Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade de Psicologia Gabriel Carlos da Silva e Souza CONTINGÊNCIAS ENTRELAÇADAS EM REDES: Um olhar analítico comportamental sobre redes sociais Belo Horizonte 2020 Gabriel Carlos da Silva e Souza CONTINGÊNCIAS ENTRELAÇADAS EM REDES: Um olhar analítico comportamental sobre redes sociais Monografia apresentada ao curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Psicologia Orientador: Prof. Me. Débora Persilva Soares Belo Horizonte 2020 Gabriel Carlos da Silva e Souza CONTINGÊNCIAS ENTRELAÇADAS EM REDES: Um olhar analítico comportamental sobre redes sociais Monografia apresentada ao curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Psicologia ______________________________________________________________ Prof. Me. Débora Persilva Soares - PUC – MINAS (Orientador) ______________________________________________________________ Ramon Cardinali de Fernandes (Banca examinadora) Belo Horizonte, 05 de novembro de 2020 RESUMO Este estudo trata de uma compreensão analítico comportamental acerca das redes sociais, tanto como conceito, quanto como metodologia de trabalho. Seu objetivo é promover um intercâmbio entre saberes e abrir caminho para reflexões acerca do potencial transformador da ciência do comportamento, proposta por B.F Skinner, para as demandas culturais contemporâneas. Para tanto, realizou-se um apanhado das ideias centrais da teoria skinneriana sobre comportamento social, redes e contingências entrelaçadas. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica de caráter exploratório, que possibilitou uma apreensão mais ampla dos conceitos, além da utilização de dados que não poderiam ser coletados, de outra maneira, considerando o tempo disponível para a realização desse estudo. Concluiu-se que o intercâmbio de saberes não só é proveitoso, mas também necessário, convocando o analista do comportamento para um agir ético político comprometido com a mudança a nível cultural, a partir da reflexão acerca do conceito de redes. Palavra-chave: Análise do comportamento. Redes sociais. Cultura. Comportamento social. Contingências entrelaçadas. Transformação social ABSTARCT This study deals with an analytical behavioral analysis of social networks, both as a concept and as a work methodology. Its objective is to promote an exchange of knowledge and pave the way for reflections about the transformative potential of the science of human behavior in cultural demands. To do so, an overview of the central ideas about social behavior, networks and intertwined contingencies is carried out. The methodology used was exploratory bibliographic research, as it allowed a broader exploration of the concepts in addition to the use of data that could not be collected in the time available for this study. It is concluded that the exchange of knowledge is not only beneficial, but also necessary, summoning the behavior analyst for an ethical political action committed to change. Keyword: Analysis of behavior. Social networks. Culture. Contingencies intertwined. Social behavior. Social transformation. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CCEs Contingências Comportamentais Entrelaçadas. CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9 1.1 Metodologia ................................................................................................... 10 2 INDIVÍDUOS E GRUPOS: comportamento social e cultura .............................. 13 2.1 Controle e controle social ............................................................................. 16 2. 2 Mobilização social e contracontrole ........................................................... 19 2.3 Tecnologias do comportamento a serviço de quem? ................................ 21 3 CULTURA E SOCIEDADE .................................................................................... 25 3.1 Contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs) ............................. 25 4 REDES COMO CONCEITO E METODOLOGIA ................................................... 25 4.1 A construção do conceito de redes sociais ................................................ 25 4.2 Redes como metodologia e estratégia de trabalho .................................... 27 5 CONTINGÊNCIAS ENTRELAÇADAS EM REDES .............................................. 33 5.1 Redes como estratégias de contracontrole social ..................................... 35 6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 39 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 43 9 1 INTRODUÇÃO A Ciência do Comportamento, proposta por B.F. Skinner (1904-1990), sempre direcionou uma significativa atenção às questões voltadas ao coletivo e ao comportamento social de alta complexidade. Isso pode ser facilmente verificado nas principais obras das abordagens comportamentais (HOLLAND, 2016; GLENN, 1986; SKINNER, 1945,1999, 2000). Nelas, muito se fala sobre as possibilidades de aplicação das ideias behavioristas como catalizadoras de transformações culturais significativas de médio e longo prazo. Entretanto, boa parte dos estudos e práticas desenvolvidas por analistas do comportamento estão focalizadas no comportamento individual, em especial no que diz respeito à articulação dos conhecimentos behavioristas à psicoterapia. Desse modo, uma importante área de estudo tem sido ignorada e relegada a poucos analistas, que se interessem em pesquisar sobre o tema: o comportamento social. Devido ao alto nível de complexidade que pesquisas de cunho social podem exigir e, também, a um número relativamente baixo de material sobre o tema, particularmente no contexto nacional – quando comparado a materiais relacionados ao comportamento individual e ambiente de psicoterapia – a ideia de planejamento social, proposta na utopia skinneriana de Walden II (1972), a qual abordaremos um pouco mais adiante, pode parecer cada vez mais improvável. Assim, é preciso criar novas estratégias de pesquisa e intervenção, buscando, inclusive, outras áreas do conhecimento que possam trazer contribuições relevantes à ciência do comportamento. Desse modo, é importante ressaltar que, apesar de rejeitar uma explicação mentalista, a análise do comportamento e o behaviorismo radical não podem desprezar as muitas contribuições advindas de outros campos a ciência e também da filosofia (COELHO, 2019; SÁ,1983) e sociologia (CASTRO, 2016), considerando dissonâncias e concordâncias. Esse tipo de articulação fornece outros olhares sobre a complexidade das questões humanas, que podem abrir novos caminhos para intervenções e refinamento de conceitos. Nesse sentido, o conceito de redes se apresenta como um recurso teórico metodológico, que possui suas bases na Psicossociologia e na psicologia social, que diz respeito a comunicação, articulação e gerenciamento de instituições e pessoas e perpassa diversos setores de nossa cultura, além de estar diretamente ligado à nossa atividade cotidiana (GONÇALVES, QUEIROZ &SAADALLAH, 2015). É, também, um 10 modo de conectar e entrelaçar atores sociais em prol de um ambiente comum, num sentido de transformação da realidade, potencializando a ação dos indivíduos na construção de uma mobilização coletiva mais horizontalizada e flexível (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015). Como instrumento metodológico, apresenta-se como estratégia de gestão comum às políticas públicas assistenciais, as quais se utilizam das redes como meio descentralizador e intersetorial (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015). Diante disso, o presente trabalho é um estudo exploratório que pretende lançar um olhar analítico comportamental sobre o conceito de redes sociais, buscando uma articulação entre a Psicologia analítico comportamental e a Psicossociologia, de forma a pensar possíveis caminhos de transformações sociais emancipatória. Desse modo guiando-se pela seguinte questão: é possível usar a ciência do comportamento para promover a redução da opressão exercida pelos agentes controladores? Para tanto, buscamos fazer um breve rastreio das principais ideias sobre comportamento social e cultural presentes na ciência do comportamento. Além disso, foi necessário buscar na Ciências Sociais e na Psicologia Social uma definição sobre o conceito de redes de modo a proporcionar uma articulação com a definição de metacontingências e outros conceitos caros a uma análise comportamentalista da cultura. Afim de atingir os objetivos propostos, este trabalho foi organizado da seguinte forma: os quatro primeiros capítulos se dedicam à apresentação e desenvolvimento dos conceitos centrais, sendo o primeiro um resumo dos assuntos que serão abordados no texto e os caminhos metodológicos utilizados; o segundo um apanhado das ideias behavioristas sobre comportamento social e cultura; o terceiro um aprofundamento no conceito de contingências entrelaçadas e metacontingências o quarto uma delimitação do conceito de redes sociais. Já o quinto, e último capítulo, dedica-se a uma interlocução entre os conceitos anteriormente apresentados. Por fim, serão apresentadas as conclusões e considerações finais acerca das elucidações trazidas pela pesquisa desenvolvida. 1.1 Metodologia O presente estudo consiste em uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório (LIMA & MIOTO, 2007) que visa, através de uma pesquisa bibliográfica, relacionar 11 conceitos analíticos comportamentais com os conceitos relativos ao trabalho em rede. Sabemos que a metodologia exploratória é, em alguma etapa, necessária na elaboração de todas as pesquisas, porém, por si só, ela pode se constituir em uma ferramenta suficientemente eficaz para o estudo científico. (GIL, 2008). A escolha dos textos aqui utilizados segue os seguintes parâmetros (LIMA & MIOTO, 2007): parâmetro temático, que diz da relevância da obra a nível conceitual, se atentando para obras clássicas e contemporâneas e para a possibilidade de articulação do conteúdo entre as áreas da análise do comportamento e da psicologia social; parâmetro cronológico, relacionado à adequação ao tempo presente e ao contexto nacional, já que o conhecimento deve estar em constante diálogo com a realidade da qual ele pretende falar; parâmetro linguístico, priorizando publicações brasileiras ou traduzidas para o português (LIMA & MIOTO, 2007). Sobre as principais fontes (LIMA & MIOTO, 2007), todos os materiais apresentados foram avaliados a partir da sua fidedignidade às normas cientificas de publicação, sendo esses de fontes devidamente verificadas e veiculadas a revistas científicas, teses, artigos, periódicos e livros. Quanto às ferramentas de busca, buscou-se, prioritariamente, valer-se dos meios digitais utilizando plataformas especializadas, já que, dado o contexto de pandemia e o estabelecimento do regime de aulas remoto, tronou-se inviável o deslocamento para pesquisa em acervos físicos. Não foram desprezados, porém, livros e publicações físicas de acervo particular. Sabemos que toda pesquisa está intrinsicamente conectada com o contexto sociopolítico vigente no momento de sua realização, que irá, invariavelmente, interferir no posicionamento do pesquisador, já que o mesmo não pode se ausentar da realidade e existe dentro do mundo sobre o qual fala. Portanto, diante da impossibilidade na neutralidade cientifica, é importante se atentar que a escolha dos textos e artigos também reflete o posicionamento ético político do autor, desse modo, devem ser lidos não como uma parte da realidade, mas como um produto histórico, social e ontológico (LIMA & MIOTO, 2007). Buscamos realizar a sequência dos procedimentos a partir do exposto por Salvador (1986). Essa sequência é composta por quatro fases complementares e ordenadas: elaboração de projeto; investigação das soluções; análise explicativa das soluções; e síntese integradora. Sendo a primeira parte, anterior à elaboração desse relatório. 12 Destaca-se entre as principais vantagens dos métodos escolhidos como caminhos para essa pesquisa, a possibilidade na expansão dos conteúdos abordados, permitindo ao pesquisador acesso a informações sem que estas derivem das informações coletadas neste trabalho. No âmbito dessa pesquisa, isso poderá permitir uma exploração maior da multiplicidade do trabalho em rede, pois se trata de instrumento de gestão com variadas formulações e exemplos disponíveis (GIL, 2008). 13 2 INDIVÍDUOS E GRUPOS: comportamento social e cultura Apesar da intensa investigação sobre o comportamento individual, não podemos dizer que a ciência do comportamento – especialmente o Behaviorismo Radical de Skinner, filosofia sobre a qual se debruça este trabalho – não possui contribuições relevantes sobre o comportamento social. Faz-se necessário, portanto, resgatar aquilo que essa ciência tem a nos oferecer sobre as relações coletivas e formações sociais e culturais. Umas das obras pioneiras dentro do tema é certamente “Walden II: Uma sociedade do futuro” (1979), escrita por B.F. Skinner. Mesmo se tratando de uma ficção, este livro carrega em si uma proposta de sociedade experimental que possui a base do seu funcionamento na filosofia proposta pelo Behaviorismo Radical. Da economia ao sistema de educação infantil, da gestão do trabalho à estrutura de governo, todos as principais instituições de nossa sociedade são revisitadas e apresentadas, na obra, a partir de um modelo analítico-comportamental. Seja uma utopia ou um projeto sociopolítico, o certo é que a história nos revela um ponto fundamental do Behaviorismo Radical: a sociedade e a cultura são fatores fundamentais na seleção e manutenção das contingências que nortearão nosso comportamento. Anos mais tarde, em seu artigo, “A Psicologia Pode Ser Uma Ciência Da Mente?” Skinner (2012) faz uma síntese explicativa sobre os chamados três níveis de seleção do comportamento – os dois primeiros serão apresentados brevemente, uma vez que não são o foco da pesquisa aqui apresenta, no entanto, são relevantes para compreensão geral da teoria. O primeiro nível, denominado de filogênese ou seleção natural, diz respeito ao processo evolutivo que irá determinar as características biológicas de cada espécie. O segundo, por sua vez, se trata da ontogênese (ou história ontogenética) e aborda o condicionamento operante, para o qual Skinner (2012, p. 2) apresenta a seguinte explicação: [...] o comportamento é reforçado, no sentido de ser fortalecido ou de ter mais probabilidade de ocorrer, por certos tipos de consequências, que inicialmente adquiriram o poder de reforçar através da seleção natural. 14 Sobre isso, o autor vai afirmar que existe um problema relativo ao tempo que o organismo dispõe para adquirir repertório comportamental suficiente para a sua sobrevivência noambiente. Logo, Skinner (2003, 2012) irá apontar dois importantes passos evolutivos da espécie humana: a capacidade de aprender a partir da experiência de outros organismos; e o controle operante das cordas vocais, que permitiu a transmissão de instruções que pudessem contingenciar o comportamento de outro indivíduo. Estes dois aspectos permitem o desenvolvimento do comportamento verbal - o que nos permite apresentar o terceiro nível de seleção: a cultura O comportamento verbal é, portanto, um dos principais fatores responsáveis pela formulação do terceiro nível de seleção. Conselhos, regras e costumes de determinado grupo social são selecionados ao longo de gerações pelo seu valor de sobrevivência, e transmitidos aos novos membros da comunidade através de reforçadores sociais que poderão produzir efeitos a longo prazo, de modo a perpetuar determinadas classes de comportamentos desejáveis para aquele grupo (SKINNER, 1990). Diferentes ambientes – físicos e sociais – constituem diferentes culturas, que, por sua vez, fornecem aos seus indivíduos, modos de vida típicos para àquela sociedade. O comportamento social, portanto, irá ser atravessado por todos os níveis de seleção – filogenético, ontogenético e cultural –, assim, constituindo-se em uma expressão complexa de fatores biológicos, ontológicos e culturais. Segundo Skinner (2003. p. 325), “o comportamento social pode ser definido como o comportamento de duas ou mais pessoas em relação a uma outra ou em conjunto em relação ao ambiente comum”. Skinner (2003) vai afirmar que este tipo de comportamento está sujeito as mesmas leis que o comportamento individual, ou seja, também é selecionado pelas consequências que o sucedem e pode ser igualmente modificado. Evidentemente o autor não se mantém alheio às particularidades do comportamento social, mas entende que essas são manifestações do comportamento humano, de modo que não se faz necessário a criação de novos modelos de explicação. O comportamento surge como forma das pessoas obterem reforçadores que não seriam obtidos sem intermediação de outras pessoas. Nesse sentido, para Skinner (2003, p. 341), “as consequências reforçadoras geradas pelo grupo excedem facilmente os totais das consequências que poderiam ser conseguidas pelos membros se agissem separadamente. O efeito reforçador total é enormemente acrescido”. 15 A fim de ilustrar tal comportamento, podemos citar como exemplo uma grande plantação. Se apenas um trabalhador se dispuser a trabalhar na lavoura dificilmente ele conseguira produzir grande quantidade de alimento. Portanto, neste caso, para a obtenção do reforçador grande produção de alimentos, é potencialmente mais efetivo se uma grande quantidade de trabalhadores se envolverem no plantio e colheita. Porém, apesar de estarem se comportando em relação ao mesmo ambiente e com um objetivo comum, não necessariamente todos os trabalhadores estão emitindo o mesmo comportamento. Será preciso que os trabalhadores se organizam de modo que cada um executa uma tarefa diferente; terão aqueles que, por exemplo, farão estudo do solo, aqueles que serão responsáveis pela irrigação e outros ainda que farão o plantio e colheita. Logo, se todos tivessem que emitir o mesmo comportamento, dificilmente a greve teria sucesso. Desse modo, o comportamento social não garante que todos indivíduos serão diretamente reforçados da mesma forma. Na verdade, Skinner (2000) irá dizer que o reforço não é coletivo, cada um será reforçado individualmente. Isso se dá, uma vez que o grupo não é um organismo, mas na verdade, é composto por um conjunto deles. Assim, podemos dizer que uma série de diferentes contingências estão entrelaçadas nesse tipo de comportamento e são mantidas por diferentes consequências reforçadoras, mas que, a longo prazo, irão produzir efeitos culturais, sejam eles positivos ou não. De acordo com Skinner (2003), o principal tipo de reforço que mantém o comportamento social são os reforçadores sociais, ou seja, reforçadores que são mediados pela ação de outro indivíduo. Por exemplo, atenção, elogios, demonstrações de afeto, reconhecimento do coletivo ou mesmo o esquivar-se de alguma punição que o grupo possa dar àqueles que não se envolvem na tarefa. O autor salienta que se forma um certo tipo de intercâmbio recíproco, uma espécie de pacto em que os sujeitos passam a se reforçar mutualmente, fortalecendo as interações grupais. Esse fator é primordial para compreendermos uma série de fenômenos sociais que, em grande parte, terão as consequências distanciadas no tempo, ou que será necessário um alto número de respostas por um longo período de tempo, para acesso ao reforçador. Como exemplo, podemos citar as diversas lutas por reforma em sistemas de governo que ocorreram ao longo da história, os movimentos por direitos civis e mesmo o trabalho de pequenas associações de bairro em busca de melhoria estruturais em sua comunidade. 16 Ao longo dos anos – décadas, séculos e milênios – comportamentos sociais foram sendo gradativamente reforçados, de modo que é neste tipo de comportamento que se encontram grande parte dos reforçadores disponíveis na nossa cultura. De fato, a própria cultura em si é mantida pelo comportamento social. Deste modo, fica evidente que seremos, em grande parte, controlados por contingências sociais, que modelarão nosso comportamento. Portanto, pode-se dizer que o controle social é uma das principais marcas do controle (ou influência) em nossas vidas. 2.1 Controle e controle social Segundo Skinner (1999), o controle está invariavelmente atrelado à vida de todos os seres humanos. Para ele, e também para Baum (1999), somos continuamente controlados e igualmente controlamos o ambiente a nossa volta, seja ele físico, interno ou social. Na verdade, é exatamente o controle que marca e molda nossa relação com o mundo. [...] não podemos deixar de controlar a natureza, assim como não podemos deixar de respirar ou de digerir o que comemos. O controle não é uma fase passageira. [...] Não podemos escolher um gênero de vida no qual não haja controle. Podemos tão somente mudar as condições controladoras. (SKINNER, 1999 p. 163) Há de se fazer aqui uma distinção entre a noção de controle e de manipulação, uma vez que essa confusão acarreta críticas errôneas à teoria skinneriana. Sabemos, como bem ressaltam os autores Skinner (1999, 2000) e Baum (1999), que é típico do senso comum atribuir valor intencional e coercitivo à ideia de controle, sendo este muitas vezes visto como uma ação que visa explorar ou ludibriar o sujeito controlado. Esse tipo de reação, como qualquer outro comportamento, não ocorre no vácuo. Nesse sentido, Skinner (1999, p. 172) afirma que “as pessoas têm sofrido tão longamente por causa dos controles a elas impostos que é fácil compreender porque se opõem com tanta amargura a qualquer forma de controle”. Dessa forma, é possível dizer que a palavra controle está “contaminada”, levando, na maioria das vezes, a uma leitura equivocada e tendenciosa do Behaviorismo Radical (RODRIGUES, 2006; SÁ, 2016). Apesar disso, não existe um substituto equivalente e será, portanto, necessária a utilização do termo até que seu estigma seja alterado (SKINNER, 1999). 17 O controle se apresenta nas nossas vidas nas formas mais variadas possíveis, mas, na maior parte do tempo, estamos totalmente alheios a ele. De modo geral, o notamos mais facilmente quando ele se apresenta por meio de contingências aversivas, especialmente quando existe um agente controlador explicito, ou seja, uma pessoa ou uma instituição que exerce controle arbitrário sobre o indivíduo. Skinner (2000) afirma que grande parte do controle sob o qual estamos submetidos em nossa sociedade atual é de natureza aversiva, podendo ser tanto por punição quanto por reforço negativo. Segundo o autor, namaioria dos casos, tratam- se de comportamentos governados por regras, tais como leis, conselhos, ameaças, dogmas, ditados populares, enfim, quaisquer enunciados que estabeleçam uma relação nítida entre o comportamento emitido e a consequência a ele atribuído, seja esta reforçadora ou punitiva. Sabemos, ainda, que grande parte do controle sobre nós exercido é de natureza social, ou seja, existe em decorrência de um ou mais indivíduos e, em geral, está intimamente ligado aos padrões de controle social de determinada cultura. De acordo com Sá (1979), o termo “controle” é oriundo das ciências sociais, e pode adquirir sentidos diferentes dependendo do autor em que se sustenta. Sá (1979), a partir dos estudos de Florestan Fernandes (1974), nos apresenta quatro sentidos em que o termo tem sido mais comumente empregado, são eles: 1) organização social em prol da redução dos conflitos em busca de uma sociedade mais inclusiva; 2) Fator impeditivo da liberdade individual pela imposição coercitiva de determinado modo de ser, pensar e agir, e, também, a punição do desviante; 3) Modo como a sociedade organiza e mantém sua estrutura de funcionamento, no que diz respeito ao papel desempenhado por cada indivíduo; 4) Ação da sociedade em prol do estabelecimento de uma nova ordem comum em oposição ao modelo vigente. O autor defende que todas essas utilizações do termo estariam corretas, de modo que não se pode delimitar uma única forma de utilizá-lo. Neste estudo, utilizaremos a terminologia “controle social” no mesmo sentido adotado por Celso Pereira de Sá no livro Psicologia do Controle Social, de 1979. Sá (1979, p. 21), divide o conceito em dois sentidos diferentes, controle social passivo e ativo: Esta distinção, que é central para os nossos fins, converte o controle passivo como uma forma de conformidade com as normas tradicionais; o controle social ativo, por outro lado, é um processo de colocação em vigor de metas e valores. O primeiro se refere a conservação da ordem social, o segundo a integrações sócias emergentes. Expressando com mais exatidão, o controle 18 social ativo é um processo contínuo pelo qual se examina conscientemente os valores, tomam-se decisões sobre quais deverão ser dominantes e se põe em marcha ações coletivas para alcançar esse fim. De acordo com Sá (1979, p. 79), “o controle social será, assim, antes de tudo, o controle dessa realidade, o controle das crenças que a sustentam”. Logo, pode-se dizer que o controle social é essencialmente um controle pelas ideias. Não se trata aqui de uma condução empírica simplista ou de uma construção metafísica compartilhada coletivamente, mas de um complexo gerenciamento de contingências verbais que produzem as regras, crenças, leis e prescrições que regem e ordenam os valores da sociedade. Falar de controle social não é apenas dizer de um grupo que reforça ou pune os comportamentos de outro, mas sim discutir sobre como são e por quem serão decididos quais comportamentos serão reforçados e punidos. Apesar desse controle ser exercido principalmente por meio das regras e ideologias, Sá (1979) ressalta que é importante compreender que esses comportamentos só se mantêm por conta das consequências reais que o sustentam e da ação efetiva dos agentes controladores, em especial das agências de controle, que serão definidas abaixo. Skinner (2003) irá chamar a atenção para o fato de que, por meio de um estabelecimento e gerenciamento de poder, um grupo pode exercer um controle organizado e incisivo sobre seus indivíduos, nesse sentido ele afirma (p.363) Geralmente o grupo não é bem organizado, nem seus procedimentos são consistentemente mantidos. Dentro do grupo, entretanto, certas agências controladoras manipulam conjuntos particulares de variáveis. Essas agências são geralmente mais bem organizadas que o grupo como um todo, e frequentemente operam com maior sucesso. Como exemplo, Skinner (2003) irá ressaltar como agências centrais dentro da nossa cultura: a religião, o governo, a economia, a psicoterapia e a educação. Dessa forma, ele aponta que as agências de controle possuem efeito muito importante sobre a cultura total, de modo que são responsáveis por transmitir os valores éticos que norteiam seu grupo, apresentando uma visão de mundo particular e um modo de ser ideal. Assim, essas agências, como o próprio nome já diz, são as principais responsáveis por gerenciar o controle social em nossa cultura, especialmente em sua forma passiva, reforçando seus indivíduos de forma a manterem uma 19 retroalimentação, ou seja, a própria agência é reforçada na medida que reforça o comportamento do grupo. Diante da universalidade do controle e da centralidade que ele ocupa em nossa relação com o ambiente físico e social, devemos nos questionar, então, sobre qual tem sido a função do controle sobre nós exercido e, principalmente, quem seriam os benificiários (HOLLAND, 2016; SÁ, 1986; SKINNER, 1999, 2000). Parece claro que em nosso atual sistema social, as pessoas que determinarão quem são aqueles cujo comportamento será modificado, e para qual objetivo, serão as que estão no poder. A ciência estará a serviço daqueles que dominarem os meios para usa-la (HOLLAND, 2016, p. 107). Diante dessa afirmação, e depois de tudo o que foi discutido neste capítulo, fica evidente que o controle social tem sido, em grande parte, um modo de gerenciar, manter e estabelecer o poder por parte daqueles que já ocupam o status de grupo dominante. 2. 2 Mobilização social e contracontrole Até esse momento, este estudo apresentou o controle social, em grande parte, na sua face exploradora ou em sua face passiva, tendo certa conformidade e manutenção dos valores dominantes, em especial àqueles que correspondem aos interesses das agências controladoras. Porém, o controle social não é, de modo algum, privilégio exclusivo daqueles que estão no poder, na verdade, a todo momento, grupos variados se organizam de forma a analisar conscientemente as contingências de controle as quais estão submetidos e se articulam de modo a modificá-las, demonstrando um certo grau de oposição ao controle. Sabe-se que em situações nas quais o controle se apresenta de forma aversiva ou exploradora, o indivíduo, ou grupo, pode manifestar comportamentos que visem a redução ou eliminação do controle sobre eles exercidos. Segundo Skinner (2000), trata-se de um subproduto comum em situações de controle, o qual ele nomeia de comportamentos de contracontrole. O conceito de contracontrole, assim como boa parte das ideias comportamentais, foi usado em grande parte para se referir ao comportamento individual. Porém, nas obras de Skinner, e também de J.G Holland (1975, 2016), o 20 conceito é frequentemente usado para uma análise das questões sociais. Nesse sentido, Sá (2016) irá oferecer uma definição do termo que se relaciona um pouco mais com as questões sociais. Ele diz (p.55-56): [..] qualquer classe de respostas emitidas por indivíduos (isolados ou em grupo) que tenham o efeito de prevenir, eliminar ou atenuar as consequências aversivas e/ou exploratórias (a curto, médio ou longo prazo) produzidas para tais indivíduos por qualquer dada instância de controle social institucionalizada (legal ou consuetudinariamente) ou em vias de institucionalização. Alguns desses tipos de manifestações do contracontrole são facilmente identificadas na forma de greves, revoluções armadas, boicotes econômicos, organizações de sindicatos ou associações de moradores, por exemplo. Todos esses comportamentos citados têm um caráter de oposição organizada diante de determinado tipo de instituição. Porém, do mesmo modo que o controle social passivo, em especial em sua forma exploradora, que pode aparecer de forma sutil, os comportamentos de contracontrole também podem aparecerde diferentes maneiras. Coelho (2019) aponta que os dois grandes autores a abordar o tema do contracontrole, Skinner (1999, 2000) e Holland (1975, 2016), a partir do posicionamento político e das considerações acerca do papel da ciência do comportamento na transformação social, apresentam ideias diferentes quanto ao uso de tais comportamentos na esfera social. Skinner (1999, 2000) apresenta o contracontrole numa lógica homeostática dentro das relações de poder, de modo que não transformaria o lugar dos indivíduos na estrutura social, mas sim, reduziria os efeitos aversivos advindos do controle sob qual estão submetidos, substituindo esquemas de punição e reforço negativo por esquemas de reforço positivo. Além disso, para ele, o contracontrole é essencial para o desenvolvimento do sentimento de compaixão e do comportamento moral e ético por parte dos controladores. Skinner (1999, 2000), acreditava que estes comportamentos evitariam o aumento exacerbado da desigualdade e proporcionaria, ainda que momentaneamente, uma sociedade mais satisfeita (COELHO, 2019). Holland (1975, 2016), por sua vez, compreendendo o atravessamento das questões de classe e o modo de estruturação proposto pelo capitalismo, irá ressaltar a importância de que o contracontrole não apenas modifique as contingências de 21 controle coercitivo e aversivo, mas que também promova mudanças na própria estrutura da relação de poder entre as classes (COELHO, 2019). Holland (2016) acreditava que a substituição das contingências aversivas por outras de reforçamento positivo, como o sistema de fichas proposto por Skinner, por exemplo, não seria suficiente, uma vez que mesmo contingências reforçadoras podem ter um profundo caráter explorador, o que continua a favorecer as elites e a manter o sistema. O contracontrole seria, então, necessário para a alteração deste sistema e, portanto, deveria ser incentivado e até mesmo caberia a Análise do Comportamento o papel de fornecer subsídios para a sua emissão (HOLLAND, 2016). Baum (1999) acrescentará que mesmo uma simples ameaça, por meio de comportamento verbal, pode fazer com que o controlador reveja seus métodos. Não há, portanto, a necessidade de uma organização exclusivamente institucionalizada. Há, na verdade, apenas que se emitir conscientemente comportamentos que balanceiem o poder entre controladores e controlados, que reduzam o poder dos controladores e possibilitem que os controlados estabeleçam uma relação mais justa, eliminando ou reduzindo os efeitos aversivos das contingências as quais estão sujeitos. O tema do contracontrole social é, portanto, abordado de forma muito eficaz nas obras de J.G. Holland (1975, 2016), onde o autor aponta para a necessidade de se fomentar esta classe de comportamentos para que as pessoas possam viver uma vida mais digna e igualitária. Para ele, se nenhum tipo de oposição for manifestada, os controladores intensificarão ainda mais a abrangência de sua dominação e exploração. Nesse sentido, em seu artigo intitulado “Os princípios comportamentais servem para os revolucionários?” (2016), Holland irá apontar para uma certa responsabilidade política daqueles que se dizem cientistas do comportamento em instrumentalizar a sociedade para que essa possa lutar contra as diversas opressões que lhe acometem. 2.3 Tecnologias do comportamento a serviço de quem? No contexto dessa discussão sobre controle do comportamento, Holland (2016. p. 104) vai nos chamar atenção para um fator de extrema importância: “[...] todo comportamento obedece a certas leis fundamentais que permitem manipulá-lo”. É exatamente nesse ponto que a ciência do comportamento assume uma relevância 22 primordial, pois se debruça intensamente na compreensão e utilização dos mecanismos de controle (HOLLAND, 2016; SÁ, 1986). Porém, seus conhecimentos sobre a manipulação de contingências podem ser usados tanto para subversão dos mecanismos de exploração quanto para sua manutenção e intensificação. Esta questão se apresenta não apenas como um dilema ético dos psicólogos, mas também é uma questão inerente a todo conhecimento científico (HOLLAND, 2016; SÁ, 1986; SKINNER, 1999, 2000). Poderíamos perguntar, na sequência, onde o psicólogo profissional se encaixa nesse sistema. Ele usualmente trabalha por subvenções e está empregado em uma universidade ou outra instituição. Tanto a agência que outorga as subvenções, quanto as instituições contratantes são controladas pela classe superior e estão a serviço das metas gerais da sociedade. Assim, em última análise, temos que a maior parte do trabalho serve para apoiar a elite, que está no poder, e o sistema, seja diretamente, em suas formas iniciais, seja indiretamente, no sentido de que depois que os procedimentos iniciais forem desenvolvidos, os métodos estarão prontos para serem utilizados por aqueles com dinheiro e recursos suficientes para usá-los. (HOLLAND, 2016, p. 107) Em 1928, antes mesmo que o paradigma operante, desenvolvido por Skinner, fosse estabelecido, John B. Watson – comportamentalista responsável pelo desenvolvimento do Behaviorismo Metodológico – contratado por uma empresa de publicidade, já desenvolvia estudos e pesquisas que aprimorassem técnicas comportamentais que visavam o fomento do consumo norte americano (JUSTO, 2017). Suas pesquisas apontavam que as peças publicitárias em que os atores apresentavam relatos de experiências com o produto, proporcionariam uma eficácia maior na aceitação do público-alvo (JUSTO, 2017). Assim como ele, outros analistas empregaram, e ainda empregam, as técnicas comportamentais em prol da indústria do consumo (COHEN E SCHULZ, 2017). Não raro, ouve-se, e se reproduz, uma série de relatos da utilização das técnicas comportamentais dentro do contexto escolar. Em sua massiva maioria, elas têm um cunho crítico e apontam a utilização dessa ciência para promover um “adestramento” dos alunos, reforçando uma estrutura hierarquizada em que o aluno é apenas um objeto passivo nas mãos de um professor tecnicamente orientado (FRANÇA, 2019; RODRIGUES, 2006). Pode-se dizer que estas afirmações estão baseadas em uma leitura equivocada dos conceitos behavioristas radicais (RODRIGUES, 2006), mas também, sabe-se que tais práticas de controle 23 exploradoras foram erroneamente reproduzidas por professores, e até mesmo psicólogos, mal instruídos ou mal-intencionados (HOLLAND, 2016). Muitos outros exemplos da má utilização das técnicas comportamentais em diversas áreas podem ser aqui relacionados; na saúde (SOUZA, 2005); nas organizações do trabalho (BERTERO, 1994); treinamento militar (HOLLAND, 2016), etc. O fato é que a Ciência do Comportamento foi (e ainda é em muitos contextos) usada a serviço da dominação por aqueles que possuíram algum tipo de poder, seja a nível micro ou a nível macrossocial, em detrimento da exploração de outros com menos grau de poder, modificando práticas culturais de modo a reforçar comportamentos potencialmente nocivos (HOLLAND, 2016). Quando olhamos o comportamento cultural e analisamos sua constituição e evolução, tem-se um dilema muito importante: em determinados momentos alguns comportamentos podem ser selecionados como práticas culturais, mas que, a longo prazo, poderão ser extremamente prejudiciais as pessoas (SKINNER, 1999, 2000). Vale ressaltar, que esse tipo de seleção ocorre, muitas vezes de forma arbitraria, ou seja, mudanças culturais são promovidas por um grupo que detêm determinado tipo de poderio político e que o utiliza em benefício próprio sendo que os efeitos eversivos advindos dessas práticas culturais tendem a recair sobre a população mais vulneráveis. Um exemplo comum nas obras de Skinner é o consumismo, comportamento que era e ainda é largamente reforçado socialmente por garantir certo tipo de sobrevivência econômica das elites dominantesdentro do sistema capitalista. No caso de B. Watson, citado anteriormente, por exemplo, seus estudos sobre formas de incentivar o consumo tinham como objetivo reduzir os efeitos da crise econômica que seu país enfrentava naquele momento, mas que, a longo prazo, com a degradação ambiental para a produção de insumos e o acúmulo de lixo poluente, irá fazer com que a Terra se torne inabitável para os seres humanos. Além disso, o constante estímulo à competição tem levado a um individualismo exacerbado, reduzindo comportamentos colaborativos e fazendo com que indivíduos e grupos busquem acumular poder e propriedade mesmo que em detrimento do bem-estar comum (HOLLAND, 1975). É neste ponto que se estabelece a discussão sobre a necessidade de se planejar a cultura, modificando-a para que as consequências nocivas que recaem sobre os mais vulneráveis sejam eliminadas. Dito isso, levanta-se a seguinte questão: 24 é possível usar a ciência do comportamento para promover a redução da opressão exercida pelos agentes controladores? Podemos fazer uma tentativa de transmitir ao povo as nossas descobertas; e promover aplicações que sejam mais adequadas às suas necessidades do que às necessidades da elite. O mais importante a esse respeito é que o cientista do comportamento analise a operação de controle comportamental em nossa sociedade e comunique essa análise a outros para que estejam melhor preparados para o contracontrole. Com esse fim, deverá analisar também os efeitos potenciais de diferentes formas de contracontrole. Em segundo lugar, deverá idealizar uma tecnologia intrinsecamente adaptada para se usar na luta. (HOLLAND, 2016, p.110-111) Portanto, a ciência do comportamento, empregada em prol da emancipação dos sujeitos e da redução da desigualdade, pode ser tão ou mais eficiente que sua utilização a serviço de esquemas contingencialmente exploradores ou aversivos (HOLLAND, 2016; SÁ, 1986). 25 3 CULTURA E SOCIEDADE Ao longo deste trabalho abordamos vários pontos sobre o comportamento social e suas características e possíveis aplicações. Neste capítulo, vamos discorrer um pouco mais sobre esse tema, explorando o conceito de contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs), metacontingências e macrocontingências, na medida em que é possível as relacionar com o trabalho em rede. Vale ressaltar que alguns dos conceitos que serão apresentados passaram por diversas reformulações ao longo dos anos e ainda são alvo de discussões recorrente, desse modo inviabilizando um consenso entre a comunidade cientifica (MARTONE & TODOROV, 2007; TODOROV, 2012). Diante disso, buscou-se selecionar as termologias e conceitos usados, a partir de uma relação entre recorrência de aparição em trabalhos científicos e tempo de publicação. 3.1 Contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs) CCEs são um tipo de comportamento social no qual o comportamento operante de um ou mais indivíduos está inter-relacionado de modo a gerar um produto agregado comum (GLENN, 1986, 2015; TODOROV, 2012; VICHI, 2012). CCEs não são simplesmente a soma de comportamentos individuais, mas sim uma linhagem de operantes na qual o comportamento de cada organismo está contingencialmente ligado ao comportamento de um outro, em quaisquer dos três elementos de uma contingência de reforço operante (GLENN, 1986, 2015; TADAIESKY, 2010; VICHI, 2012). Em CCEs, o produto não necessariamente aparece como consequência do comportamento dos indivíduos, mas possui uma relação funcional com eles. Seja na ontogênese ou na cultura, as CCEs se mostraram vantajosas por permitir a obtenção de um produto que dificilmente seria feito por um único organismo ou que exigiria um grande gasto de energia para poder ser realizado individualmente (GLENN, 1986, 2015; TADAIESKY, 2010; VICHI, 2012) Por exemplo, para a apresentação de uma peça teatral, cada ator se comporta em relação aos seus companheiros de cena, mas não somente eles, como também o técnico de luz, o assistente de palco e mesmo o diretor ou o figurinista, que tiveram seus comportamentos distendidos no tempo anterior ao dia da apresentação, cada 26 indivíduo comporta-se com diferentes topografias para que a relação entre esses comportamentos gere um produto comum, a apresentação de um espetáculo teatral. É importante ressaltar que, em CCEs, a alteração de uma das partes da contingência pode gerar um efeito significativo no produto agregado final (GLENN, 2015; VICHI, 2012). Voltando ao exemplo citado anteriormente, se o diretor da peça for trocado ou, se um dos atores faltar, o resultado final da apresentação será diferente do que fora feito anteriormente. Comumente o estudo de CCEs, dentro da análise do comportamento, está conectado ao estudo de fenômenos culturais. O conceito de cultura já foi amplamente discutido por vários autores de diversas áreas do conhecimento e mesmo dentro da ciência do comportamento ela possui algumas versões diferentes (GLENN, 1986; MARTONE &TODOROV, 2012; TADAIESKY, 2010; TODOROV, 2012; VICHI, 2012). Portanto, neste trabalho partilharemos o conceito que Glenn (2015) nos apresenta. Para a autora: Como uma categoria de fenômenos, definiremos cultura aqui como “padrões de comportamento aprendido transmitidos socialmente, bem como os produtos desse comportamento (objetos, tecnologias, organizações etc.).” A cultura começa com a transmissão de conteúdo comportamental, aprendido por um organismo durante sua vida, para os repertórios de outros organismos. O lócus dos fenômenos culturais, portanto, é supraorganísmico. Ao contrário da aprendizagem, que se localiza nas relações temporais repetidas entre as ações de um único organismo e outros eventos empíricos, o lócus da cultura é supraorganísmico, pois envolve a repetição do comportamento inter-relacionado de dois ou mais organismos; o comportamento de um organismo funciona como a situação ou consequências nas contingências operantes que envolvem o comportamento do outro. (p. 213) Desse modo, cultura pode ser entendida como sendo um fenômeno intrinsicamente conectado com o entrelaçamento de contingências sociais, já que se relacionam à transmissão das práticas culturais e à construção de novas práticas. Neste ponto, se faz necessário delimitar o conceito de práticas culturais para a análise do comportamento. Práticas culturais são comportamentos similares em topografia e/ou função que estão presentes no repertório comum dos indivíduos de determinada sociedade, de forma a gerar um padrão identificável (GLENN, 2015; VICHI, 2012). Existe um fator relevante sobre as práticas culturais: seu efeito cumulativo (VICHI, 2012). Por exemplo, quando uma pessoa tem o hábito de tomar mais de um 27 banho por dia, por conta do calor, pretendendo refrescar-se e higienizar-se com mais frequência, ela, ela reproduz um comportamento comum na cultura brasileira. Por se tratar de comportamentos comuns aos indivíduos de uma cultura, tais práticas podem gerar uma alteração significativa no ambiente (GLENN, 2015; VICHI, 2012). No caso do exemplo supracitado, se muitos indivíduos de determinada sociedade têm o hábito de tomar vários banhos em dias mais quentes, isso pode gerar, a longo prazo, uma redução dos recursos hídricos e alteração no clima. É importante ressaltar que os produtos cumulativos tendem a estarem distanciados no tempo em relação aos comportamentos individuais e dificilmente terá um efeito contingencial com ele (GLENN, 2015; VICHI, 2012). Glenn (2015) identificou este tipo de fenômeno como sendo macrocontingências. Vichi (2012) irá fazer uma diferenciação que será relevante para esse trabalho. O autor separa os produtos adicionais em produtos cumulativos e produtos agregados. O primeiro diz respeito às macrocontingências e o segundo às metacontingências, que serão presentadas abaixo. Contingênciasentrelaçadas tendem a se tornarem cada vez mais complexas, de modo que seus produtos adicionais geram impactos na própria cultura, modificando-a através de um processo de seleção. Para conseguir categorizar e delimitar este tipo de fenômeno criou-se o termo metacontingências (GLENN, 1986). Segundo Glenn (2015), O prefixo meta- junto com a raiz contingências pretende sugerir contingências de seleção que se relacionam hierarquicamente com, e incluem, contingências comportamentais. Elas representam “um tipo diferente de seleção,” apesar de “nenhum processo comportamental novo” estar envolvido (Skinner, 1984a, p. 504). Metacontingências não são uma classe de comportamento alargada ou contingências comportamentais mais difundidas; no lugar disso, são o mecanismo de um tipo diferente de seleção. [...] O conceito de metacontingências aborda evolução por seleção quando as linhagens que evoluem não são os atos recorrentes de indivíduos (como esquematizado na Figura 1), mas sim contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs) recorrentes que funcionam como uma unidade integrada e resultam em um produto que afeta a probabilidade de recorrências futuras dessas CCEs.(p. 216, grifo do autor) Diante disso, ressalta-se o fato de que em metacontingências o produto agregado gera uma consequência cultural que pode aumentar ou reduzir a ocorrências da CCEs complexas que o originou, criando um certo tipo de seleção cultural. 28 Dessa forma, nesse trabalho, macrocontingências será usado como indicador da relação contingente de macrocomportamentos, ou “seja uma classe de comportamentos que constituem uma prática cultural” (GLENN, 2015 p. 213), que resultem em um produto cumulativo sem efeito selecionador na cultura, enquanto metacontingências irá se referir às CCEs que produzem um produto agregado, o qual irá incidir sobre a prática cultural com efeito selecionador. 25 4 REDES COMO CONCEITO E METODOLOGIA Nesse capítulo, na busca por expandir os horizontes conceituais do comportamentalismo, de modo a conseguir melhores estratégias metodológicas que sirvam como norteadoras de ações transformadoras, buscou-se nas ciências sociais um diálogo com o modelo de trabalho em rede. Este modelo, que já vem sendo utilizado como meio de potencializar ações coletivas, tanto pelos movimentos sociais quanto pelas políticas públicas, agora, no que tange aos objetivos desse trabalho, servirá como ponte entre saberes e base para a criação de possíveis novas estratégias de trabalho. 4.1 A construção do conceito de redes sociais O conceito de rede é abrangente e possui uma multiplicidade de aplicações. Diversos campos do conhecimento utilizam o termo, de modo que poderá ser encontrado em estudos sobre física, matemática, biologia, informática, sociologia, medicina, antropologia, psicologia, dentre outros (MENESES & SARRIERA, 2005). Para este trabalho, interessa apenas a utilização do termo dentro das ciências sociais, mais precisamente dentro da psicossociologia. Nesse sentido, destaca-se o conceito de redes sociais. Redes são entrelaçamentos de fios que se conectam uns aos outros de formando um tecido (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015). Suas configurações podem adquirir formatos diversos de acordo com a sua finalidade. O mesmo pode se aplicar às redes sociais. Segundo Marques (1999, p.46), Entende-se aqui por rede social o campo, presente em determinado momento, estruturado por vínculos entre indivíduos, grupos e organizações construídos ao longo do tempo. Esses vínculos têm diversas naturezas, e podem ter sido construídos intencionalmente, embora a sua maioria tenha origem em relações herdadas de outros contextos. Podemos imaginar a rede como composta por várias “camadas”, cada qual associada a um tipo de relação e a um dado período de tempo. Todas elas encontram-se em constante interação e transformação, embora o peso relativo das relações herdadas torne essa dinâmica incremental. Dessa forma, cada indivíduo, grupo ou instituição são como pontos da rede social, nós que se interligam por meio de processos de comunicação e desempenham funções diferentes em relação a um objeto ou objetivo comum a seus integrantes, 26 podendo, desse modo, potencializar suas ações e ter êxito na tarefa desejada (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015; MENESES & SARRIERA, 2005). Podemos dizer, ao falar em redes sociais, que não se trata apenas de uma metodologia de trabalho ou gestão, mas também de um campo de estudo que focaliza “[...] a interação e as inter-relações dos nódulos ou nós da rede, assim como os vínculos que geram entre os diversos nódulos” (MENESES & SARRIERA, 2005, p. 57). Além disso, Scherer-Warren (2003, 2013) afirma que as redes sempre existiram em nossa cultura. Uma vez que se conectar é a base fundamental das relações sociais, elas apenas ganharam diferentes configurações na contemporaneidade, que atraem o nosso olhar para estas novas formulações (SCHERER-WARREN, 2003). Meneses e Sarriera (2005) identificam que o estudo das redes se iniciou com as publicações de Jacob Moreno, em 1934, a partir das percepções das relações que os indivíduos estabelecem entre si, propondo a construção de um sociograma para identificar o lugar que o sujeito se encontra no grupo e sua relação com ele. Concomitantemente, uma série de estudos se desenvolveram no ambiente escolar por meio da observação das inter-relações aluno-aluno. A escolha por esse ambiente se deu por conta da possibilidade de identificar e controlar variáveis, já que nessa época, 1922-1933, havia uma preocupação com um certo tipo de rigor científico que se manifestava por meio de um método experimental (MENESES & SARRIERA, 2005; MARQUES, 1999). Com o tempo, os estudos foram se expandindo e passaram a observar as relações entre instituições-organizações, sujeito-organização, em especial nas relações que a família estabelece com outros setores da sociedade. Além disso, passaram também a ressaltar a importância das redes para o grupo, relacionando fatores como saúde física, psicopatologias e trabalho (MENESES & SARRIERA, 2005). Ao mesmo tempo, os métodos de coletas e análise dos dados foram se aproximando dos dados relacionais, focalizando a natureza dos vínculos entre os atores (MARQUES, 1999). Na América Latina, o conceito de redes tem sido apropriado pelas psicologias comunitárias, que aliadas ao estudo das instituições, têm produzido métodos e teorias sobre movimentos sociais (SCHERER-WARREN, 2003). A popularização do conceito de redes foi impulsionada pela globalização. As redes passaram a ser percebidas como estruturante das relações sociais. Desse modo, foram se desenvolvendo metodologias complexas direcionadas ao estudo das 27 redes, agora utilizadas como estratégias de gestão e potencialização das comunidades em uma perspectiva libertadora e emancipatória (SCHERER-WARREN, 2003, 2006, 2013; GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015). Desse modo, incorporou-se o Estado e as políticas públicas nas análises de redes, além de instituições da sociedade civil, organizações privadas, associações de classe sindical e movimentos comunitários, dentre outros (SCHERER-WARREN, 2006). Assim, o estudo das redes tem sido usado em uma multiplicidade de áreas para compreender e intervir em diversas relações, como por exemplo as políticas públicas de saneamento e interações comunitárias (MARQUES, 1999); a universidade em articulação com equipamentos de saúde e atores sociais (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015; MACIEL, 2017); e serviços públicos de saúde e associação de pacientes voluntários (ANDRADE & VAITSMAN, 2002). Na medida que se aumentou a escala das análises, os nós se tornaram numerosos e as estruturas mais complexas, sendo necessário pensar em redes de redes (MENESES & SARRIERA, 2005) 4.2 Redes como metodologia e estratégia de trabalhoDe modo geral, o trabalho em rede está intimamente conectado com a gestão pública brasileira e faz parte das diretrizes básicas das políticas de assistência social e assistência em saúde (MACIEL, 2017; MARQUES, 1999). Além disso, a participação social pela busca e garantia de direitos de forma ativa, são princípios fundantes de uma sociedade democrática. No Brasil, este direito é garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), no Artigo Primeiro, parágrafo único, em que se lê “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, [2016]). Também está expresso no Artigo 14º da CRFB/1988: o principal mecanismo de manifestação da soberania popular está ligado à participação da sociedade através do sufrágio universal (BRASIL, [2016]). Porém isso de forma alguma isenta ou anula o papel social na construção da nação. Qualquer cidadão brasileiro (Art. 5º) tem, assegurado pela lei, poder para propor (Art. 5º, inc. IV), manifestar (Art. 5º, inc. IX), e agir em prol de si e da comunidade pela garantia de direitos fundamentais (art. 194º) (BRASIL, [2016]). 28 Existe, portanto, uma estrutura que implica em um papel ativo dos indivíduos e comunidades na construção da realidade em que se encontra. Nesse cenário, é necessário criar estratégias que visem resgatar a dimensão participativa, já que este é não apenas um direito assegurado pela Constituição, mas também um princípio fundante da organização política de um país democrático, como no caso do Brasil (HAHN LÜCHMANN, 2005). Diante disso, as redes se mostram como uma estratégia eficiente para potencializar os trabalhos de abrangência socialmente relevante, em direção a uma ação transformadora. Redes, em geral, partem de um conflito, confluência ou necessidade que faz com que seus integrantes se mobilizem de modo a conseguir êxito na tarefa desejada, podendo, também, serem fruto de uma estrutura de gestão predeterminada como no caso das políticas públicas (MARQUES, 1999; SCHERER-WARREN, 2003). Elas surgem do encontro entre atores sociais, em uma relação de tempo, território sociopolítico e demanda, seja ela macro ou microssocial (SCHERER-WARREN, 2003, 2006; MACIEL, 2017). Como estratégia de trabalho, ela cria caminhos de comunicação intersetorial, fazendo com cada ponto contribua com o que lhe cabe. Uma rede forte, bem articulada, consegue reter mais eficientemente soluções e oportunidades de mudança (SCHERER-WARREN, 2003, 2006). Nesse sentido destaca-se o fato de as redes serem estruturas que preconizam certo tipo de organização, ou seja, “certa disposição dos elementos, segundo um composto de regras, visando objetivos comuns” (MACIEL, 2017). Uma das principais características das redes é seu olhar horizontalizado e democrático. Logo, é fundamental, para a boa realização do trabalho, que os processos hierárquicos sejam diluídos e que cada integrante seja visto como igualmente relevante (MENESES & SARRIERA, 2005; SCHERER-WARREN, 2003). Assim, as redes se apresentam como uma ferramenta para a promoção e manutenção de processos democráticos. Cada agente se responsabiliza pela parte que lhe cabe e contribui na facilitação de novas ações. Isso significa dizer que nem todos estarão engajados na mesma tarefa, cada serviço executa sua função e cada indivíduo se mobilizará individualmente na atividade que lhe cabe, porém todos devem manter um fluxo de comunicação que permita um direcionamento das ações, que são, de alguma maneira entrelaçadas. 29 Vale ressaltar que redes são fluidas e estão em constante transformação e mudança, de modo que seus produtos não estão bem definidos. Elas não são um fim em si mesmas e, portanto, mesmo que possuam um ponto de partida e uma intencionalidade predefinida, podem gerar uma série de resultados inesperados, expandindo ou mesmo adquirir novos sentidos na medida em que se constroem (SCHERER-WARREN, 2006). Essa é, na verdade, uma das principais vantagens do trabalho em rede, pois ele pode se adaptar às mudanças típica das relações sociais, criando novas trajetórias e estratégias mais eficientes. Os métodos empregados nesse esforço podem ser variados e se adaptam à realidade de cada rede, fortalecendo os canais de comunicação e proporcionando um alinhamento na realização de tarefas. Nesse sentido, é importante que os instrumentos sejam de construção participativa e se dividam entre os membros (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015; MACIEL, 2017; SCHERER- WARREN, 2003). 33 5 CONTINGÊNCIAS ENTRELAÇADAS EM REDES Como já foi tratado no final do capítulo um, existe uma necessidade de que os analistas do comportamento explorem novos recursos metodológicos, de modo a conseguirem produzir uma ação socialmente transformadora. Para tanto, é importante se atentar para outras áreas do conhecimento e gerar conexões com o conteúdo e métodos já desenvolvido até aqui. Nesse sentido, este capítulo pretende relacionar os conceitos abordados neste trabalho, verificando suas similaridades e dissonâncias. Ao comparar os conceitos de redes e CCEs, percebe-se uma aproximação interessante. Ambos dizem respeito, cada um à sua maneira, à inter-relação dos comportamentos de sujeitos e/ou instituições, de modo a gerar um produto que retroage sobre o comportamento do grupo. O conceito de redes possui diversas formulações, e formas de ser aplicado. Porém, nesse trabalho focalizaremos as redes sociais como metodologia de trabalho comunitário e, em especial, redes de movimentos sociais. Para tanto, precisamos retomar o conceito de rede, delimitando a ideia de rede de redes ou rede de movimentos sociais. Scherer-Warren (2006), vai trazer uma contribuição importante para compreendermos esse processo, ela separa as interações de rede em três níveis: Num primeiro nível, encontramos o associativismo local, como as associações civis, os movimentos comunitários e sujeitos sociais envolvidos com causas sociais ou culturais do cotidiano, ou voltados a essas bases, como são algumas Organizações Não-Governamentais (ONGs), o terceiro setor. [...] Num segundo nível, encontram-se as formas de articulação inter- organizacionais, dentre as quais se destacam os fóruns da sociedade civil, as associações nacionais de ONGs e as redes de redes, que buscam se relacionar entre si para o empoderamento da sociedade civil, representando organizações e movimentos do associativismo local. É através dessas formas de mediação que se dá a interlocução e as parcerias mais institucionalizadas entre a sociedade civil e o Estado. [...] Nesse terceiro nível, observa-se que as mobilizações na esfera pública são fruto da articulação de atores dos movimentos sociais localizados, das ONGs, dos fóruns e redes de redes, mas buscam transcendê-los por meio de grandes manifestações na praça pública, incluindo a participação de simpatizantes, com a finalidade de produzir visibilidade através da mídia e efeitos simbólicos para os próprios manifestantes (no sentido político-pedagógico) e para a sociedade em geral, como uma forma de pressão política das mais expressivas no espaço público contemporâneo. (p.110-112) Logo, pode-se dizer que redes são mais que a união de um grupo de indivíduos, elas possuem um caráter intencional de transformação da realidade. Existe um 34 direcionamento nas redes de movimentos sociais e um sentido nas suas ações, a partir de um encontro entre as redes tradicionais (família, vizinhos, amigos) e as redes sociais associativas (ONGs, associações de moradores, movimentos identitários, equipamentos públicos). Nesse sentido, destaca-se a ideia de pensar redes sociais como CCEs complexas, que vão adquirindo contornos estruturados em forma de organizações. Glenn (2015), falando sobre CCEs complexas, afirma: [...] componentes de umalinhagem de CCEs podem ser incorporados nas CCEs de maior complexidade (como na Figura 7). Essas entidades culturais mais complexas são as unidades em evolução individualmente identificáveis conhecidas como organizações: companhias individuais, suas corporações matrizes, escolas, distritos escolares, universidades, departamentos de universidades, agências governamentais e assim por diante. Cada uma dessas unidades existe enquanto consistirem em CCEs que gerem um produto que possa aumentar a chance da recorrência das CCEs. (p. 217) Cada vez mais complexas, rede de movimentos sociais estabelecem conexões entre comunidade e organizações, fazendo-as se comportar de modo a gerar um produto agregado que só pode existir nas relações contingencialmente entrelaçadas entre os componentes da rede. Assim, vale destacar as redes de movimentos sociais como sendo uma formulação de metacontingências. A partir de uma distinção entre macrocontingências e metacontingências (ver capítulo 3), é possível inferir que as redes tradicionais e associativas podem gerar produtos cumulativos que eventualmente podem alterar o ambiente social de maneira positiva. Porém, estes efeitos tendem a aparecer muito distanciados no tempo e dificilmente geram efeitos sobre as práticas culturais, ficando restritos a um ambiente local. Tomando como exemplo, podemos citar o trabalho realizado por Gonçalves, Queiroz e Saadallah (2015), em que elas apresentam as ações desenvolvidas nas comunidades dos bairros São Gabriel, Lajedo e Vila Cemig, em Belo Horizonte – MG, através do projeto de extensão universitária “Articulando redes, fortalecendo comunidades” e também o trabalho descrito por Maciel (2017), que foi focalizado nas comunidades da Vila Cemig, Auto das Antenas e Conjunto Esperança. Em cada comunidade, as estratégias metodológicas geraram produtos diretos, como por exemplo as produções audiovisuais e o diagnóstico socioterritorial, ao mesmo tempo em que um produto adicional, o fortalecimento do vínculo entre os elos da rede, surge 35 como efeito final as ações realizadas. Porém, tais ações dificilmente conseguiriam gerar mudanças nas práticas culturais em um processo de modificação cultural. Já as redes de movimentos sociais, por abrangerem um número maior de indivíduos e organizações, possuem maiores chances de gerar um produto agregado socialmente transformador. Como exemplo de alguns desse movimento podemos citar os movimentos feministas, os movimentos negros, os movimentos de luta da população LGBTQI+, que historicamente vem alcançando transformações culturais a nível global (SCHERER-WARREN, 2013). Outras redes potencialmente transformadoras são aquelas oriundas das políticas públicas. As redes formadas pelos serviços assistenciais, possuem um compromisso com integralidade, ou seja, entendem o sujeito humano como sendo bio- psico-social, o que torna impossível que um único equipamento público dê conta de oferecer suporte suficiente para uma mudança estrutural, (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015; TEJADAS, 2007). Sobre isso, Guanais e Pinheiro (2011) apontam potencialidade do programa Estratégia Saúde da Família do Sistema Único de Saúde, que, por estar presente em todo o território nacional, tem nas redes uma das suas principais ferramentas para o desenvolvimento de uma atenção integral à saúde, mas que muitas vezes se omite em detrimento da manutenção de um status quo típico de uma medicina tecnicista e estratificada. Nos estudos sobre redes na relação Estado-comunidade, por exemplo, é comum encontramos críticas a uma certa centralidade tecnocrática e burocrática dos serviços que atuam ignorando sistematicamente a participação coletiva e o trabalho intersetorial (MARQUES, 1999; GUANAIS & PINHEIRO, 2011). Diante disso, pode-se questionar se a resistência dos equipamentos públicos na promoção de ações mais democratizadas ocorre por conta da sua dupla função de rede de assistência e agência controladora, já que faz parte da aparelhagem do Estado. Logo, considerando os princípios relacionados ao terceiro nível de seleção do comportamento (cultura) e o conceito de redes, pode-se dizer que, mesmo que o comportamento de cada organização, em uma relação macrocontingente, produza um e efeito cumulativo positivo localizado, a propostas das redes de redes pretende, afinal, uma mudança estrutural metacontingente. 5.1 Redes como estratégias de contracontrole social 36 As redes de movimentos sociais podem ser descritas como sendo uma forma de controle social ativo ou contracontrole social, como abordado no capítulo um. A partir do momento que em se organizam e põem em marcha ações intencionais de transformação da realidade, as redes buscam provocar uma mudança no cenário geral, reduzindo as desigualdades e criando novas narrativas identitárias (SCHERER- WARREN, 2006). Esses objetivos se concretizam na medida em que a rede, fortalecida pela união de seus membros, promove uma redistribuição do poder adquirido, potencializando os nós tanto individualmente como coletivamente. Esta é possivelmente uma das principais características das redes: sua estrutura democrática, horizontalizada e descentralizada (GONÇALVES, QUEIROZ & SAADALLAH, 2015; MACIEL, 2017; MENESES & SARRIERA, 2005; SCHERER- WARREN, 2003, 2006). Porém, a questão do poder nas redes se localiza entre a utopia e o conflito. Sobre isso, Scherer-Warren (2006, p. 122-122) afirma: Pressupõe-se, freqüentemente, que, numa organização em rede há uma distribuição do poder, os centros de poder se democratizam, ou, como há muitos centros (nós/elos), o poder se redistribui. Isso é parcialmente verdadeiro, porém, mesmo em uma rede há elos mais fortes (lideranças, mediadores, agentes estratégicos, organizações de referência, etc.), que detêm maior poder de influência, de direcionamento nas ações, do que outros elos de conexão da rede. Tais elos são, pois, circuitos relevantes para o empoderamento das redes de movimento. As redes, assim como qualquer relação social, estão sempre impregnadas pelo poder, pelo conflito, bem como pelas possibilidades de solidariedade, de reciprocidade e de compartilhamento. Dito isso, a possibilidade colaborativa das redes, mesmo em suas dissonâncias, permite um enfrentamento maior às forças antagônicas de poder que podem ser observadas, como apontou Holland (2016), na forma de sistemas de reforçamento orquestrados pelas classes dominantes, que visam potencializar a competição e o fortalecimento do status quo que os favorece. Segundo Baum (1999), o poder está justamente no grau de controle que um organismo pode exercer sobre o outro, sendo que, desse modo, o poder está essencialmente atrelado à produção de um certo grau de desigualdade. Para o autor, este fator se mostra muito importante para compreensão da dinâmica social vigente, especialmente no que diz respeito à função do poder na cultura, já que a 37 desigualdade, como produto das contingências de controle, pode ser facilmente identificada através de uma relação comparativa entre os organismos. Tomemos como exemplo a desigualdade econômica, presente no Brasil, que hoje ocupa o 9º lugar no ranque de desigualdade social (OXFAM, 2018), tendo uma das piores distribuições de renda no mundo. O dinheiro, por se tratar de um reforçador universal de alta intensidade, permite acesso a outras contingências reforçadoras. Sua falta limita ainda mais as possibilidades de ação dos indivíduos, fazendo com que estes tenham que invariavelmente vender sua força de trabalho, facilitando, assim, a manutenção de contingências de exploração (SKINNER, 1999, BAUM, 1999). O poder distribuído de forma desigual está na base da distribuição desigual das vantagens. Aquele que gerencia as contingências mais poderosas é o mesmo que colhe as maiores vantagens. O controlador reforça aquele comportamento do controladoque produz o maior reforço para si próprio (BAUM, 1999, p. 219). Desse modo, percebe-se que as relações de poder vão além da interação controlador-controlado, mas são marcadas pelo acesso aos reforçadores. Estes, obviamente, não se restringem a reforçadores materiais, mas também, e em boa parte, dizem respeito à reforçadores sociais. Trazendo para o contexto das redes, elas buscam redistribuir poder na medida em que se dedicam ao [...] combate à exclusão em suas múltiplas faces e a respectiva luta por direitos (civis, políticos, socioeconômicos, culturais e ambientais); o reconhecimento da diversidade dos sujeitos sociais e do respectivo pluralismo das idéias; a promoção da democracia nos mecanismos de participação no interior das organizações e nos comitês da esfera pública, criando novas formas de governança. (SCHERER-WARREN, 2006, p. 123) Faz parte do funcionamento das redes de movimentos sociais, a consolidação de uma identidade coletiva formada a partir de processo de generalização. O fortalecimento dessa identidade é uma das principais formas de enfrentamento e suporte das redes (SCHERER-WARREN, 2013). Quando une aqueles que são sistematicamente excluídos, as redes fornecem resistência aos poderes instituídos, criando novas narrativas sobre a história de vida de determinado grupo, por exemplo os movimentos de da luta LGBTQI+, movimentos negros, movimentos feministas e os movimentos de vilas e favelas para citar alguns (SCHERER-WARREN, 2013), que se 38 constituem, assim, como formas de contracontrole. Ou seja, pode-se dizer que as redes criam novas contingências verbais, na forma de prescrições, regras e instruções, de modo a produzir repertórios verbais de valores socialmente difundidos, em contraposição com os valores vigentes que, na maioria das vezes, favorecem um grupo em detrimento de outro. Portanto, o uso das metodologias de redes, seja em um nível local, como no caso de redes comunitárias ou num nível macrossocial, em redes de movimentos sociais, tende a criar repertório verbais mais democráticos em escalas variadas, que podem se concretizar na forma de metacontingências culturalmente relevantes. 39 6 CONCLUSÃO Ao final do capítulo um levantei uma questão, a qual acredito ter sido a indagação que margeou todo este trabalho e que agora retomo: é possível usar a ciência do comportamento para promover a redução da opressão exercida pelos agentes controladores? Assim como Holland (2016), em resposta a uma indagação similar à feita acima, acredito, após a realização deste trabalho, que a ciência comportamental possui uma vasta possibilidade de atuação e transformação da realidade, na medida em que busca compartilhar seus saberes com outras áreas do conhecimento e criar estratégias eficientes de oposição às opressões presentes na nossa cultura. Nesse sentido, ao longo desse trabalho, percebi que o estudo das redes já dispõe de um vasto arsenal de conhecimentos técnico e metodológico que permite um enfrentamento das desigualdades de poder. Cabendo, então, a análise do comportamento verificar quais tipos de contribuições ela pode ofertar e extrair. Em algumas de suas obras Skinner (1999, 2000, 2003) fala sobre uma possibilidade de planejamento cultural, como meio de reverter efeitos nocivos de práticas culturais. Sobre isso Glenn (2015) também irá dizer: O planejamento sistemático parece surgir quando práticas culturais produzem resultados imprevistos, indesejados, ou reconhecidos tardiamente como tendo resultados abaixo do ideal. Resultados do comportamento humano em curso, não intencionais e prejudiciais à cultura são primeiro identificados, então lamentados e, às vezes, finalmente, enfrentados. (p.209) Essas questões nos fazem atentar para dificuldade de se antever consequências culturais que prejudicam a qualidade de vida, ao mesmo tempo em que denunciam uma urgência na melhoria estratégias de intervenção. Como apresentado, por meio da experiência das redes, o estabelecimento de CEEs complexas, na forma de metacontingências de valor positivo para nossa cultura, pode ser longo, arriscado e exigir um esforço e empenho de alta magnitude. Porém, esse, possivelmente, é o caminho necessário para a mudança. Quanto mais contingências individuais ou metacontingências organizacionais forem alteradas, maior a mudança potencial no efeito cumulativo. Quanto maior o número de organizações caracterizadas pelos mesmos tipos de CCEs, mais provavelmente consideraremos estes tipos de CCEs uma prática cultural. (Glenn, 2015 p. 220) 40 Apesar disso, como poderemos realizar tamanha empreitada? Como realmente é possível para o analista do comportamento contribuir com a mudança social? Dificilmente conseguiremos reproduzir a utopia skinneriana de uma sociedade experimental e certamente não conseguiremos fazer muita coisa guiados, unicamente, pelos ideais behavioristas. Castro (2016) irá chamar a atenção para uma certa exaltação da ciência dentro da análise do comportamento, atribuindo a ela um certo salvacionismo como pudesse gerar, por si só, uma mudança resolveria as mazelas sociais. Tal tipo de pensamento é um erro que afasta a ciência do comportamento de outras ciências e isola as possibilidades reais de um trabalho conjunto realmente transformador. Dito isso, resgatamos o fato de que as redes se constroem no encontro, nas inter-relações cotidianas, organizadas ou não. Portanto, é na vida prática que nos cerca, que poderemos criar novas conexões e assim novas redes, novas organizações e por fim um novo caminho para mudança. Essa é uma das principais contribuições que as redes têm a oferecer a ciência do comportamento, a ideia de que são nos encontros que nascem as oportunidades de mudanças, é no trabalho coletivo que conecta saberes e experiências que os conhecimentos analíticos comportamentais tomarão corpo e poderá gerar uma atuação relevante. Além disso, destaca-se o fato de que o trabalho em rede nos convida a um posicionamento político ativo em relação as desigualdades sociais, fator que, infelizmente tem sido negligenciado por analista do comportamento. É importante lembrar que quando Holland (2016) salienta a necessidade de “transmitir ao povo as nossas descobertas; e promover aplicações que sejam mais adequadas às suas necessidades do que às necessidades da elite.” (p.110), ele fala de um posicionamento ético político que o analista deve ter frente as questões sociais, pois, se a questão central é sobre como e a quem nossa praticas culturais tem favorecido, desvelar as relações que contingenciam tais práticas é um ato político e um compromissos que a mudança. Nesse sentido, acredito que as redes também têm a ganhar com os conhecimentos analítico comportamentais, na medida em que fornecem ferramentas para entender as relações de controle, e o papel do ambiente social nos processos de produção e redução das desigualdades. Desse modo refinando estratégias de contracontrole, que poderão ser mais bem adaptadas a luta por direitos. 41 Dessa forma, conclui-se que a associação dos pressupostos do Behaviorismo Radical, ao conceito de redes apresentado pelas ciências sociais, pode vir a se tornar um caminho promissor de promoção de transformações sociais favoráveis à sobrevivência da cultura. Certamente que a interlocução proposta por este trabalho está longe de ter se esgotado. Seja na exploração teórico conceitual, seja na aplicação e desenvolvimento de projetos que unam o trabalho em rede e a ciência do comportamento, ainda há muito o que se produzir, cabendo aqui apenas uma introdução, um convite para novas reflexões. 43 REFERÊNCIAS BAUM, William M. Compreender o Behaviorismo: Ciência, Comportamento e Cultura. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
Compartilhar