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m (J Cadernos da Diversidade Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças Richard Miskolcí c,a, --,•□------------- -- Capítulo 1 Origens históricas da Teoria Oueer o que hoje chan1amos de queer, em termos tanto políti- cos quanto teóricos, surgiu como um impulso crítico em rela- ção à ordem sexual contemporânea, possivelmente associado à contracultura e às demandas daqueles que, na década de 1960, eran1 chamados de novos movimentos sociais. Os três principais "novos" movimentos sociais foram o movimento pelos direitos civis da população negra no Sul dos Estados Unidos, o movimento feminista da chamada segunda onda e o então chamado movimento homossexual. Eles são chamados de novos movimentos sociais porque teriam surgi- do depois do conhecido movimento operário ou trabalhador, e porque troux:eram ao espaço público demandas que iam além das de redistribuição econômica. Na verdade, essa classifica- ção foi feita a posteriori, tentando superar, com sucesso apenas parcial, uma perspectiva "economicista" que deixou de reco- nhecer a importância do feminismo desde sua primeira onda, na qual se constitui como movimento social muito antes, já em sua luta pelo direito ao voto e à educação para as nutlhe- res ainda no século XlX. A visão de que esses movimentos eram "novos" também trai um olhar "eurocêntrico", pois atri- bui caráter de vanguarda apenas ao movimento operário das sociedades industriais do Ocidente, ignorando o movimento abolicionista que lutou pela libertação dos escravos um século antes, sobretudo em países como o Brasil e os Estados Unidos. O que havia de novo nos movin1entos sociais da década de 1960 era uma maior participação de camadas de classe mé- dia e até populares em lutas já existentes, n1as que passaram a 21 aifolar um 1HW\' 1\'}'frh'lri,, dt· dc'lll<\1\\1,,s t'l\\ um cenário polítl - \·,, c·m \lllc' ns institui(l't'S tra\\id,,1uüs (01no o Estado e os par- tidf,,, rx-\s--'·'"ª"" .-\ wr qut·stionada sua rt'prt'sentatividade e/ou aut\,rid,\\k. l)f f,,nna gernl. esses movimentos afirmavam que \' priY,\d(, a,, polítko e que a desigualdade ia além do econô- miú'- Alguns, nMis l,nsados e de forma vanguardista, também ...-l,mt',-,mun ~, apont,,r que o corpo, o desejo e a sexualidade, tópicos antt·s ignorados, eram alvo e veículo pelo qual se ex- pit'ssavam relações de poder. A luta feminista pela contracep- ,-ão sob o controle das próprias mulheres, dos negros contra º" saberes e práticas racializadores e dos homossexuais contra o aparato médico-legal que os classificava como perigo social e' psiquiátrico tinham em comum demandas que colocavam em xeque padrões morais. Assim, em termos políticos, o queer wmeça a surgir nesse espírito iconoclasta de alguns membros dos movimentos sociais expresso na luta por desvincular a se- xualidade da reprodução, ressaltando a importância do prazer e a ampliação das possibilidades relacionais. Intelectualmente, esse impulso crítico inicial originou obras acadêmicas dispersas em vários países, como o Brasil, a França e os Estados Unidos. Dentre os precursores da Teoria Queer, é importante citar Guy Hocquenghem, pensador francês que, no início dos anos 1970, publicou Le désir homossexuel (O desejo homossexual), um livro sobre o papel do medo da ho- mossexualidade na definição da ordem político-social do pre- sente e alguns artigos da antropóloga feminista Gayle Rubin, em especial seu ensaio Thinking Sex (Pensando sobre Sexo, 1984). 8 Apesar dessa origem dispersa, e ainda pouco explora- da, a política e a Teoria Queer como a conhecemos hoje se cristaliza historicamente na segunda metade da década de 1980 , nos Estados Unidos , quando o surgimento da epide- mia de aids gerou um dos maiores pânicos sexuais de todos • lnfeli7.mente não L , · d d _ . d 1. d Hocquenghern, , · · 114 am a uma tra uçao para o portugucs o 1vro e e o artigo de R b' · 1 h - - . utorizadas u m c1rcu a á ao mrnos duas décadas em traduçoes nao a pela autora, de modo que apena!, a obra de Pcrlongher está disponível na Integra. 22 1,s tt'mpos , assod11do , 110 t.: aso 11orlt> americ,1110, a uma recu - sa l'Statal cm rl'co11ht·ct·r a c111cr~t' 11da dl' saúde púhli ca. Ao contn\rlo do l\rnsil, t·m qul' o t' 11frent..1ml'nto Ja epidemia aproximou ~stado e movime11to -; oc ial cm ntl.'.io ao processo de rcdcmocrntizaçúo vivido depois de 20 anos tk gowrno militar. lá nos Estados Unidos houve um vcrd adt:iro choque entre as demandas sociai s l.'. a recusa do governo conservador de Ronald Rcagan em adotar quai squer medid as. A epidemia é tanto um falo biológico como uma constru - ção social. A aids foi construída culturalmente e houve uma decisão de delimitá-la como DST. Uma epidemi a que surge a partir de um vírus, que poderia ter sido pensada como a hepatite B, ou seja, uma doença virai, acabou sendo compre- endida como uma doença sexualmente transmissível, qua- se como um castigo para aqueles que não seguiam a ordem sexual tradicional.>j Então, a aids foi um choque, e da forma como foi compreendida tornou-se uma resposta conservadora à Revolução Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela então conhecida "geração do desbunde". No mundo todo, essa reação teve consequências políticas jamais superadas e também na forma _como as pessoas aprenderam sobre si próprias, sobre a s~xuahdade, e na maneira como vivenciam seus afetos e suas vidas sexuais até hoje. ~as, nos Estados Unidos, o que se passou? A epidemia de aids mostrou que, na primeira oportunidade, os valores conservadores e os gru • • . . pos soC1a1s interessados em manter as trad1çõ~s se voltaram contra as vanguardas sociais. Daí parte ~~ r:oVImento_ gay e _I~sbico ter se tornado muito mais radical q e o anterior, criticando os próprios fundamentos d luta políti A . d . e sua ca. a1 s, portanto, foi um catalizador biopolítico q_uel_ gerou formas de resistência mais astutas e radicais mate- na izadas no ACT UP 1. - . ' , uma coa izao ltgaJa à questão da aids • Sobre esta questão 1 . . . . v - d d .' , consu t.11 illl'll Ml1~0 <" ln •~•.1111.•ri.i com L.1rissa Pdu· . "A ençao o esv10. 0 :1 · . · • d . CI O, pre-dcntes" . .· < 1spos1t1vo ,\ a1<ls <' ,1 r,T,H,,1,,!(i rn,·.io d.1s sexualidades .· (2009). d1sponl\'d o11/i11, tU\ n:\' ist , , ,. ,.,. 11,· 11,J S 1 1 S . dJs,i . • • • ' ' ' • 11 u, )' • on<'<iad. 23 ,-- 1 ;n .e::t,--.r: '-"' S"-~<'f""- e niv Qu~ i:\'atio~, _de o nde , ·em a pala,.·ra '--..~- J c.r,-ã-. ~ a oa-çao esqui.sita, a nação bicha \ ".i:...- ~y.::r ~e quttr e um ringamento, é um pala\ - • ..1 ..: • _ d Tao e:: ~ 6-. Em ~,o~~s. Ui.! a unpressao e algo int.,; ...... _ ... • ,_ ~-.u cuuen- :.c :c~·~t -.,a , e mrportante compreender que realmente é == f"<L:.I'-~ o.m ~ento, uma injúria.. A ideia por trás do C_i,,.,il:!r .. ~--rw:~ a-a a ck que parte da nação foi rejeitada, foi hu- , ãr- .1,.r . ., 1...u n..--idcr~ W]et.2. motivo de desprezo e nojo, medo & .:orrx-n ma,.7 0 .. E a...~im que surge o queer, como reação e re- :lb-reTicía a um nrn.--o momento biopolitico instaurado pela aids. _..1:~~ atento percebe como a problemática queer não ~ c:LlLilllcnte a da ho mossexualidade, mas a da abjeção. Esse cermo, "'abjeção~ se refere ao espaço a que a coletividade costu- ma relegar aqueles e aquelas que considera uma ameaça ao seu bom funcionamen to, à ordem social e política. Segundo Julia K:risteva, o abjeto não é simplesmente o que ameaça a saúde colctíva ou a vi são de pureza que delineia o social, mas, antes, o que perturba a ídentidade, o sistema, a ordem (I 982, p. 4). A abjeção, em termos sociais, constitui a experiência de ser temido e recusado com repugnância, pois sua própria existên- cia ameaça uma visão homogênea e estável do que é a comu- nidade. O "aidético'~ identidade do doente de aids na década de 1980, encarnava esse fantasma ameaçador contra o qual a coletividade expunha seu código moral. Se o movimento gay e lésbico tradicional tinha como pre· ocupaçãomostrar que homossexuais eram pessoas normais e respeitáveis, o movimento queer vem para dizer: "olha, mesmo os gays e as lésbicas respeitáveis em certos momentos históri· C-05 serão atacados e novamente transformados em abjetos': A maior parte das pessoas, sobretudo as que estavam com 0 HfV, não faziam parte desse grupo pelo qual o movimento homossexual forjado na década de J 960 lutava. Em sua maior ~~ . J ' 0 movimento homossexual emerge marcado por va ores de uma classe 'd· 1 d · - e , -me ia etra a e branca, ávida por ace1taçao ate mesmo inco · • sa rporaçao social. Algo muito diverso se pas 24 movimentos queer, se pautarão men~s pel_a d quanandodas~:g::itaça· o ou incorporação coletiva e focar~o mula1s em 1 · vençoes c · , . as' e·x:t·gências sociais, aos va ores, as con na cnaca . . , r~c; autoritárias e preconce1tuosas. turais como 1orr- E to o movimento homossexual apontava para nquan . . . h mossexuais às demandas sooa1s, para mcorpo-adaptar os O d afi d , 1 ·a1mente os queer preferiram enfrentar o es o e ra .. os soa • . · , J E . d de de forma que ela lhes seJa aceitave . n - mudar a soae a . .d viroento mais antigo defendia a homossexuali a - quanto o mo . . d ·tando os valores hegemônicos, os queer cnttcam esses e ace1 d · - · da valores, mostrando como eles engen ram as expenenc1as abjeção, da vergonha, do estigma. Em resumo, o antigo movimento homossexual denuncia- va a heterossexualidade como sendo compulsória, o que podia ser também compreendido como uma defesa da homossexu- alidade. O novo movimento queer voltava sua crítica à emer- gente heteronormatividade, dentro da qual até gays e lésbicas normalizados são aceitos, enquanto a linha vermelha da re- jeição social é pressionada contra outr@s, aquelas e aqueles considerados anormais ou estranhos por deslocarem o gênero ou não enquadrarem suas vidas amorosas e sexuais no modelo heterorreprodutivo. O queer, portanto, não é uma defesa da homossexualidade, é a recusa dos valores morais violentos que instituem e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira rígida entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à humilhação e ao desprezo coletivo. Em 1993, essa virada queer se torna perceptível, quando a Parada do Orgulho Gay de São Francisco, umas das principais nos Estados Unidos, adota o queer como tema.'º Percebe-se 0 P~tencial desestabilizador do sentido político não só do mo- ;"Jmento L?BT, mas de todos os movimentos sociais constitu- 1dos a partu de identidades quer fossem os LGBT • , negros ou 'º Este fato foi bem analisado pelo soc.lólogo )oshua G . . m t .d . amson em seu artigo ·os . en os I enttti rlos devem Sct' auto d,·strulr? Um estranho dilema". moV1 - 25 feministas . Fica mais visível como o queer vai se contrapor às concepçôes que haviam marcado a ascensão dos novo~ movi- mentos sociais da década de 1960. A começar pelo movimento homossexual e sua bandeira do "orgulho gay': uma palavra de ordem com origem em uma classe média branca letrada que, provavelmente de forma inconsciente, parecia tentar criar uma imagem limpa e aceitável da homossexualidade. 11 O contexto norte-americano, percebe-se, era muito pior do que o nosso, e foi em reação à falta de ação coletiva em meio à crise da aids que emergiu a radicalidade política queer. Assim, vai se constituir cada vez mais ligada às problemá- ticas da vergonha, do estigma e da descriminação, e menos com relação às demandas de assimilação identitária de gays e lésbicas. Muito da atração que o queer tem, inclusive na sociedade brasileira, deriva do fato de que não são apenas homossexuais que se sentem em contradição com as normas, afinal, há muito mais pessoas em desacordo com as conven- ções culturais, com as obrigações que nos são impostas em termos de comportamento. O queer busca tornar visíveis as injustiças e violências implicadas na disseminação e na demanda do cumprimento das normas e das conversões culturais, violências e injustiças envolvidas tanto na criação dos "normais" quanto dos "anor- mais': Quer alguém seja completamente ajustado e reconhe- cido socialmente, quer seja alguém marcado, humilhado, as normas e convenções operaram sobre os dois e ambos são ca- pazes de reconhecê-las. Claro que os humilhados e ofendidos, os rele~ados à vergonha e à abjeção, sofrem mais e são os que denommamos esquisitos, mas não é tão raro, em nossos dias, encontrar pessoas que mesmo dentro dos modelos socialmente , , O slogan gay do "orgulhon mal enc b , . uma gramática m 1 , . 0 re seu par necessano, a vergonha. Trata-se de ora coniormista em qu . • . . . _ são ignoradas mes . e as expenenc1as do estigma e da abJeçao ' mo porque atingem os . b os que não constituem f íJ · . ma.is po res, os que deslocam os gêneros, am 1a. Assim as dem d to de classe alta e branca S b ' an as gays revelam seu enquadrarnen- . o re estes aspectos, consultar Warner (1999) . 26 --- impostos reconheçam seu caráter compulsório, violento e in- justo. De forma muito esquemática, mas, espero, esclarecedo- ra, essa reflexão busca distinguir o espírito político queer da mera luta pró-homossexualidade: r··· --· -· ··- -······-·. i Homossexual .. R~gi~e d; ~;;dade i ... -siná;i~ h~tero-homo ... . .... ... . .. .. .... . . ........ . .... ..... 1... ·-·- ·- · ·····--····· Luta política i l i i Defesa da homossexualidade 1 Queer ·· ··r i Normal-anormal 1 Crítica aos : regimes de normalização Perspectiva , Diversidade I Diferença -~?~~-i~çi? .. di.P?.d~r. !_· __ ·_·-_-R_-e_-p_re_~ __ so_;a_--_· -__ ··· --D-is-ci-pl-in-a-r/c_:o:.__n_tr-ol_e __ ······ ·• ··I···------ Segundo a filósofa norte-americana Judith Butler, o queer é uma nova política de gênero. Alguns tendem a ver essa re- alidade nos movimentos na entrada progressiva de traves- tis, transexuais, não brancos, todos os outros que antes não eram vistos como suficientemente dignos de participar da luta. No entanto, um olhar mais atento reconhecerá que a lógica identitária anterior é a que rege essa entrada e plu- ralização dos sujeitos dos movimentos sociais, e não uma revisão de sua forma de atuação. A nova política de gênero - que também pode ser chamada de queer - se materializa no questionamento das demandas feitas a partir dos sujeitos; em outras palavras, chama a atenção para as normas que os criam. Essa mudança de eixo na luta política se fundamenta em duas concepções distintas com relação à dinâmica das relações de poder: uma que as compreende a partir da visão do poder como algo que opera pela repressão, e outra que o concebe como mecanismos sociais disciplinadores. Na pers- pectiva do poder opressor, os sujeitos lutam contra o poder por liberdade, enquanto na do poder disciplinar, a luta é por desconstruir as normas e as convenções culturais que nos constituem como sujeitos. Michel Foucault é o responsável por essa mudança de eixo nas reflexões sobre o poder. Em Vigiar e punir, o filósofo explica 27 d1id.1d,,s,1nwnk '-·,,mo ., cntKt·pç,\o do podt·r como localizável t' rt·prt·ssor n.,,, dà 1..·onta da rcalidadt· histórica contcmporâ - 1\t',\. n.1 qual o poda l'sta t'lll toda parte e opera também por mt·i,, da indt .. 11;.io dos sujt·itos a agirt'lll de acordo com os in - lc'ft'sscs hcgcmô nkos. Nessa paspectiva, o poder deixa de ser al~o fadlmenk' associado a alguém ou a uma instituição, o rei ou a prt·sidênda. por exe mplo, e passa a ser visto como uma sit11,h.;ào estratégica em urna dada sociedade em certa época. Passamos. portanto. de uma teoria do poder para o desafio de lidar com ek como relacional, histórico e culturalmente vari - ;ivd. ou st·ja . por meio de uma ana..lítica.12 A maio r pa rte do movimento feminista e do movimento homossexual das décadas de 1960 e 1970 era liberacionista. ou seja, via mulheres e homossexuais como sujeitos oprimi - dos qut' dt'vcriam lutar pela liberdade. Eram movimentos que concebiam o poder como repressivoe operando de cima para baixo. por exemplo. pelas elites dominantes contra o povo. A despeito das demandas inovadoras de reconhecimento das difaenças. opt·ravam com a inspiraç,io teórica marxista que marcara o antigo movimento operúrio. De forma muito sim - plifi"·ada . cm como St' a luta de trabalhadores contra o capital es tivt'sse sn1do apt·nas adaptada a u.m contexto em que novos sujt'itus lutavam contra outras formas de opressão. A partir do final da década de 1980. com a disseminação do conceito de grm-ro t' a i1Korpora1.;ão das idc•ias de Foucault sobre uma .inalítica J o poda . a nova política dt' gtnero começa a modifi - car t's.sa forma dt· concc•ba a luta política e a apontar como é a n iltura t' suas normas qut' nos criam como sujeitos. A mudanç,1 de: frKo d,>s :-ujt'itos para a cultura gerou rea - ç<ks. ,\luitl)S diziam 4ut· o conct'ito dt' gh1c·ro despolitizaria os -\ -.leu de UHld <1.nJ.u l 1, .1 J,, p,•,kr da i,-:i d.- ,u ., ú \lnp~n;.iu ,·,Hu,) 1111u ,itu,1,·.iu • •'t.<!c~•,.1 , ·11 1 um.1 ,.-rt .J qx,..-.J .- ,,,_ ,nl.id.- :\ ssim. ,, po<l,· r n.io;: 101.-a.li zdvd .-m • 1 m-.111 u,, .1,, ,,u I" ''-'<' d.,. .1 ~ u,·1 11 . ,n1d,, .111k·~ r..,_·,)nh.-,.· ,vd nn ,u.J dinlmi,·., ICl:Ci'f .. , .. ,u,d c111 tn ni,,_., h 1-, 1<•rt""' ,·, uJtur.1J.s. :--,t,"' = tc-.i.n....Jon11.1,·1,, 11.1 f,,n1 1.1 ~ •ut ,"-. .l.·1 .o., 1, L,, 0..-,. ,.k l""!.-1 ,,,~ult.- tdl11t>cnt .:1 <'Xú•l.-11 tt' ,nrnxlu,·,h,, d ,- itubn · '-I . tvJ , • · . 11J,, 11 , '" ,k F,,u,.1ul1 113 movimentos e que não ~c ri a pos~ lvel fazer po lítica sem partir dos sujeitos concrt:tos, no caso do movimento feminista , as mulheres. A história provo u o contrário . Na nova política de gênero, seja lá nos Estados Unidos, que r seja aqui no Brasil , ganharam espaço problemáticas trazidas po r trabalhadores do sexo, transexuais. travestis e mesmo por pessoas que às vezes estão dentro de relações com pessoas do sexo oposto, que po - deriam ser vistas como pessoas modelares socialmente , mas que não acreditam nessas normas e acham que é uma violên - cia que elas . as normas, sejam impostas . O s hetero-queer são muito numerosos, politicamente engajados com as pessoas que sofrem estigma e são relegadas à abjeç.ão. Em comum, essa nova onda dos movimentos sociais problematiza a cultura e a imposição social de normas e convenções culturais que. de forma astuciosa e frequentemente invisível, nos formam como sujeitos, ou melhor, nos assujeitam. Mas. afinal, o que aconteceu para que a n o,·a política de gênero originasse uma corrente teórica? Para compreender isso, é necessário recapitular a forma como as transformações políticas e culturais da d écada de 1960 repercutiram na pro- dução do conhecimento. Esse cenário foi fundamental no qut' toca às reflexões sobre a sexualidade' como algo que e construi - do socialme nte. e não algo meramente bio lógico . .\te por , ·0ltJ da década de 1960, tomava-se a sc>xualiJaJc> ü'mo um.t án't1 d.1 vida humana que era explicada pda Biologia. P<'hi ~lt'Jil.'i na . na melhor d as hipó tesc·s pda Pskanili~c' . até qu<. t"m 1 'IM. h.i a publicação. na lnglatt'rra . do artigl) "Thc' Hvml°\.--sc.:rn.u Rl)k v (O papd ho mossexual) . c·scrih> pd.1 Slh:i1.,ll)~J. \ t.1.0· ~klrHü,,h. Ess t' é l> primeiro tc·x to qut· ,~.ii dizc-·r "-l,ir.unc>ntc' ~uc· .1 twmo-:-- sexualidadc· é algo socüu1nc·ntc· ti., rj,u.fo, Não por acaso. l' arti~w dt' \kl nt(l-.,h foi pu~h\.'1.hfo nü p..l · radigmút ko a 1w cbs transfr1rtn.\\'Út'S t'stuJ ... mtis 11d fnin,-.1. 1w Brnsil, 1w ~k.xirn. 1w ,, Fst,h.ll'-' l 'nidl'-'- J.1 n.11.k"--.iJ.1 de- l 1ru, h;, um fü,r1:.·sl."imc·ntl1 Jo., t'Studl)S ~..t~~ t' k:-hi""'' úHH \~ra~ Jc- pt'squisnd,,n:·s 1.1s '--l' IHl' ,, ~' '"-i,,k,~\, ~. iütU'-"-' ktfn.· ,· \\·c>~--ks. 29 No Brasil, o primeiro estudo sociológico sobre homossexua- lidade, orientado por Florestan Fernandes, surgiu no final da década de 1950 e foi publicado por José Fábio Barbosa da Silva como "Aspectos sociológicos no homossexualismo em São Pau - lo" ( 1959), em uma revista da Escola de Sociologia e Política. In - felizmente, a pesquisa não teve repercussão, e o autor se mudou para os Estados Unidos. Apenas na década de 1970, o tema re- emerge em outra chave, em O estigma do passivo sexual ( 1979), de Michel Misse. A partir do início da década de 1980, surge uma nova onda de pesquisas, como as de Peter Fry, Edward MacRae, Luiz Mott, Carmen Dora Guimarães, entre outros. Se- gundo Maria Filomena Gregori (2010, p. 22-23), o que passou a caracterizar a área de estudos de sexualidade em nosso país foi a documentação e a análise de um repertório de práticas socio- culturais que contestam categorias como essência ou natureza humana, particuJarmente por meio da inserção da sexualidade e do desejo na esfera do cuJtural e do histórico. Nas décadas de 1970 e 1980, no Brasil e no exterior, a maioria dos estudos focaram em gays e lésbicas e tenderam, mesmo sem essa intenção, a corroborar a impressão de que a maioria das pessoas eram heterossexuais e que a homosse- xualidade era algo restrito a uma minoria diferente que a so- ciedade precisava aprender a conhecer e respeitar. Em outras palavras, os estudos sobre homossexualidade eram pesquisas sobre minorias sexuais, algo extremamente importante em uma época que ignorava ou desqualificava formas de vivência sexual não hegemônicas, mas que ainda questionavam apenas de forma parcial a hegemonia hétero como cultural e política. Os estudos queer vêm modificar isso. Já em meados da dé- cada de 1980, nos Estados Unidos, Eve Kosofsky Sedgwick de- senvolveu uma análise das interdependências entre a hetero e a homossexualidade em Between Men ( 1985), um livro que analisa os triângulos amorosos em romances do século XIX de forma a compreender como se criou historicamente tanto o que, décadas mais tarde, passaria a ser chamado de homossexualidade quanto 30 - a própria hetcrosc;exualidadc. No lfrMíl, N~tor Pcdmv~cr Íiét algo similar em O negócío do míchi: a proJtituiçlw víríl em .~ Paulo ( J 986; 2008), obra em que a míchetagem lo,(."Tvc wrrnJ pon- to de observação privilegiado para rc..-p<.-mar a ~ fera do dL~o t da sexualidade como um todo. Em O que é aíd.s ( 1987), o p~uí- sador argentino-brasiJeiro foi ainda mai!, longe n<J diagnc,~ie<) de que a homossexualidade era um fan tasma a partir do qual a heterossexualidade havia sido naturalizada e imt ituída cultural- mente, o que a epidemia de aids vinha reforçar. Apesar de lidarem com objetos muito distintos histórica e socialmente, os livros citados marcaram uma inflexão nos estu - dos sobre sexualidade. No entanto, devido a especificidades his- tóricas e de dinâmicas acadêmicas diferentes, a obra de Sedgwick teve mais impacto nos Estados Unidos do que a de Perlongher no Brasil. Além disso, a centralidade da produção académica americana, ou seja, seu poder de influência mundial gerou a ver- são ainda corrente - mas altamente contestável - de que a Teoria Queer surgiu apenas lá e teve como data de nascimento 1990, ano em que foram lançados três de seus livros mais influentes: Problemas de gênero, de Judith Butler, One Hundred Years of Homosexuality (Cem anos de homossexualidade), de David M. Halperin, e, sobretudo, o grande livro fundador da Teoria Queer, A epistemologia do armário, de Eve Kosofsky Sedgwick. O que esses primeiros estudos queer já vão modificar? Pri - meiro, o pressuposto de que a maioria é heterossexual é alta- mente questionável porque se a homossexualidade é uma_c~n~- trução social, a heterossexualidade também é. Então, o binano hetero-homo é uma construção histórica que a gente tem que repensar. Até mesmo dados empíricos, como os que surgiram ª partir de pesquisas sócio-antropológicas durante a epide~ia de · ntre d1feren-HIV /aids, mostravam que as pessoas transitavam e tes formas de amar. As pessoas nunca couberam apenas em um número limitado de orientações do desejo. , e e · ·stas que criaramO segundo aspecto e que 1oram 1emm1 . . . Ih h ens Enquanto a a Teoria Queer, feministas mu eres e om · 31 wwwa :. rn.uoc parte dos c-<,tudos gays eram feitos por homens que não lwn ~ feminista~ a Teoria Queer é uma vertente do femini smo. \ ·<."rd.adc c,eja djta, é uma verte-nte que vem questionar se o su- 1e-1 to do fcmini':>mo é a mulher. Até hoje boa parte da produção femi nista é feita com o pressuposto de que género é mulher. A Teoria Queer lida com o género como algo cultural , as~im, o ma.!>culino e o feminino estão em homens e mulheres, nos dois. Cada um de nós - homem ou mulher - tem gestuai s, formas de fa2..er e pensar que a sociedade pode qualificar como masculinos ou femininos independentemente do nosso sexo biológko. No fu ndo, o género é relacionado a normas e convenções culturais que variam no tempo e de sociedade para sociedade. Em outras palavras, a Teoria Queer tem um duplo efei - to: da vem enriquecer os estudos gays e lésbicos com sua perspectiva femini sta que lida com o conceito de género, e também sofistica o feminismo, ampliando seu alcance para além das rn ulhncs. Mas, como toda vertente teórica, ela reúne diferentes aurores/as e perspectivas sob um mesmo rótulo cria - do a posteriori. Historicamente, o termo "Teoria Queer" foi cunhado por Teresa de Lauretis , em 1991, como um rótulo que bu scava encontrar o que há em comum em um conjunto muitas vezes disperso e relativamente diverso de pesquisas. Uma vez, em Ann Arbor, quando fazia pós-doutorado na Universidade de Michigan , vi um livro em uma loja cujo título jocoso ajuda a entender a di stinção entre os estudos gays e a Teoria Queer. Não se trata de um livr~ importante, é apenas de divulgação, mas seu título é ótimo, algo parecido com "Como º" estudos gays traíram o mariquinha' '. Os estudos gays, em ~ua maior parte, eram estudos sobre homens que adotavam u_ma postura masculina , uma imagem de respeitabilidade so- cial, a qual hoje em dia encontramos na mídia, especialmente na voltada para este pu· bl · h , . 1co, como um ornem de classe mc- d 1a ,,u alta branco ' - 1 . · , masLU o e que, quando musculoso, termi - na por '>l'r" <•ut em . b' t 1 · . . 1 , am 1en es rnetropo 1tanos como o paulis- tano e n canoca cham 1 "b b' " ~ . , amos te ar 1c . Focando nesse perfil 32 de homo<,<,ex ualidade <JU criando t 11 tud,.>s '!,,(>b '> Ua per<,pectiva., os estudos gays deixaram de lado aquele<, que eram xingados e maltratados por romperem n<JTma<, de género. Como profissionais da educação UJ'>tumam tc'>temunhar, são meninos femininos e menina'> ma~ulí na<,, pew:,a<, andrógj - nas ou que adotam um género di ':>tí nto do e'>perado socialmen- te, que costumam sofrer injúrias e outra'> form~ de violéncí.a no ambiente escolar. Será mero acaso que homem e mulheres que constroem um perfil de género esperado e escondem c;eu de..ejo por pessoas do mesmo sexo sofram menos perseguição~ A <,,0- ciedade incentiva essa forma "comportada", no fundo, reprimida e conformista, de lidar com o desejo, inclusive por meio da for- ma como persegue e maltrata aqueles que são cotidianamente humilhados sendo xingados de afeminados, bichas, viados, ter- mos que lembram o sentido original de qucer na língua inglesa. Um olhar queer sobre a cultura convida a uma perspec - tiva crítica em relação às normas e convenções de gênero e sexualid ade que permitem - e até mesmo exigem - que mui - tas pessoas sejam in sultadas cotidianamente como esquisitas, estranhas, anormais, bichas, sapatões, afeminados, travestis, boiolas, baitolas, e por aí vai. Pensem sobre essas pessoas e ficará um pouco mais claro, espero, por que queer não é ape- nas sinônimo de gay ou de homossexual. Também espero que percebam que nada, ou muito pouco, adianta buscar passar da injúria para urna tabela de identidades, de forma que fosse possível dizer assim : "eu vou respeitar fulano, porque fulano é tal coisa". A ideia não é apenas descobrir a forma correta de chamar alguém, mas, antes questionar esse.' processo de clas - si ficação que gera o xingamento: a primt.·ira t'xperiência com relação à sexualidadt' de todo mundo, seja daquele que foi rejeitado e aprendeu que n;io er,1 norm,11, seja de qut'm adotou as normas e se inseriu soc ialmente de uma forma mais fácil, digamos assim , é a cxperiénçi,1 da injúria. As pessoas aprt·ndcrn sobre st·xualidade ouvindo injúrias Cü fll rcLiçào ;1 si prúpri:1s nu com rd:i\·;io aos outros. Na escola, 33 ~ "'~ ~~ ~ ri(··~,"-• qu-< ~'-ln'_. ,nju r i,l. e xi1~1.\dtl. ~ humi- 1~¼. ~u« ~ 'to:\~ 'l'n" ,'\\tW \.'ll , ~ ~ ucm sc.-r ,n.,hmh\d\, dc.·s..~1 kVll\-â- <: tlô.""-,\ ~tu~-h, '-b \ '('~"'-mh x\ "l.U<-' 1.\c.•~~"\'-hn' \l qu<.' t a Sc.'- )...\.~lM~hle- f: '---km, "lU<.', Jc.~-....1 fonn,t, i$.."' ~'<-' ln.ms.fi .. um,1 t.'m um tr~um~ .. t' tuJ,, ~ J'\t\.'\f pr.:1 'llk..'tn ~ hum i\h~\J(, <.' mttllmtih.l1.\. l\\ãs tam~n tl-àú -t tl..R1.l ~\gr-.\J,wd ,\lsulm que.· - tnc.'$t\\ü n:i'-' sendo , . .-,q~~J-0 _ ~"\'{\r(' -l_lk.' ~'l\ ...--x'\\t..~ ll c.-:-t;.\. scnJú humilh.1d(\ e.' m,tl - t.T.a~ 1-xv .:.m$.;\ '-h~--'- t. ;t:--.,im 'lU<-' ;\S n,wm.1s se.• fazem v·ãkr. l)a.i ~r $.tOl.t-"h-st., n-:sumir c..-:-...,1s ,iolénô.ts 1'\) termo "ho- n'h.,fr.-.hla •. à ,i ú~n.:ia Jiri.gi<l,1 ,\ h '-,m<.\ .. ~~müs,. pú is <.'S$.lS vio- lêfu..-u:; se düi~l a tod\.'S t' h.xfas,. .1.pc·.'n ,1s em gr.ms dit~rentes... Essas violências são e.."q'res..~ o do hett'ro&.-e..xismo, da forma .:ü ffh.) S(.'n\OS S<x..i.ali!l.ados dentro de um regime de tarorismo cultural. US-O e$Sc tennú forte. "ta-rorismo (:ultur..1.1'' , p;i.rn res- saltar que se trata de algo coletiv,unente imposto e e..,1)erien - ciado; sobretudo, algo que Y1i além de atos isolados de violên- cia.. Em W11a perspectiva sociológica, há uma lógica de impo- sição de nonnas por trás de W11a fo rma de violência sempre à espreita, pois quando sabemos que ela pode acontecer, mas não quando nem de onde ela virá, aprendemos a nos compor- tar de fonna "segura", ou seja, de uma fom1a que nos coloque ao abrigo de suas manifestações. O terrorismo cultural é um nome que busca ressaltar a maneira como opera socialmente o heterossex:ismo, faundo do medo da violência a forma mais eficiente de imposição da heterossexualidade compulsória. Na vida social, mas sobretudo na escola, aprendemos as formas coletivamente esperadas de ser por meio da persegui- ção às maneiras de agir e ser rejeitadas socialmente. Na esfera do desejo e da sexualidade, a ameaça constante de retaliações e violências nos induz a adotar comportamentos heterossexuais. Por isso, o que a m ídia chama de homofobia atinge mais visi - velmente quem é xingado, humilhado ou sofre violência física, mas também constitui um fenômeno que envolve a todos: a vítima, o algoz e as testemunhas. Em um episódio de violên- cia há aquele que é atacado injustamente, 0 que ataca fazendo 34 - n tk.r unrn nornrn social t' quem testemunha a cena. Frequente- mente'. quem assiste mio consegue agi.retende a ver na v;olên - d ,l Ulll ,tlert.t p,tm .h:eitar a norma. caso não queira se tornar ,1 próxim.1 vítima . Atos isobdos de violêm::ia emergem quando formas an - tt'ri<lrt.--S, invisíveis de violênda. se revelaram ineficientes na imp0,.,;i\-ão de norm,1s ou convenções culturais. Estes atos cha- mam nHtis nossa aten ção. nrns nào podem nos iludir como sendo as únicas formas de violência que se passam no con- vívio social. Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças LOstumam preceder tapas, socos ou surras. A recusa violenta de formas de ex pressão de gênero ou sexualidade em desacor- do wm o padrão é antecedida e até apoiada por um proces- so educativo heterosse..~sta, ou seja, por um currículo oculto comprometido com a imposição da heterossexualidade com- pulsória.. Um comprometimento em construir uma experiên- cia educacional que tenha uma perspectiva queer exige lidar com a experiência da abjeção como algo concernente a todos e que não deveria serparte da experiência educacional. 35
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