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Psicanálise e ato criativo

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Prévia do material em texto

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
EDITORIAL
 “O barroco é a regulação da alma pelo
 escopo corporal” (Jacques Lacan)1
As relações da psicanálise com a estética manifestaram-se, desde osprimórdios daquela, num entrelaçamento íntimo e frutífero. As interpretações que desvendaram o inconsciente, longe de confirmar os
temores de acabar com o encanto dos enigmas apresentados pelas artes,
abriram novos caminhos para estas.
Os signos utilizados pelas artes, para condensar ou reduzir à expres-
são sutil os traços escondidos da comédia humana, encontraram na psica-
nálise uma aliada para quebrar seu atrelo à clássica função imitativa da Na-
tureza. Tal era, também, a preocupação de Hegel: “... esta sensibilização a
obtém a arte, não com a ajuda de experiências reais, mas unicamente pela
sua experiência, substituindo graças a uma ilusão a realidade [o real – diría-
mos nós] pelas suas produções . A possibilidade de criar essa ilusão pela
aparência descansa no fato de que, no ser humano, qualquer realidade, an-
tes de chegar a afetar a alma e a vontade, deve atravessar o conteúdo inter-
mediário formado pela intuição e a representação”2
Sem conceder à Hegel a legitimidade de seu apelo ao aleph da fenome-
nologia: a intuição (forma um tanto quanto descarada de negação da sua
paixão de ignorância); encontramos nele a antecipação – pela via da repre-
sentação – daquilo que a filosofia heideggeriana revela fundamental ao ser e
que a psicanálise constitui numa praxis: a linguagem.
Neste ponto situa-se uma interrogação que a psicanálise tem lançado
inúmeras vezes, embora nunca respondido – parece-nos – de um modo su-
ficientemente esclarecedor. No que vai da Beleza à Feiura, no que vai do
Encanto ao Horror, no que vai do Enigma à Sabedoria, qual a posição, qual a
operação que outorga ao traço sua condição de valor estético?
1 LACAN, Jacques. Seminario 20, “Aún” (1972-73). Buenos Aires: Paidós, 1981, p. 140.
2 G.W.F. HEGEL, G. W. F. Introducción a la Estética. Barcelona: Nexos, 1985, p.49.
2 3C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
EDITORIAL EDITORIAL
Onde e quando o signo se oferece ao escopo do sujeito, por um hiato
que se abre no muro da linguagem, ele não perde a oportunidade da espreita.
Aí estão os museus, as vernisages e, até mesmo, as igrejas para testemu-
nhar. Em uma particular posição do traço em questão, que suspende desde
a luxúria ao asco, arrancando o signo de seu arrebite ao real, é que encontra-
mos algo disso que chamamos de Estética.
A repetição o constata: trata-se sempre de uma inflexão do discurso
que produz um objeto. Nessa torção, Hegel aponta como, nas artes, esse
objeto se situa numa singular articulação entre o abstrato do espírito e o
concreto do natural. Um concreto onde as coisas entram no labirinto das
representações ou, seu inverso, no qual se opera a invenção de um mundo
fantasmático: “O homem é capaz de representar para si objetos que não são
reais, como se efetivamente o fossem”3
Como se percebe, no que acabamos de pontuar, o objeto ali sofre
uma torção particular. Seja no scopus, seja no invocante, o seio feminino –
por exemplo – perde tanto sua esfericidade quanto seu erotismo, sendo a
pulsão conduzida por um circuito fora do habitual: nem conhecimento nem
sexualidade. O signo suportado pelo objeto estético entra numa série, cuja
alteridade não se confronta com o imperativo de gozar do Outro nem com o
superego (cuja consciência moral só poderia fazer obstáculo à operação
estética – como já o demonstraram os obscuros tempos da Inquisição). As
coisas ali se inclinam na direção de “gozar de um saber”, um gozo cuja
realização fica em suspenso, e um saber que vive mais da vacilação do que
da certeza.
À medida que esse signo é um objeto produzido para se dar a ver (ou
a escutar) cabe perguntar como se especifica essa outredade, na qual se
realiza o efeito de esteticidade, que a particular torção desse objeto colocou
na mira. A esse respeito podemos apontar ao menos duas características
que lhe são absolutamente próprias: a primeira é que o artista pode esque-
cer por completo – sem que isso constitua uma denegação – se aquele para
quem ele produz sua obra é homem ou mulher; a segunda – derivada da
primeira – consiste em que aquele que contempla ou escuta vê-se olhado ou
situado numa polifonia, na qual o Outro não aparece senão pela sua falha.
Dito de outro modo: é pelas rachaduras no muro da linguagem que vaza a
estética dos objetos. A curvatura que passa do belo para a feiúra, a série das
coisas que se instalam no ajuste certo para dizer o que, até então, era
silêncio.
Por isso, o espectador nunca tem a tranqüilidade de estar fazendo a
apreciação certa. Nunca sabe, nesse viés do discurso, em que posição se
encontra o Grande Outro. Cada vez que tenta abrir a sua boca para enunciar
o efeito de sua contemplação, é invadido pela vacilação: será que o autor
concordaria comigo? Ou na polissemia da paisagem: será que os olhos do
Outro vêem o que eu vejo? O grande Outro o mira por um caleidoscópio e lhe
fala através de uma diversidade polifônica, que impede o sujeito de se aco-
lher a um ponto estável (e estático) de contemplação. Essa é a razão dele
poder revisitar sem fim a mesma obra de arte, assim como escutar, infinitas
vezes, a partitura de sua escolha.
Só cabe ao sujeito, então, resignar-se a transitar por aqueles territóri-
os que Fernando Pessoa localizou tão bem no labirinto das identificações: ir
do eu para os outros eu – que, para seu maior desassossego, não são da
ordem do semelhante; mas, precisamente, de seu estranhamento. É por
essa via que os vampiros saltam das páginas do livro para nossos sonhos,
que as litanias poéticas arrancam lágrimas de nossos olhos, ou o sorriso da
Monalisa nos embaraça no naufrágio de um enigma. Tanto quanto, certa-
mente, o mictório de Duchamp nos assalta a cada instante no nosso próprio
banheiro.
Essa condição de objeto, que escapa à diferença sexual no eu que o
contempla, ou seja que escapa à castração, tratar-se-ia de uma exceção à
estrutura edípica? Seria por isso que tanto esquizofrênicos quanto autistas
pintam ou compõem ou se deleitam com a música, apesar de morarem num
mundo tão distante do Outro do Discurso Social ou ainda do pequeno outro
de seus semelhantes? Precisamente porque, lançados aos percursos da
estética moderna, finda a Renascença – que remontou um ideal clássico de
3 Idem, ibidem, p. 49.
4 5C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
EDITORIAL EDITORIAL
formas supostamente universais – podem encontrar legitimado, em cada
signo, a vigência de um eu tão variável quanto a contingência de uma man-
cha de ferrugem numa toalha de mesa. Dito de outro modo, no extremo do
individualismo, estamos dispostos – na modernidade – a encontrar sentido
para cada signo, o que equivale a conceder a cada objeto sua posição esté-
tica muito além de sua forma.
Uma maneira radical de escancarar a claudicação da linguagem em
favor da imagem: dizer sim a tudo. Uma nova forma de religião? Uma nova
forma de acepção do “amém” – assim seja? Um novo barroco pela via do
ready made? Ou se trataria de um novo estilo de bacanal “proudhoniano”?
Nada nos autoriza a concluir. Esse estranhamento, a circulação pelos
outros eus, parece ser uma característica essencial de qualquer ordem em
que se perfile um valor estético. Para certificarmo-nos, temos Lacan, falando
do sobre o barroco: “ ...quanto se vê em todas as igrejas de Europa, quanto
se pendura nas paredes, despenca em avalanche, delicia, delira. O que faz
alguns momentos chamei de obscenidade, mas exaltada. Me pergunto que
efeito pode ter, em alguém que venha do mais distante da China, esse rio de
representações de mártires.” 4
 Denovo temos esse efeito de estranhamento. Essa posição, singular
a todo o objeto de reputação estética, coloca-o como espelho de tal forma
emoldurado (pela série significante que o separa do real) que a entrada na
sua ficção implica em suspendermosa nossa.
Se, para Hegel, não passou desadvertido esse marco de transforma-
ção do sentido; certamente, para Bertold Brecht, a dilatação grotesca do
gesto teatral denotou o hegeliano de sua moldura; assim como o foi o fantás-
tico para Ionesco, ou a nova identificação para Walter Benjamin.
Ainda nos resta, e isso é tão extenso que aqui só podemos dar uma
ponta, ocuparmo-nos das relações da estética com a verdade. Como este é
um Editorial não podemos pretender, nele, esgotar o tema; mas, simples-
mente, abrir o panorama. Porém, evidentemente, a complexidade do assun-
to em questão neste número do Correio, e a dispersão e tangencialidade
com que se tem abordado este tópico, no decorrer da psicanálise, arrastou-
nos para um desdobramento que, embora mínimo, apresenta-se bem mais
extenso do que o habitual para esta porção de nossos textos. Em todo caso,
tratando-se de uma porção bem mais generosa, esperamos que, também,
fique saborosa.
O gosto, por sinal, primo predileto da estética, cava seu lugar no as-
sunto pela via do gozo. Devemos tomar ao pé da letra o vulgar apodigma:
“sobre gostos não há nada escrito”, porque não há mesmo como escrever o
gozo. Território, então, onde a verdade, como demanda, parece ser estran-
geira. Porém, convém escutar este pequeno fragmento de Sigmund Freud
nos mantermos alertas sobre de que forma o que se instala como sintoma
na divisão do sujeito pode acorrentar o gosto ao verdadeiro, precisamente à
medida que o eu que trabalha se distancia desse eu que aprecia a beleza ou
harmonia de seu efeito: “Existe escondido em alguma parte de mim um certo
sentimento da forma, uma apreciação da beleza, ou seja, de uma espécie de
perfeição, e as frases rebuscadas que, em meu livro sobre os sonhos, se
exibem com suas circunvoluções mal-ajustadas ao pensamento feriram gra-
vemente um de meus ideais”5
Esse ‘mal-ajuste’ do texto ao pensamento, causa do mal-estar de
Freud, denota claramente sua preferência pelos clássicos: para gregos e
romanos as formas reputadas perfeitas e universais, por serem mais próxi-
mas dos deuses, eram as únicas capazes de revelar as verdades. Nelas
encontravam-se as proporções que denotariam as cifras das idéias puras e,
portanto, verdadeiras é claro, aquelas desembaraçadas de todo e qualquer
acidente da percepção. Se a psicanálise partilha, de certo modo, desse
classicismo, no que diz respeito a subordinar a contingência da percepção à
ordem das idéias, certamente não situa estas na comarca dos deuses, mas
no território da linguagem. A percepção se organiza e diferencia, então, pe-
los marcos de arrebite que o significante assinala na ordem do fantasma. É
nessa trilha que, seguramente, poderemos achar novas pistas para uma
maior indagação sobre a estética.
4 LACAN, op. cit., p. 49.
5 Sigmund Freud em carta a Fliess, apud LACOSTE, Patrick. Psicanálise na tela. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1992, p. 103.
6 7C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
NOTÍCIAS NOTÍCIAS
JORNADA DE ABERTURA
 A CLÍNICA PSICANALÍTICA
Nossa Jornada de Abertura dos trabalhos deste ano acontecerá no
dia 08 de abril e terá como tema: a clínica psicanalítica.
Queremos lembrar que, para maior conforto daqueles que participam
de nossos eventos, estamos disponibilizando a inscrição antecipada, que
poderá ser feita por fax, através de depósito bancário e envio do comprovante
de pagamento com a ficha de inscrição, ou na sede da Associação, até um
dia antes do evento.
Acreditamos que esta medida facilitará a realização da inscrição para
um maior número de pessoas, evitando, assim, eventuais transtornos no dia
da Jornada.
PROGRAMA (Sábado – 08/04/2000 )
Manhã
O que é o “caso clínico”? – Edson Luiz André de Sousa
A clínica psicanalítica como espaço de criação – Simone Moschen Rickes
Tarde
Psicanálise nas instituições: ruídos na transmissão – Liz Nunes Ramos
O que será mesmo falar de clínica? – Ama Maria Medeiros da Costa
Encerramento: Alfredo Néstor Jerusalinsky
INSCRIÇÕES
 Antecipada No local
Associado R$ 20,00 R$ 30,00
Profissionais R$ 35,00 R$ 50,00
Estudantes* R$ 25,00 R$ 35,00
*estudantes de graduação deverão apresentar documento
CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE
DESCOBERTA <> INVENÇÃO 500 ANOS
Nos próximos dias 12 e 26 de abril, o Cartel Preparatório do Congres-
so da APPOA (que acontecerá de 26 a 29 e outubro) dará continuidade ao
seu trabalho.
Nestas datas estará sendo discutido mais um dos livros que inventa-
ram o Brasil. Desta vez “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda,
será objeto dos debates a respeito da nossa cultura.
SEMINÁRIO COM RODOLPHO RUFFINO
TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA DA ADOLESCÊNCIA
Que lugar pode ser atribuído ao apelo, implícito entre as exigências da
sintonia, aos Nomes-do-Pai numa clínica do real?
As tentativas de se responder a essa questão, entre os nossos con-
temporâneos que se referenciam a partir de Lacan, estão longe de aponta-
rem para alguma unanimidade. A este propósito, mesmo a leitura do que nos
documenta o ensino dos últimos anos de Lacan, quando efetivada sem pre-
conceitos, revela-nos hesitações.
A remissão ao fundador do empreendimento, tampouco ela, pode es-
clarecer tudo sobre este tema, pois quanto a esta particular questão em
Freud, a obturação, por Totem e Tabu, da questão mantida sem resposta –
O que é um pai? – teria sido, segundo Lacan, um sucedâneo do mesmo
ponto cego que nos põe “(...) na pista de um certo pecado original da análise
(...) [algo relacionado ao] desejo do próprio Freud, [ao] fato de que algo, em
Freud, não foi jamais analisado.” (LACAN, J. Seminário 11, p. 19). “Pai, não
vês que estou queimando?”, frase que sonha/desperta o pai enlutado, ou
“Pai, não vês que posso perder-te “, como parafraseia T. Bruzzi, são formula-
ções do apelo que, se não é exclusivo da adolescência, nela é que ele se faz
mais audível. O que pode, entretanto, o aguardo de um significante fazer
8 9C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
NOTÍCIAS NOTÍCIAS
GRUPO DE ESTUDOS PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO
A questão da transmissão na educação refere-se não somente à vida
escolar, mas ao mistério que nos leva a aprender, a construir um saber-fazer
e aos impasses que aí se re-velam.
O que faz com que um sujeito possa apropriar-se da palavra, da escri-
ta, do conhecimento, das leis morais de sua cultura, configurando um estilo
quanto a essa outra urgência, que não se manifesta exatamente pelo pedido
de ser visto; mas, antes, se expõe pela permanência do que ali, nele, quei-
ma e, queimando, faz perder?
Para abordar a questão, a clínica com adolescentes oferece uma opor-
tunidade privilegiada. Daí a proposição deste seminário. Lá onde uma res-
posta falta, nossa inventividade é convocada. Mas, onde é a nossa inventi-
vidade quem oferece o percurso, há de nos ser exigido provas. Então, prepa-
rando-nos para elas, nosso percurso irá da clínica ao diálogo com os textos
fundadores (Freud e Lacan) e destes à interlocução com a diversidade com
que nos presenteiam nossos colegas contemporâneos para, em seguida,
reinterrogar o aí colhido à luz da clínica.
Nossa pesquisa em andamento permite que, abaixo, arrolemos as
datas de nossos encontros para este primeiro semestre, ao lado da temática
que nos propomos a trabalhar em cada um desses encontros.
Rodolpho Ruffino
PROGRAMAÇÃO:
15/04 – O que queima desde a puberdade.
13/05 – A invocação ao pai na adolescência.
24/06 – Do suposto limite do tratar do real pelo simbólico, uma interrogação.
Responsável: Rodolpho Ruffino
Horários: manhã e tarde, mensal, aos sábados
Local: sede da APPOA
Início: 15 de abril - Maiores informações com a Secretaria da APPOA
próprio e único frente à vida? Por que a uns só resta como “estilo” o não-
saber, a violência, a adesão às drogas ou a extrema dificuldade de convivên-
cia em grupo?
Para avançarmos no estudo e discussão destas questões, partiremos
dolivro de Catherine Millot, Freud Antipedagogo, indo a textos do próprio
Freud (Mal-estar na Cultura, Psicologia das Massas, O Futuro de uma Ilusão
e outros), de Lacan, Foucault, Philippe Ariès, Lajonquière e outros pensado-
res contemporâneos que se debruçam sobre os enlaces entre cultura e subje-
tividade, imbricação esta que diz respeito muito de perto ao universo escolar.
O grupo está aberto aos interessados em aprofundar estas questões.
Local: Av. Pedro Adams Filho, 5604/906 – Novo Hamburgo
Tels.: (51) 582-9572 / 99879576
Horário: 3ª feiras, das 19h às 21h Frequência: Quinzenal
Reinício: 14/03/2000 Coordenação: Ieda Prates da Silva
DEFESAS DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
* No dia 07/04, às 14h, no Instituto de Psicologia da UFRGS, Carmen
Backes estará defendendo sua dissertação de Mestrado “O que é ser brasi-
leiro?”. A banca terá como integrantes: Miriam Chnaiderman, Ana Maria
Medeiros da Costa eTânia Galli Fonseca. (Sala a confirmar, tel.: 316 5149 -
Secretaria do Mestrado)
No mesmo dia, às 19h e 30min, Miriam Chnaiderman estará fazendo
uma palestra com o título: “Central do Brasil - Encontros fecundos em íngre-
mes Brasis”. O local será confirmado (tel.: 316 5149)
* Em 02/05, às 10h, Luis Roberto Benia defenderá sua dissertação de
Mestrado “Desemprego: luto ou melancolia”, no Instituto de Psicologia da
UFRGS. A banca examinadora será composta por : Mario Eduardo Pereira
(UNICAMP), Mario Fleig (UNISINOS) e Cleci Maraschin (UFRGS).
Na mesma data, às 14h, ocorrerá uma palestra de Mario Eduardo
Pereira, com o título “Genética e subjetividade”. Maiores informações pelo
tel.: 316-5149.
10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
NOTÍCIAS
11C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
Freud tinha razão ao aproximar o trabalho do psicanalista do trabalhodo poeta. Ambos tentam “sacudir a poeira das palavras”, como nosindica em seu belo texto René Passeron. Esta poeira reveste as for-
mas esquecidas nas prateleiras do pensamento, pois só a fixidez de lugares
pode recolher o pó do tempo. A escuta psicanalítica e a prática artística de-
monstram que o horizonte da verdade está muito mais no ato que desorgani-
za/reorganiza do que na repetição inerte do eco da mesma melodia. A es-
pessura de nossas hipóteses e construções teóricas nos convoca a um
compromisso contínuo com a criação, pois é sabendo escutar os limites do
conceito que podemos fazê-lo movimentar para dar conta da complexidade
de nosso trabalho. Se já conhecemos tão bem as estratégias do sintoma de
garantir lugares imaginários com a fixidez da forma, sabemos que é confron-
tando o sintoma também naquilo que ele fracassa que podemos, por vezes,
inaugurar outros percursos possíveis. Freud e Lacan sempre foram pensado-
res inquietos e atentos a este desafio.
Este número do Correio da APPOA traz uma série de textos que
tentam circunscrever alguns aspectos do ato criativo no diálogo com a práti-
ca psicanalítica. Todos os textos da seção temática foram pensados e pro-
postos aos autores no desafio de poderem trazer indagações que nos aju-
dem a avançar nesta discussão. Infelizmente, muitos ainda pensam a esfera
da criação como uma estratégia para animar nossos espíritos com a pro-
messa do “deleite da distração” ou da “virtude da ilustração”. Basta um pas-
so em direção à “razão teórica”, para descartarem a verdade das proposi-
ções do campo da arte e guardá-las com uma admiração estéril, pois ficam
como preciosidades esquecidas e chaveadas em museus/pensamentos, que
nunca visitamos. Os textos aqui apresentados mostram um caminho muito
mais promissor.
Ora, criar mais que uma possibilidade é um compromisso. Espera-
mos que os textos aqui reunidos possam continuar animando este diálogo.
 Edson Luiz André de Sousa
 Gerson Smiech Pinho
MUDANÇA DE ENDEREÇO
* Ieda Prates da Silva informa o novo endereço de seu consultório – Av. Pedro
Adams Filho, 5604/906 - Novo Hamburgo/RS, tels.: (51) 582 9572 / 99879576.
* Luís Fernando Lofrano de Oliveira informa seu e-mail: lflo@ufrgs.brs; e no-
vos endereços: residencial – Rua Amélia Teles, 174/201, Porto Alegre, tel.
332 4898;consultório – Rua Faria Santos, 47/305, Porto Alegre, tel.99066610.
SEÇÃO TEMÁTICA
CARTEL DO INTERIOR
 
A reunião do Cartel do Interior será realizada no dia 07 de abril, às
19h, na sede da APPOA.Para este encontro, Mário Fleig apresentará o tra-
balho: Como compreendemos o significante identidade?, dentro da temática
que definimos como norteadora dos trabalhos do Cartel para este ano de
2000.
Convidamos todos os interessados, lembrando que esta atividade será
na véspera da Jornada de Abertura da APPOA.
 Coordenação do Cartel do Interior
TESOURARIA - REAJUSTE
Após dois anos sem reajustes, estamos propondo um realinhamento
nos valores das mensalidades. Os novos valores, que passarão a vigorar no
próximo mês, são:
Participante - R$ 80,00
Membro - R$ 110,00
Tesouraria
12 13C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
SEÇÃO TEMÁTICA
mas uma repetição liberadora do ato traumático antigo...
A retomada do trabalho do artista, que sem cessar recomeça uma nova
obra, é o indício de uma insistência que derrapa e jamais finaliza
sob a idéia obscura que o perfura.
Esse daimôn interior não é sempre um afeto anedótico vindo dos
acontecimentos da infância. Ele pode ser, como para Sócrates,
um problema metafísico, tanto mais ardente que ele não tem solução.
Nenhuma ab-reação sendo possível neste caso, a criação não pode
senão ornamentar com minúcias os termos da questão, e fazer, do vazio da
resposta, um adorno da consciência trágica.
A arte de criar desejaria chegar a uma ab-reação completa: seria
preciso “forçar a inspiração”, como demandava Max Ernst?
Cá estamos.
“Sacudamos a poeira das palavras”, nos sacudamos todo, e tombará
do “ferimento do tempo” (Blanchot)
uma pepita ensangüentada.
Mas essa pepita não é mais que uma gota. O ferimento não cessará
jamais de sangrar, debaixo da consciência.
A ab-reação criadora estimula uma paixão de confessar, que ela não
estanca. Ela é um apelo à ab-reação final, e esse apelo é sem eco. A própria
morte não é ab-reativa: ela resta colorida para a vida de cada agonizante.
Segue-se daí que a arte não cessará jamais de repetir suas tentativas
de liberação, e que, longe de se limitar à invenção de formas estéticas e de
visar (ao que parece) ao belo, ela desobstrui os conteúdos erótico-escato-
mortuários, das quais a pessoa não se purifica jamais completamente.
O “sangue” das obras é negro.
Sob o véu das formas e das palavras, ele é ao mesmo tempo evidente
e enigmático.
Nele palpita um sub-pensamento mudo e subterrâneo, mais profundo
que toda sensação possível, obtusa carne da Natureza,
POR UMA POÏANÁLISE1
René Passeron2
 O faber está sempre em nós
 O sapiens é seu luxo, quando, fatigado, ele se senta enfim, em seu
recolhimento noturno. Estará sonhando? Deita-se ele sobre um divã?
Provavelmente
E ele repassa em sua mente o trabalho do dia.
Ele o pensa. Ele o critica. Ele entra na esfera da poïética como noesis
poieseôs3
E este pensamento corrosivo escava a lembrança dos acasos que são
interiores aos contornos desta conduta misteriosa.
Este pensamento retoma, numa meditação mimética, a criação da obra,
de ponta a ponta
Então, muitas revelações surgem.
O que o pintor vê
O que ele sonha e pensa enquanto pinta
enraíza-se no húmus dos fantasmas.
E são os fantasmas, por uma insistência que lhes é própria, que
desviam as formas, e empurram o artista à repetição. Esta “longa paciência”
chama a ab-reação
que não é somente um brusco acontecimento da memória
1 Traduzido por Edson Luiz André de Sousa. Agradeço a Bruno Magne a preciosa ajuda em
algumas passagens e a René Passeron pela paciência com que me esclareceu muitas idéias
neste esforço sempre poïético que é o trabalho de uma tradução. Este texto ainda inédito
será publicado num livro intitulado “Encantações filosóficas”, a ser lançado na França.
2 Artista e poeta.Diretor de pesquisa CNRS. Dirige a revista “Recherches Poïétiques”.
Publicou inúmeros livros dentre os quais destacamos: “A obra pictural e as funções da
aparência” Paris, Vrin, 1962; “História da pintura surrealista”, Paris, Le livre de poche, 1968;
e “O nascimento de Ìcaro - elementos de poïética geral”, ae2cg éditions, 1996.
3 N.T. Em grego Noesis Poieseôs (pensamento de criação)
PASSERON, R. Por uma poïanálise.
14 15C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 78, abr. 2000
SEÇÃO TEMÁTICA
que é simultaneamente uma certeza da razão
e um nada da memória.
A estranha conduta de criar visaria, em última instância, a preencher
esse buraco da memória, constituir uma memória mítica do imemorial –
memória feliz, visto o maravilhoso da luz, – memória trágica, todo o
nascimento sendo premonição da morte.
Por Deus, minha querida, a creche e o asilo dos agonizantes estão na
mesma rua! ...
É assim que toda obra de arte é um curativo do vazio.
Todo curativo esconde ao mesmo tempo em que trata, e substitui sua
aparência perceptível a não aparência do ferimento, desde então aberta ao
imaginário,
o que tem por conseqüência que nenhuma psicanálise do artista atra-
vés sua obra finalizada não é seriamente possível: o curativo não é o ferimento5.
Somente a conduta instauradora pode ser analisada.
A arte é uma prática de enfermeiro do vazio, mas esse vazio jamais
cicatriza. A tela, como símbolo do vazio memorial do nascimento, não cessa
de invadir de sua brancura fluida as compressas picturais.
A luta do médico contra a morte, a luta do psicanalista contra a neurose,
releva de uma arte da mesma ordem. E todas as pessoas que vemos circular,
aqui e lá, que estejam doentes ou não, travestem, graças aos artifícios do
vivente,
a morte que as habita.
– e não falo aqui de “pulsão de morte”, bem ao contrário,
eu falo de um destino inelutável, contra o qual resistimos – honra de lutar...
* * * *
5 Ver “Arte e Psicanálise, Ligéia”, nº 13-14, 1993. Na introdução, p. 37-8, Fabienne Hulak e
Pierre Vermeerch notam que: “a crença outrora propagada que a psicanálise pode colocar
a céu aberto o inconsciente do artista dirigindo um olhar para suas obras quase que desa-
pareceu completamente”.
atro crores, jorros de sangue negro, a própria vida, a crueldade.
E a conduta criativa extrai este sub-pensamento do mangue fisiológico,
a faz esguichar em direção ao silêncio de um sobre-pensamento, que justifica
que toda obra, a serviço deste bafo carnal, seja promovida à categoria de
obras do espírito, e irradie finalmente de sua aura.
Resta ainda que a crueldade não se extravasa jamais completamente
na esfera das artes: foi esta a infelicidade de Artaud...
* * * *
Ora, tem mais.
Como ato, a ab-reação, mesmo parcial, é um sobressalto da memória
verídica: nenhum processo de ab-reação não poderá satisfazer outra coisa
que um acontecimento traumático real.
Mas a arte é habituada da bela mentira fantasmática
A consciência memorial borda sobre o passado. Ela inventa mesmo
falsas lembranças. Através de seus mitos pessoais, o Dasein se faz uma
história, afim de figurar sob o olhar do Outro...
Contudo, através do zum-zum do histórico, o essencial se abre um
caminho: a noite do corpo tenta “fazer memória”4.
O pensamento quer remontar ao primeiro dia.
Ora, ninguém se lembra de seu nascimento: o cérebro do
recém-nascido não era capaz de fixar o acontecimento.
Que nascemos de uma mulher, aprendemos, bem tarde, pelas vias da
cultura. E suspeitamos então que guardamos em algum canto secreto desta
carne, muito seguidamente renovada, contudo, pela fisiologia,
uma lembrança latente.
Muito mais que a “cena primitiva”, é o “traumatismo do nascimento”,
que o artista apalpa para reviver, esta queda no vazio
4 É este o título do colóquio que aconteceu por ocasião do “Simpósio das Artes” de Baie-
Saint-Paul (Québec, Canadá), 20 e 21 de agosto de 1998.
PASSERON, R. Por uma poïanálise.
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SEÇÃO TEMÁTICA
não pode ser outra senão a obscura Ducaté escrava ensangüentada do
tirano Minos Prometeu-mulher, pregada ao tripalium6 de sua gestação
e luminosa mãe
de Ícaro.
O ser-nascido para a morte, e a crueldade da vida se ultrapassam
conjuntamente na arrogância criativa, a qual, ainda assim, os deixa intactos.
Seria isto mentira e ilusão?
NÃO – O ESPÍRITO MESMO.
Fazer nascer a obra, oblitera o esquecimento primal.
Gritar-criar é um ato de anti-nascimento, então de anti-morte7.
7 Ver PASSERON, René. Astarim, três poemas de anti-nascimento. Tunis: L’or du temps,
1997.
Ora, a atividade mito-poïética de obturar o vazio do nascimento não
tem necessidade de refletir longamente para remontar Àquela que foi
responsável de tudo.
Ícaro faz de seu nascimento uma queda mortal na água primordial, de
onde renascerá como Fênix.
Surgem então a evidente fusão de Eros e de Tânatos na imago da
mãe bem-amada – e o simbólico do feminino de toda conduta criativa.
A ab-reação criadora na arte é uma ab-reação delegada, por uma
transferência espiritualmente filosófica e materialmente simbólica
como se colocar no mundo uma obra qualquer dependesse da
parturição. Este “como se”, vocês sabem, psicanalistas, é constitutivo da
estrutura equilibrada do Eu, por sua ficção mesma.
O AMOR-REVOLTA
enriquece de cólera
os sofrimentos da memória
E essa referência a mãe, através do imemorial do nascimento, pertence
à situação fundamental do Dasein, portanto suscita a universalidade da obra.
A arte que contorna o memorial por exprimir o não-dizível do corpo
não é então em sua intimidade mais geral
nada mais que a apresentação, quero dizer, a colocação no presente
deste nada da memória
onde cada sujeito lúcido encontra ao mesmo tempo a figura de sua mãe
morta e o VAZIO de um alfa pré-natal
lançados pela anáfora de uma vidência filosófica
sobre o ômega de um VAZIO pós-fatal
Donde tiro que a única divindade que venera o artista
6 N.T. Palavra em latim que deu origem a palavra “trabalho”
PASSERON, R. Por uma poïanálise.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Camille a Elida.
1999, barracões do antigo DEPREC, mais uma passagem que Elida
nos apresenta: um corredor. Faz parte de seu mais recente trabalho exposto
na Bienal do Mercosul, denominado “Doador”: a exposição, nas paredes de
um corredor, de uma série de objetos cujos nomes terminam em “dor”, pedi-
dos como doação pela autora. Entrei no corredor procurando o “meu” objeto,
aquele que eu teria doado, que supostamente teria se desprendido de mim e
não mais precisaria representar-me. E aí fui me perdendo nas pegadas dos
objetos, nas memórias dos recantos que lhes teriam servido de suporte.
Freud veio socorrer-me do despedaçamento das décadas e das casas que
se materializavam naquele corredor, lembrando-me do jogo de seu neto com
o carretel, compondo a fonética da memória do laço com a mãe. Walter
Benjamin também me tomou pela mão, falando-me de seu “Rua de Mão
Única”2, na construção narrativa – de inspiração proustiana – de memórias
de sua infância. Benjamin apóia-se no que, em outros textos, denomina
“memória do objeto”. Seus escritos partem da mímesis a elementos discre-
tos, a objetos ou traços que recortam um ponto a partir do qual a narrativa é
construída (o dedal da caixa de costuras de sua mãe, por exemplo). É assim
que ele carrega o leitor pelas passagens da vida: passagem entre tempos:
passagem entre línguas: passagem entre culturas: passagem entre repre-
sentações...
Foi dessa forma que naquele corredor de tantas portas, tantas saídas
por significantes que escorriam das paredes, desses que fazem a gente
sonhar e brincar, eu esquecera o fio que me conduzia. Encontrei-o do lado de
fora, na série de plaquinhas, onde cada uma indicava “Doador” acima do
nome, também com a indicação do objeto. E assim encontrei-me com o
nome que era eu, mas que não me pertencia, que a autora transformara nos
fiosinvisíveis dos objetos. E assim reconheci a experiência de um corredor
2 BENJAMIN, W. Rua de mão única. In: _____. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense,
1997.
Chegar a fazer gritar a obra, é tê-la criado contra a morte
que grita nela.
A MEMÓRIA DOS OBJETOS1
Ana Maria Medeiros da Costa
Foi em 1991 quando primeiro me senti fazendo parte de uma instala-ção, dessas que as artes plásticas já nos acostumaram a entrar. Erafim de inverno – início de primavera – em Paris, e eu arrisquei a mate-
rializar-me, sem aviso prévio, na porta de entrada do apartamento de Edson
de Sousa e Elida Tessler. Depois do impacto ao abrir a porta, a alegria do
reencontro e a “instalação” de minha cama noturna entre as telas de Elida,
naquele que era seu atelier. Então às vezes acontecia de sonhar durante o
dia e acordar durante a noite, com os humores dos ferros torcidos e os
vapores da ferrugem da história, dos restos dos metais europeus recolhidos
para produzir a série de trabalhos denominados por Elida de “Interstícios”.
Então ela me dizia que era a cor dos metais, naqueles desenhos que eu via
formarem-se em grandes painéis brancos. E eu tentava entender como os
traços da decomposição (ferrugem) poderiam gestar algo novo. Talvez
“interstícios” pudesse mesmo representar essa passagem entre dois esta-
dos: dois mundos: dois tempos... Em todo caso, eu me encontrava com a
História pela primeira vez: eu sentia mesmo o enigma da passagem do tem-
po passeando pelas ruas de Paris: topava com pegadas, traços corporais
daqueles que até então eram somente idéias abstratas, penduradas num
céu limpo e eterno. Para eles, não teria havido nem começo, nem fim, não
teria havido interstícios, passagens. Então, tropecei na obra de Camille
Claudel, naqueles corpos em decomposição que desafiavam a escultura.
Nessa noite, não consegui dormir, sufocada pela ferrugem da passagem de
COSTA, A. M. M. da. A memória dos objetos.
1 Texto originalmente publicado no Caderno de Cultura, do Jornal Zero Hora, Porto Alegre,
em 11/12/99.
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SEÇÃO TEMÁTICA
das, por exemplo, pela espessura de uma luva, retidas pela economia de
gestos.
Encontramos neste trabalho o processo clássico da gravura: uma
matriz, entintamento da mesma e a tiragem de uma cópia sobre papel. São
estas linhas gravadas que guardam o segredo de nossa identidade. Para
muitos a impressão digital tem o estatuto de letra e cumpre a função de uma
assinatura, isto é, imprimir uma marca que possibilite uma identificação pos-
terior. Mas, aqui, encontramos uma “interferência”que Hélio Fervenza no-
da infância, quando a evocação – o apelo do nome – sempre me trazia com-
panhia.
CALIGRAFIAS DE UMA SUBTRAÇÃO1
Edson Luiz André de Sousa
“Signe, étoile au creux de ma main.
que je cache et que je retiens ...” 2
 Jules Superville
Nos objetos que tocamos com nossas mãos fica o rastro de umapresença: lembrança tátil, efêmera, quase invisível. As impressõesdos dedos testemunham, de um certo modo, a resistência de nosso
corpo, pois tocar é, em última instância, um confronto de superfícies. O tato
é o ato, por excelência, de buscar a finitude da forma. Nosso olhar busca
com insistência os contornos, e é por isso que podemos atribuir-lhe a quali-
dade de tátil.
De nosso gesto de tocar o mundo ficam os traços: estas linhas flutu-
antes entre o visível e o invisível, que poderíamos chamar de grafismo poten-
cial das mãos. As digitais marcam, na superfície branca do papel, aquilo que
faz diferença.
“L’identité moins le signe” (A identidade menos o signo) nos revela
esta potencialidade de linhas que podem ser escondidas e retidas; escondi-
1 Este texto, ainda inédito, foi escrito em Paris em 1992. Registra os ecos que provocaram em
mim o contato com o trabalho de Hélio Fervenza, artista plástico atualmente radicado em
Porto Alegre e que recentemente participou da II Bienal do Mercosul .
2 “Signo, estrela no oco de minha mão”.
que eu escondo e que eu retenho ...”
SOUSA, E. L. A. de. Caligrafias de uma subtração.
Hélio Fervenza
L’identité moins le signe - n. 3 - 1991
Impression digitale sur papier mesurant
18cm x 25,5cm
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SEÇÃO TEMÁTICA
meia a subtração de um signo. Essa operação instigante, complexa e para-
doxal nos autoriza algumas reflexões.
O signo em questão é uma pequena forma recortada em papel, que
interrompe uma determinada superfície da impressão digital. Há um encon-
tro/confronto de linhas, as quais, evidentemente, não possuem o mesmo
estatuto. Ao estado de uma certa “natureza” das linhas digitais se contra-
põem o caráter de “manufatura” do signo. Esta tensão sutil se evidencia
ainda mais pelo elemento comum aos dois, a saber, algo feito pelas mãos,
algo feito com as mãos (A mão como instrumento / a mão com um instru-
mento)
O que chamamos “identidade” é a imagem por excelência da fragilida-
de, de algo que a todo momento ameaça se dissolver. Por isso nós a prote-
gemos, nós a guardamos a sete chaves, nós a contemos. Mas nosso esfor-
ço se revela muitas vezes inútil, pois é tênue a fronteira entre o Eu e o Outro.
O que nos é próprio é nossa alteridade. O trabalho de Hélio Fervenza torna,
de uma certa forma, visível esta reflexão, pois a identidade é apresentada
não como uma totalidade, mas como uma diferença. Há algo que foi subtra-
ído, portanto, há algo que falta.
As linhas digitais servem de fundo à forma recortada. O corpo se faz
presente como suporte do signo que aparece. Encontramos aí outra tensão
entre o corpo e sua representação.
“L’identité moins le signe” reflete uma das constantes preocupações
do trabalho de Hélio Fervenza, ou seja, dar forma à tensão existente entre o
que se mostra e o que se esconde. O elemento que esconde é o mesmo que
revela. Nossa atenção é, sobretudo, despertada pelas diferentes perspecti-
vas que podem assumir a função do olhar e do reconhecimento. O que es-
conde é justamente esta forma colocada sobre o dedo no momento da im-
pressão digital. O que é escondido seria, metaforicamentem, esta identida-
de subtraída. Ora, esta articulação só se sustenta se o ponto de vista em
questão for o de um olhar detalhista de perito, cuja figura exemplar seria a do
chefe de polícia parisiense do conto de Edgar Allan Poe: “A carta roubada”.
A identidade seria ali buscada nestas linhas interrompidas pelo signo. Para
o detetive Dupin, certamente bastaria o signo que revela em ato o pensamen-
to/presença do autor. Aqui, a problematização em questão parece ser a da
forma do reconhecimento.
Este trabalho interroga, ao meu ver, o lugar da evidência, cujas prolife-
rações não garantem necessariamente a elucidação. É deste encontro de
linhas, nesta sutil operação de subtração, que vemos surgir a pulsação de
uma reflexão: as linhas do pensamento reveladas por esta gravura armaze-
nada no corpo.
SOUSA, E. L. A. de. Caligrafias de uma subtração.
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SEÇÃO TEMÁTICA
que a disciplinarização impede o pensamento. Ao contrário, lembra-nos a
psicanalista Piera Aulagnier (1976, p. 151), “ter que pensar”, “ter que duvi-
dar”, “ter que verificar os pensamentos” são “exigências às quais o Eu não
pode se esquivar, o preço pelo qual paga seu direito de cidadania no campo
social e sua participação na aventura cultural”.
Nesse sentido, o que a ordem disciplinar tende a interditar ao indiví-
duo é o encontro de “momentos nos quais possa gozar um puro prazer liga-
do à presença de um pensamento que não tenha outra finalidade que não
seja refletir-se sobre si mesmo, que não tenha a ver com a dúvida e com a
verificação porque não se dirige a nenhum destinatário exterior, um pensa-
mento que não tenha outra meta que não seja a de garantir ao sujeito a
existência de um ganho de prazer, ligado à atividade de pensar em si mes-
ma”. E isto significa que o indivíduo moderno,disciplinado, é um indivíduo
que, em princípio, não tem direito a nenhum segredo. Ou, mais exatamente,
se o indivíduo for portador de algum, o zelo se mostrará necessário, pois,
como alerta Deleuze (1988, p. 63), na modernidade, “o segredo só existe
para ser traído, trair-se a si mesmo”.
Ora, para Piera Aulagnier (1976), o segredo é psiquicamente vital para
o sujeito, pois é a condição mesma de possibilidade do pensamento execer-
se. E mais do que isso, é a condição de exercer-se com prazer, prazer que
não é dado pelo conteúdo (p. ex: fantasias eróticas), mas pela própria ativi-
dade de pensar, condição indispensável para o “sujeito construir sua identi-
dade, diferenciando-se do outro”. É necessário que o enunciado do Outro
possa ser posto em dúvida para que o Eu conquiste sua autonomia: “o pri-
meiro testemunho desta autonomia será a possibilidade de pensar
secretamente” (1979, p. 38). E mais:
“poder exercer um direito de prazer sobre sua própria atividade
de pensar, reconhecer o direito de pensar que o outro não pen-
sa e não sabe o que pensamos é uma condição necessária ao
funcionamento do Eu. Mas o acesso a este direito pressupõe o
abandono da crença no todo saber do porta-voz, a renúncia a
encontrar na cena do real uma voz que garanta o verdadeiro e o
DO DIREITO AO SEGREDO: PSICANÁLISE E ARTE
João A. Frayze-Pereira1
Apropósito da sexualidade moderna, o filósofo Michel Foucault mos-tra que “sob a capa de uma linguagem que se tem o cuidado dedepurar de modo a não mencioná-lo diretamente o sexo é tomado, e
como que encurralado, por um discurso que pretende não lhe permitir obscu-
ridade...”. Quer dizer, “o característico das sociedades modernas não é te-
rem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim se terem
dedicado a falar dele ininterruptamente, valorizando-o como o segredo” (1976,
p. 49). No entanto, cabe a pergunta: há na sociedade que se diz moderna
espaço para o segredo? Em trabalho publicado anteriormente (Frayze-Perei-
ra, 1994), analisei essa questão cujo ponto central resumo a seguir.
Como sabemos, em várias de suas obras, sobretudo em “Vigiar e
Punir” (1975), Foucault realiza uma análise de componentes essenciais da
modernidade, demonstrando que, a partir da segunda metade do século XVIII,
se constitui uma sociedade caracterizada basicamente como um modo de
organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente
os homens e sua conduta.
“Sociedade disciplinar” é como Foucault designa essa ordem social,
que tende a fazer do homem um ser dócil e que tem como uma de suas
principais metas impossibilitar ou, pelo menos, tornar sem objeto e sem
prazer qualquer pensamento secreto. No entanto, seria ingênuo imaginar
1 Do Instituto de Psicologia da USP. Do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Autor dos livros
“Olho d’água – arte e loucura em exposição”, São Paulo: Escuta, 1995; e “A tentação do
Ambíguo”, São Paulo: Atica, 1984.
FRAYZE-PEREIRA, J. A. Do direito ao segredo...
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SEÇÃO TEMÁTICA
dizer implicaria, junto ao sujeito ao qual fosse imposta, um estado de escra-
vidão absoluto...”.
Ora, são os artistas aqueles que estão quase sempre a correr atrás
das palavras, das imagens e dos sons, para tornar dizível o indizível, dar
corpo sensual ao irrepresentável, dar condições para que o silêncio da obra
ressoe. Esta é a sua paixão. No entanto, como também observou Anzieu
(1981, p. 139), “as obras mais profundas, mais tocantes, são aquelas que
cercam, ou sugerem, ou desvelam a existência de um segredo, que fazem
com que o leitor, o usuário da obra, participe dessa busca com sua dupla
face de evidência e de incerteza e de um certo fracasso final em compreendê-
lo, em comunicá-lo”.
E, no contexto do mundo civilizado-disciplinar, a fruição concomitante
a essa busca incerta do não-sabido responde àquela demanda psiquicamen-
te vital para o pensamento vir a ser. Quer dizer, tão fundamental quanto o
sonho para a atividade psíquica e um ato de liberdade, às vezes obtido com
muita dificuldade e ações de contra-violência, é o que Piera Aulagnier (1976,
p. 151) designa “o preservar-se o direito de gozar momentos de prazer ‘soli-
tário’ que não caiam sob o golpe da interdição, do erro, da culpa”. Trata-se de
um direito que as artes, moderna e contemporânea, assim como a Psicaná-
lise, têm procurado garantir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANZIEU, D. Le corps de l’oeuvre. Paris: Gallimard, 1981.
AULAGNIER, P. Le droit au secret: condition pour pouvoir penser. N.R.P., Paris:
Gallimard, nº 14, p. 141-57, 1976.
AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
COSTA, J. Freire Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FRAYZE-PEREIRA, J. A. Armadilhas da transparência: o segredo, o obsceno
...Caramelo, FAU-USP, nº 7, p. 173-85, 1994.
FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris, Ed. Gallimard, 1975.
FOUCAULT, M. La volonté de savoir. Paris, Gallimard, 1976.
MAGGI, A. Último tango em Paris – área secretas. Ide, Publicação da Sociedade
falso (...) Isto só é possível quando a criança descobre que o
discurso do porta voz diz a verdade, mas também pode mentir
(...) A descoberta que o discurso pode conter a verdade ou a
mentira é, para a criança, tão fundamental quanto a descoberta
da diferença dos sexos. Poder duvidar do que é ouvido é tão
indispensável quanto poder duvidar da realidade de uma cons-
trução que se revela sob a égide da fantasia (...) Será só a esse
preço que o sujeito poderá questionar o Outro – e se questionar
– a respeito do que é o Eu, a respeito da definição que o discur-
so fornece da realidade, e da intenção que motiva o discurso do
Outro e dos outros”.
Se, por um lado, sabe-se que a sociedade disciplinar não se define
pelos espaços secretos (objetos de vigilância); por outro, a condição vital
para o funcionamento do Eu, psicanaliticamente, repousa nas possibilida-
des e no direito do sujeito criar pensamentos, de escolher os pensamentos
que comunica e os que guarda secretamente. “A perda do direito ao segre-
do”, diz Aulagnier (1976, p. 143), “leva junto com um a mais para ser reprimi-
do, um a menos a ser pensado: duas eventualidades que levam ao risco de
tornar impossível a atividade de pensar e a própria existência do Eu”. E é a
possibilidade dessa perda que, de modo sinistro, ameaça o indivíduo nas
sociedades disciplinares.
Lendo Jurandir Freire Costa (1986, p. 169), sabemos que, se o indiví-
duo moderno é alguém cuja identidade é qualificada pelo narcisismo, é por-
que se trata de um indivíduo violentado antes de ser narcisista. Ou seja, é a
violência cotidiana a que está submetido que explica seu narcisismo e qual-
quer aparência patológica que ele pode vir a assumir. É uma violência, escre-
veu A. Maggi (1980, p. 45), que “se exerce contra o próprio Eu e tem como
finalidade destruí-lo”. Trata-se de uma operação que expressa o receio do
Outro de ter que lidar com uma personalidade pouco transparente. Nessa
medida, o “direito ao segredo” é não só um direito, mas uma condição funda-
mental da singularidade, pois “se o direito de dizer tudo, como tão bem
escreve Blanchot, é a própria forma da liberdade humana, a ordem para tudo
FRAYZE-PEREIRA, J. A. Do direito ao segredo...
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SEÇÃO TEMÁTICA
Esta associação surge agora a propósito de um importante elemento
apontado na reflexão psicanalítica sobre a questão, que ressalta a proximi-
dade entre a experiência musical e a experiência do inconsciente. Tal proxi-
midade aparece, por exemplo, no que poderíamos chamar de avassalamento
do efeito de ultrapassagem do sujeito, implicando uma espécie de impossi-
bilidade de defesa ante este tipo de experiência. Aparece, aí, também a
questão da experiência criativa, de que Freud tão belamente se ocupou no
texto “O poeta e a fantasia” (1908), mostrando-nos a marcante captação do
inconscienteque se realiza no artista.
Nesta perspectiva, uma curiosidade a ressaltar é o fato de que há
pessoas para quem a música não exerce efeito e outras, ainda, que lhe são
avessas. Era o caso de Freud, sabiam? Pois há uma especulação, referida
por Lambotte (1996), de que o notório racionalismo freudiano estaria na raiz
de sua declarada indiferença à música, entendida como uma experiência
que prescinde do racional. Referindo-se, em tese, a este tipo de anestesia
musical, Didier-Weill a interpreta como uma espécie de frigidez, análoga à
frigidez sexual, no sentido de apontar para uma impossibilidade de “parar de
pensar”. (Id., ib.)
A experiência estética tem na fruição um de seus aspectos mais
marcantes. Nela algo se destaca de nossa vivência cotidiana, instaurando-
se como espanto. Podemos pensá-lo como uma atualização viva da alteridade,
esta dimensão tão dificilmente abordável para os humanos. Didier-Weill pro-
põe assim a questão: “O que nos faz ouvir a música senão a presença do
inaudível, até então banido da mesmice tagarela do cotidiano?” (1997, p. 24)
Podemos pensar como a diferença se transforma em mesmice – no tédio,
por exemplo. Neste recalcamento da dimensão do Outro encontra-se em
operação um mecanismo de renúncia à alteridade simbólica, que viabiliza a
alienação própria, ao alienar o outro “na figura sem surpresa do mesmo”. (Id.,
ib.) Tal estado de coisas é rompido no campo da experiência estética.
Nesta perspectiva, podemos então abordar a especificidade da expe-
riência musical como a metamorfose que a música tem o poder de operar
sobre aquele que a escuta. E aqui encontramos uma reversão que vale a
pena acompanhar, seguindo com Didier-Weill:
Brasileira de Psicanálise de São Paulo, 1980.
A VOZ QUE ME FALA1
Lucy Linhares da Fontoura
Refletir sobre a experiência estética nos abre imediatamente umadualidade: a questão sensibilidade versus racionalidade. Podemoscaracterizar o gozo estético, com Didier-Weill, como uma espécie
de paralisia ou desamparo da inteligência, no sentido de que a arte em geral
“age no ponto em que o homem se encontra dividido entre o que o toca e o
que ele pensa” (1997, p. 23), o que remete à dissociação entre intelecto e
afetividade.
Numa primeira aproximação, a experiência musical aparece como uma
forma eminentemente sensível da experiência estética, prescindindo do au-
xílio ou da intermediação intelectual para ser efetivada. É claro que, se to-
marmos as questões da educação instrumental e do gosto musical como
elementos presentes na formação do artista ou do profissional da música, o
elemento intelectual não pode ser dispensado. Entretanto, quando falamos
da experiência da música, a marca da apreensão sensível constitui uma
especificidade que merece ser destacada.
A propósito, lembro que, certa vez, levei um pito de alguém, quando
comentei minha surpresa com relação à Cartola, o qual, sendo de origem
humilde, do morro carioca, sem escolarização formal, criou composições
musicais belíssimas, muito elaboradas, tanto do ponto de vista da melodia,
como no aspecto poético, do refinamento lingüístico das letras de suas com-
posições. Meu interlocutor tomou esta observação por preconceito.
1 Texto apresentado na Semana Acadêmica de Psicologia da UNIJUÍ, em outubro de 1999,
dedicada à temática “Estética e Psicanálise”.
FONTOURA, L. L. da. A voz que me fala.
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SEÇÃO TEMÁTICA
uma raiz sobre a qual poderá, em segundo lugar, germinar a palavra...” (Didier-
Weill, 1997, p. 240) Antes de perceber o sentido dos fonemas, o bebê perce-
be justamente este elemento através da música da voz dos pais. Talvez aí
possamos situar a universalidade da música, como uma espécie de língua
originária.
Esta língua originária se apresenta em sua sedução terrível na possi-
bilidade de absorção do ser à indiferenciação original.
“As respostas especulares da ninfa Eco e a perigosa sedução
do canto das sereias ilustrariam bem o poder de fascinação da
voz, precisamente quando ela evoca, um pouco de perto de-
mais, o vestígio sensorial da primeira voz em que o sujeito, no
estágio de infans, ficou como que suspenso. (...) Duplo sonoro
de um Narciso especular, conhecemos a queixa melancólica
de Eco e o lento ressecamento mineral de seu corpo. Certa-
mente poderíamos interpretar a história de Eco como um retor-
no do sujeito a uma fase primitiva de seu desenvovimento, na
qual a voz ouvida constituiu o único traço distintivo de seu uni-
verso, traço cujas primeiras modulações ele já podia discernir
nesse estágio de infans”. (Lambotte, 1996, p. 696)
É preciso, então, dar um passo a mais, apropriar-se deste som que é
dado para não sucumbir nele, forjando a própria possibilidade subjetiva.
“A criança ouve a voz da mãe que lhe diz algo. Intensamente,
querendo respondê-la, ela é esta voz cujo som serve para de-
mandar. Assim, este corpo, ao se identificar a esta voz, corre o
risco de desaparecer (...) É preciso então cantar, criar este
som, para não correr o risco de morrer. (...) A criança que canta
se destaca de um ela-mesma que ela não constituiu, sua voz
reproduz longe dela o que terá sido respondendo pela voz. Seu
próprio canto a transporta e liberta, seu Eu ideal se desvanece
na sonoridade nostálgica do que terá sido, que ela submete e
mantém à distância. A sublimação não é nesta perspectiva o
fundamento de uma elite artística, é um destino obrigatório da
“Num primeiro momento, você sente, enquanto ouvinte, que está
escutando a música. Mas na medida em que é ‘tocado’, como
se diz, você descobrirá que de fato não é você que escuta, mas
que é a música que o escuta, que escuta uma presença de
cuja existência você se esqueceu e que, pelo fato de ser escu-
tada, passa a reviver e a lhe ser dada. Se essa presença ‘lhe’ é
dada, é que você não pode oferecê-la a si mesmo: ela não está
a sua disposição. Ela está à disposição soberana do Outro,
que é o único a poder livrá-la de seu retiro e a entregá-la a você,
ao revelá-la.
Revelação cada vez mais surpreendente (...) Por que essa sur-
presa é dispensadora de alegria? Porque é portadora do poder
de dissipar a dúvida que você tinha a respeito de sua existên-
cia.” (1997, p. 197-8)
Vemos assim que este som faz ouvir alguma coisa que não é mais a
nota musical, mas algo que está para além dela. O que aí ressoa é o lugar
para onde o Outro, dado o recalcamento originário, se retirou, “num silêncio
que escapa a todo ouvir possível”.(Id., p.199)
Aqui podemos apontar a dimensão do apelo. Enquanto com relação à
palavra só a recebemos numa condição de deliberação interna à mensagem
ouvida – “direi sim, ou direi não?” –; com relação à invocação musical não
podemos deixar de lhe dizer “sim”. Neste apelo incoercível, podemos reco-
nhecer a pulsão invocante, situada por Lacan como a mais próxima da expe-
riência do inconsciente: “Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único
orifício que não se pode fechar”. (1979, p.184) Nesta particularidade pulsional
se ilustra, ao mesmo tempo, a continuidade entre o eu e o outro: “Enquanto
o se fazer ver se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o
sujeito, o se fazer ouvir vai para o outro”.(Id.,ib.)
Nesta perspectiva, refletir sobre a experiência musical é um dos cami-
nhos possíveis para compreender a relação mais primordial do sujeito com o
Outro: “... o poder da música é poder de comemoração do tempo primordial
em que o sujeito, antes de receber a palavra, recebe previamente uma base,
FONTOURA, L. L. da. A voz que me fala.
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SEÇÃO TEMÁTICA
POMMIER, Gérard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990.
A INSTALAÇÃO ENQUANTO LUGAR
 E O LUGAR DO ESPECTADOR
Elida Tessler1
O ato criador não é executado pelo artista sozinho;
O público estabelece o contato
Entre a obra de arte e o mundo exterior.
Marcel Duchamp
Oque é a criação de um lugar? Como abrir espaço àquilo que noscomprime a ponto de fazerdoer? São perguntas como estas quepulsam no momento em que nos propomos a criar contornos linea-
res a um pensamento encoberto por neblina. O que é nebuloso na vida torna-
se matéria-prima para a arte, e eis o ponto de partida para o que eu gostaria
de aqui expor.
Em que momento um lugar deixa de ser qualquer um para tornar-se
obra de arte? De onde vem essa necessidade do artista de envolver comple-
tamente o espectador quando este se dispõe a exercitar o seu olhar?
Não sabemos ao certo quando estas inquietações tornaram-se de tal
forma eloqüentes, contagiando a história da arte de acontecimentos que
fugiam às catalogações possíveis, isto é, às categorias como escultura,
gravura, pintura, desenho e outras já tão nossas conhecidas. O fato é que
hoje se fala em novos conceitos. Porém, a implicação de outra mudança
também está aqui presente: o estatuto do espectador em relação ao lugar
1 Artista plástica. Professora do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena, junto com Jailton
Moreira, o Torreão - espaço de intervenção em arte contemporânea, em Porto Alegre.
pulsão, uma criação necessária à existência: desenhar, canta-
rolar e dançar são atividades inevitáveis de um corpo que se
guarda ao se perder.” (Pommier, 1990, p. 194-5)
Aqui podemos fazer o enlace com o título que imaginamos para este
trabalho. “A voz que me fala” pretende enunciar esta dupla dimensão: a ne-
cessária referência ao Outro, este outro que fala em mim, ao mesmo tempo
em que veicula a dimensão da autoria, no sentido da apropriação que me
cabe realizar, através de uma voz que diga o que eu sou.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei. O mandamento siderante, a injunção
do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.
LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1979.
LAMBOTTE, Marie-Claude. Psicanálise & Música. In: Dicionário Enciclopédico
de Psicanálise. O legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.
TESSLER, E. A instalação enquanto lugar...
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SEÇÃO TEMÁTICA
participador, a fim de também estimular uma reação, uma atitude, um ato
criativo.
Quem realiza o projeto de uma instalação sabe-se totalmente depen-
dente, para sua efetiva realização, do visitante que ali depositará sua aten-
ção. Este dado também não é novo. Cristina Freire2 aponta para as origens
do termo instalação e lembra que as expressões Ambientes, Environmement
e Assemblage o antecederam. Em relação à diferença destas outras práti-
cas, a autora acrescenta: “ela (a instalação) não ocupa o espaço, mas o
reconstrói criticamente”.
A equação entre a vida e a arte me interessa de forma particular.
Parece que só acreditando nela conseguimos atingir o mínimo de compreen-
são do estado atual das manifestações culturais contemporâneas. Ultrapas-
sar as fronteiras entre as diferentes disciplinas e aproximar de forma contí-
nua a arte e o pensamento, as atitudes cotidianas e as ousadias da criação
artística, parece-me uma excelente medida para amenizar a sensação de
vivermos em um mundo exageradamente fragmentado, sem espaço para
devaneios. Não será a instalação o abrigo para esta necessidade de encon-
tro, em espaço e tempo compactados, para nossa experiência sensível coti-
diana?
No Manifesto Realista, assinado por Naum Gabo e Antoine Pevsner,
em 1920, encontramos já um sopro, um anúncio do que viria a ser a busca
de muitos artistas que se opunham a uma separação da obra de seu contex-
to. Vejamos o que diziam: “O espaço e o tempo são as únicas formas sobre
as quais a vida é construída e, portanto, também a arte deve ser construída”3.
Seguindo esta intuição, alguns movimentos como o futurismo, o dadaismo,
2 Cristina Freire é uma pesquisadora ligada ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Seu
trabalho intitulado “Poéticas do Processo - Arte conceitual no museu” (São Paulo: Iluminuras/
MAC-USP, 1999) traz uma excelente contribuição, em termos de exemplos e contextualização
histórica, para muitas manifestações artísticas que não se enquadram nas definições
estabelecidas pelos sistemas das artes até então.
3 CHIPP, H.B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.331.
que ele ocupa.
Para quem tem acompanhado as produções de artistas contemporâ-
neos, no contexto nacional e internacional, o termo instalação já é bastante
familiar, mas nem por isso deixa de causar ambigüidades ou estranhezas. O
mais importante é que ele guarda em si o sentido de abrigar, de alojar, de
realmente instalar algo ou alguém em determinado lugar. Instalação é ato ou
efeito de instalar (-se). Este aspecto reflexivo faz, a meu ver, o encontro do
verbo e do sujeito, mostrando-nos um desenho curvo, circular. A seta indi-
cando o estatuto de chegada para o ponto de partida, e a linha convidando-
nos a participar de um percurso. Na verdade, utiliza-se o termo instalação
para designar um grande conjunto de práticas e pesquisas em arte contem-
porânea. Isso começa a acontecer, de forma mais sistemática, a partir do
início dos anos 60, quando se intensificou o desejo de efetivar o que já fora
anunciado pelas vanguardas artísticas do início do século 20: realizar a fu-
são entre arte e vida, ressignificando atitudes e possibilitando, cada vez mais,
que o quadro abandonasse a sua moldura, impregnando o ambiente de valo-
res sensíveis e, por que não, perturbadores.
A instalação é uma operação artística, é uma intervenção que reúne
atitudes e objetos, incorporando o espaço como elemento constituinte da
obra. Que seja a sala de exposições de um museu ou galeria, ou um jardim,
uma capela ou qualquer recorte do espaço urbano, o importante a considerar
é o conjunto formado como um todo, que faz nascer uma forma outra, coesa,
diferenciada de nossos registros anteriores acerca do que já conhecíamos
de cada objeto isolado. O que acontece, então? Eis o ponto de giro nova-
mente aqui presente: estamos todos incluídos na obra, queiramos ou não,
quando adentramos em seu espaço.
Nosso olhar e nossos gestos completam o trabalho do artista. A sig-
nificação da obra se infiltra em seu ambiente. A proposição se abre, provo-
cando a fusão entre ela e o espaço social. Neste caso, o observador entra
em relação com a obra acrescentando sua contribuição. O público reage
criticamente. Uma instalação é constituída por elementos dispostos de ma-
neira particular, destinados a sensibilizar a percepção do espectador-
TESSLER, E. A instalação enquanto lugar...
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SEÇÃO TEMÁTICA
AS CRIANÇAS DO “READY MADE”
 Alfredo Jerusalinsky
Um estranho mal-estar percorre o mundo. É o fantasma do “readymade”. Crianças bem vestidas e bem alimentadas se jogam no chãona frente de carrinhos de pipoca, esperneiam diante de vitrines de
brinquedos, berram perante algodões-doces e bichinhos da “Parmalat”.
Nas prateleiras de seus quartos, dezeeeenas de bichinhos de pelú-
cia, jogos jamais abertos, brinquedos apenas manuseados dormem o mes-
mo sonho dos monumentos nas praças. Estão ali para testemunhar alguma
coisa imprecisa, que ninguém atina a definir. Dia após dia, as babás e as
empregadas domésticas se esmeram em fazer caber – num espaço cada
vez relativamente menor – esse festival de objetos coloridos, que se multipli-
cam sem cessar. É bem provável que as faxineiras tenham, no dia anterior
ao aniversário da mimada criancinha da casa dos patrões, devaneios bem
parecidos aos de uma artista plástica nas vésperas de uma “instalação”.
Estarão obrigadas a encontrar alguma ordem para a Barbie número dezessete
- vestida de Grace Kelly – , o Rambo com rosto de Raph Vallone, o papagaio
que responde e olha para a gente, um jogo de dominó, algumas feras pré-
históricas, seis bonecos de diferentes tamanhos, um tanque de guerra, duas
naves interespaciais, um apito de juiz de futebol (que não deve se perder),
um robô e um cavaleiromedieval, 44 soldadinhos vermelhos de uma Segun-
da Guerra Mundial – que já não figura entre os restos imaginários das crian-
ças, mas entre os restos infantis dos pais cinqüentões – , e uma série de
objetos inidentificáveis com cara de Piu-Piu, Pateta, Mickey, etc., que api-
tam, crepitam, gemem, falam se forem apertados, sorriem e choram, balan-
çam, ascendem luzes, mexem, e – todos eles – contêm alguma advertên-
cia: “Não serve para voar”, “ Mantenha fora do alcance de crianças menores
de...”, “Requer troca periódica de baterias”, “De 2 a 5 anos”, “De 5 a 8 anos”,
“Não aproxime ao fogo”, “Se a criança não souber os números pode se guiar
pelas cores”, “Molhe as pastilhas de aquarelas para pintar”, “Para conservar
o construtivismo e o programa da Bauhaus, apresentaram produções fantás-
ticas em termos de inserção de fatores importantes para a emergência da
instalação. Um exemplo que não poderíamos deixar de citar aqui, pois ele
nos ajuda a compreender o valor do espaço para a apresentação de seus
diversos elementos ali inseridos, é a “Sala PROUN”, do artista russo El
Lissitzky, exposta em Berlin, em 1923. O que é que faz questão? Justamen-
te algo fundamental: a arte é uma espécie de criação de um lugar. Ela provo-
ca intersecções entre a arte enquanto objeto e a arte enquanto processo,
onde é o espectador que finalmente deve dar sentido àquilo que se passa.
Como nos diz Michael Archer4, a significação, dentro de uma instalação, não
pode ser instantaneamente percebida ou reconhecida, pois ela não existe.
Precisamos, efetivamente, desta concepção de passagem da arte como coi-
sa à arte tornada alguma coisa que tem um lugar no momento de encontro
entre o espectador e um conjunto de estímulos.
Diz ainda o Manifesto Realista: “A arte deve esperar-nos onde quer
que a vida seja fluente e atuante... no banco, na mesa, no trabalho, no lazer,
no descanso: nos dias de trabalho e nas férias... em casa e fora dela... a fim
de que a chama de viver não se apague na humanidade”.5
Finalmente, temos aqui um encontro marcado: a obra vem a ser um
espaço para receber o espectador. Ali, é possível estar. Seja um espaço em
freqüente transformação, um work in progress, seja uma obra que não é
facilmente transportável nem vendável, que não é pintura nem escultura, nem
arquitetura como estamos tradicionalmente acostumados a conceber. Estes
são projetos de lugares concebidos especialmente para receber o especta-
dor de corpo inteiro. O percurso e as reações provocadas pelos materiais
“fazem” a obra. O “habitante-visitante” faz o quadro, isto é, assim como em
Marcel Duchamp, o estatuto do artista é colocado em questão.
4 Apud OLIVEIRA, N.; OXLEY, N; PETRY, M. Installations: l’art en situation. Paris:Thames &
Hudson, 1997.
5 CHIPP, op. cit, p.333.
JERUSALINSKY, A. As crianças do “ready made”.
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SEÇÃO TEMÁTICA
consulta, mesmo que seja a um psicanalista, costumam perguntar: “Qual é
o livro que o senhor recomenda lermos para poder ajudá-lo”. E, certamente,
tal demanda não aponta para serem orientados na travessia de uma experi-
ência literária – o que pode ser de grande interesse numa “cura” psicanalítica
–, mas ao fornecimento do popular “manual de instruções”, desta vez para o
manejo adequado do artefato chamado “filho”.1
Por sua vez, as crianças adaptam-se facilmente à supressão da
escansão entre o momento da demanda e o momento da satisfação. Res-
pondendo a uma lógica completamente “real”, porque deveriam esperar para
aceder ao que já está – por definição – pronto?
Afinal de contas, as crianças recebem, pela via do discurso social, a
definição antecipada do mundo em que deverão viver.
A genialidade de Duchamp consistiu em demonstrar que estávamos
sendo lançados a viver num mundo onde a “sopinha da mamãe” já não che-
garia além de um envelope de sopa instantânea. E o que restaria para nós
defendermos nosso lugar de sujeitos seria, simplesmente, assinarmos em-
baixo de algum fragmento dessa repetição.
As crianças compreederam isso: elas tomam os bonecos estândar,
as pequenas peças repetidas ad infinitum, e montam com elas sua própria
tragédia grega. Se a gente aguçar o ouvido, pode, ainda, escutá-las murmu-
rando baixinho – quase na clandestinidade – o argumento de sua novela.
Instruindo seus pequenos filhos de plástico para escapar da sinistra profecia
de uma genética inexorável.
1 Nossa resposta diante dessa demanda costuma ser: “Os senhores precisam apreder a ler
o livro que está escrito na cabeça de seu filho. E se não estiver escrito, ou tiver espaços em
branco, a pergunta fundamental não é como fazer para escrever ali, mas o que vocês
desejam escrever”.
as cores puras não misture os blocos de massa”, “O uso inadequado poderá
danificar o brinquedo”.
Trata-se de uma variedade de objetos que procuram, com toda evidên-
cia, se antecipar a qualquer criação; nossa industriosa sociedade coloca em
ato seu princípio: eu o fabriquei antes de você poder imaginá-lo. Ergo, não
imagine, nós o fazemos por você.
Ao mesmo tempo, contêm uma série de advertências, que concedem
ao sujeito um sossegado lugar de beatífica idiotice. Os pais não precisam
averiguar qual o brinquedo adequado para seu filho – ora! está claro, se ele
tem 3 anos tem que levar esse que é de 2 a 5 anos. Uma simples capa azul
não transformará seu filho em verdadeiro Superman. Não o sabia? Se seu
filho der banho, no vaso sanitário, no toca-fita colorido, seguramente ele vai
estragar. Pintar com pastilhas de aquarelas secas sempre foi muito difícil,
sobretudo se você não as molha. E se a pilha acabar, pois é, troque-a. Se
botar para cozinhar seu Kent, certamente, ele vai torrar.
Além dessa “poupança de pensamento”, que tais valiosas instruções
nos oferecem, elas também se ocupam de que nossos filhos não precisem
passar por fatigosas experimentações: não misture as cores, porque senão
irão se produzir outras; não perca tempo, siga precisamente o manual de
instruções e obterá um correto funcionamento, se não não.
A precipitação do objeto diante do nariz do sujeito procura, nas inflexões
atuais do discurso social, poupá-lo da responsabilidade de sua escolha, su-
pondo-o numa posição de tão absoluta ignorância, que tende a reduzi-lo a
um mero artefato de movimentos previamente pautados e operações previa-
mente programadas. Assim ocorre, também, na psiquiatria atual, que, ao
mesmo tempo que precreve o fármaco para corrigir o desperfeito, suprime a
interrogação acerca do valor subjetivo do sintoma. Nesse ponto, alia-se a
uma genética mecanicista, que supõe o humano pré-estabelecido em todos
os termos já nos seus gens; um destino pré-fixado nas cadeias de DNA, de
modo totalmente autônomo às suas vicissitudes.
A impregnação dessa proposta de “poupança do pensamento” alcan-
ça tal ponto, no discurso social, que os pais que chegam com seu filho à
JERUSALINSKY, A. As crianças do “ready made”.
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lugar marcante; no entanto, o que de melhor se produziu, aqui em termos de
literatura, foram textos ficcionais de memórias. Dom Casmurro entre eles.
Fischer refere o dito “O brasileiro não tem memória” como recorrente e con-
clui: parece que os escritores se puseram, então, a inventar as memórias do
Brasil na ficção.
Manhattan Connection2, maio de 99, discute-se no programa a expo-
sição recém inaugurada no Whitney Museum, NY: o século americano (cem
anos de arte americana – parte I, ou seja, os primeiros 50 anos do séc. XX).
Contardo Calligaris era o convidado! Ele faz uma observação bem interes-
sante. Conta que o filho, ao ver as pinturas dos artistas do início do século,
cenas de cowboys e índios, comenta: – “Olha, parece tirado do cinema...”
Ao que Contardo responde: justamente ao contrário, o cinema é que pôs em
cena o que essa pintura produziu, e todo o imaginário de velho oeste que de
alguma forma compartilhamos passa por esta criação, a gente é que muitasvezes não se dá conta disso (do fato de que há produções que criam uma
realidade). Traz como exemplo a cena do bar americano pintado por Edward
Hooper – Nighthawks – nenhum bar americano é o mesmo depois de Hooper.
Voltei aos textos e aos álbuns de Hooper, são incríveis. Uma curiosi-
dade: os críticos o referem como o pintor por excelência da “cena america-
na” ao que ele responde: “O que me deixa louco é esta história de cena
americana. Os pintores franceses não falaram de cena francesa, ou os ingle-
ses de cena inglesa. É enervante. A especificidade americana de um pintor
está nele, não há necessidade de lutar para aceder a este lugar. O valor de
uma arte proposta em função da identidade nacional é talvez uma questão
sem resposta.”3
Identidade nacional, brasilidade, Machado de Assis foi bem criticado,
na época, por não acentuar a chamada “cor local” (nem índios, nem araras,
MEMÓRIA E INVENÇÕES
 DO BRUXO DO COSME VELHO1
Lucia Serrano Pereira
“Há dessas reminiscências que não descansam antes que
a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegar
de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais
convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de
ter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora o
nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.”
 (Dom Casmurro, Machado de Assis)
As questões que nos colocamos hoje, em torno de Brasil 500 anos,têm nos levado nos levado à obra de Machado de Assis.Que bomabrir novamente as páginas de Dom Casmurro (sem a preocupação
com o vestibular – todo mundo começou Machado por ali, quem não se
lembra?). Estas obras que atravessam o tempo, tão marcantes de um con-
texto, nos fazem transitar entre o singular e o coletivo. Que Machado de
Assis produz memória do Brasil, parece tranqüilo. Mas como pensar essa
memória? Lembrança, reminiscência ou ainda outra formulação?
Ato criativo, narrativas ficcionais, aí vão algumas referências recentes
que me fizeram pensar:
Luiz Augusto Fisher, no texto “O ventre e a linhagem das memórias”,
chama a atenção para o fato de que no Brasil a escrita biográfica não fez
1 Artigo produzido a partir do texto Convivas de boa memória, apresentado na Jornada da
APPOA - 100 anos de Dom Casmurro – outubro de 1999.
PEREIRA, L. S. Memória e invenções...
2 Programa de debates na Tv a cabo.
3 DEBECQUE-MICHEL, L. Hopper. Hong Kong:Hazon, 1992.
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de intenções ou mesmo declarações amorosas. Não faltaram os que apon-
tassem em Machado de Assis, justamente, a falta de amor às nossas coi-
sas, seu estilo irônico como uma espécie de ofensa ao país. Paradoxalmen-
te, não se fala de Brasil sem falar de sua obra. Memória e criação. É nisso
que podemos dizer que, por exemplo, um Brasil do agregado se inventa com
o personagem de José Dias (o agregado da família de Bentinho, em Dom
Casmurro) tão trabalhado por Roberto Schwarz. Assim como Nighthawks
está para o bar americano, dali para frente sempre marcado por este contor-
no, por esta narrativa.
Se algo é recuperado, enquanto memória do Brasil nos escritos de
Machado de Assis, é uma memória que passa pela criação. Não é bem algo
da ordem de uma memória/lembrança do Brasil.
Lacan5, quando trabalha sobre a criação na arte, pergunta: a finalida-
de da arte é imitar ou não? A arte imita o que ela representa?
E ressalta que colocar a questão desta maneira já é cair numa rede
um pouco complicada, da qual é preciso se desenrolar. O que vai propor na
saída desse tipo de impasse? Ele diz, é claro que as obras de arte imitam os
objetos que elas representam, sua finalidade, porém, justamente, não é
representá-los. Fornecendo a imitação do objeto elas fazem outra coisa des-
te objeto. Faz uma referência às artes plásticas: “No momento em que
Cezanne pinta maçãs, trata-se evidentemente de que pintando maçãs ele
faz algo bem diferente de imitar maçãs – embora sua última maneira de
imitá-las, que é a mais impressionante, seja a mais orientada para uma
técnica de presentificação do objeto. Porém, quanto mais o objeto é pre-
sentificado enquanto imitado, mais abre-nos ele essa dimensão onde a ilu-
são se quebra e visa outra coisa.” A relação com o real, nesse momento, se
renova na arte, faz surgir o objeto de uma outra maneira, constitui uma reno-
vação de sua dignidade, por onde as inserções são batizadas de uma nova
etc.). Concernido por estas questões, respondeu, a meu ver, como Hooper,
perguntando – Romeu e Julieta não tem relação com o território britânico,
mas Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencial-
mente inglês? No texto conhecido como “Instinto de nacionalidade”, Macha-
do propõe: “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nas-
cente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua
região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam.
O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo
que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando se trate de
assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França,
analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia
que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo,
assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o
dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor
do que se fora apenas superficial.”4
É bem verdade que soa completamente enigmático “a especificidade
do pintor americano está nele mesmo”, ou o “sentimento íntimo que o torne
homem do seu tempo e do seu país”, ou mesmo o “scotticismo interior”. Não
vamos nos perder nisso, tentando estabelecer qualquer delimitação de cu-
nho nacionalista, de identidades, buscando entre os significantes que orga-
nizam nossos lugares subjetivos, aquele que representasse a identidade
nacional. Tomo essas falas como interessantes no ponto em que indicam
algo dos lugares em uma estrutura que permite a produção de um sujeito
como efeito dessa cultura, ou seja, tudo o que se articula com o campo do
Outro. Sentimento íntimo? Talvez Machado de Assis tenha encontrado, as-
sim, uma forma de dizer das posições subjetivas possíveis, para cada um,
relativas ao tempo e contexto de discurso e que compõem, que organizam,
essas condições de enunciação. Efeitos, “falar a partir de”, não declaração
PEREIRA, L. S. Memória e invenções...
4 ASSIS, Machado. Obras Completas . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1975. 5 LACAN, J. O seminário: Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1989.
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maneira.
Nesse sentido, podemos propor, de alguma forma, que um artista cria
a realidade, a qual poderíamos pensar que ele estaria ilustrando.
Nesses termos, Machado de Assis cria, produz memória do Brasil.
John Gledson considera “Dom Casmuro” como uma obra que tem por objeti-
vo nos oferecer um panorama da sociedade brasileira do século XIX – o ro-
mance nos trazendo verdades de todos os tipos, de dinheiro, religião, sexo,
família, classe, política, relações pessoais, sobre o uso da linguagem, da
imagem, etc.
Tenho dúvidas quanto à idéia de que o livro tem por objetivo esse
panorama, o que dizer do lado das intenções do autor? Mas estou de acordo
em pensar que se produzem ali essas verdades do contexto brasileiro, de
um Brasil que ele “inventa” ao mesmo tempo em que escreve.
“Criar é sempre criar um futuro, isso não implica que uma criação seja
sem passado” – esta frase de René Passeron6 tem nos dado bastante traba-
lho.
Criar é sempre criar um futuro – faz pensar nessas produções narrati-
vas que tem a ver com a criação, com um efeito de transformação do real, do
laço do singular com o coletivo de uma forma inovadora. E que acabam
propondo o nihil da criação como se produzindo “na frente”, e não atrás
(referindo a criação ex-nihilo, “criação a partir

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