeto do penis-neid etc ... ") quan- to sobre a possibilidade, no caso das palavras, de "sofrer lesões simbólicas", de "realizar os atos imaginários cujo sujeito é o pa- ciente" (como, por exemplo, em "O homem dos lobos", a palavra Wespe (a vespa) castrada em seu W inicial para construir, preci- samente, as iniciais S.P. do sujeito). Dizer que a letra é o suporte material que o discurso concre-, to toma emprestado à linguagem quer, pois, dizer, em tais con- · <lições, isto é, com a condição de· levar em consideração o deslo- camento a que Lacan submete cada um desses termos, que, de um lado (e seguindo uma formulação clássica), o sujeito tome emprestado, no instante do ato da elocução ( que é o ato da re- lação com outrem), do material constituído que lhe é fornecido pela linguagem; que, por outro lado, o sujeito só entra na transin- dividualidade na proporção em que já esteja implicado num dis- curso por sua vez suportado, istq é, ele próprio determinado pela instância dessa materialidade singular que a letra é. O acento carregado sobre a materialidade é pelo menos o signo de uma dupla recusa: a recusa de atribuir à linguagem uma origem, ou na idealidade do sentido ou em seu simples avesso, uma materialidade somática, por exemplo. Portanto, nem idea- lismo nem materialismo, se bem que o acento esteja colocado de . preferência, após ter sido falseado, sobre o segundo désfes dois termos. Esta dupla recusa, que compromete toda a determinação lingüística do inconsciente, será, aliás, o corolário de uma outra recusa relativa ao estatuto do próprio inconsciente. O inconscien- \ te não será o local onde estão sediados os instintos. Portanto, se 3. E. 23,24. 4. E. 301. 38 O TÍTULO DA LETRA se trata de uma materialidade da linguagem como do inçonscien- te, de forma alguma esta materialidade deve ser pensada, pelo menos de acordo com o que se credita ao materialismo clássico, como unia materialidade substancial. A letra é matéria, mas não é substância. E é este termo inqualificável, aparentemente irre- dutível a todas as oposições da conceitualidade filosófica tradicio- nal, que, doravante, ocupará o "lugar mestre" {se é que se pode, ainda, falar assim) naquilo que, a partir de Freud, é indicado sob o nome de inconsciente. · Mas esta teoria da letra compromete, também, num segundo momento, a pré-inscrição do sujeito, por seu nome próprio, no discurso: O sujeito também, se ele pode parecer servo da linguagem, o é mais ainda de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito ao nascer, mesmo que fosse sob a forma de seu nome· próprio. (E. 495) Tal pré-inscrição agrava a implicação, já reconhecida, do su- jeito na linguagem. Ela reforça sua literalização. O sujeito do dis- curso concreto é não somente submisso à linguagem enquanto es- trutura mas, ainda, previamente, à realização da linguagem no -,; próprio discurso. É que, para Lacan, não há sujeito que não saja já sempre sujeito social, isto é, sujeito da comunicação em geral: o que Lacan descreve em termos afinal muito próximos daqueles do discurso clássico da antropologia filosófica. O sujeito da co- municação é, de fato, o sujeito de um contrato pelo qual a pala- - · vra se garante. Assim é que, na terceira divisão do texto (La /ettre, l'être et l'autre), quando se tratará de definir o Outro (com um grande O) cujo inconsciente é o discurso, isto é, quando se tratará de desprender o sujeito do inconsciente de toda identidade consi- go mesmo e, até, de toda alteridade simples, para designá-lo em sua "excentricidade" e sua "heteronomia" radicais, Lacan, em se- guindo de bem perto, como acontece muitas vezes, a dialética he- geliana do desejo, do conflito e do reconhecimento, deformar- Ihe-á o processo e perturbar-Ihe-á os efeitos por meio de um re- curso simultâneo à teoria dos jogos e a essa doutrina do contrato, de tal forma que o reconhecimento possa aparecer como o reco- nhecimento da palavra, que _não supõe o ~utro como u111:~ori- A CitNCIA DA LETRA 39 gem, mas como a própria regra do funcionamento da linguagem, aquilo a partir do que a linguagem pode determinar-se em sua dupla função de verdade e de mentira. O sujeito será, pois, insta- lado pelo Outro no seio da linguagem como "convenção signifi- , cante" (E. 525), convenção cujas regras determinarão o lugar do próprio sujeito e garantirão, fosse ela mentirosa, a verdade de sua ; palavra - uma vez que a mentira não é nada de animal, nada que possa reduzir-se ao fingimento natural submetido à necessidade. . Portanto, a literalização remete também a uma teoria do· contrato, da passagem convencional da animalidade à humanida- de. Trata-se, se se quiser, de um rousseauismo, mas a célebre di- ficuldade do segundo Discurso relativa à anterioridade da lingua- gem ou do estado de sociedade seria cortada em favor da lingua- gem e, por isso mesmo, anulada. Isso, aliás, é o que marca aqui, nitidamente, a passagem que nos interessa: essa segunda sujeição do sujeito representada por sua pré-inscriçãonominal não se fun- damenta sobre a anterioridade da comunidade ou da sociedade em relação com o indivíduo, mas, sim, sobre a anterioridade da linguagem em relação ao indivíduo. A sociedade do sujeito laca- nim10 confunde-se com à primitividade radical da letra. É sua li- teralidade. Vem daí o recurso ao conceito de uma tradição ori- ginária, instauradora, anterior à própria história e produzida pelo . discurso (E. 4%). Daí, ainda, a referência implícita, no segundo parágrafo dessa página, a Levi-Strauss, isto é, ao deslocamento da · antiga oposição natureza/sociedade para a a tripartição nature- ;, · za/sociedade/cultura, onde a cultura, que se reduz à linguagem, é,. precisamente encarregada de assegurar a partilha entre natur~za · ~ sociedade. Daí, por fim, a alusão ao debate soviético, podado, como se sabe, por Stalin, a respeito da superestruturalidade da linguagem. Tais precisões visam, juntas, a recusar qualquer inflexão et- no-lingüística da teoria do sujeito, mas compreende-se, também~ ·~ desde então, que todo este contratualismo não está aí apenas pa- ra preparaJ" a instalação da teoria do sujeito no seio da única ciência que possa convir-lhe. Esta ciência, acredita-se, é a ciência da letra. Mas o fato de 40 O TÍTULO DA LETRA querer fundá-la não significa dizer que seja sem origem nem mesmo, de certa forma, que já não esteja criada. A ciência da le- tra não deixa de estar relacionada, de fato, com a lingüística, pelo menos enquanto a teoria do sujeito deve submeter-se a uma teo- ria da linguagem. Por isso é que se pode considerar que esta pri- meira parte acaba no apelo feito por Lacan à fundação saussuria- na da lingüística como ciência. Apelo que é formulado nos pró- prios termos da epistemologia contemporânea, isto é, ao mesmo tempo na evocação do estatuto experimental da lingüística, fiador da científicidade de seu objeto (E. 496) e na aplicação do conceito bachelardiano de ruptura5 ao gesto fundador de Saussure. É sobre tal "emergência" da lingüística, uma "revolução do conhecimen- to", que é preciso, portanto, ajustar, na medida em que desclassi- fica e reclassifica todas as ciências, uma teoria do sujeito sem re- lação com qualquer antropologia ou qualquer psicologia que seja. A não ser que não se trate do movimento inverso e que não seja de deslocamento introduzido pela lingüística que deva produzir- se uma ciência do sujeito. Por ora, uma reciprocidade impossível de desfazer-se, salvo a se notar que, se se deve seguir ainda passo a passo o movimento deste texto, é bem da lingüística que proce- de a ciência do sujeito para ir-se constituindo progressivamente. Isto é o que tentaremos reconstruir em cima de uma segunda parte, dividida entre as páginas 497 e 501 do texto a que damos o nome de o algoritmo e a operação. 5. É, sem dúvida, mais exatamente, a uma combinação dos conceitos de re- fundição e de ruptura, tais como os encontramos em Bachelard, que a alusão de Lacan nos remete, pp. 496-497. 2 O ALGORITMO E A OPERACÃO , Trata-se, pois, de visar, na lingüística aberta por Saussure, a ciência da letra. Do conceito de ruptura epistemológica ao qual implicitamen- te referiu-se,' Lacan retém, aqui, este elemento segundo o qual requer-se de uma ciência que ela seja instituída com base não no simples tratamento de um novo objeto empírico, mas na determi- nação prévia de um modo de cálculo ( e de uma conceitualidade correspondente), somente a partir do que se pode construir um objeto de ciência. É tal determinação que Lacan interpreta como a posição inaugural de um algoritmo: Para apontar a emergência da disciplina lingüística, diremos que, como no caso de qualquer ciência no sentido moderno, parece- se, no momento de se constituir, com um algoritmo que a fundamen- ta. (E. 497) Fazer uso deste termo, porém, equivale, pelo menos, a esten- der todos os .conceitos da epistemologia bachelardiana. De fato, se o algoritmo designa, em seu primeiro sentido, um processo de cálculo algébrico, sabe-se que, em seu sentido moderno, designa um processo de notação diferencial. Mais precisamente, o .algo- ritmo designa um tal processo como constitutivo de uma lógica para a qual, sabemos, as duas expressões de lógica algoritmica e 42 O TÍTULO DA LETRA de lógica simbólica são equivalentes. Vê-se, pois, em que sentido pode-se, aqui, falar de extensão: é uma extensão por transborda- mento dos limites do domínio estritamente matemático. A não ser que, bem entendido, o algoritmo não seja empregado aqui por conceito no sentido epistemológico (tal como se define, por exemplo, em Canguilhem). Então, tratar-se-ia simplesmente do conceito de signo, do qual poder-se-ia, quem sabe, dizer, de fato, que ele instaura a lingüística como ciência. Mas, neste caso, a no- tação proposta por Lacan: ~ não seria senão uma notação for- mal, isto é, econômica, do cC:nceito de signo. Ora, Lacan fala bem de formalização (E. 497), e da formalização no sentido moderno, enquanto ela torna possível um cálculo lógico. E, aliás, é de um cálculo que, aparentemente, se tratará,- na segunda divisão (A le- tra no inconsciente), quando for o caso de estabelecer as fórmulas da metáfora e da metonímia (E. 515). Por ora, portanto, é preciso tomar algoritmo no sentido estrito. Veremos que, de fato, trata-se essencialmente de fazer o sig- no saussuriano passar por um certo tratamento. Algoritmizar o signo, se é que se pode arriscar tal expressão, será o mesmo, pra- ticamente, que impedi-lo de funcionar como signo. Digamos mesmo que, em o colocando, o estaremos destruindo. Com efeito, é do algoritmo que Lacan diz que "ele merece ser atribuído a Ferdinand de Saussure, se bem que não se reduza estritamente a essa forma em n~nhum dos numerosos esquemas sob os quais ele aparece em ( rif'. .. Curso de lingüística geral" (E. 497). Algo forçado, ou, como diz Lacan, "homenagem" que se apóia em que o ensino de Saussure é "um ensino digno desse nome, isto é, que só é possível deter com base em seu próprio movimento". De fato, encontramos em Saussure o esquema seguinte1, en- tre muitos outros, o mais próximo, sem dúvida, do algoritmo la- caniano: 1. Cours, p.159. O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 43 Se o compararmos com o algm:itmo, perceber-se-á que ali o significante aparece sob a barra (aliás, todos os esquemas de Saussure são, sob este ponto de vista, idênticos) e que, mesmo que se levasse em conta a simbolização atribuída por Barthes a ste. Saussure: --que, também ela, inverte o esquema saussuriano sdo. (se bem que Barthes o interprete em termos estritamente saussu- rianos2), ter-se-á que lidar sempre, na realidade,. com um proces- so de notação cômodo. Em contraposição, quatro traços princi- pais distinguem o algoritmo: 1. O desaparecimento de um certo ·paralelismo entre os ter- mos inscritos de um e de outro lado da barra, l!Ína vez que não se deve só ler, como o indica Lacan, "significante sobre significado", mas "S grande" sobre "s pequeno" ( este, aliás, escrito em itálico). 2. O desaparecimento da elipse saussuriana, jamais ausente e símbolo, sabe-se disso, da unidade estrutural do signo. 3. A substituição da fórmula saussuriana das duas faces do signo pela designação de duas etapas do algoritmo. 4. Por fim, o acento colocado sobre a barra que separa S de s. (O algoritmo lê-se, de fato: "significante sobre significado, o sobre correspondendo à barra que separa suas duas etapas".) É bem isso, aliás, que o próprio Lacan destaca no comentário que propõe a respeito desse algoritmo: A temática desta ciência ( a lingüística) está, a partir de então, pendente da posição primordial do significante e do significado, co- mo ordens distintas e ·~paradas m.Ci~lriiéíi.!!Jlor uma ~ra resis- tente. à significação. (E. 4~7) -·- --~ ---- Mas, na verdade, é para logo acrescentar: É isso que tomará possível um exato estudo das ligações pró- prias do significante e da amplitude da função delas na gênese do significado. Não somente, pois,a posição de duas ordens distintas do sig- nificante e do significado endurece uma oposição sem dúvida efe- 2. Eléments de sémiologie, II. 4. ! 44 , O TÍTULO DA LETRA tiva presente em Saussure, mas sempre corrigida pela idéia de uma relação constitutiva do signo em sua indissociabilidade ( é, por exemplo, a célebre imagem do rosto e do verso de uma mes- ma folha, ou, então, a dupla indicação de setas investida que en- quadra, na maioria dos casos, o esquema do signo )3; mas, mais radicalmente, a separação dessas duas ordens por uma barreira resistente à significação subverte de parte a parte a concepção saussuriana do signo. Ali, no ponto em que, para Saussure, a re- lação ( ou a reciprocidade ou a associação) é o inicial, Lacan in- troduz uma resistência tal que a transposição da barra, a relação do significante com o significado, resumindo, a produção da pró- pria significação jamais serão evidentes - é o menos que se pode dizer. O deslocamento operado sobre Saussure não depende, por- tanto, primeiramente e simplesmente como muitas vezes se diz, da autonomização do significante. A autonomia do significante é efe- tiva, mas secundária. Ela depende - e o texto que acabamos de citar, de um parágrafo a outro, indica~o explicitamente - da pró- pria resistência. O que é primordial (e fundador) é, de fato, a barra. O corte por meio do qual é instaurada a ciência da letra nada mais é, afinal, que o corte introduzido ( ou, pelo menos, acentuado) no signo. A ciência da letra, de um mesmo movimento, instala-se, pois, na lingüística e a destrói. Posição paradoxal - no final de tudo; insustentável. Como fundar uma ciência cujo elemento fundador a gente destrói? Como destruir uma ciência da qual, no entanto, mantemos todos os conceitos? Pode-se mesmo, porque é bem es- te o caso, refundar, ou refundir uma ciência já constituída opon- do-se, em seus próprios termos, àquilo que a constitui como ciên- cia? É mais que uma posição insustentável, é uma tarefa impossí- vel. A ciência da letra seria este impossível: uma lingüística sem teoria do signo. Como poderia isto funcionar? 3. O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 45 Na verdade, isto não funciona. Ou não dessa forma. Não é por acaso que, a esta altura do texto, abre-se uma espécie de parênteses que adia ou suspende, pelo tempo de uma página re- torcida e difícil, a demonstração. Aparentemente, trata-se de marcar ali, como que para manter a memória, o investimento, is- to é, o alcance exato dessa ruptura introduzida no pensamento do signo: nada menos, dir-se-ia, que o fechamento e a condenação de toda problemática filosófica do signo. Realmente, o movimen- to que está anlllldado aqui é muito mais complexo ou, se se pre- ferir, mais equívoco. A problemática filosófica do signo é a questão do arbitrário: "Esta distinção primordial (o corte do signo) vai muito além [diz Lacan] do debate referente ao arbitrário do signo tal como foi elaborado desde a reflexão antiga ... " (E. 497). Um falso debate, ou debate em vão, uma vez que, no fechamento desta questão, todas as respostas que se podem criar "desviam-nos do lugar de onde a linguagem interroga-nos sobre sua natureza" (E. 498). Mas por que, exatamente? De fato, não é o arbitrário do signo como tal que é questio- nado. Ao final de tudo, pode-se mesmo perguntar se não seria preciso dizer: ao contrário. Isto porque o que está sendo questio- nado é uma certa maneira de ter colocado a questão do arbitrário ou, mais exatamente, o tratamento da linguagem que é imposto por uma certa posição do arbitrário. Esta posição do arbitrário é ó reconhecimento, digamos pós-cratyleano, da aporia da referên- cia: "O impasse [diz Lacan] experimentado desde a mesma épo- ca que se opõe à correspondência bi-unívoca da palavra com a _coisa.!....mesmo que fosse apenas no ato de denominação" (E. 497). Em outras palavras, o "mal" todo vem do fato de ter-se pensado a linguagem em relação à coisa. Pois, a partir da ruptura entre o signo e a coisa, quase não é mais possível ir além da resposta agostiniana4 (nenhuma "significação que não seja sustentada senão por remeter a uma outra significação", E. 498) ou da so- lução conceitualista e nominalista ("Se formos comprimir a cons- tituição do objeto dentro da linguagem, não poderemos senão 4. Lacan apela, aqui, ao De Magistro. 46 O TÍTULO DA LETRA constatar ali que ela apenas se encontra ao nível do conceito, bem diferente de algum denominativo, e que a coisa, em se reduzindo evidentemente ao nome, parte-se no duplo · raio divergente da causa onde foi abrigar-se em nossa língua e do nada a quem abandonou sua veste latina (rem)", E. 498). Sendo o signo arbitrário, quase não é possível, em outros termos, ir além do rçconhecimento da ligação necessária entre significante e significado. E é precisamente dentro deste reconhe- cimento - que, em suma, recobre até nós, mais ou men_os expli- citamente, o campo todo da metafísica - que a lingüística, em seu conjunto, permanece presa. A lingüística, ou sua duplicata de- sajeitadamente filosófica, o neopositivismo lógico. Esta é a_ ràzão pela qual, aliás, Lacan não culpa diretamente Saussure ( cuja hesi- tação quanto à questão do arbitrário é sabida), mas as emendas ulteriores, das quais, todavia, não se pode dizer que possam ser o efeito de s~a própria cientificidade. Seja, por exemplo, o fato - numa alusão à desmotivação de Benveniste5 - esta atestação que regula a dificuldade do arbitrário do significante, "que não há lín- gua atual à qual se apresente a questão de sua insuficiência t.m cobrir o campo do significado, sendo um efeito de sua existência como língua o responder a todas as necessidades" (E. 498); ou, ainda, no lógico-positivismo, aquilo que obriga à reduplicação da questão do sentido, "à cata do sentido do sentido" (id. ), isto é, a levantar a questão do sentido de um sistema de significações fe- chado sobre si mesmo. A linguagem não deve, p~is, ser pensada a partir do signo. E é por esta razão, em suma, que, desde o pensamento do signo, is- to é, desde pensamento que "desmotiva" o signo para melhor "motivar", em sua relação com o significado, o significante, não se pode transgredir a lei da representação: lei que é a própria ilusão. Tais considerações, por mais atuais que sejam para o filósofo, desviam-nos do lugar de onde a linguagem interroga-nos sobre sua natureza. E fracassará quem tentar sustentar a questão enquanto não estiver desprendido da ilusão de que o significante responde à 5. Cf. "Nature du signe linguistique" (1939), in Problemes de linguiscique générale, p. 49 e ss. O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 47 função de representar o significado, ou melhor dizendo: que o signi- ficante tenha que responder por sua existência ao título de qualquer significação. (E. 498) Compreende-se melhor agora, sem dúvida, em que sentido, com vistas a , assegurar a ciência da letra, trata-se de separar à força da filosofia do signo a lingüística; em que sentido é preciso destruir o signo. Consiste isto em trabalhar o signo até destruir nele toda função representativa, isto é, a própria relação de signi- ficação. Aí está precisamente o papel e a função do algoritmo. O z< algoritmo qão é o~ Ou melhor: o algoritmo é o signo en- (fj quanto não significa (sobre o modo da representação do signifi- cado pelo significante). Poder-se-ia, talvez, arriscar-se a escrever: o algoritmo é o signo (cancelado). Signo sob canceladura de pre- ferência a signo destruído. Não funcionando. Nenhum dos concei- tos da teoria do signo desaparece: significante, significado, signifi- cação ainda estão ali. Séu sistema, no entanto, é subvertido, per- vertido. É justamente esta perversão do sistema do signo que é urdida pela operação armada em cima do algoritmo. De fato, uma vez instalado o corte no signo (a barra acentuada), a operação recai essencialmente sobre o significante: trata-se de fazer o significan- te sofrer um deslocamento tal que não se possa mais, doravante, tomá-locomo um elemento do signo, mas que seja preciso, de- baixo do antigo nome, visar ou encarar um conceito (ao menos) paradoxal: aquele de um significante sem significação. É a razão por que ãoperaçao consiste em lazer a diferença entre o esquema saussuriano do signo e o esquema do algoritmo. Isto prova, e desta vez definitivamente, que o algoritmo ~ não s é, como tal, comparável com o esquema de Saussure. De fato, apenas sua ilustração é-lhe comparável. O esquema de Saussure escolhido por Lacan é o esquema da árvore. Sabe-se que Saussure desenhava-o assim6: 6. Cours, p. 99. 48 O TÍTULO DA LETRA l Lacan o reproduz, pois, invertendo-o e suprimindo-lhe a elip- se e também as duas flechas da associação: ÁRVORE A seguir, opõe-lhe o esquema do algoritmo ( esquema que é importante reproduzir aqui, e ver-se-á logo por que, incluindo os trincos de porta): HOMENS DAMAS LJ LJ Isto funciona como uma espécie de duplicata paródica do es- quema saussuriano. Mas em que consiste exatamente a diferen- ça? ... vê-se [diz Lacan] que, sem estender muito o alcance do significan- te interessado na experiência, seja redobrando-lhe somente a espécie nominal apenas pela justaposição de dois termos cujo sentido com- plementar parece dever consolidar-se com isso, a surpresa é produ- zida por uma precipitação inesperada do sentido: na figura das duas O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 49 portas iguais que simbolizam, com o mictório à. disposição do ho- mem ocidental para que faça suas necessidades fisiológicas fora de casa, o imperativo que parece partilhar com a grande maioria das comunidades primitivas e que sujeita a vida pública às leis da segre- gação urinária. (E. 500) Decomponhamos: 1. Dois termos inscrevem-se acima da barra, no lugar do sig- nificante (ou da "figura acústica" de Saussure). Primeiro momen- to da operação: a duplicação do significante ou, mais exatamente, a introdução de uma dualidade no significante, isto é, de uma di- ferença. No sistema saussuriano, esta justaposição (possível, é claro) teria feito a diferença atuar como consolidação do valor de cada um dos dois termos - e, portanto, de valor complementário deles. Mas precisamente este esquema não é saussuriano. Com efeito: 2. No lugar do significado ( ou do conceito) esperado - de- veriam ser, por exemplo, silhuetas masculina e feminina - encon- tra-se "a figura das duas portas". Ou, então, ainda o esquema to- do reproduz ou figura um dispositivo bem real (uma edícula pú- blica ou, pelo menos, sua fachada) ou, bem, no lugar do significa- do, e apagando-o, introduziu-se urna outra função. Lacan, numa formulação particularmente ambígua (pelo fato de interdizer, aparentemente, que se possa decidir entre o simbólico e o real), fala de simbolização: "A figura de duas portas ... que simbolizam com o mictório [a indecidibilidade está, aqui, neste "com"] ... o imperativo etc.". Voltaremos, num instante, a este equívoco. Di- gamos simplesmente aqui que, em lugar do significado, introduz- se a simbolização·de uma lei, que é uma lei de segregação sexual que Lacan indica bem como sendo praticamente universal - e co~parável neste ponto às leis gerais da cultura. 3. Por fim, a passagem do significante nesta simbolização ( o equivalente, portanto, ao processo por onde é gerada a signifi- cação) é dada como uma "precipitação do sentido". Formulação notável, mais uma vez, uma vez que se presta pelo menos a três interpretações, não obstante, engraçadas: porque isso pode, também, querer dizer que o sentido cai de cabeça para baixo (e não se diz onde ... ) ou que o.sentido vai depressa demais, curto- circuitando o significado (o homem e a mulher, como conceitos, y 50 O TÍTULO DA LETRA quase não são mais audíveis a não ser através da porta) ou, enf(m, que o sentido precipita-se no sentido químico da palavra, isto é, que se deposita como tal no meio ou na solução do significante. Vê-se, logo, que a "sideração" (por meio de um golpe baixo) do debate nominalista (E. 500) consiste em suprimir pura e simplesmente toda a questão da referência ( compreendida como determinando a posição do significado) para substituí-la por um "acesso" do significante ao significado (E. 501), uma "entrada" do significante no significado (E. 500) através ou, antes, por meio do jogo do único significante, confirmado aqui em sua tríplice de- terminação: materialidade /localização/ simbolização. É este processo da "significação" que se trata, agora, de re- constituir; pelo menos o primeiro tempo deste processo, se se de- ve reconhecer, em seguida, que o esquema algorítmico, por si só, não permite assegurar até o fim a produção do "sentido". O que fundamenta o processo aqui descrito, em seu conjunto, é, como acabamos de ver, a lei da segregação urinária, isto é, a lei como lei da diferença dos sexos. Digamos, para manter a fidelida- de à terminologia do texto, o imperativo. Este imperativo deter- mina, por sua vez, uma separação material inscrita pelo signifi- cante como lugares distintos ( o duplo mictório - e é preciso, sem dúvida, tomar a palavra mictório no sentido maisforte). O significante é, pois, a diferença dos lugares, a própria possibilida- de da localização. Daí vem sua materialidade "singular", como é dito (quem não se lembra?) no Seminário sobre ·~ carta rouba- da". Não se divide em lugares, divide os lugares - isto significa que ele os institui. Isto equivale dizer, se se preferir, que não há divisão por existir matéria, mas, inversamente, que existe matéria por haver divisão. Sobre esses lugares, aliás, o significante lingüís- tico Homens/Damas não se inscreve para remeter diretamente ao significado (os "conceitos" de homem e de mulher), mas ins- creve-se só a si mesmo como diferença. Ou seja, exatamente Homens cfa Damas, isto é, a própria lei. Isso pode-se considerar, de fato, como sendo símbolo por duas ve.zes: 1. No sentido da lógica simbólica ou algorítmica na medida O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 51 em que, aqui, tem-se que lidar apenas com marcas diferenciais ( cuja relação é comparada, sabe-se bem, pela teoria da lógica simbólica à relação dos lugares numa topologia). Daí, o exemplo do míope, nesta mesma página 500: "porque, ao ter que aproxi- mar-se das plaquetas esmaltadas que o suportam [o significante], o olhar piscante de um míope estaria, talvez, justificado para questionar se é bem ali que é preciso ver o significante, cujo signi- ficado, neste caso, receberia da dupla e solene procissão da nave .'"': superior as últimas honras". O míope não decifra, portanto, nem a significação, se é que podemos dizê-lo, da fachada da edícula, nem o significado do significante inscrito (Homens, Mulheres), mas, sim, a própria diferença dos lugares. Isto é, para esquemati- zar grosseiramente, mais ou menos isto: (H) ---:/=~(D) Quer dizer, ainda, o lugar que lhe é destinado, por exemplo, enquanto homem. Existe, pois, sob a barra, o mictório que lhe convém e não o significado (homem) ao qual seria preciso, de ou- tro modo, atribuir a própria função do mictório: ou seja, receber as "últimas honras" dos homens e das mulheres separados pelo significante em uma dupla procissão. Witz que só é evidentemente possível, como se observará, se se jogar com a ambigüidade do esquema, que pode ser realista ou simbólica - ambigüidade cui- dadosamente tecida ela mesma no interior de todo este texto e, em particular, na proposição que citávamos logo atrás: " ... a ima- gem de duas portas idênticas que simbolizam ... com o mictório ... o imperativo etc.", que pode ler-se, portanto: - ou bem: a figura de duas portas idênticas que, com o mictório, simbolizam o imperativo ... - ou bem: a figura de duas portas idênticas que simbolizam a um só tempo o mictório e o imperativo. 2. No sentido clássico da palavra, na medida em que o sím- _bolo não é completamente desmotivado, mas retém sempre al- guma coisa do real ao qual é referência ( é, por exemplo, o "laço natural" de que fala Saussure).
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