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Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO PROBLEMA 3 – ABERTURA: LÚPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO: O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença de caráter inflamatório crônico e multissistêmico, marcada pela presença de múltiplos autoanticorpos. Representa a principal forma de distúrbio mediado pelo acúmulo de imunocomplexos. A presença de manifestações sistêmicas polimórficas torna o LES uma doença de difícil diagnóstico precoce, contribuindo para possíveis acometimentos funcionais orgânicos. A epidemiologia dessa doença aponta prevalência expressiva na população feminina, principalmente naquelas em idade reprodutiva (início dos sintomas por volta dos 20-30 anos). Etnicamente, há distribuição universal, porém, nota-se uma certa predisposição para o quadro na população negra, com importante papel hereditário. O LES pode se manifestar na infância e na velhice, porém nesses grupos não há predomínio específico em mulheres. ETIOLOGIA E PATOGÊNESE: Sabe-se que o lúpus tem etiologia multifatorial que, ainda que não seja totalmente esclarecida, apresenta contribuição clara de componentes genéticos. Isso pode ser evidenciado pela presença disseminada de alguns haplotipos específicos do HLA, que também se relacionam a mutações nas frações C2 e C4 do complemento, presentes em portadores da doença. O papel hormonal para a patogênese do LES ainda é alvo de estudos experimentais, porém sabe-se que há um metabolismo acelerado de hormônios sexuais, levando ao aumento da prolactina e da 16- alfa hidroxiestrona (forma de estrogênio associada à inibição da apoptose de células neoplásicas). Em contrapartida, há diminuição da testosterona (em homens) e da dehidropiandosterona (nas mulheres). No que se refere ao impacto ambiental sobre o desenvolvimento lúpico, já é compreendido que a radiação ultravioleta (destaque para a UVβ) promove a deflagração ou o agravamento de processos inflamatórios. A ação de agentes infecciosos, sejam eles virais ou bacteriano, sobre o desenvolvimento da doença é sugerida, porém ainda não apresenta comprovação para o LES. Existe, no entanto, uma modalidade distinta da doença, o lúpus induzido por drogas, que apresenta correlação temporal entra a exposição a determinados agentes e o aparecimento de sintomas, geralmente mais brandos, sem impacto renal ou neurológico. Principais diferenças entre o lúpus induzido por drogas e o LES Mesmo com tantas incertezas sobre a origem do lúpus, seu principal evento é a produção excessiva de autoanticorpos, alguns deles apresentando especificidade antinuclear, agindo contra o DNA. A interação entre essas imunoglobulinas Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO circulantes e suas células-alvo dão origem a imunocomplexos, clusters que continuam na circulação sanguínea até impactar sobre múltiplos tecidos, dando assim origem ao comprometimento orgânico. Mecanismo geral de indução autoimune no lúpus eritematoso sistêmico QUADRO CLÍNICO: Como mencionado anteriormente, o lúpus não apresenta um único padrão previsível para comprometimentos sistêmicos, porém ainda assim seu diagnóstico é eminentemente clínico, com a detecção de autoanticorpos apenas consolidando o laudo. Os sítios mais acometidos pelo LES em sua fase inicial são as regiões osteoarticulares e a pele, tendo como áreas de comprometimentos mais graves o sistema renal e o SNC. Nota-se, contudo, que sintomas constitucionais, como febre, perda súbita de peso e anorexia, podem anteceder em muito tempo os sintomas orgânicos primários. Graças à similaridade sintomática com diversas doenças infecciosas, o lúpus se torna um diagnóstico de exclusão. As lesões cutâneas, grandes indicadoras para o reconhecimento do LES, podem ser observadas no início do curso da doença em até 70% dos pacientes, prevalência que aumenta para 90% ao investigar esse sintoma ao longo da evolução do quadro. Conjunto de lesões cutâneas típicas do lúpus eritematoso sistêmico A forma mais conhecida de comprometimento da pele é o lúpus cutâneo agudo, que manifesta-se isoladamente sob a forma de rash malar (em asa de borboleta), bastante fotossensível. Com o fim do primeiro período de inflamação, essas manchas tendem a sofrer hiperpigmentação (confusão com o cloasma). Rash malar em paciente com LES em fase inflamatória Hiperpigmentação da área afetada pelo rash malar após a resolução da inflamação Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO A forma disseminada do lúpus cutâneo agudo é conhecida como dermatite lúpica fotossensível ou rash maculopapular, marcada por exantemas espalhados por todo o corpo. Rash maculopapular disseminado A forma cutânea crônica do lúpus, por sua vez, apresenta diversos tipos de lesão, destacando-se a lesão discoide clássica. Esse tipo de comprometimento é fruto de placas eritematosas hiperpigmentadas de evolução lenta, gerando cicatrizes hipopigmentadas centrais acompanhadas por atrofia da pele. Sua disposição normalmente afeta de forma única a face, o couro cabeludo, o pescoço ou o pavilhão auditivo. Lesão discoide lúpica As úlceras orais, indolores, também são utilizadas como critérios para diagnóstico do lúpus, justificando uma avaliação minuciosa dos pacientes, uma vez que normalmente não são mencionadas pelo indivíduo. O lúpus cutâneo subagudo (mediado pela presença do anticorpo anti-Ro) representa uma entidade clínica distinta do LES, uma vez que somente cerca de 15% de seus portadores evoluem para as demais formas de comprometimento sistêmico. Esse quadro é marcado por lesões eritematosas anulares ou papuloescamosas, dispersas principalmente em áreas de grande exposição solar, fortemente associadas à fotossensibilidade. Sua resolução é espontânea, sem formação de cicatriz, mas que geram focos de hipopigmentação semelhantes ao vitiligo. Manifestações papuloescamosas (acima) e anular (abaixo) do lúpus cutâneo subagudo A alopecia também é um sinal fortemente associado ao LES, fruto de sua ação inflamatória podendo preceder diversas manifestações da doença. Normalmente há recuperação dos pelos após o fim dos picos de inflamação, mas podem haver manifestações permanentes. Vasculites não são raras em pacientes com lúpus, podendo abranger desde manifestações urticariformes até ulcerações necróticas, comprometimento que é modulado pelo dano vascular inflamatório. Outra forma de acometimento Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO dos vasos é o fenômeno de Raynaud, associado principalmente à presença de anticorpos anti-RNP, com a intensidade e frequência sendo dependentes da exposição ao frio. Fenômeno de Raynaud As artralgias e artrites representam as principais queixas musculoesqueléticas associadas à fase inicial do LES, presente em até 80% dos pacientes no momento de seu diagnóstico, tornando-se ainda mais frequente com o avanço da doença. Mesmo sem um padrão específico, há predominância de episódios de poliartrite simétrica que pode ser migratória ou aditiva, quase sempre não causando deformidades. Se há a presença de rigidez matinal, o diagnóstico pode ser facilmente confundido com a artrite reumatoide. Com a evolução da doença, a artropatia crônica (de Jaccoud) destaca-se como uma possível complicação, marcada por desvio ulnar e subluxação, deformidades em pescoço de cisne e subluxação de falanges do polegar, deformidades produzidas pela instabilidade da cápsula articular inflamada. Mãos de paciente com LES acometida pela artropatia de Jaccoud Dentre as manifestações cardiovasculares, é comum o desenvolvimento de pericardite sintomática, de gravidade variável, mas sempre com presença de atrito pericárdico, decorrentede derrame local, que pode, ainda que não frequentemente, causar tamponamentos. Como comprometimento respiratório, destaca- se a pleurite. As manifestações neurológicas são frequentes no lúpus, podendo dividir-se em dois grandes grupos, aquelas de acometimento do SNC, e as que lesam o SNP. Esses quadros podem ainda ser difusos, com episódios psicóticos e convulsivos, ou focais, de impacto funcional direcionado. Dentre as apresentações generalizadas mais comuns encontram-se as crises epiléticas, esquizofrenia, transtorno de personalidade bipolar e distúrbios do comportamento. Os quadros focais mais focais, por sua vez, contam com o acidente vascular cerebral, a síndrome de Guillain-Barré, neuropatias craniana e periférica e distúrbios do movimento, como parkinsonismo e tremores. A presença de anticorpos anti- proteína P ribossômica pode auxiliar o acompanhamento e o diagnóstico de pacientes que apresentem tais manifestações neurológicas em decorrência do lúpus. Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO Quadro de manifestações neurológicas ligadas ao lúpus Uma das complicações de maior risco associadas o lúpus é a nefrite lúpica, que desenvolve-se principalmente nos primeiros 5 anos da doença. A identificação precoce desse tipo de comprometimento é imprescindível para a adequação do tratamento, porem isso pode não ocorrer em pacientes sem acompanhamento, uma vez que a presença de sintomas está associada ao desenvolvimento de insuficiência renal. Fisiopatologia da nefrite lúpica Critérios para determinação de quadros agudos ou crônicos para a nefrite por LES A detecção laboratorial de comprometimentos renais se baseia na presença de proteinúria, hematúria e elevação da creatinina porém ela pode ser realizada por meio da biópsia renal, gerando assim 6 possíveis focos de glomerulonefrite. Classificação da OMS para a glomerulonefrite mediada pelo LES Alterações hematológicas podem surgir precocemente na história clínica do LES, inclusive antecedendo em anos o diagnóstico do quadro. Os leucócitos são as células mais comumente afetadas, com leuco e linfopenias. O monitoramento laboratorial constante dessa condição pode ajudar no acompanhamento da doença, uma vez que o retorno desses valores excessivos à normalidade reflete a regressão da atividade lúpica (em pacientes que não estejam em uso de imunossupressores). Anemias também são comuns, podendo ser não imunes (anemia da Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO doença crônica, ferropriva ou em decorrência de injúria renal) ou de origem imune (anemias hemolíticas, normalmente identificadas por Coombs positivo). DIAGNÓSTICO LABORATORIAL: O diagnóstico do lúpus, como descrito acima, é embasado primariamente em aspectos clínicos, porém alguns achados laboratoriais são cruciais não só para complementar a hipótese, mas sim para determinar o tipo de seguimento aplicável ao paciente. Principais critérios associados ao diagnóstico de LES Nesse contexto, destacam-se: Achados inflamatórios: contempla as provas inflamatórias de fase aguda, com velocidade de hemossedimentação aumentada e `PCR em níveis baixos; Achados imunológicos: sua presença caracteriza a ocorrência de um quadro autoimune. São empregados testes de detecção de fatores antinucleares (sensíveis, mas não específicos para LES), com caracterização de anticorpos sempre que possível, de forma a identificar marcadores, como o anti-dsDNA e o anti-Sm. Outros anticorpos, os antifosfolípides, são autoanticorpos de ação endovascular, levando ao surgimento de trombose arterial ou venosa, além de degradação plaquetária, valvopatias e abortos de repetição. Os grupos mais comuns são o anticoagulante lúpico e os anticorpos anticardiolipina (aCL). Dependência do diagnóstico laboratorial para o acompanhamento do paciente com LES TRATAMENTO: A garantia de adesão terapêutica por pacientes com lúpus perpassa pela transmissão de informações pelo profissional de saúde, que deve orientar o indivíduo acerca das implicações de sua doença, sem, no entanto, estimular o pessimismo. Algumas medidas gerais para o manejo do lúpus incluem a proteção solar e a evitação de outras fontes de radiação UV, além do combate ao tabagismo, que pode perpetuar quadros inflamatórios e dificultar a resolução de lesões. Recomendações sobre um estilo de vida saudável também se aplicam a esse grupo de pacientes, com o exercício físico sendo direcionado para o ganho de condicionamento físico. A escolha terapêutica desses pacientes deve ser sempre individualizada, uma vez que Júlia Figueirêdo – FEBRE, INFLAMAÇÃO E INFECÇÃO irá depender do tipo de acometimento sistêmico e de sua intensidade: AINES: devem ser utilizados de forma cautelosa, de forma a evitar possível sobrecarga renal. A administração é indicada para o controle de artralgias crônicas e da febre; Corticosteroides: seu uso é preferido nos períodos iniciais da doença, uma vez que promovem regressão rápida dos sintomas, porém sempre na menor dose possível, de forma a evitar efeitos colaterais. Pacientes que venham a fazer ciclos longos com esses medicamentos devem ser suplementados com cálcio e vitamina D; Antimaláricos: a hidroxicloroquina e o difosfato de cloroquina são empregados de forma conjunta aos corticoides em todos os tipos de acometimento sistêmico, porém com maior efetividade nas manifestações articulares e cutâneas, auxiliando a reduzir rapidamente a inflamação e a minimizar o tempo de uso de anti-inflamatórios esteroidais.
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