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1 UM ESBOÇO DO MODELO TEÓRICO DE PERSONALIDADE Lucia Maria Salvia Coelho A dinâmica psíquica do ser humano constitui um fenômeno complexo e evolutivo, no qual fatores biológicos, em particular cerebrais, interagem com as condições sociais de existência. A expressão individual desta dinâmica corresponde à personalidade, cujo conceito em psicologia é ainda vago e problemático para a sistematização científica dos processos que ela abrange. Na ciência, a busca de coerência lógica e conceptual se faz através da elaboração de modelos teóricos de referência. O modelo corresponde a uma construção racional de representação e delimitação de um campo específico de fenômenos, com o objetivo de elucidá-los. Baseando-se em postulados teóricos, o modelo científico atinge maior grau de abstração e generalidade na representação de uma categoria específica de fenômenos, ao mesmo tempo em que permite a avaliação empírica de sua pertinência. A construção de um modelo abstrato de personalidade supõe a distinção de estruturas mentais relativamente estáveis e suficientemente amplas para abrangerem processos psicológicos que ocorrem em todo o ser humano. Apenas a partir de um modelo mais amplo do psiquismo poderemos esclarecer a dinâmica de personalidade tal como ela se expressa em um indivíduo concreto e singular, sede única de disposições genéticas e constituição biológica estimuladas pelo ambiente social. Desse modo, a dinâmica de personalidade acha-se intimamente ligada a experiências interpessoais vividas pelo indivíduo de modo único em um dado momento histórico da cultura a qual ele pertence. A teoria de personalidade que adotamos tem suas raízes históricas na filosofia de Augusto Comte, criador da sociologia e que influenciou as concepções estruturalistas em antropologia e as concepções sistêmicas da atividade cerebral. Seguindo esta diretriz e baseando-se em concepções e experiências mais recentes da psicologia, neurofisiologia e antropologia sobre o psiquismo normal, Silveira elabora seu modelo teórico de personalidade. Este modelo parte do pressuposto da natureza social da espécie humana pois, para Silveira, todo processo biológico ou psicológico requer a interação social, condição primordial para a sobrevivência da espécie. Ele propõe uma organização sistêmica e evolutiva dos fenômenos psicológicos, expressão mais diferenciada e complexa da atividade cerebral. A dinâmica psíquica resulta da estreita ligação entre indivíduo e ambiente, considerados como pólos de um sistema aberto, em constante transformação e reestruturação. Ela decorre de funções básicas que se articulam de modo seletivo, formando sistemas que evoluem com certo grau de regularidade nas diferentes fases de desenvolvimento do ser humano. A expressão singular, em um indivíduo concreto, da dinâmica psíquica assim concebida corresponde à personalidade. Portanto, devemos distinguir entre a estrutura e a dinâmica de personalidade postulada pelo modelo teórico e, como tal, comum à espécie humana, de sua expressão particular na existência de cada ser humano. Modelo Teórico de Personalidade: Unidades Estratégicas A estrutura mais ampla deste modelo é concebida como composta por três esferas principais de personalidade: afetividade, conação e inteligência (ou cognição). Cada uma destas esferas abrange uma série de funções específicas, as quais são interligadas entre si formando, então, sistemas intrínsecos em cada esfera mas mantendo, com as demais, relações preferenciais através das funções que as compõem, configurando os sistemas extrínsecos. Estas três esferas são coexistentes na dinâmica evolutiva da personalidade; porém, suas funções específicas são ativadas com diferentes intensidade e expressão nas diversas fases de desenvolvimento individual. A distinção entre elas decorre da expressão mais relevante de seus atributos no ambiente. 2 Assim, da ativação contínua das funções da esfera afetiva, resulta a coordenação subjetiva de processos indispensáveis à sobrevivência do indivíduo e da espécie e ao estabelecimento harmônico e crescente de ligações interpessoais, expressando-se predominantemente como reações psicológicas às condições do ambiente orgânico ou como expressão dos sentimentos no ambiente social. O fato de, teoricamente, distinguirmos na esfera afetiva dois grupos distintos de funções, não impede a constatação de que estes grupos atuem em conjunto e de modo harmônico sendo que, com o amadurecimento psicológico, os sentimentos passam a modular a expressão dos afetos primários. Esta distinção é considerada atualmente por neuropsicólogos e pesquisadores cognitivistas, em termos de emoções primárias e secundárias e, tal como Silveira, eles consideram que as expressões das últimas, isto é, dos sentimentos, baseiam-se em imagens mentais. Da ativação das funções da esfera conativa resulta a atuação subjetiva dos processos motores indispensáveis à iniciativa, ao controle seletivo e à manutenção dos propósitos. Tais processos expressam-se basicamente na atividade explícita como habilidades motoras e atitudes corporais, mas também, como veremos, permitindo a transposição das idéias e sentimentos no plano do comportamento manifesto, de modo a tornar eficiente o seu rendimento. Estes processos conativos foram também estudados como "função postural" no exame do desenvolvimento da criança por Wallon e seus seguidores. Da atividade das funções cognitivas resulta o processamento das informações do ambiente, através da observação, da elaboração e da comunicação simbólica, expressando-se como capacidade de integração à realidade. Desde Bruner, psicólogos cognitivistas e psicolingüistas realizam experimentos sobre estas funções e processos intelectuais. No modelo de Silveira, estes três setores da personalidade mantêm funções de ligações preferenciais entre si. Assim, as funções da esfera afetiva estimulam continuamente as funções conativas de modo a mobilizar o desencadeamento de atos indispensáveis à sobrevivência física e social do ser humano. Esta interação se expressa como motivação. Mas, ao mesmo tempo, as funções da esfera afetiva estimulam aquelas da esfera intelectual, tanto no sentido do indivíduo buscar no ambiente as informações indispensáveis à satisfação de impulsos e sentimentos, como para ele comunicar aos demais suas necessidades e desejos. Esta interação se expressa como interesse. As funções da esfera conativa atuando sobre as da esfera intelectual permitem a coordenação seletiva e estável, tanto dos processos de observação e de elaboração das idéias, como de sua comunicação através da linguagem. Esta interação se expressa através da atenção. As funções da esfera intelectual, estimuladas tanto pelas funções afetivas como pelas conativas também retroagem sobre elas. Assim, a noção, real ou imaginária, atual ou evocada, do fato observado no ambiente, noção esta apreendida através da percepção ou da linguagem, produz impacto sobre as funções afetivas, provocando a emoção. Dependendo da intensidade e da natureza deste impacto, a noção pode mobilizar as funções afetivas ligadas à sobrevivência (por exemplo em decorrência de noção de perigo ou ameaça) provocando emoções primárias, ou mobilizar os sentimentos (decorrente de aspirações, crenças e valores estéticos ou religiosos) provocando emoções socialmente mais diferenciadas. Ao mesmo tempo, as funções intelectuais intervêm sobre as funções conativas, dirigindo seus processos de acordo com os significados e as exigências da realidade. Este controle se expressa como orientação, tendo sua expressão mais básica na orientação temporal e espacial. Os processos centrais responsáveis pela integração harmônica dos diferentes sistemas na dinâmica de personalidade decorrem das experiências interpessoais, tendo como base o vínculo afetivo que se expressa através dos sentimentose, como principal instrumento, a capacidade de comunicação simbólica. A natureza abstrata e generalizada deste modelo de personalidade, aliada à possibilidade de verificação empírica de seus postulados e à precisão com que foram definidos os seus conceitos chaves, permite sua aplicação em diversos campos das ciências humanas e mesmo o exame de postulados de diferentes teorias psicológicas, inclusive da psicanálise. Ao mesmo tempo, ele orienta a realização de experimentos pontuais sobre os diferentes processos psíquicos, quer em condições normais, quer patológicas. Baseado neste modelo, Silveira sistematizou os fenômenos psicopatológicos ao mesmo tempo em que formulou uma classificação das doenças mentais. 3 Expressões Comportamentais da Personalidade O resultado peculiar da atividade de cada uma das diferentes funções psíquicas das três esferas de personalidade é que permitiu a postulação teórica das unidades do sistema. Estas funções subjetivas foram deduzidas a partir da observação de suas expressões características no comportamento explícito. Enquanto construções teóricas, elas se distinguem das funções de ligação, assim designadas por corresponderem a modos concretos dos processos subjetivos estabelecerem ligações com o ambiente. Deste modo, estas funções não dependem apenas das condições psicológicas mas, também, das condições somáticas do organismo. Os seus resultados variam conforme o indivíduo, as circunstâncias, o amadurecimento psicológico e, ainda, conforme o estado normal ou patológico. Portanto, as funções de ligação relacionam-se com os processos fisiológicos e com fatores do ambiente, que constituem as condições modificadoras da expressão da personalidade, oriundas do meio externo e das disposições genéticas. Ao mesmo tempo, as funções de ligação permitem a expressão da dinâmica específica da personalidade, isto é, do arranjo dinâmico das funções psíquicas entre as três esferas, expressão esta que assume características diversas, conforme o modo de se combinarem na adaptação peculiar do indivíduo ao ambiente. Deste modo, a expressão deste arranjo peculiar e dinâmico entre as funções subjetivas pode ser avaliada objetivamente através da observação sistemática do comportamento em termos de traços de personalidade. A combinação específica entre o conjunto dos diferentes traços de personalidade e o respectivo meio de ligação com o ambiente externo, corresponde ao temperamento. A expressão "temperamento", derivada de "têmpera" significa, assim, a mistura de diferentes traços de personalidade. Na constituição, consideramos o conjunto de disposições psíquicas e somáticas que regem o comportamento do indivíduo no mundo externo. Ela compreende traços herdados e traços adquiridos durante a evolução individual, especificamente na fase embrionária, correspondendo ao substrato anatômico (encefálico e somático em geral) e à expressão funcional, específicos a cada indivíduo. Portanto, o temperamento corresponde ao aspecto dinâmico da constituição, mas não se confunde com ela. Mais dependente das condições ambientais, o temperamento é mais passível de modificações do que a constituição. O componente morfológico da constituição se expressa na configuração somática objetiva do corpo do indivíduo em termos de biótipo, enquanto o componente funcional, psíquico e fisiológico, se apresenta como temperamento. O biótipo acha-se mais diretamente ligado às condições vegetativas do metabolismo, que expressam uma disposição genética responsável pelas reações individuais básicas aos estímulos do ambiente orgânico e interpessoal. Alguns traços de personalidade assumem expressão mais complexa por dependerem da participação conjugada de duas esferas de personalidade: afetividade e conação; trata-se dos traços que definem a disposição de caráter do indivíduo. Como vimos, a manifestação da atividade explícita ocorre graças às funções conativas; porém, ela é motivada pelo estímulo afetivo. Deste modo, no comportamento interpessoal, o indivíduo expressa suas disposições afetivas caracterizando a sua modalidade de caráter. Embora o caráter expresse disposições mais básicas e constantes – que se expressam desde cedo no modo da criança estabelecer vínculos afetivos com os demais – ele poderá sofrer algumas modificações, conforme o nível de amadurecimento psicológico do indivíduo e das condições dos estímulos ambientais. Quanto mais rígida for a estrutura de caráter, ou mais abrangente for seu comprometimento (afetando também as funções afetivas primárias), menor será a possibilidade de modificá-lo. O esquema a seguir sintetiza as diferentes variáveis do modelo de personalidade: OBSERVAÇÃO: esquema no PDF “Coelho e Falcão – Manual de Interpretação” ________________________________________________________________________ Fonte: COELHO, L.M.S. & FALCÃO, M.I. Prova de Rorschach: diretrizes gerais na interpretação dos resultados. São Paulo – Terceira Margem – 2006.
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