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UNIVERSIDADE PAULISTA MARIANA PINHEIRO DE SOUZA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONCOMITANTE AOS DIREITOS INERENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA SÃO PAULO 2019 MARIANA PINHEIRO DE SOUZA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONCOMITANTE AOS DIREITOS INERENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA Trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de graduação em Direito apresentado à Universidade Paulista – UNIP. Orientador: Me. Eduardo Collet e Silva Peixoto. SÃO PAULO 2019 MARIANA PINHEIRO DE SOUZA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONCOMITANTE AOS DIREITOS INERENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA Trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de graduação em Direito apresentado à Universidade Paulista – UNIP. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Prof. Universidade Paulista - UNIP _______________________________________________________ Prof. Universidade Paulista - UNIP ________________________________________________________ Prof. Universidade Paulista – UNIP AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a Deus, por ter me dado a certeza e o conforto de que Ele sempre esteve presente no meu caminho, por ter me dado forças para superar todas as dificuldades que surgiram ao longo da minha jornada, orientando meus passos para que eu pudesse sempre tomar a decisão certa. À minha querida e amada mãe, Natalia, pelo apoio incondicional em todos os momentos, por ser a base de tudo que sou hoje, por nunca ter deixado de me incentivar a lutar pelos meus sonhos e conquistas, por todo o amor, carinho e afeto que destinou a mim. Se trato neste estudo sobre afeto, foi porque aprendi com ela a importância de tal para a vida. Aos meus amigos e familiares, por todo apoio e companheirismo, e por sempre torcerem pelo meu sucesso. Aos meus professores, por todo conhecimento jurídico passado ao longo da minha trajetória acadêmica e, especialmente, ao meu orientador, professor Eduardo Peixoto, que se mostrou muito prestativo e disponível durante a elaboração desta monografia, contribuindo imensuravelmente com seu conhecimento. “Paz e harmonia: eis a verdadeira riqueza de uma família.” (Benjamim Franklin) RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso tem como objeto de estudo a análise da concomitância de filiações, biológica e socioafetiva, no ordenamento jurídico pátrio, tendo como escopo a tese de repercussão geral admitida pelo Supremo Tribunal Federal. O conceito de família, aos longos dos anos, passou por transformações em sua natureza e função, que passou a ser, primordialmente, a realização pessoal dos seus membros. Assim, antes de adentrar no tema principal, busca-se um estudo sobre a evolução conceitual de família, bem como a análise dos seus princípios basilares, para melhor entender as modificações trazidas ao Direito de Família neste percurso evolutivo e os parâmetros presentes nos dias atuais. Serão estudados os critérios para estabelecimento de filiação, perpassando por suas características e eventuais conflitos resultantes de cada um. Em decorrência desses conflitos, se faz necessária uma análise concreta pelo magistrado, a fim de fixar o critério mais adequado para cada situação. Assim, será estudado o instituto da multiparentalidade, que objetiva estabelecer uma solução mais justa e adequada para os casos de dupla paternidade em decorrência da concomitância de filiações, com o surgimento de direitos e deveres a serem observados por ambos os pais, a fim de encontrar uma solução que melhor atende os interesses da criança e do adolescente e de preservar, precipuamente, o princípio da dignidade da pessoa humana. Palavras-chaves: Direito de Família. Filiação. Paternidade socioafetiva. Multiparentalidade. Efeitos jurídicos. ABSTRACT This course work has as its object of study an analysis of affiliation, biological and socio- affective analysis in the legal system, having as its scope a study of general repercussion admitted by the Supreme Court. The family model, over the years, became one of the forms of being of nature and function, which became primarily a personal fulfillment of its members. Main, as conceptual, as-equal, as-for-years, how to present the results of the evolutionary course and those of your present day. They will be studied to obtain affiliation results, going through their characteristics and consequent results of each one. If successfully executed, a concrete review by the magistrate is required, an end of biposto is best suited for every situation. Thus, the institute of multiparentalidade will be studied, which will be applied more simply and completely to cases of double paternity in relation to the concomitance of affiliations, with the emergence of rights and duties to be observed by both parents. a solution that fulfills the interests of the child and the adolescent and of preserving the principle of the dignity of the human person. Keywords: Family Law. Membership. Socio-affective paternity. Multiparentalidade. Legal effects. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 2.1 Evolução legislativa .......................................................................................................... 12 2.1.1 O código civil de 1916 .................................................................................................... 13 2.1.2 O código civil de 2002 .................................................................................................... 14 2.2 A família pós-Constituição da República de 1988 ......................................................... 14 2.3 Princípios constitucionais da família .............................................................................. 16 2.3.1 Princípio da dignidade humana ....................................................................................... 17 2.3.2 Princípio da liberdade ...................................................................................................... 18 2.3.3 Princípio da igualdade e respeito às diferenças ............................................................... 19 2.3.4 Princípio do pluralismo das entidades familiares ............................................................ 21 2.3.5 Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente ........................................... 22 2.3.6 Princípio da proibição ao retrocesso social ..................................................................... 24 2.3.7 Princípio da afetividade ................................................................................................... 24 3 FILIAÇÃO ........................................................................................................................... 26 3.1 Evolução conceitual .......................................................................................................... 26 3.2 Critérios de filiação .......................................................................................................... 27 3.2.1 Critério jurídico ............................................................................................................... 27 3.2.2 Critério biológico ............................................................................................................. 28 3.2.3 Critério socioafetivo ........................................................................................................29 3.3 A posse do estado de filho ................................................................................................ 30 4 DA POSSIBILIDADE DE DUPLA PATERNIDADE ..................................................... 32 4.1 A possibilidade de dupla paternidade no ordenamento jurídico pátrio ...................... 32 4.2 Reflexos patrimoniais da concomitância entre filiação socioafetiva e biológica ......... 35 4.2.1 Cumulação da paternidade biológica e socioafetiva no registro de nascimento ............. 36 4.2.2 Dever de prestar de alimentos ......................................................................................... 37 4.2.3 Reflexos no direito sucessório ......................................................................................... 39 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 43 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 45 10 1 INTRODUÇÃO Com a constante evolução do direito de família, decorrente de mudanças sociais, morais e culturais na sociedade, inúmeros paradigmas têm sido ultrapassados na permanente tentativa de reestruturar o instituto familiar e se adequar a realidade hodierna. É de suma importância, então, a análise dessa nova conjuntura familiar, que põe em destaque o afeto e a realização pessoal dos seus membros, buscando uma maior igualdade de direitos entre todos. A partir do princípio da isonomia e da pluralidade familiar, advindos da Carta Magna de 1988, tem-se a necessidade de conceder a cada individuo a possibilidade de constituição do seu modelo de família, pautado no afeto, no amor, no bem-estar social e, primordialmente, na prevalência do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é imperioso o estudo acerca da paternidade socioafetiva, tendo em vista que tal instituto se faz cada vez mais presente nos dias atuais. Seu conceito está fundamentado nos laços afetivos construídos pelos sentimentos de carinho, proteção e respeito recíproco presentes na relação paterno-filial. Desse modo, a possibilidade de multiparentalidade no ordenamento jurídico pátrio surge como alternativa para respaldar situações em que a criança e o adolescente possuem vínculos afetivos de paternidade com alguém que não seja seu pai/mãe biológico. Contudo, a socioafetividade não tem a intenção de retirar a origem genética, uma vez que essa é integrante do ser humano e alveja diretamente a sua dignidade. Assim, busca-se preservar o vínculo biológico no registro civil e incluir o vínculo socioafetivo. Nesse sentido, o presente trabalho pretende, como objetivo geral, analisar os reflexos patrimoniais e pessoais da concomitância da filiação biológica e socioafetiva, sobretudo no que tange ao direito ao nome no assento civil de nascimento, à obrigação alimentar e aos direitos sucessórios decorrentes da existência da dupla paternidade, porquanto seja imprescindível diante da busca pelo melhor interesse da criança e do adolescente. Também é de grande relevância que a possibilidade da dupla paternidade seja pautada no direito à busca pela felicidade, bem como no princípio da paternidade responsável, não devendo ser utilizada meramente para fins patrimoniais. Por fim, buscou-se a análise de decisões judiciais adotadas pelos tribunais pátrios acerca da multiparentalidade, no intuito de enriquecer a coleta de informações e possibilitar um aprofundamento no estudo dos vínculos de filiação já referidos e, especialmente, no que cerne ao vínculo afetivo, que constitui elemento fulcral nas relações familiares contemporâneas. 11 2 FAMÍLIA A família é proclamada pela Constituição Federal de 1988 como a base da sociedade e tem especial proteção do Estado. A despeito de possuir proteção constitucional e está regida em livro próprio no atual Código Civil, a definição de família não está nitidamente regulada na legislação pátria. Assim, cabe aos doutrinadores e juristas a tentativa de conceituá-la. Segundo Friedrich Engels (apud MADALENO, 2018, p. 81), a família “é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema”. Para o filósofo, a família é essencial na estrutura da sociedade. Para o jurista Orlando Gomes, a família é “o grupo fechado de pessoas, composto dos genitores e filhos, e para limitados efeitos, outros parentes, unificados pela convivência e comunhão de afetos, em uma só e mesma economia, sob a mesma direção.” 1 Já a autora Maria Berenice Dias (2017, p.38) buscou definir o atual conceito, ao dispor que a concepção da família se alterou, e hoje é formada pela aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes. A autora ensina que a valorização do afeto deixou de se limitar apenas ao momento de celebração do matrimônio, devendo perdurar por toda a relação familiar. Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald ensinam que a família é “o fenômeno humano em que se funda a sociedade, sendo impossível compreendê-la, senão a luz da interdisciplinaridade, máxime na sociedade contemporânea, marcada por relações complexas, plurais, abertas, multifacetárias e globalizadas”. Os autores ainda explicam que a multiplicidade e a variedade de fatores não permitem fixar um modelo familiar uniforme. Dessa forma, entendem que a família deve ser compreendida de acordo com os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo. Nota-se, assim, que a família hodierna não possui mais um conceito singular. Prova disso é a pluralidade de entidades familiares, introduzida pelo art. 226 da Carta Magna. Trata- se de uma das mais evidentes manifestações do macroprincípio da dignidade da pessoa humana, conforme ensina Gustavo Tepedino: O centro da tutela constitucional se desloca, das entidades que, fundadas ou não no vínculo conjugal, livre e responsavelmente constituídas, contenham os pressupostos para a tutela da dignidade da pessoa humana. (TEPEDINO, 2009, p. 256) 1 GOMES, Orlando. Direito de Família. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 33. 12 Paulo Lôbo (2019, p. 85), observa que o caput do art. 226 é uma cláusula geral de inclusão, não sendo possível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade, ostentabilidade e objetivo de constituição de família. Acerca dessa nova estruturação familiar, Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald ensinam que: Ao colocar em xeque a estruturação familiar tradicional, a contemporaneidade (em meio às inúmeras novidades tecnológicas, científicas e culturais) permitiu entender a família como uma organização subjetiva fundamental para a construção individual da felicidade. E, nesse passo, forçoso é reconhecer que, além da família tradicional, fundada no casamento, outros arranjos familiares cumprem a função que a sociedade contemporânea destinou à família: entidade de transmissão da cultura e formação da pessoa humana digna. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 7) Desse modo, rompeu-se com a ideia de que a família é unicamente matrimonializada. Surgiu a possibilidade de existências de outras modalidades de convívio, conforme entende Maria Berenice Dias ao dispor que: “Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independente de sua conformação.” 2 Sob esse viés, é mister entender que a família, embora seja um instituto mutável e em constante evolução, deve ser compreendida como espaço de amor, proteção e respeito mútuo entre seus membros. Assim, as entidades familiares, independentemente da forma que possamassumir, merecem proteção do direito e do Poder Judiciário, uma vez estejam pautadas na função social dos seus membros, no ser humano como um fim em si mesmo e, precipuamente, no elemento de afeto, que adquire realce com a nova ordem constitucional. 2.1 Evolução legislativa No Brasil, a família passou por constantes mudanças em sua função, natureza e composição, que refletiram as condições sociais, morais e religiosas predominantes na sociedade ao longo dos anos. Entretanto, tem-se que as maiores transformações legislativas advieram somente com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988. Assim, faz-se necessária a análise do período histórico e legislativo por qual passou o conceito de família, destacando alguns pontos importantes deste percurso evolutivo. 2 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p.40-41 13 2.1.1 O código civil de 1916 O código civil de 1916 elencava que a família brasileira era eminentemente matrimonializada. Segundo Rolf Madaleno (2018, p.81), “a família só existia legal e socialmente quando oriunda do casamento válido e eficaz. Assim, qualquer outro arranjo familiar era socialmente marginalizado”. Maria Berenice Dias (2017, p. 40) assim discorre acerca da família à época do Código Civil de 1916: O antigo Código Civil, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado. Em sua versão original, trazia estreita e discriminatória visão de família, limitando-a ao casamento. Impedia a sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. As referências feitas aos vínculos extrapatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa da preservação da família constituída pelo casamento. (DIAS, 2017, p. 40) A legislação civil de 1916, totalmente patrimonialista, colocava o marido como chefe da sociedade conjugal e atribuía à mulher somente a função de colaboradora dos encargos familiares. Ademais, a mulher era vista como um ser relativamente incapaz. Para elucidar esse tratamento dado pelo Código Civil de 1916, merece ser citada importante jurisprudência da Corte de Apelação do Espírito Santo, de 13 de novembro de 1936, RT 113/776: [...] cabe ao Código civil, estabelecer as normas concernentes à capacidade da mulher casada. No Título II, do Direito de Família, ocupa-se dos efeitos jurídicos do casamento. Entre esses está o direito que cabe ao marido de autorizar a profissão da mulher, art. 223, IV, 242, VII. O Código exige que essa autorização conste de instrumento público, ou particular, devidamente autêntico; abre, porém, exceção quando a mulher ocupa cargo público ou, por mais de seis meses, se entrega à profissão exercida fora do lar conjugal, art. 247, parágrafo único. 3 No que se refere a filiação, havia notória distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos, naturais e adotivos. Essa distinção somente deixou de existir com o advento da Carta Magna de 1988, que consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, preservando-lhes os mesmos direitos e qualificações, em decorrência do princípio da igualdade. 3 SILVA, Suzana Gonçalves Lima; SILVA, Rosangela Aparecida. A democratização da família: substituição da hierarquia familiar pela paridade nas relações conjugais e suas implicações para a família brasileira contemporânea. Revista eletrônica do curso de Direito da UFSM. Santa Maria, v. 8, p. 470, n. 2/2013. 14 Desse modo, com o avanço constitucional e a consequente evolução da sociedade, o código civil de 1916, como aduz Luiz Edson Fachin, perdeu o papel de lei fundamental do direito de família, 4 ante a incompatibilidade com a nova realidade social. 2.1.2 O código civil de 2002 A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, instituiu o novo Código Civil brasileiro. Entretanto, o atual código civil teve suas bases em um Projeto de Lei de 1975 e, por isso, desde então, sofreu incontáveis modificações, tendo em vista o advento da Constituição Federal de 1988, que impôs novos parâmetros a serem observados pelo legislador infraconstitucional, sobretudo no que cerne a família. Maria Berenice Dias (2017, p. 41) aduz que “o código civil, pelo tempo que tramitou e pelas modificações profundas que sofreu, já nasceu velho.” A autora assim discorre acerca do conteúdo trazido pelo código em vigor: Talvez o ganho tenha sido excluir expressões e conceitos que causavam grande mal- estar e não mais podiam conviver com a nova estrutura jurídica e a moderna conformação da sociedade. Foram sepultados dispositivos que já eram letra morta e que retratavam ranços e preconceitos, como as referências desigualitárias entre o homem e a mulher, e as adjetivações da filiação, o regime dotal etc. (DIAS, 2017, p. 41). Ao encontro destes dizeres, Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 15) reitera que, apesar dos esforços, o Código Civil de 2002 não conseguiu traduzir todas as novas concepções de família. Para o autor, este texto normativo só se aproximará do ideal de justiça quando estiver em consonância com uma hermenêutica constitucional e de acordo com os princípios gerais do Direito. Desse modo, é imperioso que os dispositivos do CC/2002 sejam interpretados em consonância com a ordem constitucional e, sobretudo, com a ordem principiológica que rege o Direito de Família, para uma clara compreensão acerca da pluralidade e dos novos modelos de família. 2.2 A família pós-Constituição da República de 1988 Com o advento da Carta Magna de 1988 houve uma grande mudança no Direito de Família brasileiro. O art. 226, caput, da CRFB/88, conferiu à família especial proteção do 4 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade, relação biológica e afetiva, p. 83. 15 Estado. Rodrigo Pereira Cunha (2004), assim discorre acerca da proteção dada pela Carta Magna: Ficou muito claro que a Constituição procurou unir a liberdade do indivíduo à importância que a família representa para a sociedade e para o Estado. Ao garantir ao indivíduo a liberdade através do rol de direitos e garantias contidos no art. 5º, bem como de outros princípios, conferiu-lhe a autonomia e o respeito dentro da família e, por conseguinte, assegurou a sua existência como célula mantenedora de uma sociedade democrática. (PEREIRA, 2004, p. 112) O texto constitucional revolucionou ao romper com o modelo de família fundado exclusivamente no casamento e permitir outros arranjos familiares. Assim, ampliou a sua proteção de modo a abranger a família monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes, além daquela formada pela união estável. Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente, conferiu à legislação brasileira novas referências familiares que ultrapassam o rol da Carta Magna, incorporando os conceitos de família natural, família ampliada e família substituta 5 . A família passou a ser vista, sob a concepção de Madaleno (2018, p. 46), a partir do valor de afeto especial e complementar de uma relação de estabilidade, coabitação, intenção de constituir um núcleo familiar, de proteção, solidariedade e interdependência econômica, tudo inserido em um projeto de vida em comum. Não obstante, a jurisprudência brasileira também tem admitido, em nome do princípio da igualdade e da liberdade, novas entidades familiares. Nesse percurso evolutivo, ressalta-se o reconhecimento do STF das uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar 6 . Tal reconhecimento decorre de uma verdadeira emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à busca da felicidade. Para Tartuce (2018, p. 41), “asnovas categorias valorizam o afeto, a interação existente entre as pessoas no âmbito familiar”. O autor ainda destaca que a “a tendência é a de que mais conceitos sejam utilizados em todos os âmbitos, em um sentido de complementariedade com as outras leis”. A despeito das entidades familiares, conclui Paulo Lôbo: 5 Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei. 6 STF, ADI 4722, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, jul. 5.5.2011; STF, ADPF 132, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 5.5.2011. 16 Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargos de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade. (LÔBO, 2019, p. 85) Assim, Paulo Lôbo (2019) destaca que a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições. Ademais, o autor elenca algumas outras profundas transformações no direito de família, decorrentes da Constituição da República de 1988, que expande a proteção do Estado à família, como por exemplo, a natureza socioafetiva da filiação, que se tornou gênero, abrangente das espécies biológica e não biológica. Merece menção também a alteração trazida pela Emenda Constitucional n. 66/2010, que consagrou o divórcio como única forma de dissolução do casamento civil, tornando-se desnecessária a prévia separação judicial. Rolf Madaleno (2018, p. 286) salienta que o divórcio da Emenda 66/2010 não exige nenhum pressuposto temporal e pode ser decretado a qualquer tempo e em qualquer casamento civil. Dessa forma, a nova redação da CRFB/88 evidencia a autonomia e liberdade dos cônjuges, ao permitir que alcancem suas finalidades sem qualquer espaço para explicitação de causa objetiva ou subjetiva. Diante de todo o contexto é evidente que a Lei Maior produziu significativas mudanças na sociedade. Para Maria Berenice Dias (2017, p. 42), houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor. Os novos arranjos familiares vão muito além daqueles apresentados no texto da lei, assim, faz-se mister a aplicação principiológica para compreensão da família contemporânea, a fim de respeitar as particularidades de cada núcleo familiar. 2.3 Princípios constitucionais da família A Carta Magna de 1988 consagra princípios implícitos e explícitos que orientam o Direito das Famílias, inexistindo hierarquia entre eles. Daniel Sarmento (apud DIAS, 2017, p. 50) preleciona que “os princípios constitucionais representam o fio condutor da hermética jurídica, dirigindo o trabalho do intérprete em consonância com os valores e interesses por eles abrigados”. 17 A dignidade da pessoa humana e a solidariedade são princípios primordiais, conforme aduz Paulo Lôbo: A Constituição, e, consequentemente, a ordem jurídica brasileira, é perpassada pela onipresença de dois princípios fundamentais e estruturantes: a dignidade da pessoa humana e a solidariedade. Sua presença no direito de família é também marcante, às vezes de modo explícito. (LÔBO, 2019, p. 55) Especialmente no âmbito das famílias, os princípios possuem a finalidade de garantir a tutela do Estado e assegurar os mais diversos arranjos familiares. Assim, é imprescindível que as relações que envolvam o Direito das Famílias sejam norteadas pelos princípios, em virtude das peculiaridades de cada núcleo familiar e de cada pessoa. A seguir, serão destacados alguns princípios norteadores que guardam relação com a temática proposta, sem a pretensão de delimitar ou esgotar seu elenco. 2.3.1 Princípio da dignidade humana Trata-se do princípio basilar do Estado Democrático de Direito, positivado no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88, isto é, refere-se ao princípio fundamental do Estado e garantidor da vida, materializado através de garantias e direitos fundamentais. Para Paulo Lôbo (2019), a dignidade da pessoa humana é o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 68), “a dignidade é um macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores essenciais como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade”. No que se concerne à família, tal princípio encontra-se disposto nos artigos 226, § 7, 227, caput e 230, da Carta Magna 7 . A família, tutelada pela Constituição, está funcionalizada ao desenvolvimento das pessoas humanas que a integram. A entidade familiar não é tutelada 7 Art. 226, § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. 18 para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros 8 . Assim, buscou- se proteger igual tratamento às diversas entidades familiares, sem diferenciação, como por exemplo, quanto a constituição das famílias, ou ainda quanto às formas de filiação. Nesse sentido, especialmente em relação ao reconhecimento das várias formas de origem da família, Maria Berenice Dias complementa: O princípio da dignidade humana significa, em última análise, igual dignidade para todas as entidades familiares. Assim, é indigno dar tratamento diferenciado às varias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família, com o que se consegue visualizar a dimensão do espectro desse princípio, que tem contornos cada vez mais amplos. (DIAS, 2017, 53) Observa-se ainda, conforme Maria Berenice Dias (2017), que a pluralização das entidades familiares é fenômeno que preserva as qualidades mais relevantes entre os familiares, tais como afeto, solidariedade, união, respeito, confiança, amor e o projeto de vida comum. 2.3.2 Princípio da liberdade Trata-se do princípio que confere a entidade familiar a livre autonomia para sua constituição, realização ou extinção. Paulo Lôbo define: O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder deescolha ou autonomia de constituição, realização e extinção da entidade familiar, sem imposição ou externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar, à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral. (LÔBO, 2019, p. 68) Não obstante, o princípio da liberdade deve ser materializado concomitantemente e em equilíbrio com o princípio da igualdade. Observa Maria Berenice Dias (2017) que, inexistindo o pressuposto de igualdade, haverá dominação e sujeição, e não liberdade. No cerne da família, a CRFB/88 procurou adaptar-se às evoluções sociais, excluindo diversos impedimentos anteriormente tidos como extremamente rígidos ao exercício de liberdade de seus membros. Assim, possibilitou a reinvenção das estruturas familiares, permitindo, por exemplo, que o filho, após atingir a maioridade, busque o reconhecimento ou impugne a paternidade feita por seu pai biológico, conforme alude o artigo 1.614 do 8 LOBO, Paulo, Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 59. 19 CC/2002 9 . Assim, evidencia-se que o estado de filiação não é necessariamente uma imposição da natureza. Desse modo, o princípio ora em estudo deve ser compreendido como uma liberdade do indivíduo ao constituir sua família, de acordo com sua autonomia e nela otimizar a sua própria personalidade. Frisa Paulo Lôbo (2019) que, a liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção dos grupos familiares, mas à sua permanente constituição e reinvenção. 2.3.3 Princípio da igualdade e respeito às diferenças O princípio da igualdade e respeito às diferenças também constitui um dos princípios- chaves da CRFB/88 e do Direito de Família, especialmente no que cerne a ideia de justiça, o que evidencia a proposta do legislador em obstar condutas discriminatórias, assegurando tratamento isonômico e proteção igualitária a todos os cidadãos no âmbito social. O princípio da igualdade encontra-se reafirmado por diversas vezes na Carta Magna de 1988 (art. 5, I, 226, §5, I e 227, § 6). Tal inscrição é fruto de profundas evoluções históricas, especialmente no direito de família, alcançando hoje a igualdade entre homem e mulher, entre filhos de qualquer origem e entre as entidades familiares. O art. 226, §5 10 , da CRFB/88, consagra a igualdade dos cônjuges e companheiros ao legitimar o exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal por ambos os cônjuges, abrangendo também a igualdade de direitos e deveres entre companheiros na união estável. O Código Civil de 2002, reiterando o texto constitucional, consagra o princípio da igualdade no art. 1.511 11 . Para Dias (2017, p. 55), o aludido princípio não deve ser pautado pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros. Nota- se também a aplicação do ora mencionado princípio na igualdade de chefia, positivada no art. 1.631 do CC/2002, ao enunciar que durante o casamento ou união estável compete o poder 9 Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação. 10 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 11 Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. 20 familiar aos pais. Não obstante, em caso de eventual divergência, é assegurado a qualquer um deles recorrer ao judiciário para buscar a solução do desacordo. 12 Indo além, Paulo Lôbo e Maria Berenice Dias: Foi banida a desigualdade de gêneros. Depois de séculos de tratamento discriminatório, as distâncias entre homens e mulheres vêm diminuindo. A igualdade, porém, não apaga as diferenças entre os gêneros, que não podem ser ignoradas pelo direito. O desafio é considerar as saudáveis e naturais diferenças entre os sexos dentro do princípio da igualdade. (DIAS, 2017, p. 55) Ademais, a supremacia do princípio da igualdade alcança também os vínculos de filiação. É assegurado tratamento isonômico a todos os filhos, não admitindo distinção entre filhos legítimos, naturais e adotivos, como se verificava, sobretudo, enquanto ainda vigente o CC/1916. O art. 227, § 6, da CRFB/88 introduziu a máxima igualdade entre os filhos, “havidos ou não na relação de casamento, ou por adoção”, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações. Atendendo a ordem constitucional, o art. 1.596 do CC/2002 tem a mesma redação, assim, nota-se que o legislador fez questão de acabar com as discriminações antes presentes na legislação, de maneira a assegurar a isonomia de direitos referentes ao nome, poder familiar, alimentos, sucessão, reconhecimento de paternidade a qualquer tempo, etc. De acordo com Tartuce (2018, p. 16), esses comandos legais regulamentam especificamente na ordem familiar a isonomia constitucional, ou igualdade em sentido amplo, constante do art. 5º, caput, da CRFB/1988, um dos princípios do Direito Civil Constitucional. Entretanto, ainda no que tanque a filiação, observa-se uma mitigação no princípio da igualdade, especialmente no que cerne aos filhos adotivos e biológicos. Segundo Paulo Lôbo (2019), os filhos havidos por adoção são titulares dos mesmos direitos dos filhos biológicos, mas a eles é imposta uma limitação, pois estão impedidos de casar-se com os parentes consanguíneos da família da qual vieram, mesmo que tenham se desligado dessa relação de parentesco. Contudo, esse impedimento não enseja efetiva desigualdade entre os filhos biológicos ou não, em que pese ser necessária para tutela dos direitos dos filhos adotivos. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que, por vezes, para que seja assegurado a isonomia entre os filhos, é imperioso atender as diferenças individuais, sem que isso ocorra em discriminação. Assim, nas situações em que são tratados desigualmente os desiguais, o 12 Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo. 21 que ocorre é uma promoção na construção da individualidade, de modo a respeitar o direito de cada um de ser diferente. 2.3.4 Princípio do pluralismo das entidades familiares Com o advento da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico passou a reconhecer a difusão de novas estruturas familiares, além daquela formada pelo casamento. Tal reconhecimento, impulsionado pelas expressivas modificações do contexto político, econômico e social do país, provocou um verdadeiro avanço no direito de família. Anteriormente a referida Carta Magna, o casamento era o único instituto formador e legitimador da família brasileira. Os demais vínculos familiares eram condenados à invisibilidade 13 e não recebiam proteção nas codificações vigentes. O art. 226, da CRFB/88, assim, inovou ao dispor sobre outras formas de constituição da família: união estável e família monoparental, consagrando o princípio da pluralidade das entidades familiares. Não obstante, a doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, afirmam que esse rol não é taxativo, mas meramente exemplificativo, pois não háimpedimento para constituição de outras entidades familiares, além das previstas expressamente na ordem constitucional. Nesse sentido, assevera Rodrigo da Cunha Pereira: Alguns doutrinadores defendem que o art. 226 da Constituição é uma “norma de clausura”, na medida em que elenca as entidades familiares que são objeto da proteção do Estado. Não se afigura adequada tal argumentação, pois várias outras entidades familiares existem além daquelas ali previstas, e independentemente do Direito. A vida como ela é vem antes da lei jurídica. Jacques Lacan, em 1938, demonstrou em seu texto A família (publicada no Brasil com o nome Complexos familiares), a dissociação entre família como fato da natureza e como um fato cultural, concluindo por essa última vertente. Ela não se constitui apenas de pai, mãe e filho, mas é antes uma estruturação psíquica em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente. Desfez-se a idéia de que a família se constituiu, unicamente, para fins de reprodução e de legitimidade para o livre exercício da sexualidade. (PEREIRA, 2004, p. 118) Ademais, o princípio do pluralismo das entidades familiares deve ser balizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Afastar do âmbito da juridicidade a formação de outros arranjos familiares, compostos a partir da afetividade e do comprometimento mútuo, é retirar de seus membros a proteção a sua dignidade e da busca pela felicidade de acordo com as suas próprias escolhas. 13 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 56. 22 Maria Berenice Dias assim se refere com relação às características para que determinado grupo possa ser configurado como entidade familiar: O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo. Cada vez mais a ideia de família afasta-se da estrutura do casamento. (DIAS, 2017, p. 146) A afetividade tornou-se então aspecto fundamental para definir e caracterizar a família. Todavia, Paulo Lôbo (2019), define como características das entidades familiares, além do afeto, também a estabilidade, como fundamento e finalidade da entidade; a convivência pública e ostensiva, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente; e o escopo de constituição de família. Diante da interpretação do texto constitucional, e especialmente, da aplicação do princípio da pluralidade das entidades familiares, é relevante ressaltar que todos os tipos de família merecem proteção do Estado, sem distinção ou hierarquia. Assim, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois isso afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana. 2.3.5 Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente Tratando-se do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, Paulo Lôbo (2019), entende que o mesmo “parte de uma concepção de ser a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, e não como mero objeto de intervenção jurídica e social quando em situação irregular”. Tal princípio foi acolhido pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 227, caput 14 , a partir da Emenda Constitucional n. 65/2010, representando um grande marco no ordenamento jurídico brasileiro. Atendendo as diretrizes constitucionais, o art. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente também estabeleceu normas protetivas à criança e ao adolescente 15 . Ademais, 14 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 15 Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 23 insta destacar a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que trouxe ao nosso país mudanças ao tratamento da criança como sujeito de direito. Buscou-se dar tratamento prioritário ao interesse da criança, seja pelo Estado, pela sociedade e pela família, assegurando ampla proteção ao menor. Para Maria Berenice Dias (2017), deve ser consagrado a criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à saúde, à alimentação, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, posto que, a criança e o adolescente encontram-se em maior situação de vulnerabilidade e fragilidade. É o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente que deve orientar as decisões que envolvam investigações de paternidade e filiações socioafetiva. Para Paulo Lôbo (2019), a criança é a protagonista principal na atualidade. Assim, na colisão da verdade biológica e socioafetiva, deve prevalecer o melhor interesse dos filhos. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem adquirido amplitude doutrinária e jurisprudencial. Em 2017, o Tribunal da Justiça do Espirito Santo, ao analisar caso concreto, buscou resguardar os direitos fundamentais da criança e ao adolescente ao aplicar o referido princípio, conforme ementa: DIREITO CIVIL - APELAÇÃO CÍVEL – FAMÍLIA – GUARDA COMPARTILHADA – ART. 4º DO ECRIAD EM CONSONÂNCIA COM OS ARTS. 227 E 229 DA CF – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - SENTENÇA MANTIDA - NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO. 1. A Constituição Federal dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, entre outros, impondo aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (artigos 227 e 229⁄CF). 2. O artigo 4º do ECRIAD prevê o seguinte: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão¿. 3. De acordo com o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, o aplicador do direito deve buscar a solução que proporcione o maior benefício possível para a criança e o adolescente, que dê maior concretude aos direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. Em se tratando de guarda de criança, em razão de sua própria natureza, por envolver direito familiar, sentimentos pessoais e, em especial, o interesse do menor, cabe ao Julgador apreciar com extrema cautela, levando-se em consideração a realidade fática vivenciada pela criança e visando o seu bem-estar e regular desenvolvimento físico e psicológico. 5. Conhecer e negar provimento. Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absolutaprioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 24 (apelação civil n. 0021382-61.2012.8.08.0024, Quarta Câmara Civil, Tribunal de Justiça do ES, relator Arthur José Neiva de Almeida, julgado em 21/08/2017). Assim, ao empregar a lei em caso concreto, deve-se buscar a efetivação do princípio, buscando preservar ao máximo aqueles que se encontram em situação de fragilidade. Deve-se primar pela consideração do que é melhor para a criança e o adolescente envolvidos, de modo a se averiguar em que consiste o seu real bem-estar. 2.3.6 Princípio da proibição ao retrocesso social O princípio constitucional da proibição ao retrocesso social visa tutelar as garantias constitucionais e direitos subjetivos assegurados ao indivíduo pela Carta Magna. É evidente que nenhuma legislação infraconstitucional pode restringir ou inferiorizar os direitos originalmente conferidos pela CRFB/88, ao garantir especial proteção à família, pois isso configuraria um verdadeiro retrocesso e desrespeito as normas constitucionais. A respeito da vedação ao retrocesso, leciona Maria Berenice Dias: O legislador infraconstitucional precisa ser fiel ao tratamento isonômico assegurado pela Constituição, não podendo estabelecer diferenciações ou revelar preferências. Do mesmo modo, todo e qualquer tratamento discriminatório levado a efeito do Judiciário mostra-se flagrantemente inconstitucional. (DIAS, 2017, p. 59) Assim, as diretrizes do direito de famílias asseguradas pela CRFB/88, tais como a igualdade entre homens e mulheres, entre filhos e entre as próprias entidades familiares, não podem sofrer limitações. Deve-se garantir a eficácia de todas as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais. 2.3.7 Princípio da afetividade Trata-se do princípio que alicerça as relações familiares, ligado ao direito fundamental à felicidade. Para Paulo Lôbo (2019, p. 72) “é o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida.” Embora a palavra afeto não esteja expressamente prevista na CRFB/88 como sendo um direito fundamental, é possível verificar implicitamente a presença do referido princípio, inclusive a sua proteção. Segundo Tartuce (2018, p. 25), o princípio da afetividade decorre da valorização constante da dignidade humana e da solidariedade. http://aplicativos.tjes.jus.br/sistemaspublicos/consulta_jurisprudencia/det_jurisp.cfm?NumProc=&edProcesso=024120210646&edPesquisaJuris=melhor%20interesse%20da%20crian%C3%A7a&seOrgaoJulgador=&seDes=&edIni=24/03/2017&edFim=24/03/2019&Justica=Comum&Sistema= 25 Não obstante, insta destacar que o afeto não se confunde com a afetividade, como leciona Paulo Lôbo: A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. (LÔBO, 2019, p. 73) É possível notar a aplicação do princípio da afetividade na CRFB/88, ao estabelecer a igualdade dos filhos, independentemente da sua origem; bem como a adoção, como escolha afetiva com igualdade de direitos. Também dispõe o artigo 227 da Carta Magna, a proteção a convivência familiar como prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente. O código civil de 2002 também não utiliza expressamente a palavra afeto, mas é possível depreender a aplicação do referido princípio no artigo 1593, ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2019). Assim, Paulo Lôbo (2019, p. 74) afirma que “os laços de parentesco na família (incluindo a filiação), sejam eles consanguíneos ou de outra origem, têm a mesma dignidade e são regidos pelo princípio da afetividade.” Relevante consequência da aplicação do princípio da afetividade é a judicialização da paternidade socioafetiva, baseada na posse de estado filho. Para Maria Berenice Dias (2017, p. 60), a “posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado”. Complementa Rodrigo Cunha Pereira: A paternidade socioafetiva está alicerçada na posse de estado de filho, que nos remete à clássica tríade nomen, tractus e fama. Assim, para que haja a posse de estado, neste diapasão, é necessário que o menor carregue o nome da família, seja tratado como filho e que sua condição oriunda da filiação seja reconhecida socialmente. É este tripé que garante a experiência de família e nele o pressuposto do afeto. Afinal, quem cria um filho que não traz consigo laços biológicos pressupõe-se que o desejo permeou esta relação. E é claro que a consequência direta do desejo, neste caso, é a construção do afeto. (PEREIRA, 2004, p.132) Dessa forma, pode-se inferir que o princípio da afetividade possui especial aplicação no que tange a filiação, uma vez que constitui critério para determinar uma das formas de paternidade, a socioafetiva. É ainda, fundamento das relações familiares contemporâneas, permitindo mais liberdade na constituição familiar. Deve-se, assim, buscar a realização dos interesses afetivos e existenciais dos seus integrantes. 26 3 FILIAÇÃO A filiação é um dos temas do ramo do Direito de Família que mais sofrera evoluções. O Código Civil de 1916 classificava os filhos em legítimos e ilegítimos, estabelecendo especial proteção à família legítima em detrimento das demais, categorizando os filhos em conformidade com o estado civil dos pais. Desde o advento da CRFB/88, contudo, a filiação adquiriu uma nova perspectiva, desparecendo quaisquer adjetivações ou discriminações. Assim, a Carta Magna estabeleceu absoluta igualdade de direitos e deveres entre todos os filhos, de qualquer origem, conforme será demonstrado no decorrer deste estudo. 3.1 Evolução conceitual Paulo Lôbo (2019, p. 218), define filiação como a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é titular a autoridade parental e a outra a esta se vincula pela origem biológica ou socioafetiva. No entanto, o conceito de filiação sofreu profundas alterações no ordenamento jurídico. O Código Civil de 1916 classificava a filiação de acordo com a origem, assim, eram considerados legítimos os filhos havidos na constância do casamento e ilegítimos os advindos das relações extrapatrimoniais. Os ilegítimos eram, ainda, divididos em naturais e espúrios, e estes, classificavam-se em adulterinos e incestuosos. O artigo 358 da referida lei disciplinava que os filhos incestuosos e os adulterinos não podiam ser reconhecidos. Para Maria Berenice Dias (2017, p. 408), “negar a existência de prole ilegítima simplesmente beneficiava o genitor e prejudicava o filho”. A desigualdade e a repulsa aos filhos ilegítimos decorriam do modelo de família existente à época, conforme preceitua Paulo Lôbo: A desigualdade entre filhos, particularmente entre filhos legítimos, ilegítimos e adotivos, era a outra e dura face da família patriarcal que perdurou no direito brasileiro até praticamente os umbrais da Constituição Federal de 1988, estruturada no casamento, na hierarquia, no chefe de família, na redução do papel de mulher, nos filhos legítimos, nas funções de procriação e de unidade econômica e religiosa. A vedação ao reconhecimento dos filhos ilegítimos só foi afastada pela promulgação da Constituição Federal de 1988, que zelou pelo princípio da igualdade e proibiu tratamento 27 discriminatório quanto à filiação, conformepreceitua o art. 227, § 6º, ao impor tratamento único e igualitário entre todas as formas de perfilhação. 16 Nesse sentido aduz Rolf Madaleno: O texto constitucional em vigor habilita-se a consagrar o princípio da isonomia entre os filhos, ao pretender estabelecer um novo perfil na filiação, de completa igualdade entre todas as antigas classes sociais de perfilhação, trazendo a prole para um único e idêntico degrau de tratamento, e ao tentar derrogar quaisquer disposições legais que ainda ousassem ordenar em sentido contrário para diferenciar a descendência dos pais. (MADALENO, 2018, p. 657) Nesse percurso evolutivo, destaca-se a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, resultando na tese de Repercussão Geral 622, que preceitua: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.” Desse modo, no atual contexto social, o conceito de filiação deve ser pensado de forma que contemple todas as formas de combinações de núcleos familiares existentes, para também amparar a filiação da afeição e não apenas o vínculo jurídico ou biológico. 3.2 Critérios de filiação O termo filiação passou a abranger amplas possibilidades de se estabelecer a relação paterno-filial. Para Maria Berenice Dias (2019, p. 419) há três critérios para o estabelecimento da filiação, definidos a partir de sua origem e características: o critério jurídico, o critério biológico e o critério socioafetivo. É importante salientar que, apesar de suas variações, todos se encontram em patamar igualitário, não havendo qualquer hierarquização entre eles, haja vista a vedação constitucional a qualquer forma de discriminação dada pela origem de filiação. 3.2.1 Critério jurídico O critério jurídico estabelece a paternidade por presunção, independente da correspondência ou não com a realidade. Nesse sentido, preceitua o Código Civil de 2002: 16 Art. 227, § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 28 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. A filiação decorrente do critério jurídico decorre exclusivamente da lei. A presunção legal da paternidade tem por base o pressuposto de que todos os filhos advindos do casamento possuem vínculo de filiação com o pai e a mãe, sem o levantamento de quaisquer dúvidas. Como afirma Lôbo (2019, p. 222), “a presunção supõe que a maternidade é sempre certa e o marido da mãe é, normalmente, o pai dos filhos que nasceram da coabitação deles”. A presunção pater is est é imposta pelo legislador como meio de provar a paternidade diante da impossibilidade de demonstrar outra forma de filiação paterno-filial e decorre da instituição do casamento. Cumpre salientar que tal presunção é juris tantum, admitindo prova em contrário, por meio de ação negatória de paternidade. É imperioso mencionar também que, ainda que o art. 1.597 do CC/2002 se refira à “constância do casamento”, a presunção de filiação aplica-se também a união estável, conforme preceitua o autor Paulo Lôbo (2019, p. 230) ao dispor que “a referência na lei à convivência conjugal deve ser entendida como abrangente da convivência em união estável, assim, a alusão a marido compreende o companheiro”. 3.2.2 Critério biológico O critério biológico faz referência a verdade genética, assim entendida como aquela que decorre de laços sanguíneos entre pais e filhos, confirmados por meio de exame de DNA. Nesse sentido, Maria Berenice Dias preleciona que: Até hoje, quando se fala em filiação e em reconhecimento de filho, a referência é a verdade genética. Em juízo sempre foi buscada a chamada verdade real, sendo assim considerada a filiação decorrente do vínculo de consanguinidade. (DIAS, 2017, p. 418) No que tange a verdade genética, importante destacar o enunciado da Súmula nº 301 do Superior Tribunal da Justiça, que preceitua que na ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz a presunção juris tantum de paternidade. No 29 entanto, para alguns doutrinadores, a presunção de paternidade pela recusa em se submeter ao exame de DNA não é suficiente para afirmar o vínculo de filiação, porque essa circunstância não desonera da comprovação dos outros meios de prova. 17 Assim, no reconhecimento de filiação, não se deve levar em consideração apenas o vínculo genético, pois diversos fatores somam-se para definir o vínculo de paternidade, o principal deles diz respeito ao afeto. Nesse contexto, Maria Berenice Dias (2017, p. 419) preleciona que “nunca foi tão fácil descobrir a verdade biológica, mas essa verdade passou a ter pouca valia frente à verdade afetiva”. 3.2.3 Critério socioafetivo O critério socioafetivo encontra veemência na presença do afeto como elemento determinante na relação entre pais e filhos. Maria Berenice Dias (2019, p. 412) conceitua o critério socioafetivo como aquele fundado no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa. Para a autora, pai é o que exerce tal função, ainda que não haja vínculo de sangue. Na mesma linha, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2015, p. 591), considera a filiação socioafetiva como uma espécie de adoção de fato, merecedora de proteção. Os autores definem com maestria a filiação socioafetiva, ao explicarem que: A filiação socioafetiva não está lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando em xeque, a um só tempo, a verdade biológica e as presunções jurídicas. Socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão-dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho. Apresenta-se, desse modo, o critério socioafetivo de determinação do estado de filho como um tempero ao império da genética, representando uma verdadeira desbiologização da filiação, fazendo com que o vínculo paterno-filial não esteja aprisionado somente na transmissão de gens. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 592) Não obstante a presença de afeto seja determinante, alguns outros preceitos são levados em consideração para estabelecimento da filiação socioafetiva. Paulo Lôbo (2019, p. 231) define como requisitos que devem ser observados: o comportamento social típico de pais e filhos; a convivência familiar duradoura, que deve ser suficiente para que se identifiquem laços familiares afetivos e não apenas relações afetivas; e a relação de afetividade familiar, assim, a relação entre as pessoas deve ser de natureza afetiva e com a finalidade de constituição familiar. 17 MADALENO, Rolf. Direito de Família. 8 ed. São Paulo: Editora Forense, 2018, p. 783. 30 Observa-se, desse modo, que a filiação socioafetiva é determinada pela crença da condição de filho fundada em laços de afeto e na construção diária de convivência familiar intima e duradoura, caracterizando a posse do estado de filho.3.3 A posse do estado de filho A posse do estado de filho não decore de um ato, como a concepção ou o registro, mas sim de um fato: a convivência entre pais e filhos, sustentada no amor e na afetividade. Segundo Chaves de Farias e Rosenvald (2015, p. 548), “o papel da posse do estado de filho é conferir juridicidade a uma realidade social, pessoal e afetiva induvidosa”. Embora não esteja expressamente prevista na codificação em vigor, é indubitável que a atual jurisprudência, reiterada e paulatinamente, prestigia a chamada posse do estado de filho, sendo reconhecida como mecanismo de estabelecimento de filiação, pois oferece os parâmetros necessários para o reconhecimento da relação de filiação socioafetiva, conforme se depreende do enunciado 519 do CJF, que dispõe: “O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais”. 18 Na mesma linha, o enunciado nº 7 do IBDFAM dispõe que a posse de estado de filho pode constituir a paternidade e maternidade. 19 Cumpre ressaltar que, para o reconhecimento da posse do estado de filho, a doutrina elenca alguns requisitos: o filho deve ser tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; deve ser utilizado o nome dos presumidos genitores; e, ser conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais. Acerca dos elementos mencionados é mister esclarecer que a doutrina, em sua maioria, dispensa o elemento nome como essencial, desde que presentes os elementos trato e fama, conforme referencia o jurista GOMES (1994, p. 311): O fato de o filho nunca ter usado o nome do pai não descaracteriza a posse de estado, se concorrerem os demais elementos citados. Cabe esclarecer que não há hierarquia entre eles, pois ainda se consideram outras qualidades que devem revestir a aparência de filho. Busca-se a publicidade, a continuidade e a ausência de equívoco na relação entre pai e filho. Ainda que não seja imprescindível o fator 18 BRASIL. Conselho de Justiça Federal. V Jornada de Direito Civil. Enunciado nº 519. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/588>. Acesso em 24 de julho de 2019. 19 IBDAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Enunciado nº 07. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados-ibdfam>. Acesso em 24 de julho de 2019. https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/588 http://www.ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados-ibdfam 31 nome, posto que outros elementos também revelam a base da paternidade, o chamamento sim, pois dificilmente se encontrará expressão mais eloquente de tratamento do que o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. (GOMES, 1994, p. 311) Ademais, para que a posse do estado de filho constitua a filiação socioafetiva, faz-se necessário que estejam presentes outros elementos, como o respeito mútuo, o afeto, e precipuamente, a vontade indubitável das partes de constituírem uma relação paterno-filial. Nesse sentido, aduz Luciana Leão Pereira Viana: A posse de estado de filho é, de fato, requisito essencial para configuração da paternidade socioafetiva, contudo não é o único. Imperioso se faz avaliar criteriosamente se existe o elemento determinante para estabelecimento, qual seja: vontade. Assim, presentes os requisitos já trabalhados – fama, tratamento e nome – e a vontade de serem pai e filho, com base no reconhecimento recíproco e exercício da função paterna estar-se-á diante de uma verdadeira relação paterno-filial. 20 Portanto, a vontade de ser pai socioafetivo em simultaneidade com os demais elementos mencionados estruturam a filiação socioafetiva, consubstanciada na posse do estado de filho. Devem ser reconhecidos como pais aquelas pessoas que, de fato, tem uma participação cotidiana na vida do filho, assumindo a responsabilidade paternal e o ônus material e afetivo do convívio. 20 VIANA, Luciana Leão Pereira. Paternidade Socioafetiva e Posse de Estado de Filho: em busca da distinção necessária à luz do princípio da autodeterminação. In. RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. (Org.). Et al. Temas Atuais de Direito das Famílias e das Sucessões. Belo Horizonte: RTM, 2014, p. 193. 32 4 DA POSSIBILIDADE DE DUPLA PATERNIDADE Com a ampliação do conceito de família e levando-se em consideração as diversas possibilidades de definição dos vínculos parentais, seja pela presunção decorrente do casamento, pela descendência biológica ou pela afetividade, o Direito revela sua aptidão de se amoldar aos novos parâmetros que envolvem as relações familiares. Por isso, faz-se necessário estabelecer soluções jurídicas para os casos em que houver a coexistência entre mais de um vínculo parental, a fim de preservar os direitos fundamentais a todos os envolvidos. 4.1 A possibilidade de dupla paternidade no ordenamento jurídico pátrio A ideia de dupla paternidade surge como consequência da ampliação das entidades familiares e da presença do afeto no seio familiar. A dupla paternidade é a possibilidade de uma pessoa ter mais de um pai simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles de forma concomitante. Com profundidade, Belmiro Pedro Welter (2009), na sua Teoria Tridimensional do Direito de Família, sustenta que o homem é um ser tridimensional, com a presença concomitante de uma condição genética, afetiva e ontológica. Assim, o autor defende a possibilidade de coexistência entre as filiações biológica e socioafetiva e de seus efeitos jurídicos: Com a adoção da teoria tridimensional do direito de família, que sustenta a possibilidade do ser humano ter direito aos três mundos, genético, afetivo e ontológico, é preciso repensar o Direito de Família nas seguintes questões, por exemplo: a) na ação de adoção, não será mais possível o rompimento dos vínculos genéticos; b) afasta-se a ação de destituição do poder familiar, mantendo-se apenas a ação de suspensão, enquanto perdurar a desafetividade dos pais contra o filho; c) o filho terá direito a postular alimentos contra os pais genéticos e afetivos; d) o filho terá direito à herança dos pais genéticos e afetivos; e) o filho terá direito ao nome dos pais genéticos e afetivos; f) o filho terá direito ao parentesco dos pais genéticos e afetivos; g) o filho terá o direito ao poder/dever dos pais genéticos e afetivos; h) o filho terá sempre direito à guarda compartilhada e/ou unilateral dos pais genéticos e afetivos; i) o filho terá o direito à visita dos pais/parentes genéticos e afetivos; j) deverão ser observados os impedimentos matrimoniais e convivenciais dos parentes genéticos e afetivos; k) a adoção será proibida aos parentes genéticos e afetivos; l) o filho poderá propor ação de investigação de paternidade genética e afetiva, obtendo todos os direitos decorrentes de ambas as paternidade. (WELTER, 2009, p. 222) 33 Cumpre salientar que inexiste previsão expressa na legislação de que a parentalidade é una, ou seja, biológica ou presumida ou socioafetiva, o que dá ensejo à possibilidade da dupla paternidade e ao reconhecimento da multiparentalidade. A multiparentalidade visa garantir tutela a um fato social, advindo da liberdade dos indivíduos para constituir núcleos familiares. Nos dizeres de Maria Berenice Dias: Para o reconhecimento de filiação pluriparental, basta flagrar a presença do vínculo de filiação com mais de duas pessoas. A pluriparentalidade é reconhecida sob o prisma da visão do filho, que passa a ter dois ou mais novos vínculos familiares. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é umaobrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo o direito à afetividade. (DIAS, 2017, p. 432) No mesmo sentido, Ana Carolina Brocado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues são amplamente favoráveis a existência da multiparentalidade: Em face de uma realidade social que se compõe de todos os tipos de famílias possíveis e de um ordenamento jurídico que autoriza a livre (des)constituição familiar, não há como negar que a existência de famílias reconstituídas representa a possibilidade de uma múltipla vinculação parental de crianças que convivem nesses novos arranjos familiares, porque assimilam a figura do pai e da mãe afim como novas figuras parentais, ao lado de seus pais biológicos. Não reconhecer esses vínculos, construídos sobre as bases de uma relação socioafetiva, pode igualmente representar ausência de tutela a esses menores em formação. (TEIXEIRA, Ana Carolina Brocado; RODRIGUES, Renata de Lima, 2015, p. 27) Para Cassetari (2015, p. 235), o fundamento da multiparentalidade é a igualdade de parentalidades biológica e socioafetiva, pois entre elas não há vínculo hierárquico e uma não se sobrepõe a outra, sendo possível existirem simultânea e harmonicamente. Não obstante, o entendimento da jurisprudência nos primeiros julgados sobre o tema era no sentido de que uma filiação prevalecia sobre a outra, inexistindo a possibilidade de coexistência, vejamos: APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CARACTERIZADAS. ALIMENTOS A SEREM PAGOS PELO PAI BIOLÓGICO. IMPOSSIBILIDADE. Caracterizadas a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva, o que impede a anulação do registro de nascimento do autor, descabe a fixação de pensão alimentícia a ser paga pelo pai biológico, uma vez que, ao prevalecer a paternidade socioafetiva, ela apaga a paternidade biológica, não podendo coexistir duas paternidades para a mesma pessoa. Agravo retido provido, à unanimidade. Apelação provida, por maioria. Recurso adesivo desprovido, à unanimidade. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70017530965, Oitava 34 Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 28/06/2007) No julgado acima, observa-se que a paternidade socioafetiva se sobrepôs à paternidade biológica, com a ausência de direito patrimonial relativamente ao pai biológico, ao argumento de que não podem existir duas paternidades sobre uma pessoa. Entretanto, segundo Maria Goreth Macedo Valadares (2016, p. 95), “se é admitida uma tríplice forma de parentalidade, a presumida, a biológica e a socioafetiva, sem qualquer hierarquia ou prevalência de uma sob a outra, não há como negar que o ordenamento jurídico brasileiro admite a existência da multiparentalidade, que poderá acarretar produção de efeitos jurídicos entre todos os envolvidos”. Embora grande parte da doutrina reconheça a multiparentalidade, verifica-se que alguns doutrinadores renomados se mostram contrários a essa possibilidade. Segundo Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2015, p. 599), o tema exige cuidados e ponderações, uma vez que, admitida a pluripaternidade, seria viável a possibilidade de estabelecimento da filiação para atender meramente a interesses patrimoniais, conforme explicam os autores: É que seria possível ao filho socioafetivo buscar a determinação de sua filiação biológica, apenas, para fins sucessórios, reclamando a herança de seu genitor, muito embora não mantenha com ele qualquer vinculação, ou, sequer, aproximação. Ademais, poder-se-ia, com isso, fragilizar o vínculo socioafetivo estabelecido, permitindo uma busca inexorável do vínculo biológico. Até porque a concepção familiar que decorre da filiação não permite escolhas de ordem meramente patrimonial. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 599) No entanto, a minoria que vive em situações de multiparentalidade não pode ser prejudicada, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 admite a multiplicidade de núcleos familiares. Nessa direção, em 2016, o STF reconheceu como repercussão geral a matéria da socioafetividade e consolidou seu entendimento, como Tema 622, tendo como paradigma o RE 898.060, com a seguinte tese geral: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. (BRASIL, STF, RE 898.060, Min. Rel. Luiz Fux, 21.09.2016) O tema discutido no referido recurso trata-se do conflito acerca da prevalência ou não da paternidade socioafetiva sobre a biológica. Na tese, o ministro Luiz Fux, sustentou que o princípio da paternidade responsável se impõe tanto aos vínculos de filiação decorrentes da 35 afetividade, quanto aqueles originários da ascendência biológica. Assim, não há impedimento do reconhecimento simultâneo de ambas as formas de paternidade. O Tribunal fundou-se também no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à busca da felicidade, pois tais princípios asseguram que os indivíduos sejam senhores do seu próprio destino, conduta e modo de vida. Isso inclui, a decisão e o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos da concepção tradicional. Assim, observa-se a importância de se trabalhar por meio de princípios jurídicos, a fim de dirimir situações concretas. Ademais, outro ponto relevante da decisão é o reconhecimento de que a filiação socioafetiva não se constata apenas pela declaração ao registro público, mas também pela posse do estado de filho, cujos efeitos jurídicos independem do registro público. Desse modo, o fato de o legislador brasileiro não prever expressamente a possibilidade da dupla paternidade não pode servir de escusa para se negar proteção a tais situações, sendo juridicamente possível a cumulação de vínculos de filiação derivados da afetividade e da consanguinidade. 4.2 Reflexos patrimoniais da concomitância entre filiação socioafetiva e biológica A filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, é capaz de gerar efeitos patrimoniais e pessoais, que não podem ser desfeitos pela simples vontade dos envolvidos. Nesse sentido, todos os pais têm o dever de assumir os encargos decorrentes do poder familiar e o filho de desfrutar dos direitos em relação a todos, uma vez que não há hierarquia entre os tipos de parentesco, conforme explicam Ana Carolina Brocado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues: Nosso entendimento é que os efeitos da múltipla vinculação parental operam da mesma forma e extensão como ocorre nas tradicionais famílias biparentais. Por força do princípio da isonomia, não há hierarquia entre os tipos de parentesco. Portanto, com o estabelecimento do múltiplo vínculo parental, serão emanados todos os efeitos de filiação e de parentesco com a família estendida, pois, independente da forma como esse vínculo é estabelecido, sua eficácia é exatamente igual, principalmente porque irradia do princípio da solidariedade, de modo que instrumentaliza a impossibilidade de diferença entre suas consequências. (TEIXEIRA, Ana Carolina Brocado; RODRIGUES, Renata de Lima, 2015, p. 30) Assim, é imperioso estabelecer alguns aspectos acerca dos reflexos patrimoniais advindos da concomitância entre a filiação socioafetiva e biológica, tendo em vista que não há espaço para tratamento diferenciado entre as formas de filiação, a fim de resguardar o princípio da isonomia expresso enfaticamente na CRFB/88. 36 4.2.1 Cumulação da paternidade biológica e socioafetiva no registro de nascimento É imperioso os estudos acerca dos efeitos registrais da multiparentalidade, uma vez que a Lei de Registros Públicos, lei nº 6.015/1973, em seu art. 54,
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