Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
249 UNIDADE 3 PODER E CIDADANIA A política é a arte de determinar como vamos vi- ver juntos, conciliar nossos interesses e estabe- lecer regras de convivência. Poucas atividades humanas lidam com questões tão essenciais, tão dramáticas, que produzem tantas consequências. Um governo ditatorial, por exemplo, pode tirar mais vidas que a pior das epidemias. Já um bom programa de saúde pú- blica, implementado por um governo preocupado com os princípios básicos de cidadania e bem-estar social, pode garantir qualidade de vida a muitos cidadãos. É por meio da política que se decide quais serão os seus direitos, o quanto de liberdade você terá, e quais serão suas chances de ter acesso a bens e oportunidades que possibilitem mais escolhas na vida de cada um. Em um jogo em que as apostas são tão altas, participam mui- tos aventureiros e desonestos em busca de vantagens e poder. A única alternativa ao governo dos aventureiros e desonestos é que você, o cidadão, aprenda como o jogo da política é jogado, e, ao lado de seus concidadãos, faça com que ele funcione a favor de todos. 250 11CAPÍTU L O 1111 Q uando você pensa em política, o que vem à sua cabeça? Provavelmente algo relacionado ao governo, às pessoas que administram a cidade, o estado ou o país. Talvez você pense em eleições, em candidatos, no voto. E talvez tenha uma opinião desfavorável sobre a política: muita gente, quando ouve falar em política, logo pensa em corrupção. Mas você já pensou em quantas coisas boas na sua vida foram conseguidas por lutas políticas? Por exemplo, hoje você pode postar na internet uma frase como “Odeio todos os políticos, o governo é corrupto”. No Brasil, há pouco mais de trinta anos, quem criticasse o governo desse jeito poderia ser preso, torturado e até morto. Isso só deixou de ser assim graças a um movimento político forte e a um longo processo que mudou a forma de o país ser governado. E quem achar que outros problemas graves do Brasil podem ser resolvidos sem política está seriamente iludido. A Ciência Política ajuda a entender como funcionam o governo e as leis que regula- mentam a vida de cidadãos como você e seus colegas e de que maneiras os cidadãos se organizam para atuar politicamente. Neste capítulo vamos discutir: 1 Política e poder 2 O Estado 3 Os contratualistas: o que o Estado pode fazer? 4 Regimes políticos: a democracia 5 Partidos políticos Grafi te de Banksy em frente à sede do Parlamento, em Londres, Reino Unido, em foto de 2006. Esse grafi te fez parte da campanha pacifi sta do cidadão inglês Brian Haw (1949-2011), que viveu durante quase dez anos acampado na praça em frente à sede do Parlamento britânico. Protestando contra a política externa do Reino Unido e dos Estados Unidos, Brian Haw tornou-se um símbolo do movimento contra a invasão do Afeganistão e do Iraque. B ru n o V in c e n t/ A g ê n c ia F ra n c e -P re s s e 251 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 1. POLÍTICA E PODER O conceito fundamental da Ciência Política é o conceito de poder. Segundo a definição do sociólogo alemão Max Weber (ver Perfil no Capítulo 6), o centro da atividade política é a busca pelo poder. Para Weber, a política é a luta por partici- par do poder ou influenciar sua repartição. Mas o que, afinal, é o poder? Você já deve ter alguma ideia do que significa poder. Tem poder quem manda, quem é capaz de impor sua vontade sobre a dos outros. Essa é a definição clássica de poder: a possibilidade de impor sua própria vontade, mesmo que contra a vonta- de dos outros. Se um assaltante o ameaça com uma arma e lhe ordena que entregue a ele seu dinheiro, você provavelmente obe- decerá, mesmo contra sua vontade. Quando isso acontece, ele está exercen- do poder sobre você. Se a polícia inter- rompe o assalto e ordena ao ladrão que se renda, ele provavelmente vai obede- cer, mesmo não tendo nenhuma vontade de ir preso. Quando isso acontece, os policiais exercem poder sobre o ladrão. Essas são formas de poder bastante simples: alguém obriga outro alguém a fazer alguma coisa por meio de ameaça de violência física. Mas o poder com base apenas na ameaça de violência é frágil. O ladrão só consegue mandar no pequeno número de pessoas que mantém sob a mira de sua arma. Para o poder se estabelecer sobre um grande número de pessoas por um tempo razoável, é preciso que elas obedeçam mesmo quando não se veem explicitamente ameaçadas. Imagine, por exemplo, se o governo precisasse manter um policial armado acompanhando cada um de nós, o tempo todo, para que cumpríssemos a lei. Dificilmente um governo como esse conseguiria se man- ter por muito tempo. Weber chamou de dominação a probabilidade de encontrar obediência em um grupo de pessoas. A dominação, para durar, precisaria ser legítima: isto é, precisaria, de alguma forma, convencer as pessoas de que é certo obedecer. As pessoas podem se convencer por motivos diferentes. Weber identificou três prin- cipais tipos de dominação legítima. Eles não são os únicos possíveis e, na prática, quase sempre se misturariam em um processo de dominação. Os três tipos de dominação legítima, segundo Weber, são os seguintes: ��Dominação tradicional: é a dominação que se baseia no costume — quando se obedece porque “sempre foi assim” — ou em um hábito tão forte que nos pareceria estranho nos desviarmos dele. Muitas monarquias, por exemplo, fo- ram e são legitimadas pela tradição: obedecer ao rei e à sua família já se tor- nou parte da maneira de viver de determinada sociedade, e os súditos acha- riam estranho viver de outro jeito. Em algumas religiões, é comum que os fiéis obedeçam ao líder espiritual porque esse comportamento já se tornou parte importante das crenças daquela religião. ��Dominação racional-legal: é a dominação que se baseia na crença de que é correto obedecer à lei. Não porque a lei seja inspirada por ordem ou crença divina, ou porque se concorde com todos os detalhes de todas as leis, ou por- que obedecer seja sempre do seu interesse, mas porque a lei deve ser cumprida. L a d is la v B ie li k /A rq u iv o d a e d it o ra F a is a l A l N a s s e r/ R e u te rs /L a ti n s to ck Na foto acima, de 1968, um cidadão da antiga Tchecoslováquia (país que se dividiu nas atuais República Tcheca e Eslováquia) tenta impedir o avanço de um tanque do exército soviético em Praga. Entre 1945 e 1989, a União Soviética impôs pela força governos comunistas em vários países da Europa. O cidadão da foto não conseguiu impedir a invasão. Rei Salman, da Arábia Saudita, um exemplo de líder que tenta se legitimar como representante das tradições do país (no caso, principalmente das tradições religiosas). Na Arábia Saudita, o rei é chamado de “Guardião das Duas Mesquitas Sagradas” (as de Meca e Medina). O próprio país é assim chamado por causa do nome de sua família, Saud. Foto de 2015. 252 POLÍTICA, PODER E ESTADO Para entender o que seria a crença na lei, basta pensar no que consideramos, na sociedade moderna, um bom funcionário público. Um bom funcionário pú- blico deve ter conseguido seu emprego por competência técnica (demonstra- da em concurso público); deve sempre seguir o que diz a lei; e deve aplicá-la igualmente a todos os cidadãos, sejam eles brancos, sejam negros, ricos ou pobres, da mesma igreja do funcionário ou não, do mesmo partido político do funcionário ou não. Esse funcionário público corresponde ao ideal da domina- ção racional-legal. ��Dominação carismática: é a dominação que se baseia na crença de que o lí- der político possui qualidades excepcionais, dons extraordinários. Os lidera- dos podem acreditar que o líder é inspirado por Deus, ou que é excepcional- mente capaz de compreender o verdadeiro destino da nação. Os liderados podem estar enganados, ou seja, o líder pode não ter nenhuma dessas quali- dades. Mas ele vai exercer poder sobre elesenquanto os convencer de que tem essas qualidades, muitas vezes inspirando-os a fazer coisas que geral- mente não fariam. funcionário público: funcionário do Estado. Os funcionários públicos não podem ser indicados por alguém para os cargos que ocupam (exceto nos chamados cargos de confiança). Eles precisam ser aprovados em um concurso público, no qual os candidatos são avaliados anonimamente. O objetivo disso é garantir que a seleção considere a competência do candidato para a função, e não suas relações pessoais. São funcionários públicos, por exemplo, os juízes, os professores das escolas públicas e os médicos dos hospitais públicos. LÉXICO O carisma pode infl uenciar multidões em favor das mais diversas causas. Na foto acima, de 1939, o ditador Adolf Hitler, que governou a Alemanha entre 1933 e 1945. Hitler incitou o ódio contra minorias, e sua capacidade pessoal de mobilização, somada ao contexto histórico do período, teve como consequência a perseguição, discriminação e morte de milhões de pessoas. Na época, na Alemanha, a vontade do Führer (‘líder’, em alemão) valia muito mais do que a lei. Na foto ao lado, o pastor batista estadunidense Martin Luther King, em 1965. King combateu as leis racistas do sul do país e atuou pela busca da igualdade. As ideias defendidas por ele já estavam na pauta de vários movimentos pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, mas suas ações baseadas na não violência e no amor ao próximo inspiraram milhões de negros, especialmente entre 1955 e 1968, ano em que foi assassinado. L ib ra ry o f C o n g re s s / E v e re tt C o ll e c ti o n /L a ti n s to ck E v e re tt C o ll e c ti o n /L a ti n s to ck VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? A quem você obedece? A seus pais, aos professores, a um líder religioso, ao prefeito? Pense nos mo- tivos que o fazem obedecer a cada uma dessas pessoas. A quais delas você obedece por motivos afetivos, a quais porque “é assim que as coisas são”, a quais por reconhecer que são competentes em determinada área? Você consideraria que há abuso de poder em algum desses casos? Em caso afi rmativo, você deixaria de obedecer? 253 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Veja como as coisas são mais complexas do que aparentam. Começamos este capítulo vendo que o poder é a possibilidade de impor a vontade sobre os outros. Quando concluí mos que o poder que é só imposto não consegue se es- tabelecer por muito tempo, descobrimos que aqueles que obedecem precisam de motivos para obedecer. Esses motivos são muito mais complexos do que o medo da violência: a dominação, para ser bem-sucedida, precisa respeitar as tradições dos dominados, ou precisa oferecer-lhes a inspiração e o entusiasmo que uma grande liderança é capaz de produzir, ou precisa garantir a ordem se- gundo os princípios da lei. Ou talvez precise oferecer as três coisas, ou ainda outras que Weber não listou. No fim, os dominados não se limitam a obedecer; eles têm valores, expectati- vas e exigências que impõem limites a quem exerce o poder. O político que resol- ver ignorar a questão “Afinal, por que essas pessoas me obedecem?” corre o ris- co de descobrir que, com o tempo, elas podem parar de obedecer. 2. O ESTADO Boa parte dos trabalhos de Ciência Política estuda o Estado. A definição de Estado mais utilizada pelos especialistas também foi formulada por Max Weber, e diz o seguinte: o Estado é o detentor do monopólio da violência legítima em um determinado território. Em outras palavras: o Estado tenta ser a única instituição à qual a população reconhece o direito de, em determinadas ocasiões, praticar a violência. A população aceita essa situação por diferentes motivos, que variam de sociedade para sociedade. Vamos discutir em separado cada parte da defini- ção de Estado. Monopólio é uma palavra emprestada da economia e descreve uma empresa que consegue se estabelecer como única vendedora de certo produto. Quando afirmou que o Estado tenta exercer um monopólio da violência legítima em de- terminado território, Weber quis dizer que o Estado tenta se tornar a única insti- tuição capaz de praticar a violência legítima naquele território. Mas o que seria a violência “legítima”? Para compreender pense na seguinte situação: você está vendo, na TV, imagens de um conflito entre policiais e crimi- nosos. Os dois lados estão praticando violência, um está atirando no outro. Mas, para você, o que cada um está fazendo não é a mesma coisa. Você provavelmen- te acha que a polícia tem mais direito de atirar nos criminosos do que os crimino- sos têm de atirar na polícia. Você pode achar que, em circunstâncias como aque- la, a polícia tem o direito de praticar a violência; os criminosos, não. Em outras palavras, você provavelmente considera que a violência praticada pela polícia no cumprimento da lei é legítima. “A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado — não haja a respeito qualquer dúvida —, mas é seu instrumento específico. Em nossos dias, a relação entre o Estado e a vio- lência é particularmente íntima. Em todos os tempos, os agrupamentos políticos mais diversos — a co- meçar pela família — recorreram à violência física, tendo-a como instrumento normal de poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território — a noção de território corresponde a um dos elemen- tos essenciais do Estado —, reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011. p. 56. ASSIM FALOU... WEBER
Compartilhar