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254 POLÍTICA, PODER E ESTADO Por que costumamos achar que a violência da polícia contra os criminosos é le- gítima? Porque, em geral, ela é praticada para fazer cumprir a lei. O valor que da- mos à lei se deve ao fato de que, nas sociedades modernas (como a nossa), predo- mina a forma de dominação racional-legal, que explicamos no item anterior: para nós, o que vale é a lei. Quando vemos policiais cometerem violência sem cumprir a lei (por exemplo, matando um inocente), nos revoltamos contra eles. A violência da polícia só é considerada legítima quando praticada conforme a lei. Mas é preciso ter em mente uma coisa muito importante: os Estados modernos (brasileiro, estadunidense, francês, etc.) não se formaram porque seus fundadores desejavam proporcionar bem-estar à população, respeitar a tradição, garantir o respeito à lei, ou porque desejavam ser “modernos”. Vamos ver como esse pro- cesso está relacionado com nossa discussão sobre o monopólio da violência e a necessidade dos dominadores de serem aceitos pelos dominados. Manifestação realizada em 2015 no bairro de Madureira, Rio de Janeiro (RJ), em protesto contra a execução de cinco jovens pela polícia. Embora a polícia tenha legitimidade para usar a violência nos casos previstos na lei, a população repudia atos de violência policial arbitrários. L u iz S o u z a /C o r b is /F o to a r e n a VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Imagine que um país estrangeiro com um exército poderoso invadisse o Brasil e destruísse completamente as Forças Armadas brasileiras. Imagine que o presidente desse país dissesse que, daquele momento em diante, mandaria no Brasil e só ele poderia decidir o que é certo ou errado. Mesmo se o gover- no invasor tivesse o monopólio da violência, você o reconheceria como legí- timo? Você acha que o governo invasor poderia sobreviver por muito tempo com base apenas na força? 255 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Lembremos do exemplo do poder que o assaltante armado exerce sobre sua vítima. Em seus estudos sobre a formação dos Estados modernos, o cien- tista político e historiador estadunidense Charles Tilly (1929-2008) destacou que, quando se formaram, os Estados modernos não eram muito diferentes de quadrilhas criminosas que, para não agredir o povo, cobravam dele. Entretan- to, para se manter, o Estado precisa conquistar o apoio dos governados. Você deve ter aprendido nas aulas de História que o Estado moderno cres- ceu como uma aliança entre os monarcas europeus e a burguesia. O desenvol- vimento capitalista trouxe mais riqueza para os cofres do Estado. Ao mesmo tempo, a burguesia ia “domesticando” o Estado, conquistando cada vez mais direitos, obrigando os governos a respeitarem as leis que defendiam suas liber- dades e sua propriedade. As classes populares foram motivadas por essas conquistas de direitos, e também passaram a se organizar para exigir o direito de votar, de formar sindi- catos, de defender suas próprias ideias, etc. O resultado desse processo foi a formação das democracias modernas. Entretanto, é importante notar que, como observou Antonio Gramsci (ver Perfil no Capítulo 7), nas sociedades modernas o poder não é exercido apenas pelo governo, pela polícia, pelos tribunais, pela violência. A disputa pelo poder passa pela disputa de ideias, pela produção de cultura, de notícias (e até pela discussão dentro das próprias Ciências Sociais). As diferentes classes e os diferentes grupos sociais lutam, entre outras coi- sas, para convencer a sociedade de que suas ideias representam o interesse de todos. Cada grupo tem sua ideia, por exemplo, de como a sociedade deve- ria se organizar em relação ao que e como será produzido, como responder às demandas públicas de saúde e educação, quais soluções deveriam ser adota- das para resolver o problema de moradia da população (ou mesmo se isto re- presenta ou não um problema). Para pôr isso em prática, tenta formar alianças que incluam o maior número possível de grupos entre os que serão beneficia- dos por seu projeto político. Isso nunca será feito apenas pela força, ou só pelo interesse econômico, e muito menos pela propaganda, mas exigirá que as pessoas sejam convencidas. Gramsci chamou esse processo de luta pela he- gemonia (a liderança) da sociedade. Veja na seção BIOGRAFIAS quem é Charles Tilly (1929-2008). Em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque alegando, entre outras coisas, que implantariam a democracia no país. A foto mostra a etapa relativamente fácil da ação: o imenso poderio militar estadunidense derrotou o ditador Saddam Hussein, que governava o Iraque (representado na estátua que está sendo derrubada, em Bagdá). Porém, os Estados Unidos não conseguiram construir um acordo entre os vários grupos étnicos e religiosos dentro da sociedade iraquiana. Iniciou-se uma guerra civil, durante a qual surgiu o grupo Estado Islâmico, que hoje controla regiões do Iraque e da Síria e pratica ações terroristas em várias partes do mundo. Esse exemplo permite demonstrar como é difícil fazer política apenas com a força. C o r b is /F o to a r e n a 256 POLÍTICA, PODER E ESTADO Parte importante da política moderna é a disputa entre os vários projetos po- líticos pela hegemonia. Na democracia, esses diversos projetos se enfrentam sem ter o direito de se imporem pela força. Vamos ver agora algumas ideias que foram fundamentais para a consolidação do Estado moderno tal qual o conhecemos. Começaremos com o filósofo Nico- lau Maquiavel (ver Perfil a seguir), pois não é possível falar da política moderna sem falar de sua obra. Maquiavel é considerado o fundador da Ciência Política e um dos principais teóricos do Estado moderno por um motivo simples: em vez de pensar apenas na política como deveria ser, analisou-a com base no que ela é, pensando em exemplos históricos. autônomo: que se governa por conta própria. Uma cidade autônoma, portanto, não é comandada por outra cidade ou país. Ao mesmo tempo, no caso de Florença, ela apenas governa a si mesma. mercenário: soldado que serve a quem lhe pagar, não importando a nacionalidade ou causa. LÉXICO 3. OS CONTRATUALISTAS: O QUE O ESTADO PODE FAZER? A origem do Estado, como vimos, está na guerra e na conquista. Maquiavel foi o grande pensador da fundação dos Estados. Mas o Estado é uma forma de do- minação, e, como vimos, a dominação precisa ser legítima, precisa convencer quem obedece de que é certo obedecer. Por isso, quando o Estado moderno foi formado, vários pensadores tentaram resolver o seguinte problema: quando o Es- tado é legítimo? Durante esses debates, muitos dos conceitos atuais sobre liberdade, igual- dade e democracia foram formados. Vamos explorar agora três autores que fundamentaram a existência e as atribuições do Estado e embasaram boa par- te das ideias políticas que vigoram atualmente. Eles são conhecidos como contratualistas, pois viam o Estado como resultado de um contrato entre os cidadãos que concordavam em obedecer a uma estrutura de poder com re- gras próprias. Estátua de Maquiavel na Galleria degli Uffi zi, em Florença, Itália. Foto de 2010. Viacheslav Lopatin/Shutterstock Como diplomata, Nico- lau Maquiavel (1469-1527) representou sua cidade na- tal, Florença, em reinos im- portantes da Europa. Ven- do sua cidade de fora, Maquiavel percebeu que ela estava em uma situa- ção muito difícil. Naquela época, Esta- dos modernos já haviam se formado em lugares como França e Espanha, mas não na região que hoje corres- ponde à Itália. Cidades como Florença eram autôno- mas, e a Itália só se unificaria no século XIX. Diante dos poderosos exércitos espanhóis e franceses, essas cidades pareciam frágeis, o que se provou na derru- bada do governo de Florença após um conflito com a Espanha. O novo governo prendeu, torturou e exilou Maquiavel. No exílio, ele escreveu O príncipe, sua obramais famosa. O príncipe se propunha a orientar líderes po- líticos. Um líder deveria, por exemplo, ter seu próprio exército, em vez de confiar em merce- nários, que sempre fogem depois de receber seu pagamento. Ele deveria, também, se infor- mar sobre os costumes dos povos que habitam os territórios conquistados (apesar de seu terri- tório pouco extenso, a Itália até hoje é marcada por grande diversidade cultural). O príncipe precisaria tomar todo cuidado com os nobres e poderosos que pudessem vir a se tornar seus ri- vais. E não deveria vacilar quando fosse neces- sário cometer violências e crueldades contra seus inimigos. Hoje não aceitaríamos muitas das orientações que Maquiavel deu em O príncipe, como sua de- fesa do uso da crueldade em várias situações. Mesmo assim, podemos aprender algo com elas: o caráter violento da formação dos Estados na- cionais modernos. PERFIL NICOLAU MAQUIAVEL 257 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Isto é, embora o Estado tenha se formado por meio da conquista e da guer- ra, os contratualistas se perguntavam: se todos nos reuníssemos e fundássemos um Estado por nossa própria vontade, como ele seria? Esse Estado seria, sem dúvida, legítimo, pois expressaria a vontade livre dos que obedecem. Contratualistas como os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Lo- cke (1632-1704) e o franco-suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) se per- guntaram como seria a vida sem o Estado, no que chamavam de estado de natureza. Por que as pessoas que viviam no estado de natureza decidiriam criar o Estado? Para Thomas Hobbes, a vida no estado de natureza seria violenta, pobre e cur- ta. Se você vivesse no estado de natureza, teria medo de ser atacado pelas outras pessoas. Afinal, se duas delas se juntassem para matá-lo e roubar tudo o que você possuía, o que poderia ser feito? A melhor coisa a fazer seria se armar para se de- fender. Assim, haveria uma guerra de todos contra todos. Nessa situação, ninguém teria interesse em trabalhar muito. Sem poder trabalhar muito para se alimentar, e sempre preocupado em fazer guerra contra as outras pessoas, não é provável que você conseguisse sobreviver por muito tempo. Veja na seção BIOGRAFIAS quem são Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). R e p ro d u ç ã o /B ib li o te c a B ri tâ n ic a , L o n d re s , In g la te rr a . Folha de rosto (página que abre um livro) da primeira edição de Leviatã, de 1651, principal obra de Thomas Hobbes. A armadura do gigante (que representa o Estado) é formada por uma multidão de pequenas pessoas que abdicaram de sua liberdade em troca da proteção pelo gigante que construíram. 258 POLÍTICA, PODER E ESTADO Nessa situação, disse Hobbes, o medo levaria as pessoas a fundar o Estado. Nesse momento, elas abririam mão de sua liberdade e concordariam em obede- cer ao Estado. Em contrapartida, o Estado deveria garantir a paz e a lei, para que as pessoas, sem medo de serem atacadas a qualquer momento, pudessem tra- balhar e prosperar. Hobbes viveu durante uma sangrenta guerra civil na Inglater- ra. Por esse motivo, sua maior preocupação com relação ao Estado era a de que ele garantisse a paz. John Locke tinha uma visão bem mais otimista sobre o estado da natureza. Nele as pessoas seriam livres e já teriam direito à propriedade do que produzis- sem. Para entender por que esse direito seria reconhecido, vamos supor um exemplo: quando você cuida de uma plantação, seu trabalho fica misturado à ter- ra. Como é impossível separar seu trabalho da terra (sem destruir a plantação), aquela plantação é sua — no contexto do estado de natureza. Mas, se o estado de natureza não era tão abominável como Hobbes imaginava, por que as pessoas fundariam o Estado? Bem, porque muitas vezes surgiriam conflitos sobre quem teria direito a quê. E ninguém é bom juiz de si mesmo. Dessa forma, seria preciso fundar o Estado para que ele fosse o juiz nesses casos. E aqui está a diferença entre Hobbes e Locke: o Estado, para Locke, não poderia julgar do jeito que quisesse. Quando as pesso- as fundaram o Estado, elas já tinham direito à liberdade e à propriedade. Por isso, só seriam obrigadas a obedecer ao Estado se ele protegesse os direitos à liber- dade e à propriedade que elas já possuíam no estado de natureza. Assim, se o Estado ameaçasse sua liberdade ou sua propriedade, qualquer um teria o direito de se rebelar contra ele. Locke viveu na época da Revolução Gloriosa inglesa: como resultado dessa revolução, o rei foi obrigado a aceitar leis que limitavam seu poder e garantiam direitos aos seus súditos. Para Rousseau, o estado de natureza era ainda melhor do que na concep- ção de Locke. Se você vivesse no estado de natureza de Rousseau, seria livre e feliz com o pouco que possuísse. Entretanto, o convívio levaria você a se importar cada vez mais com a opinião alheia e a tentar ser melhor que seus semelhantes. Aos poucos, as pessoas deixariam de ser iguais, e o golpe final contra a igualdade viria com a invenção da propriedade. Após a invenção da propriedade, seria necessário criar o Estado e as leis para protegê-la. Mas a perda da liberdade natural do ser humano poderia ao menos ser com- pensada pela conquista da liberdade do cidadão. Para Rousseau, a única maneira de preservar a liberdade após o surgimento do Estado seria se todos aceitassem entregar seus direitos uns aos outros (e não ao governante, como na concepção de Hobbes). Ao fazer isso, o indivíduo não teria interesse em exigir demais das outras pessoas, porque tudo o que exigisse poderia ser exigido dele também. Nesse contexto, seria preciso merecer sua liberdade, participando da vida políti- ca do país e, principalmente, da elaboração de suas leis. O Estado mereceria ser considerado legítimo quando suas leis fossem criadas pela Vontade Geral, que é a vontade do conjunto dos cidadãos que visa ao bem comum. Se cada um pensar somente em si mesmo ao escrever as leis, o Estado funcionará mal, e aos poucos todos perderão sua liberdade. VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Imagine que você tem um confl ito com seu vizinho. Pode ser um confl ito sim- ples (ele ouve música alto demais) ou mais grave (ele desafi a todo mundo a brigar). Como você resolve isso? Se não for possível resolver o problema con- versando, você chamará a polícia (isto é, chamará o Estado para ser o juiz)? O que a polícia teria direito de fazer caso fosse chamada? Você acha que a polícia poderia agredir seu vizinho ou quebrar os móveis da casa dele? Que direitos você acha que seu vizinho tem que o Estado não pode desrespeitar? Retrato de Thomas Jefferson (1743-1826), um dos principais líderes da independência e o terceiro presidente dos Estados Unidos, feito em 1800 por Rembrandt Peale. A Declaração de Independência e a Constituição estadunidenses foram muito infl uenciadas pelas ideias do inglês John Locke, em especial por seus conceitos de liberdade e propriedade. W h it e H o u se /F u n da çã o W iki me dia 259 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Algumas ideias dos contratualistas Como seria a vida sem o Estado? Por que se formaria o Estado? O que as pessoas poderiam esperar do Estado? Hobbes Violenta e pobre (a guerra de todos contra todos). O medo de morrer faria as pessoas aceitarem uma autoridade que garantisse a ordem. Que a paz e a ordem fossem garantidas. Locke As pessoas já teriam direitos naturais. Ninguém é bom juiz de si mesmo, e o Estado seria necessário para decidir conflitos entre as pessoas. Que os direitos e as liberdades individuais fossem preservados. Rousseau As pessoas seriam livres e se contentariam com pouco. Para defender a propriedade, que daria início à desigualdade entre as pessoas. Que os cidadãos possam participar ativamente das decisões do Estado, em nome do interesse detodos. As ideias de Hobbes, Locke e Rousseau ajudam a entender melhor o que ex- plicamos sobre política e sobre o Estado. Hobbes formulou uma justificativa con- sistente para a existência do Estado, e suas ideias sempre voltam à tona quando a ordem pública está seriamente ameaçada (por exemplo, quando há uma guer- ra civil ou um surto de violência). Locke foi o primeiro grande defensor moderno da liberdade e dos direitos do cidadão, tanto políticos quanto econômicos. E Rousseau discutiu com especial competência as questões da democracia e da igualdade. 4. REGIME S POLÍTICOS: A DEMOCRACIA Na discussão sobre os contratualistas, vimos que há opiniões diferentes sobre como o Estado deve ser organizado, quais são os direitos e deveres dos cidadãos e que valores os cidadãos devem ter para que a política funcione bem. Depen- dendo de sua posição diante dessas questões, podemos dizer que você defende certo tipo de regime político. Segundo o Dicionário de política organizado pelos italianos Norberto Bobbio (1909-2004), Nicola Matteucci (1926-2006) e Gian- franco Pasquino (1942-), um regime político é o conjunto de instituições, leis e valores que regulam a luta pelo poder em determinada sociedade. Boa parte das diferenças entre os regimes políticos democráticos da atualida- de se explica pela maneira como, em cada país, se organizam três poderes fun- damentais: o Legislativo (que tem o poder de escrever e votar as leis), o Executivo (que controla o poder para aplicar as leis com base na força — usando, por exem- plo, a polícia) e o Judiciário (que garante que o Executivo aplique seu poder so- mente dentro do que diz a lei). O regime político que mais nos interessa neste livro é a democracia, que é o adotado no Brasil. O regime político em um país é democrático quando ele tem três características principais, segundo os cientistas políticos Mike Alvarez (1962-), José Antonio Cheibub (1960-), Fernando Limongi (1958-) e Adam Przeworski (1940-): 1. O chefe de governo do Poder Executivo é eleito pelo voto: isso ocorre não só quando os eleitores votam diretamente para presidente da República (como no Brasil), mas também quando votam nos parlamentares que, por sua vez, elegem o primeiro-ministro (como na Inglaterra). Veja na seção BIOGRAFIAS quem são Norberto Bobbio (1909-2004), Nicola Matteucci (1926-2006), Gianfranco Pasquino (1942-), Mike Alvarez (1962-), José Antonio Cheibub (1960-), Fernando Limongi (1958-) e Adam Przeworski (1940-).
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