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ESPECIAL ALCOOLISMO - Vamos Falar Sobre o Álcool - REVISTA PSICOLOGIA, N 032

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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL 
VAMOS 
FALAR 
SOBRE O 
ÁLCOOL 
NEM TODOS OS INDIVÍDUOS QUE FAZEM USO 
DE ÁLCOOL EM ALGUM MOMENTO EM SUA 
VIDA PERMANECEM USANDO-O E NEM TODOS 
AQUELES QUE USAM A SUBSTÂNCIA FAZEM UM 
USO DEPENDENTE DA MESMA. COMO EXPLICAR 
ESSA DIFERENÇA? POR QUE NEM TODOS QUE 
EXPERIMENTAM UMA DROGA PASSAM A FAZER 
UM USO DISFUNCIONAL DELA? 
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C O N S U M O D E Á L C O O L E O U T R A S D R O G A S 
C O N F I G U R A - S E C O M O UM G R A V E 
P R O B L E M A D E S A Ú D E P Ú B L I C A NO B R A S I L 
E NO M U N D O ( O R G A N I Z A Ç Ã O M U N D I A L DA 
S A Ú D E , 2014). D E A C O R D O C O M A O R G A N I Z A Ç Ã O 
M U N D I A L DA S A Ú D E (OMS) , D R O G A É Q U A L Q U E R 
S U B S T Â N C I A Q U E N Ã O É P R O D U Z I D A P E L O 
NOSSO O R G A N I S M O E Q U E AO S E R C O N S U M I D A 
P O D E G E R A R A L G U M A M O D I F I C A Ç Ã O E M U M OU 
M A I S S I S T E M A S DO NOSSO C O R P O , P R O D U Z I N D O 
A L T E R A Ç Õ E S E M S E U F U N C I O N A M E N T O . S Ã O 
C H A M A D A S D E D R O G A S P S I C O T R Ó P I C A S OU 
D R O G A S P S I C O A T I V A S S U B S T Â N C I A S Q U E G E R A M 
A L G U M A M O D I F I C A Ç Ã O NO NOSSO S I S T E M A 
N E R V O S O C E N T R A L (SNC) . 
oÊoshfi-a e-,-,. As drogas psicoativas podem ser classificadas de acordo com 
o efeito que exercem no SNC. As substâncias que estimulam e au-
mentam a sua atividade, promovendo estados de alerta no indivíduo, 
aumento dos batimentos cardíacos e consequente aumento da pres-
são arterial, são chamadas de estimulantes. Aquelas que perturbam 
L*ç sua atividade, promovendo alterações em seu funcionamento, como 
delírios e alucinações, e distorções de tempo e espaço, são chama-
das de perturbadoras ou alucinógenas. ]á aquelas que diminuem a 
sua atividade, favorecendo o relaxamento muscular, a redução do 
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I N T R O D U Ç Ã O - VAMOS FALAR SOBRE O Á L C O O L ? 
estado de alerta e induzindo ao sono, afetando a 
coordenação motora e o processo de aprendiza-
gem e memorização, são chamadas de depresso-
ras. O álcool, os benzodiazepínicos, os inalantes e 
os opiáceos são exemplos de drogas classificadas 
na última categoria citada (SUPERA, 2015). 
Dentre os depressores do SNC, tanto o álcool 
quanto os inalantes possuem uma característica 
peculiar, apresentando um efeito bifásico em nos-
so organismo. Ao ser ingerido, em um primeiro 
momento, o álcool estimula a atividade do SNC, 
fazendo com que o indivíduo se sinta mais agi-
tado, mais alerta, mais falante. Em um segundo 
momento, a medida que o indivíduo vai aumen-
tando o número de doses consumidas, esse efeito 
estimulante cessa e entra em cena o efeito depres-
sor (principal característica, por isso ele é classi-
ficado desta forma), na qual a atividade do SNC 
é rebaixada, trazendo como consequências uma 
redução do estado de alerta, comprometimento da 
atividade motora, da fala e do sistema respiratório, 
podendo levar o indivíduo ao coma alcoólico de-
pendendo da quantidade de doses consumidas em 
uma mesma ocasião. 
Dados de levantamentos domiciliares sobre 
o uso de drogas psicotrópicas no Brasil realizados 
pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Dro-
gas (CEBRID), em parceria com a Secretaria Nacio-
nal de Políticas Sobre Drogas (SENAD), nos anos de 
2001 e 2005, apontam que o álcool é a substância 
psicoativa mais consumida no nosso país. A por-
centagem daqueles que fizeram uso na vida de 
álcool passou de 68,7% em 2001 para 74,6% em 2005 
e a porcentagem daqueles que fizeram uso no ano 
dessa substância foi de 49,87o da população inves-
tigada em ambos os anos. Os levantamentos apon-
tam, ainda, que a porcentagem de dependentes de 
álcool em 2001 era de 11,27. e em 2005 esse número 
passou para 12,37., um aumento considerado não 
significativo estatisticamente (Carlini, Galduróz, 
Noto, & Nappo, 2002; Carlini et al., 2006). 
Esses dados mostram que nem todos os i n -
divíduos que fazem uso de álcool em algum mo-
mento em sua vida permanecem usando-o e que 
nem todos aqueles que .usam a substância fazem 
um uso dependente da mesma. Como explicar essa 
diferença? Por que nem todos que experimentam 
uma droga passam a fazer um uso disfuncional 
dela? Para entender essa diferença é preciso, p r i -
meiro, entender o que compreendemos como pa-
drão de uso disfuncional e/ou dependente de uma 
droga, mais especificamente, o do álcool. 
De acordo com o Manual Diagnóstico e Es-
tatístico de Transtornos Mentais em sua 5̂ edição 
(DSM-V) (American Psychiatric Association, 2014), 
o que caracteriza a presença de um Transtorno 
por Uso de Substâncias, inclusive o Transtorno 
por Uso de Álcool, é a presença de sintomas cog-
nitivos, comportamentais e fisiológicos associados 
a um uso contínuo e persistente da substância, 
apesar de jâ instalados problemas significativos 
decorrentes deste uso, ou seja, verificase um pa-
drão patológico do uso da droga. 
Os sintomas observados para o diagnóstico 
de Transtorno por Uso de Substâncias podem ser 
compreendidos como categorias relacionadas ao 
baixo controle sobre o uso da substância (o indi-
víduo já não consegue mais controlar o início e o 
término do uso, além de apresentar esforços mal 
sucedidos para reduzir ou cessar o seu consumo), 
a deterioração social (o indivíduo já apresenta 
prejuízos sociais devido ao uso da droga, como 
problemas interpessoais e fracassos em cumprir 
suas obrigações no trabalho, na escola e/ou no 
lar); o uso arriscado da substância (o indivíduo 
permanece consumindo a droga em situações 
onde o seu uso envolve risco a sua integridade 
física) e critérios farmacológicos (há a presença 
de tolerância do uso da substância e presença de 
sintomas de abstinência caso o indivíduo reduza 
ou cesse o seu consumo) (APA, 2014). 
Essa nova versão do DSM não traz mais em 
seu vocabulário a classificação em uso depen-
dente ou não de uma certa categoria de droga, 
mas fala sim em um confnuum do uso da subs-
tância especificando sua gravidade de acordo 
com a quantidade de sintomas apresentados pelo 
indivíduo, indo de um padrão leve de uso, pas-
sando pelo moderado e chegando ao padrão g r a -
ve de consumo. 
Não podemos especificar de forma objetiva 
o porquê de alguns indivíduos apresentarem um 
padrão grave de consumo de substâncias e ou-
tros não. Essa é uma questão complexa e exige 
que pensemos em uma associação de fatores bio-
lógicos, psicológicos, sociais e de contexto; fatores 
esses que vão desde uma predisposição genética 
do indivíduo a desenvolver um uso considerado 
grave à simples presença da substância no meio 
em que ele está inserido. Ou seja, não é apenas um 
fator por si só o responsável por alguns indivíduos 
desenvolverem um padrão disfuncional de uso de 
substâncias enquanto outros não. Há uma relação 
entre todos esses aspectos. Deste modo, ao tratar 
de um assunto tão complexo, temos que tomar o 
cuidado para não realizar conclusões simplistas. 
"Não podemos especificar de forma objetiva o porquê 
de alguns indivíduos apresentarem um padrão grave de 
consumo de substancias e outros não. Essa é uma ques-
tão complexa e exige que pensemos em uma associação 
de fatores biológicos, psicológicos, sociais e de contexto." 
I N T R O D U Ç Ã O - VAMOS FALAR SOBRE O Ã L C O O L ? 
Ao propor intervenções voltadas para o uso 
de álcool e outras drogas, o profissional de saúde 
deve levar em consideração importantes fatores. 
Nessa tomada de decisão clínica, ele deve buscar 
qual o tratamento que apresenta suporte empírico 
e as melhores evidências científicas de efetivida-
de para aquela área; além desse ponto, ele deve 
considerar, ainda, aspectos de sua prática clínica 
naquele campo e as preferências e características 
daquele paciente específico. A essa forma de atua-
ção d á s e o nome de prática baseada em evidên-
cias (Spring, 2007), prática que vem crescendo e 
alcançando cada vez mais adeptos em nosso país. 
O tratamento baseado na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem apresentado eficácia 
para diferentes transtornos psicológicos, inclusi-
ve para Transtornos por Uso de Álcool. A TCC é 
uma abordagem terapêutica que surgiu a partir da 
Terapia Cognitiva proposta por Aaron T. Beck na 
década de 1960. A Terapia Cognitiva é uma abor-
dagem psicoterapêutica ativa, estruturada, colabo-
rativa e focada no presente; que tem como pre-
missa fundamental de trabalho a importância da 
influência das cognições dos indivíduos em seus 
sentimentos e em seus comportamentos. Ou seja, 
a forma como o indivíduo se sente e se compor-
ta está diretamente relacionada à forma como ele 
pensa. 
Pensamentos são formas de interpretar a 
realidade, de compreender as situações pelas 
quais as pessoas estão passando. Chamamos de 
pensamentos qualquer ideia, imagem ou lembran-
ça que vem à cabeça de uma pessoa em algum 
momento. Por trás dos pensamentos de cada i n -
divíduo temos o que na Terapia Cognitiva é con-
ceituado como crenças. Crenças são ideias gerais 
e mais rígidas que temos dentro de nós e que nos 
fazem pensar de determinadas maneiras diante 
certas situações. Podemos dizer que as crenças 
são as raízes de nossos pensamentos. 
Beck e colaboradores propuseram o Mode-
lo Cognitivo do Abuso de Substâncias na década 
de 1990 (Beck, Wright, Newman e Liese, 1993) re-
conhecendo a importância de crenças disfuncio-
nais relacionadas à substâncias na manutenção 
de comportamentos aditivos. Para ficar um pou-
co mais claro, vamos imaginar a seguinte situa-
ção relacionada a um alcoolista (dependente de 
"O tratamento baseado na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem apresentado eficácia 
para diferentes transtornos psicológicos, inclusive para Transtornos por Uso de Álcool." 
"Como vimos, o álcool é a substância psicoativa mais 
consumida em nosso país. porém, nem todos os que 
fazem uso dessa droga podem ser considerados usuá-
rios dependentes." 
álcool): diante situações denominadas de situa-
ções de risco (situações externas ao indivíduo, 
como passar em frente a um bar depois de um 
dia cansativo no trabalho; ou situações internas 
ao indivíduo, como um determinado sentimento), 
crenças relacionadas ao álcool são ativadas (como 
"somente o álcool me ajuda a relaxar"). A partir da 
ativação dessa crença, o indivíduo começa a ter 
determinados tipos de pensamentos (como "seria 
muito bom tomar uma cerveja agora") e a sentir 
fissura - um forte desejo para consumir a subs-
tância. A partir daí, temos o que Beclc denominou 
de crenças permissivas - crenças que permitem o 
indivíduo fazer o uso da substância específica -
(como "trabalhei o dia todo, eu mereço tomar uma 
hoje"). Dessa forma, o indivíduo coloca em ação o 
comportamento de beber, podendo fazer um uso 
continuado da substância e tendo uma recaída. 
O Modelo Cognitivo do Abuso de Substân-
cias mostra como as crenças influenciam sobre-
maneira no início e na manutenção do consumo 
de drogas. Neste sentido, a abordagem da Terapia 
Cognitivo-Comportamental busca identificar junto 
ao paciente quais são as suas principais crenças 
disfuncionais em relação à substância, fazendo 
uma reestruturação cognitiva. Utiliza, ainda, ou-
tras técnicas cognitivas e comportamentais visan-
do a mudança do comportamento aditivo. 
Como vimos, o álcool é a substância psicoa-
tiva mais consumida em nosso país, porém, nem 
todos os que fazem uso dessa droga podem ser 
considerados usuários dependentes. Ao se propor 
uma intervenção para um usuário de substâncias, 
de acordo com a prática baseada em evidências, 
devemos levar em consideração, também, as ca-
racterísticas e anseios dos pacientes, neste sen-
tido, não podemos deixar de pensar que existem 
pessoas que não querem ou que não conseguem, 
em um primeiro momento, parar de usar drogas. 
A Redução de Danos (RD) é uma abordagem de i n -
tervenção que engloba um conjunto de estratégias 
visando minimizar as consequências adversas e 
negativas do uso indevido de drogas. Em relação 
ao uso de álcool, a RD tem como meta a redu-
ção gradativa do consumo da substância, podendo 
servir como um meio de se chegar a completa abs-
tinência do uso (Niel & da Silveira, 2008). 
Dados apontam que nem todos aqueles que 
fazem um uso considerado problemático de subs-
tâncias buscam atendimento (Carlini et al., 2002, 
Carlini et al., 2006) e um dos motivos que podem es-
tar associados a essa baixa procura por tratamento 
é o estigma associado a esses indivíduos. Muitos 
usuários de álcool e outras drogas que poderiam se 
beneficiar de intervenções em saúde não o fazem 
devido ao rótulo negativo que podem receber dos 
próprios profissionais de saúde (Corrigan, 2004). 
Falar sobre álcool e outras drogas ainda é 
considerado um tabu em nossa sociedade. Neste 
sentido, abre-se um espaço grande para que dú-
vidas e informações desprovidas de embasamento 
científico circulem e ganhem força. É preciso es-
timular a educação em saúde neste campo, lem-
brando que educar para a saúde significa muito 
mais que simplesmente transmitir conhecimentos; 
significa promover uma reflexão crítica a partir 
do conteúdo que é repassado. É preciso discutir e 
refletir com toda a sociedade o que são as drogas, 
desmistificando a temática e assumindo sua pre-
sença entre nós. 
• Andressa Gumier tem graduação em Psicologia pela Universidade 
Federal de Juiz de Fora (UFJF); formação em Terapia Cognitiva pela 
Associação de Terapias Cognitivas do Estado do Rio de Janeiro 
(ATC-Rio); pós-graduação em Terapia Cognitivo-Comportamental 
com Crianças e Adolescentes pela faculdade Redentor e é mestre em 
Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF. 
Atualmente, é doutoranda em Psicologia pela UFJF e pesquisadora do 
Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool 
e Outras Drogas (CREPEIA). Email: andressabQumier@gmail.com 
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o 
ESPECIAL ALCOOLISMO 
VICIO A C E I T O 
E SILENCIOSO 
O uso excessivo de álcool é 
socialmente tolerado e até 
estimulado, o que o torna 
perigoso e incontrolável 
TRATAMENTO 
E APOIO FAMILIAR 
O alcoólatra precisa de constante 
apoio dos amigos e parentes para 
evitar a recaída, pois ele nunca 
deixaráiieseriim adicto 
TERgEM 
É I^mmTANT 
o tratamento da dependência químicí 
exige uma abordagem terapêutica centrada 
nas questões do paciéfflM em sua 
interação com a sociedade 
COMO TUDO 
COMEÇA 
Entender as origens do 
problema ajuda a evitar que ele 
se agrave e também auxilia na 
busca por um caminho de 
recuperação e reabilitação

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