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A obra Crepúsculo do Dever – a Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos aborda o sistema de valores pós-moderno, em que a sociedade é sustentada por um falso sistema de valores que parece estar à beira do precipício, no entanto o autor, Gilles Lipovetsky, propõe um sistema caótico com capacidade de se auto-regular e de sobreviver às dinâmicas do individualismo.
Lipovetsky defende uma ''''ética inteligente'''', menos voltada para a filosofia e mais preocupada com as realizações práticas, para a organização do quotidiano, uma ética que se apresenta como um compromisso razoável, entre o ideal e o possível.
Segundo o autor, vivemos na era pós-modernista que se tornou pós-moralista, onde a moral religiosa tradicional foi posta de lado, os dogmas religiosos e os mandamentos divinos deram lugar à moral laica, os deveres deixaram de ser de carácter religioso e passaram a ser para com a pátria, com a cidadania e para com os direitos individuais que liquidaram os deveres e os valores colectivos.
Hoje vivemos um terceiro ciclo da moral em que os valores não podem condicionar a vida privada. Por um lado exaltamos a ausência de compromissos, negamos os sacrifícios, estimulamos os desejos imediatos onde reina e domina a paixão do ego, a felicidade intimista e materialista. A era do dever, da moral austera e das virtudes colectivas chegou ao fim. Encontramo-nos na era do pós-dever, procuramos uma moral em que a realização pessoal oriente toda a cultura. Procuramos a justiça mas num contexto em que os direitos subjectivos dominam amplamente os mandamentos imperativos. Não aceitamos obrigações nem dificuldades, procuramos o bem-estar e o prazer. As vivências mediáticas atingiram o seu auge, o consumismo transformou-se em necessidade. O proibido foi abolido, a sedução camuflou a obrigação, e os ideais foram soterrados pelas exigências do ego, do conforto e da felicidade a qualquer preço. A autonomia individual estrangulou os valores morais e as doutrinas que regem o colectivo.
Em relação à conduta sexual, instalou-se uma plataforma que oscila entre o rigorismo puritano e a escala dos prazeres eróticos. Dominam discursos antagónicos, que não parecem ser representativos da realidade. Cada vez mais se fala de sexo sem complexos, porém poucos são aqueles que aceitam falar de si próprios. As revistas femininas estão recheadas de “receitas” e de sugestões para melhorar o desempenho sexual, no entanto, as práticas sexuais reais parecem ser pouco imaginativas e pouco diversificadas. O sexo ocupa grande parte da imprensa e dos meios de comunicação mas a revolução sexual parece fazer parte de um livro de história pouco apelativo. As maiores preocupações da actualidade passaram a ser com o futuro imediato, o emprego, a gestão de meios e recursos financeiros. O número de divórcios não pára de crescer mas a fidelidade continua a ser uma condição “sine qua non” para a vivência a dois, o que se traduz numa esperança na vida intima, a vontade de criar um espaço que nos proteja das ansiedades e turbulências da vida social. O narcisismo cresce diariamente de forma assustadora, por outro lado o grande sonho individual continua a ser uma vida a dois, estável e durável.
A castidade voltou a estar na ordem do dia, não pelo significado virtuoso de outrora mas sim como uma auto-regulação guiada pela religião do egocentrismo. O outro é visto num prisma de incómodo e não como um complemento.
Tudo é possível. No domínio privado reivindicamos liberdade e autonomia,ço público exigimos adequação, moderação e protecção. É o fim da proibição moralista e o fim da vaga anti-moralista. Estamos na era pós-moralista, em que a ética tem geometria variável. Tudo pode ser negociado. Não há duas possibilidades, o bem ou o mal, há o possível. Por exemplo, a luta feminina contra a pornografia não é uma luta pela dignidade humana mas um combate pela igualdade. A prostituta deixou de ser desprezada pelo valor dos seus actos e passou a ser uma vítima. O sexo só é rejeitado enquanto escravidão e não como um vício.
Constroem-se um conjunto de regras para legitimar socialmente o aspecto carnal que não admite qualquer condição no domínio privado. Vivemos uma ética com traços muito individualistas. A utopia vai sendo substituída pela vivência imediata dos sentidos palpáveis. No meio do caos, construímos um individualismo responsável, organizamos socialmente de forma a encaixar os discursos antagónicos sem extremismos incompatíveis, vivemos no “caos organizador”. Vivemos a moral do pós-dever, uma ética light e indolor. Somos bons profissionais, não por obrigação mas por realização pessoal. Em nome da saúde e da higiene somos capazes de fazer juízos de actos e comportamentos que antes eram condenados em nome de Deus ou dos bons costumes.
O texto é globalmente muito interessante, na perspectiva em que nos leva a questionar desde os actos mais simples às grandes questões existenciais. Por outro lado, apesar de ser uma análise sociológica e uma reflexão individual, o texto é sustentado por estudos e por outros autores que nos conduzem a acreditar num trabalho sério e credível.
Os títulos utilizados são muito expressivos e um convite à leitura. O leitor é permanentemente cativado com um conjunto de análises e reflexões de natureza diversa mas que ao longo da obra vão seguindo um fio condutor. O livro está estruturado sempre no sentido de levantar novas questões e de nos deixar uma mensagem optimista de uma análise caótica do mundo em que vivemos, o que não deixa de ser um importante contributo!