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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL VAMOS FALAR SOBRE O ÁLCOOL NEM TODOS OS INDIVÍDUOS QUE FAZEM USO DE ÁLCOOL EM ALGUM MOMENTO EM SUA VIDA PERMANECEM USANDO-O E NEM TODOS AQUELES QUE USAM A SUBSTÂNCIA FAZEM UM USO DEPENDENTE DA MESMA. COMO EXPLICAR ESSA DIFERENÇA? POR QUE NEM TODOS QUE EXPERIMENTAM UMA DROGA PASSAM A FAZER UM USO DISFUNCIONAL DELA? ^ flA li o ; ' — — 1 i a 08AD C O N S U M O D E Á L C O O L E O U T R A S D R O G A S C O N F I G U R A - S E C O M O UM G R A V E P R O B L E M A D E S A Ú D E P Ú B L I C A NO B R A S I L E NO M U N D O ( O R G A N I Z A Ç Ã O M U N D I A L DA S A Ú D E , 2014). D E A C O R D O C O M A O R G A N I Z A Ç Ã O M U N D I A L DA S A Ú D E (OMS) , D R O G A É Q U A L Q U E R S U B S T Â N C I A Q U E N Ã O É P R O D U Z I D A P E L O NOSSO O R G A N I S M O E Q U E AO S E R C O N S U M I D A P O D E G E R A R A L G U M A M O D I F I C A Ç Ã O E M U M OU M A I S S I S T E M A S DO NOSSO C O R P O , P R O D U Z I N D O A L T E R A Ç Õ E S E M S E U F U N C I O N A M E N T O . S Ã O C H A M A D A S D E D R O G A S P S I C O T R Ó P I C A S OU D R O G A S P S I C O A T I V A S S U B S T Â N C I A S Q U E G E R A M A L G U M A M O D I F I C A Ç Ã O NO NOSSO S I S T E M A N E R V O S O C E N T R A L (SNC) . oÊoshfi-a e-,-,. As drogas psicoativas podem ser classificadas de acordo com o efeito que exercem no SNC. As substâncias que estimulam e au- mentam a sua atividade, promovendo estados de alerta no indivíduo, aumento dos batimentos cardíacos e consequente aumento da pres- são arterial, são chamadas de estimulantes. Aquelas que perturbam L*ç sua atividade, promovendo alterações em seu funcionamento, como delírios e alucinações, e distorções de tempo e espaço, são chama- das de perturbadoras ou alucinógenas. ]á aquelas que diminuem a sua atividade, favorecendo o relaxamento muscular, a redução do uo osr sbBidoo I N T R O D U Ç Ã O - VAMOS FALAR SOBRE O Á L C O O L ? estado de alerta e induzindo ao sono, afetando a coordenação motora e o processo de aprendiza- gem e memorização, são chamadas de depresso- ras. O álcool, os benzodiazepínicos, os inalantes e os opiáceos são exemplos de drogas classificadas na última categoria citada (SUPERA, 2015). Dentre os depressores do SNC, tanto o álcool quanto os inalantes possuem uma característica peculiar, apresentando um efeito bifásico em nos- so organismo. Ao ser ingerido, em um primeiro momento, o álcool estimula a atividade do SNC, fazendo com que o indivíduo se sinta mais agi- tado, mais alerta, mais falante. Em um segundo momento, a medida que o indivíduo vai aumen- tando o número de doses consumidas, esse efeito estimulante cessa e entra em cena o efeito depres- sor (principal característica, por isso ele é classi- ficado desta forma), na qual a atividade do SNC é rebaixada, trazendo como consequências uma redução do estado de alerta, comprometimento da atividade motora, da fala e do sistema respiratório, podendo levar o indivíduo ao coma alcoólico de- pendendo da quantidade de doses consumidas em uma mesma ocasião. Dados de levantamentos domiciliares sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Dro- gas (CEBRID), em parceria com a Secretaria Nacio- nal de Políticas Sobre Drogas (SENAD), nos anos de 2001 e 2005, apontam que o álcool é a substância psicoativa mais consumida no nosso país. A por- centagem daqueles que fizeram uso na vida de álcool passou de 68,7% em 2001 para 74,6% em 2005 e a porcentagem daqueles que fizeram uso no ano dessa substância foi de 49,87o da população inves- tigada em ambos os anos. Os levantamentos apon- tam, ainda, que a porcentagem de dependentes de álcool em 2001 era de 11,27. e em 2005 esse número passou para 12,37., um aumento considerado não significativo estatisticamente (Carlini, Galduróz, Noto, & Nappo, 2002; Carlini et al., 2006). Esses dados mostram que nem todos os i n - divíduos que fazem uso de álcool em algum mo- mento em sua vida permanecem usando-o e que nem todos aqueles que .usam a substância fazem um uso dependente da mesma. Como explicar essa diferença? Por que nem todos que experimentam uma droga passam a fazer um uso disfuncional dela? Para entender essa diferença é preciso, p r i - meiro, entender o que compreendemos como pa- drão de uso disfuncional e/ou dependente de uma droga, mais especificamente, o do álcool. De acordo com o Manual Diagnóstico e Es- tatístico de Transtornos Mentais em sua 5̂ edição (DSM-V) (American Psychiatric Association, 2014), o que caracteriza a presença de um Transtorno por Uso de Substâncias, inclusive o Transtorno por Uso de Álcool, é a presença de sintomas cog- nitivos, comportamentais e fisiológicos associados a um uso contínuo e persistente da substância, apesar de jâ instalados problemas significativos decorrentes deste uso, ou seja, verificase um pa- drão patológico do uso da droga. Os sintomas observados para o diagnóstico de Transtorno por Uso de Substâncias podem ser compreendidos como categorias relacionadas ao baixo controle sobre o uso da substância (o indi- víduo já não consegue mais controlar o início e o término do uso, além de apresentar esforços mal sucedidos para reduzir ou cessar o seu consumo), a deterioração social (o indivíduo já apresenta prejuízos sociais devido ao uso da droga, como problemas interpessoais e fracassos em cumprir suas obrigações no trabalho, na escola e/ou no lar); o uso arriscado da substância (o indivíduo permanece consumindo a droga em situações onde o seu uso envolve risco a sua integridade física) e critérios farmacológicos (há a presença de tolerância do uso da substância e presença de sintomas de abstinência caso o indivíduo reduza ou cesse o seu consumo) (APA, 2014). Essa nova versão do DSM não traz mais em seu vocabulário a classificação em uso depen- dente ou não de uma certa categoria de droga, mas fala sim em um confnuum do uso da subs- tância especificando sua gravidade de acordo com a quantidade de sintomas apresentados pelo indivíduo, indo de um padrão leve de uso, pas- sando pelo moderado e chegando ao padrão g r a - ve de consumo. Não podemos especificar de forma objetiva o porquê de alguns indivíduos apresentarem um padrão grave de consumo de substâncias e ou- tros não. Essa é uma questão complexa e exige que pensemos em uma associação de fatores bio- lógicos, psicológicos, sociais e de contexto; fatores esses que vão desde uma predisposição genética do indivíduo a desenvolver um uso considerado grave à simples presença da substância no meio em que ele está inserido. Ou seja, não é apenas um fator por si só o responsável por alguns indivíduos desenvolverem um padrão disfuncional de uso de substâncias enquanto outros não. Há uma relação entre todos esses aspectos. Deste modo, ao tratar de um assunto tão complexo, temos que tomar o cuidado para não realizar conclusões simplistas. "Não podemos especificar de forma objetiva o porquê de alguns indivíduos apresentarem um padrão grave de consumo de substancias e outros não. Essa é uma ques- tão complexa e exige que pensemos em uma associação de fatores biológicos, psicológicos, sociais e de contexto." I N T R O D U Ç Ã O - VAMOS FALAR SOBRE O Ã L C O O L ? Ao propor intervenções voltadas para o uso de álcool e outras drogas, o profissional de saúde deve levar em consideração importantes fatores. Nessa tomada de decisão clínica, ele deve buscar qual o tratamento que apresenta suporte empírico e as melhores evidências científicas de efetivida- de para aquela área; além desse ponto, ele deve considerar, ainda, aspectos de sua prática clínica naquele campo e as preferências e características daquele paciente específico. A essa forma de atua- ção d á s e o nome de prática baseada em evidên- cias (Spring, 2007), prática que vem crescendo e alcançando cada vez mais adeptos em nosso país. O tratamento baseado na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem apresentado eficácia para diferentes transtornos psicológicos, inclusi- ve para Transtornos por Uso de Álcool. A TCC é uma abordagem terapêutica que surgiu a partir da Terapia Cognitiva proposta por Aaron T. Beck na década de 1960. A Terapia Cognitiva é uma abor- dagem psicoterapêutica ativa, estruturada, colabo- rativa e focada no presente; que tem como pre- missa fundamental de trabalho a importância da influência das cognições dos indivíduos em seus sentimentos e em seus comportamentos. Ou seja, a forma como o indivíduo se sente e se compor- ta está diretamente relacionada à forma como ele pensa. Pensamentos são formas de interpretar a realidade, de compreender as situações pelas quais as pessoas estão passando. Chamamos de pensamentos qualquer ideia, imagem ou lembran- ça que vem à cabeça de uma pessoa em algum momento. Por trás dos pensamentos de cada i n - divíduo temos o que na Terapia Cognitiva é con- ceituado como crenças. Crenças são ideias gerais e mais rígidas que temos dentro de nós e que nos fazem pensar de determinadas maneiras diante certas situações. Podemos dizer que as crenças são as raízes de nossos pensamentos. Beck e colaboradores propuseram o Mode- lo Cognitivo do Abuso de Substâncias na década de 1990 (Beck, Wright, Newman e Liese, 1993) re- conhecendo a importância de crenças disfuncio- nais relacionadas à substâncias na manutenção de comportamentos aditivos. Para ficar um pou- co mais claro, vamos imaginar a seguinte situa- ção relacionada a um alcoolista (dependente de "O tratamento baseado na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem apresentado eficácia para diferentes transtornos psicológicos, inclusive para Transtornos por Uso de Álcool." "Como vimos, o álcool é a substância psicoativa mais consumida em nosso país. porém, nem todos os que fazem uso dessa droga podem ser considerados usuá- rios dependentes." álcool): diante situações denominadas de situa- ções de risco (situações externas ao indivíduo, como passar em frente a um bar depois de um dia cansativo no trabalho; ou situações internas ao indivíduo, como um determinado sentimento), crenças relacionadas ao álcool são ativadas (como "somente o álcool me ajuda a relaxar"). A partir da ativação dessa crença, o indivíduo começa a ter determinados tipos de pensamentos (como "seria muito bom tomar uma cerveja agora") e a sentir fissura - um forte desejo para consumir a subs- tância. A partir daí, temos o que Beclc denominou de crenças permissivas - crenças que permitem o indivíduo fazer o uso da substância específica - (como "trabalhei o dia todo, eu mereço tomar uma hoje"). Dessa forma, o indivíduo coloca em ação o comportamento de beber, podendo fazer um uso continuado da substância e tendo uma recaída. O Modelo Cognitivo do Abuso de Substân- cias mostra como as crenças influenciam sobre- maneira no início e na manutenção do consumo de drogas. Neste sentido, a abordagem da Terapia Cognitivo-Comportamental busca identificar junto ao paciente quais são as suas principais crenças disfuncionais em relação à substância, fazendo uma reestruturação cognitiva. Utiliza, ainda, ou- tras técnicas cognitivas e comportamentais visan- do a mudança do comportamento aditivo. Como vimos, o álcool é a substância psicoa- tiva mais consumida em nosso país, porém, nem todos os que fazem uso dessa droga podem ser considerados usuários dependentes. Ao se propor uma intervenção para um usuário de substâncias, de acordo com a prática baseada em evidências, devemos levar em consideração, também, as ca- racterísticas e anseios dos pacientes, neste sen- tido, não podemos deixar de pensar que existem pessoas que não querem ou que não conseguem, em um primeiro momento, parar de usar drogas. A Redução de Danos (RD) é uma abordagem de i n - tervenção que engloba um conjunto de estratégias visando minimizar as consequências adversas e negativas do uso indevido de drogas. Em relação ao uso de álcool, a RD tem como meta a redu- ção gradativa do consumo da substância, podendo servir como um meio de se chegar a completa abs- tinência do uso (Niel & da Silveira, 2008). Dados apontam que nem todos aqueles que fazem um uso considerado problemático de subs- tâncias buscam atendimento (Carlini et al., 2002, Carlini et al., 2006) e um dos motivos que podem es- tar associados a essa baixa procura por tratamento é o estigma associado a esses indivíduos. Muitos usuários de álcool e outras drogas que poderiam se beneficiar de intervenções em saúde não o fazem devido ao rótulo negativo que podem receber dos próprios profissionais de saúde (Corrigan, 2004). Falar sobre álcool e outras drogas ainda é considerado um tabu em nossa sociedade. Neste sentido, abre-se um espaço grande para que dú- vidas e informações desprovidas de embasamento científico circulem e ganhem força. É preciso es- timular a educação em saúde neste campo, lem- brando que educar para a saúde significa muito mais que simplesmente transmitir conhecimentos; significa promover uma reflexão crítica a partir do conteúdo que é repassado. É preciso discutir e refletir com toda a sociedade o que são as drogas, desmistificando a temática e assumindo sua pre- sença entre nós. • Andressa Gumier tem graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); formação em Terapia Cognitiva pela Associação de Terapias Cognitivas do Estado do Rio de Janeiro (ATC-Rio); pós-graduação em Terapia Cognitivo-Comportamental com Crianças e Adolescentes pela faculdade Redentor e é mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF. Atualmente, é doutoranda em Psicologia pela UFJF e pesquisadora do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA). Email: andressabQumier@gmail.com < o ESPECIAL ALCOOLISMO VICIO A C E I T O E SILENCIOSO O uso excessivo de álcool é socialmente tolerado e até estimulado, o que o torna perigoso e incontrolável TRATAMENTO E APOIO FAMILIAR O alcoólatra precisa de constante apoio dos amigos e parentes para evitar a recaída, pois ele nunca deixaráiieseriim adicto TERgEM É I^mmTANT o tratamento da dependência químicí exige uma abordagem terapêutica centrada nas questões do paciéfflM em sua interação com a sociedade COMO TUDO COMEÇA Entender as origens do problema ajuda a evitar que ele se agrave e também auxilia na busca por um caminho de recuperação e reabilitação
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