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VIGIAR E PUNIR – MICHEL FOCAULT PRIMEIRA PARTE – SUPLÍCIO CAPÍTULO I – O CORPO DOS CONDENADOS A prática do suplício, como forma de punição aos criminosos, foi desaparecendo dos sistemas jurídicos ocidentais na medida em que se consolidava a Idade Contemporânea. Compreender suas características e implicações político-jurídicas, assim como os motivos do seu desaparecimento, nos dará uma pista sobre o desenvolvimento dos sistemas penais de hoje. O suplício é o domínio da autoridade sobre o corpo do condenado. É nele que se realizará a pena. Não se trata de buscar a reeducação ou a privação do direito à liberdade ou à vida, visto que tais direitos eram estranhos à organização social pré- revolucionária, mas sim de aplicar-lhe as mais insuportáveis dores e humilhações como forma de punição. A aplicação da pena era feita em praça pública e assumia caráter ritualístico, como forma de demonstração de poder e de aniquilação completa da dignidade do condenado. Era espetáculo brutal e melancólico, de modo que os gritos de agonia do supliciado, enquanto sofria as torturas, causavam, não raras vezes, nos espectadores sentimentos de compaixão e de piedade, enquanto transformava o carrasco e a autoridade em seres tão abomináveis quanto o próprio criminoso. Talvez esse fato, contraditório, de que era o condenado quem se tornava admirado e o carrasco que se tornava o assassino, tenha algo haver com as mudanças que ocorreram nos códigos penais entre os séculos XVIII e XIX. Pouco a pouco, a justiça passa a evitar ao máximo ser vinculada à violência legal que administra sobre os criminosos: “É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe, a execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena. É um caso típico na França que a administração das prisões por muito tempo ficou sob a dependência do Ministério do Interior, e a dos trabalhos forçados sob o controle da Marinha e das Colônias (FOUCAULT, 2014, p.15)” É evidente que o desaparecimento dos suplícios está diretamente relacionado com as mudanças de paradigma do fim da Idade Moderna; coincide com uma nova definição do que significa ser governante e governado. O estado deve evitar aplicar a punição sobre o corpo dos seus súditos, e a própria ideia de súditos deve ser em breve substituída pela de cidadãos. Contudo, é possível argumentar que as penas atuais ainda carregam em si algo de supliciante. Em geral, admite-se que as prisões e os trabalhos forçados causam considerável flagelo ao corpo dos condenados. Eis a característica que diferencia as práticas de punição atuais das práticas de suplício: se nesse o corpo é alvo direto da ação penal, naquele passa a ser intermediário entre a punição e o objeto a ser punido – objeto incorpóreo e inalcançável diretamente – de modo que toda violência deflagrada ao corpo deixa de ser o objetivo principal da aplicação da pena: “Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação — que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos — são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos (FOUCAULT, 2014, p.16)” Suspensão dos direitos, aqui está o castigo dos sistemas penais vigentes. A primeira coisa que salta à vista, sob uma perspectiva humanitária, é a suavização da pena, o fim das torturas selvagens e do domínio invencível de reis-deuses implacáveis. Será então o caso de constatar que o exercício do poder tornou-se mais flexível e menos abrangente? Seria simplório afirmar. Pode-se dizer que no tocante a sua abrangência, ocorreu justamente o contrário. Enquanto na época dos suplícios as figuras do carrasco e do juiz encarnavam a vingança do soberano, sem representar qualquer instituição alheia ao poder central, nos sistemas penais atuais uma vasta gama de instituições e especialistas participam do processo de julgar e punir: advogados, médicos, psicólogos, guardas, educadores, etc. Evidencia-se uma multiplicidade de poderes que são assimilados pelo sistema penal a fim de tanto garantir os novos paradigmas quanto legitimar a posição da justiça não mais simplesmente como a de carrasco dos criminosos, mas sim como reeducadora de cidadãos. Eis o alvo dos castigos impostos pelo moderno sistema penal: o indivíduo enquanto ser possuidor de direitos e que participa da construção da realidade social, sendo, portanto, necessário que sua educação esteja voltada para que ele haja de acordo com seu papel nessa construção. Com a consolidação do novo paradigma, houve a necessidade de deslocar o objeto da ação penal. Se não é mais o corpo o alvo principal da punição, qual seria? O que seria este objeto, que manipulado através da privação dos direitos promoveria a readaptação do indivíduo na sociedade? Resposta auto sugestiva: a alma. Os efeitos do castigo devem incidir sobre a consciência e a vontade do indivíduo, causar-lhe impressões capazes de o adequar as relações de poder vigentes. O que se entende por crime também teve de ser modificado. Não se julgam mais meramente delitos, definidos pelo Código, bastando saber se foram ou não cometidos para aplicar o veredito. Julga-se, além do crime, o próprio indivíduo criminoso: suas vontades, características, motivações; medidas que se adequam ao seu caso; previsões quanto à sua evolução e maneiras eficazes de corrigi-lo. Tudo isso contribuiu para a fundamentação do modelo vigente, onde o ato de julgar e punir implica em um complexo jurídico científico, inédito, altamente premeditado e que visa, acima de tudo, controlar os indivíduos. FONTE: FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p.9-34.
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