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250 11CAPÍTU L O 1111 Q uando você pensa em política, o que vem à sua cabeça? Provavelmente algo relacionado ao governo, às pessoas que administram a cidade, o estado ou o país. Talvez você pense em eleições, em candidatos, no voto. E talvez tenha uma opinião desfavorável sobre a política: muita gente, quando ouve falar em política, logo pensa em corrupção. Mas você já pensou em quantas coisas boas na sua vida foram conseguidas por lutas políticas? Por exemplo, hoje você pode postar na internet uma frase como “Odeio todos os políticos, o governo é corrupto”. No Brasil, há pouco mais de trinta anos, quem criticasse o governo desse jeito poderia ser preso, torturado e até morto. Isso só deixou de ser assim graças a um movimento político forte e a um longo processo que mudou a forma de o país ser governado. E quem achar que outros problemas graves do Brasil podem ser resolvidos sem política está seriamente iludido. A Ciência Política ajuda a entender como funcionam o governo e as leis que regula- mentam a vida de cidadãos como você e seus colegas e de que maneiras os cidadãos se organizam para atuar politicamente. Neste capítulo vamos discutir: 1 Política e poder 2 O Estado 3 Os contratualistas: o que o Estado pode fazer? 4 Regimes políticos: a democracia 5 Partidos políticos Grafi te de Banksy em frente à sede do Parlamento, em Londres, Reino Unido, em foto de 2006. Esse grafi te fez parte da campanha pacifi sta do cidadão inglês Brian Haw (1949-2011), que viveu durante quase dez anos acampado na praça em frente à sede do Parlamento britânico. Protestando contra a política externa do Reino Unido e dos Estados Unidos, Brian Haw tornou-se um símbolo do movimento contra a invasão do Afeganistão e do Iraque. B ru n o V in c e n t/ A g ê n c ia F ra n c e -P re s s e 251 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 1. POLÍTICA E PODER O conceito fundamental da Ciência Política é o conceito de poder. Segundo a definição do sociólogo alemão Max Weber (ver Perfil no Capítulo 6), o centro da atividade política é a busca pelo poder. Para Weber, a política é a luta por partici- par do poder ou influenciar sua repartição. Mas o que, afinal, é o poder? Você já deve ter alguma ideia do que significa poder. Tem poder quem manda, quem é capaz de impor sua vontade sobre a dos outros. Essa é a definição clássica de poder: a possibilidade de impor sua própria vontade, mesmo que contra a vonta- de dos outros. Se um assaltante o ameaça com uma arma e lhe ordena que entregue a ele seu dinheiro, você provavelmente obe- decerá, mesmo contra sua vontade. Quando isso acontece, ele está exercen- do poder sobre você. Se a polícia inter- rompe o assalto e ordena ao ladrão que se renda, ele provavelmente vai obede- cer, mesmo não tendo nenhuma vontade de ir preso. Quando isso acontece, os policiais exercem poder sobre o ladrão. Essas são formas de poder bastante simples: alguém obriga outro alguém a fazer alguma coisa por meio de ameaça de violência física. Mas o poder com base apenas na ameaça de violência é frágil. O ladrão só consegue mandar no pequeno número de pessoas que mantém sob a mira de sua arma. Para o poder se estabelecer sobre um grande número de pessoas por um tempo razoável, é preciso que elas obedeçam mesmo quando não se veem explicitamente ameaçadas. Imagine, por exemplo, se o governo precisasse manter um policial armado acompanhando cada um de nós, o tempo todo, para que cumpríssemos a lei. Dificilmente um governo como esse conseguiria se man- ter por muito tempo. Weber chamou de dominação a probabilidade de encontrar obediência em um grupo de pessoas. A dominação, para durar, precisaria ser legítima: isto é, precisaria, de alguma forma, convencer as pessoas de que é certo obedecer. As pessoas podem se convencer por motivos diferentes. Weber identificou três prin- cipais tipos de dominação legítima. Eles não são os únicos possíveis e, na prática, quase sempre se misturariam em um processo de dominação. Os três tipos de dominação legítima, segundo Weber, são os seguintes: ��Dominação tradicional: é a dominação que se baseia no costume — quando se obedece porque “sempre foi assim” — ou em um hábito tão forte que nos pareceria estranho nos desviarmos dele. Muitas monarquias, por exemplo, fo- ram e são legitimadas pela tradição: obedecer ao rei e à sua família já se tor- nou parte da maneira de viver de determinada sociedade, e os súditos acha- riam estranho viver de outro jeito. Em algumas religiões, é comum que os fiéis obedeçam ao líder espiritual porque esse comportamento já se tornou parte importante das crenças daquela religião. ��Dominação racional-legal: é a dominação que se baseia na crença de que é correto obedecer à lei. Não porque a lei seja inspirada por ordem ou crença divina, ou porque se concorde com todos os detalhes de todas as leis, ou por- que obedecer seja sempre do seu interesse, mas porque a lei deve ser cumprida. L a d is la v B ie li k /A rq u iv o d a e d it o ra F a is a l A l N a s s e r/ R e u te rs /L a ti n s to ck Na foto acima, de 1968, um cidadão da antiga Tchecoslováquia (país que se dividiu nas atuais República Tcheca e Eslováquia) tenta impedir o avanço de um tanque do exército soviético em Praga. Entre 1945 e 1989, a União Soviética impôs pela força governos comunistas em vários países da Europa. O cidadão da foto não conseguiu impedir a invasão. Rei Salman, da Arábia Saudita, um exemplo de líder que tenta se legitimar como representante das tradições do país (no caso, principalmente das tradições religiosas). Na Arábia Saudita, o rei é chamado de “Guardião das Duas Mesquitas Sagradas” (as de Meca e Medina). O próprio país é assim chamado por causa do nome de sua família, Saud. Foto de 2015. 252 POLÍTICA, PODER E ESTADO Para entender o que seria a crença na lei, basta pensar no que consideramos, na sociedade moderna, um bom funcionário público. Um bom funcionário pú- blico deve ter conseguido seu emprego por competência técnica (demonstra- da em concurso público); deve sempre seguir o que diz a lei; e deve aplicá-la igualmente a todos os cidadãos, sejam eles brancos, sejam negros, ricos ou pobres, da mesma igreja do funcionário ou não, do mesmo partido político do funcionário ou não. Esse funcionário público corresponde ao ideal da domina- ção racional-legal. ��Dominação carismática: é a dominação que se baseia na crença de que o lí- der político possui qualidades excepcionais, dons extraordinários. Os lidera- dos podem acreditar que o líder é inspirado por Deus, ou que é excepcional- mente capaz de compreender o verdadeiro destino da nação. Os liderados podem estar enganados, ou seja, o líder pode não ter nenhuma dessas quali- dades. Mas ele vai exercer poder sobre eles enquanto os convencer de que tem essas qualidades, muitas vezes inspirando-os a fazer coisas que geral- mente não fariam. funcionário público: funcionário do Estado. Os funcionários públicos não podem ser indicados por alguém para os cargos que ocupam (exceto nos chamados cargos de confiança). Eles precisam ser aprovados em um concurso público, no qual os candidatos são avaliados anonimamente. O objetivo disso é garantir que a seleção considere a competência do candidato para a função, e não suas relações pessoais. São funcionários públicos, por exemplo, os juízes, os professores das escolas públicas e os médicos dos hospitais públicos. LÉXICO O carisma pode infl uenciar multidões em favor das mais diversas causas. Na foto acima, de 1939, o ditador Adolf Hitler, que governou a Alemanha entre 1933 e 1945. Hitler incitou o ódio contra minorias, e sua capacidade pessoal de mobilização, somada ao contexto histórico do período, teve como consequência a perseguição, discriminação e morte de milhões de pessoas. Na época, na Alemanha,a vontade do Führer (‘líder’, em alemão) valia muito mais do que a lei. Na foto ao lado, o pastor batista estadunidense Martin Luther King, em 1965. King combateu as leis racistas do sul do país e atuou pela busca da igualdade. As ideias defendidas por ele já estavam na pauta de vários movimentos pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, mas suas ações baseadas na não violência e no amor ao próximo inspiraram milhões de negros, especialmente entre 1955 e 1968, ano em que foi assassinado. L ib ra ry o f C o n g re s s / E v e re tt C o ll e c ti o n /L a ti n s to ck E v e re tt C o ll e c ti o n /L a ti n s to ck VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? A quem você obedece? A seus pais, aos professores, a um líder religioso, ao prefeito? Pense nos mo- tivos que o fazem obedecer a cada uma dessas pessoas. A quais delas você obedece por motivos afetivos, a quais porque “é assim que as coisas são”, a quais por reconhecer que são competentes em determinada área? Você consideraria que há abuso de poder em algum desses casos? Em caso afi rmativo, você deixaria de obedecer? 253 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Veja como as coisas são mais complexas do que aparentam. Começamos este capítulo vendo que o poder é a possibilidade de impor a vontade sobre os outros. Quando concluí mos que o poder que é só imposto não consegue se es- tabelecer por muito tempo, descobrimos que aqueles que obedecem precisam de motivos para obedecer. Esses motivos são muito mais complexos do que o medo da violência: a dominação, para ser bem-sucedida, precisa respeitar as tradições dos dominados, ou precisa oferecer-lhes a inspiração e o entusiasmo que uma grande liderança é capaz de produzir, ou precisa garantir a ordem se- gundo os princípios da lei. Ou talvez precise oferecer as três coisas, ou ainda outras que Weber não listou. No fim, os dominados não se limitam a obedecer; eles têm valores, expectati- vas e exigências que impõem limites a quem exerce o poder. O político que resol- ver ignorar a questão “Afinal, por que essas pessoas me obedecem?” corre o ris- co de descobrir que, com o tempo, elas podem parar de obedecer. 2. O ESTADO Boa parte dos trabalhos de Ciência Política estuda o Estado. A definição de Estado mais utilizada pelos especialistas também foi formulada por Max Weber, e diz o seguinte: o Estado é o detentor do monopólio da violência legítima em um determinado território. Em outras palavras: o Estado tenta ser a única instituição à qual a população reconhece o direito de, em determinadas ocasiões, praticar a violência. A população aceita essa situação por diferentes motivos, que variam de sociedade para sociedade. Vamos discutir em separado cada parte da defini- ção de Estado. Monopólio é uma palavra emprestada da economia e descreve uma empresa que consegue se estabelecer como única vendedora de certo produto. Quando afirmou que o Estado tenta exercer um monopólio da violência legítima em de- terminado território, Weber quis dizer que o Estado tenta se tornar a única insti- tuição capaz de praticar a violência legítima naquele território. Mas o que seria a violência “legítima”? Para compreender pense na seguinte situação: você está vendo, na TV, imagens de um conflito entre policiais e crimi- nosos. Os dois lados estão praticando violência, um está atirando no outro. Mas, para você, o que cada um está fazendo não é a mesma coisa. Você provavelmen- te acha que a polícia tem mais direito de atirar nos criminosos do que os crimino- sos têm de atirar na polícia. Você pode achar que, em circunstâncias como aque- la, a polícia tem o direito de praticar a violência; os criminosos, não. Em outras palavras, você provavelmente considera que a violência praticada pela polícia no cumprimento da lei é legítima. “A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado — não haja a respeito qualquer dúvida —, mas é seu instrumento específico. Em nossos dias, a relação entre o Estado e a vio- lência é particularmente íntima. Em todos os tempos, os agrupamentos políticos mais diversos — a co- meçar pela família — recorreram à violência física, tendo-a como instrumento normal de poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território — a noção de território corresponde a um dos elemen- tos essenciais do Estado —, reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011. p. 56. ASSIM FALOU... WEBER 254 POLÍTICA, PODER E ESTADO Por que costumamos achar que a violência da polícia contra os criminosos é le- gítima? Porque, em geral, ela é praticada para fazer cumprir a lei. O valor que da- mos à lei se deve ao fato de que, nas sociedades modernas (como a nossa), predo- mina a forma de dominação racional-legal, que explicamos no item anterior: para nós, o que vale é a lei. Quando vemos policiais cometerem violência sem cumprir a lei (por exemplo, matando um inocente), nos revoltamos contra eles. A violência da polícia só é considerada legítima quando praticada conforme a lei. Mas é preciso ter em mente uma coisa muito importante: os Estados modernos (brasileiro, estadunidense, francês, etc.) não se formaram porque seus fundadores desejavam proporcionar bem-estar à população, respeitar a tradição, garantir o respeito à lei, ou porque desejavam ser “modernos”. Vamos ver como esse pro- cesso está relacionado com nossa discussão sobre o monopólio da violência e a necessidade dos dominadores de serem aceitos pelos dominados. Manifestação realizada em 2015 no bairro de Madureira, Rio de Janeiro (RJ), em protesto contra a execução de cinco jovens pela polícia. Embora a polícia tenha legitimidade para usar a violência nos casos previstos na lei, a população repudia atos de violência policial arbitrários. L u iz S o u z a /C o r b is /F o to a r e n a VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Imagine que um país estrangeiro com um exército poderoso invadisse o Brasil e destruísse completamente as Forças Armadas brasileiras. Imagine que o presidente desse país dissesse que, daquele momento em diante, mandaria no Brasil e só ele poderia decidir o que é certo ou errado. Mesmo se o gover- no invasor tivesse o monopólio da violência, você o reconheceria como legí- timo? Você acha que o governo invasor poderia sobreviver por muito tempo com base apenas na força? 255 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Lembremos do exemplo do poder que o assaltante armado exerce sobre sua vítima. Em seus estudos sobre a formação dos Estados modernos, o cien- tista político e historiador estadunidense Charles Tilly (1929-2008) destacou que, quando se formaram, os Estados modernos não eram muito diferentes de quadrilhas criminosas que, para não agredir o povo, cobravam dele. Entretan- to, para se manter, o Estado precisa conquistar o apoio dos governados. Você deve ter aprendido nas aulas de História que o Estado moderno cres- ceu como uma aliança entre os monarcas europeus e a burguesia. O desenvol- vimento capitalista trouxe mais riqueza para os cofres do Estado. Ao mesmo tempo, a burguesia ia “domesticando” o Estado, conquistando cada vez mais direitos, obrigando os governos a respeitarem as leis que defendiam suas liber- dades e sua propriedade. As classes populares foram motivadas por essas conquistas de direitos, e também passaram a se organizar para exigir o direito de votar, de formar sindi- catos, de defender suas próprias ideias, etc. O resultado desse processo foi a formação das democracias modernas. Entretanto, é importante notar que, como observou Antonio Gramsci (ver Perfil no Capítulo 7), nas sociedades modernas o poder não é exercido apenas pelo governo, pela polícia, pelos tribunais, pela violência. A disputa pelo poder passa pela disputa de ideias, pela produção de cultura, de notícias (e até peladiscussão dentro das próprias Ciências Sociais). As diferentes classes e os diferentes grupos sociais lutam, entre outras coi- sas, para convencer a sociedade de que suas ideias representam o interesse de todos. Cada grupo tem sua ideia, por exemplo, de como a sociedade deve- ria se organizar em relação ao que e como será produzido, como responder às demandas públicas de saúde e educação, quais soluções deveriam ser adota- das para resolver o problema de moradia da população (ou mesmo se isto re- presenta ou não um problema). Para pôr isso em prática, tenta formar alianças que incluam o maior número possível de grupos entre os que serão beneficia- dos por seu projeto político. Isso nunca será feito apenas pela força, ou só pelo interesse econômico, e muito menos pela propaganda, mas exigirá que as pessoas sejam convencidas. Gramsci chamou esse processo de luta pela he- gemonia (a liderança) da sociedade. Veja na seção BIOGRAFIAS quem é Charles Tilly (1929-2008). Em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque alegando, entre outras coisas, que implantariam a democracia no país. A foto mostra a etapa relativamente fácil da ação: o imenso poderio militar estadunidense derrotou o ditador Saddam Hussein, que governava o Iraque (representado na estátua que está sendo derrubada, em Bagdá). Porém, os Estados Unidos não conseguiram construir um acordo entre os vários grupos étnicos e religiosos dentro da sociedade iraquiana. Iniciou-se uma guerra civil, durante a qual surgiu o grupo Estado Islâmico, que hoje controla regiões do Iraque e da Síria e pratica ações terroristas em várias partes do mundo. Esse exemplo permite demonstrar como é difícil fazer política apenas com a força. C o r b is /F o to a r e n a 256 POLÍTICA, PODER E ESTADO Parte importante da política moderna é a disputa entre os vários projetos po- líticos pela hegemonia. Na democracia, esses diversos projetos se enfrentam sem ter o direito de se imporem pela força. Vamos ver agora algumas ideias que foram fundamentais para a consolidação do Estado moderno tal qual o conhecemos. Começaremos com o filósofo Nico- lau Maquiavel (ver Perfil a seguir), pois não é possível falar da política moderna sem falar de sua obra. Maquiavel é considerado o fundador da Ciência Política e um dos principais teóricos do Estado moderno por um motivo simples: em vez de pensar apenas na política como deveria ser, analisou-a com base no que ela é, pensando em exemplos históricos. autônomo: que se governa por conta própria. Uma cidade autônoma, portanto, não é comandada por outra cidade ou país. Ao mesmo tempo, no caso de Florença, ela apenas governa a si mesma. mercenário: soldado que serve a quem lhe pagar, não importando a nacionalidade ou causa. LÉXICO 3. OS CONTRATUALISTAS: O QUE O ESTADO PODE FAZER? A origem do Estado, como vimos, está na guerra e na conquista. Maquiavel foi o grande pensador da fundação dos Estados. Mas o Estado é uma forma de do- minação, e, como vimos, a dominação precisa ser legítima, precisa convencer quem obedece de que é certo obedecer. Por isso, quando o Estado moderno foi formado, vários pensadores tentaram resolver o seguinte problema: quando o Es- tado é legítimo? Durante esses debates, muitos dos conceitos atuais sobre liberdade, igual- dade e democracia foram formados. Vamos explorar agora três autores que fundamentaram a existência e as atribuições do Estado e embasaram boa par- te das ideias políticas que vigoram atualmente. Eles são conhecidos como contratualistas, pois viam o Estado como resultado de um contrato entre os cidadãos que concordavam em obedecer a uma estrutura de poder com re- gras próprias. Estátua de Maquiavel na Galleria degli Uffi zi, em Florença, Itália. Foto de 2010. Viacheslav Lopatin/Shutterstock Como diplomata, Nico- lau Maquiavel (1469-1527) representou sua cidade na- tal, Florença, em reinos im- portantes da Europa. Ven- do sua cidade de fora, Maquiavel percebeu que ela estava em uma situa- ção muito difícil. Naquela época, Esta- dos modernos já haviam se formado em lugares como França e Espanha, mas não na região que hoje corres- ponde à Itália. Cidades como Florença eram autôno- mas, e a Itália só se unificaria no século XIX. Diante dos poderosos exércitos espanhóis e franceses, essas cidades pareciam frágeis, o que se provou na derru- bada do governo de Florença após um conflito com a Espanha. O novo governo prendeu, torturou e exilou Maquiavel. No exílio, ele escreveu O príncipe, sua obra mais famosa. O príncipe se propunha a orientar líderes po- líticos. Um líder deveria, por exemplo, ter seu próprio exército, em vez de confiar em merce- nários, que sempre fogem depois de receber seu pagamento. Ele deveria, também, se infor- mar sobre os costumes dos povos que habitam os territórios conquistados (apesar de seu terri- tório pouco extenso, a Itália até hoje é marcada por grande diversidade cultural). O príncipe precisaria tomar todo cuidado com os nobres e poderosos que pudessem vir a se tornar seus ri- vais. E não deveria vacilar quando fosse neces- sário cometer violências e crueldades contra seus inimigos. Hoje não aceitaríamos muitas das orientações que Maquiavel deu em O príncipe, como sua de- fesa do uso da crueldade em várias situações. Mesmo assim, podemos aprender algo com elas: o caráter violento da formação dos Estados na- cionais modernos. PERFIL NICOLAU MAQUIAVEL 257 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Isto é, embora o Estado tenha se formado por meio da conquista e da guer- ra, os contratualistas se perguntavam: se todos nos reuníssemos e fundássemos um Estado por nossa própria vontade, como ele seria? Esse Estado seria, sem dúvida, legítimo, pois expressaria a vontade livre dos que obedecem. Contratualistas como os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Lo- cke (1632-1704) e o franco-suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) se per- guntaram como seria a vida sem o Estado, no que chamavam de estado de natureza. Por que as pessoas que viviam no estado de natureza decidiriam criar o Estado? Para Thomas Hobbes, a vida no estado de natureza seria violenta, pobre e cur- ta. Se você vivesse no estado de natureza, teria medo de ser atacado pelas outras pessoas. Afinal, se duas delas se juntassem para matá-lo e roubar tudo o que você possuía, o que poderia ser feito? A melhor coisa a fazer seria se armar para se de- fender. Assim, haveria uma guerra de todos contra todos. Nessa situação, ninguém teria interesse em trabalhar muito. Sem poder trabalhar muito para se alimentar, e sempre preocupado em fazer guerra contra as outras pessoas, não é provável que você conseguisse sobreviver por muito tempo. Veja na seção BIOGRAFIAS quem são Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). R e p ro d u ç ã o /B ib li o te c a B ri tâ n ic a , L o n d re s , In g la te rr a . Folha de rosto (página que abre um livro) da primeira edição de Leviatã, de 1651, principal obra de Thomas Hobbes. A armadura do gigante (que representa o Estado) é formada por uma multidão de pequenas pessoas que abdicaram de sua liberdade em troca da proteção pelo gigante que construíram. 258 POLÍTICA, PODER E ESTADO Nessa situação, disse Hobbes, o medo levaria as pessoas a fundar o Estado. Nesse momento, elas abririam mão de sua liberdade e concordariam em obede- cer ao Estado. Em contrapartida, o Estado deveria garantir a paz e a lei, para que as pessoas, sem medo de serem atacadas a qualquer momento, pudessem tra- balhar e prosperar. Hobbes viveu durante uma sangrenta guerra civil na Inglater- ra. Por esse motivo, sua maior preocupação com relação ao Estado era a de que ele garantisse a paz. John Locke tinha uma visão bem mais otimista sobre o estado da natureza. Nele as pessoas seriam livrese já teriam direito à propriedade do que produzis- sem. Para entender por que esse direito seria reconhecido, vamos supor um exemplo: quando você cuida de uma plantação, seu trabalho fica misturado à ter- ra. Como é impossível separar seu trabalho da terra (sem destruir a plantação), aquela plantação é sua — no contexto do estado de natureza. Mas, se o estado de natureza não era tão abominável como Hobbes imaginava, por que as pessoas fundariam o Estado? Bem, porque muitas vezes surgiriam conflitos sobre quem teria direito a quê. E ninguém é bom juiz de si mesmo. Dessa forma, seria preciso fundar o Estado para que ele fosse o juiz nesses casos. E aqui está a diferença entre Hobbes e Locke: o Estado, para Locke, não poderia julgar do jeito que quisesse. Quando as pesso- as fundaram o Estado, elas já tinham direito à liberdade e à propriedade. Por isso, só seriam obrigadas a obedecer ao Estado se ele protegesse os direitos à liber- dade e à propriedade que elas já possuíam no estado de natureza. Assim, se o Estado ameaçasse sua liberdade ou sua propriedade, qualquer um teria o direito de se rebelar contra ele. Locke viveu na época da Revolução Gloriosa inglesa: como resultado dessa revolução, o rei foi obrigado a aceitar leis que limitavam seu poder e garantiam direitos aos seus súditos. Para Rousseau, o estado de natureza era ainda melhor do que na concep- ção de Locke. Se você vivesse no estado de natureza de Rousseau, seria livre e feliz com o pouco que possuísse. Entretanto, o convívio levaria você a se importar cada vez mais com a opinião alheia e a tentar ser melhor que seus semelhantes. Aos poucos, as pessoas deixariam de ser iguais, e o golpe final contra a igualdade viria com a invenção da propriedade. Após a invenção da propriedade, seria necessário criar o Estado e as leis para protegê-la. Mas a perda da liberdade natural do ser humano poderia ao menos ser com- pensada pela conquista da liberdade do cidadão. Para Rousseau, a única maneira de preservar a liberdade após o surgimento do Estado seria se todos aceitassem entregar seus direitos uns aos outros (e não ao governante, como na concepção de Hobbes). Ao fazer isso, o indivíduo não teria interesse em exigir demais das outras pessoas, porque tudo o que exigisse poderia ser exigido dele também. Nesse contexto, seria preciso merecer sua liberdade, participando da vida políti- ca do país e, principalmente, da elaboração de suas leis. O Estado mereceria ser considerado legítimo quando suas leis fossem criadas pela Vontade Geral, que é a vontade do conjunto dos cidadãos que visa ao bem comum. Se cada um pensar somente em si mesmo ao escrever as leis, o Estado funcionará mal, e aos poucos todos perderão sua liberdade. VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Imagine que você tem um confl ito com seu vizinho. Pode ser um confl ito sim- ples (ele ouve música alto demais) ou mais grave (ele desafi a todo mundo a brigar). Como você resolve isso? Se não for possível resolver o problema con- versando, você chamará a polícia (isto é, chamará o Estado para ser o juiz)? O que a polícia teria direito de fazer caso fosse chamada? Você acha que a polícia poderia agredir seu vizinho ou quebrar os móveis da casa dele? Que direitos você acha que seu vizinho tem que o Estado não pode desrespeitar? Retrato de Thomas Jefferson (1743-1826), um dos principais líderes da independência e o terceiro presidente dos Estados Unidos, feito em 1800 por Rembrandt Peale. A Declaração de Independência e a Constituição estadunidenses foram muito infl uenciadas pelas ideias do inglês John Locke, em especial por seus conceitos de liberdade e propriedade. W h it e H o u se /F u n da çã o W iki me dia 259 UNIDADE 3 | CAPÍTULO 11 Algumas ideias dos contratualistas Como seria a vida sem o Estado? Por que se formaria o Estado? O que as pessoas poderiam esperar do Estado? Hobbes Violenta e pobre (a guerra de todos contra todos). O medo de morrer faria as pessoas aceitarem uma autoridade que garantisse a ordem. Que a paz e a ordem fossem garantidas. Locke As pessoas já teriam direitos naturais. Ninguém é bom juiz de si mesmo, e o Estado seria necessário para decidir conflitos entre as pessoas. Que os direitos e as liberdades individuais fossem preservados. Rousseau As pessoas seriam livres e se contentariam com pouco. Para defender a propriedade, que daria início à desigualdade entre as pessoas. Que os cidadãos possam participar ativamente das decisões do Estado, em nome do interesse de todos. As ideias de Hobbes, Locke e Rousseau ajudam a entender melhor o que ex- plicamos sobre política e sobre o Estado. Hobbes formulou uma justificativa con- sistente para a existência do Estado, e suas ideias sempre voltam à tona quando a ordem pública está seriamente ameaçada (por exemplo, quando há uma guer- ra civil ou um surto de violência). Locke foi o primeiro grande defensor moderno da liberdade e dos direitos do cidadão, tanto políticos quanto econômicos. E Rousseau discutiu com especial competência as questões da democracia e da igualdade. 4. REGIME S POLÍTICOS: A DEMOCRACIA Na discussão sobre os contratualistas, vimos que há opiniões diferentes sobre como o Estado deve ser organizado, quais são os direitos e deveres dos cidadãos e que valores os cidadãos devem ter para que a política funcione bem. Depen- dendo de sua posição diante dessas questões, podemos dizer que você defende certo tipo de regime político. Segundo o Dicionário de política organizado pelos italianos Norberto Bobbio (1909-2004), Nicola Matteucci (1926-2006) e Gian- franco Pasquino (1942-), um regime político é o conjunto de instituições, leis e valores que regulam a luta pelo poder em determinada sociedade. Boa parte das diferenças entre os regimes políticos democráticos da atualida- de se explica pela maneira como, em cada país, se organizam três poderes fun- damentais: o Legislativo (que tem o poder de escrever e votar as leis), o Executivo (que controla o poder para aplicar as leis com base na força — usando, por exem- plo, a polícia) e o Judiciário (que garante que o Executivo aplique seu poder so- mente dentro do que diz a lei). O regime político que mais nos interessa neste livro é a democracia, que é o adotado no Brasil. O regime político em um país é democrático quando ele tem três características principais, segundo os cientistas políticos Mike Alvarez (1962-), José Antonio Cheibub (1960-), Fernando Limongi (1958-) e Adam Przeworski (1940-): 1. O chefe de governo do Poder Executivo é eleito pelo voto: isso ocorre não só quando os eleitores votam diretamente para presidente da República (como no Brasil), mas também quando votam nos parlamentares que, por sua vez, elegem o primeiro-ministro (como na Inglaterra). Veja na seção BIOGRAFIAS quem são Norberto Bobbio (1909-2004), Nicola Matteucci (1926-2006), Gianfranco Pasquino (1942-), Mike Alvarez (1962-), José Antonio Cheibub (1960-), Fernando Limongi (1958-) e Adam Przeworski (1940-).
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