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Brasil e França - Uma síntese comparativa dos sistemas de justiça

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Modelos e Instituições de Segurança Pública em Perspectiva Comparada II (2018.2) 
Evelyn Lopes Pereira da Silva 
Brasil e França: Uma síntese comparativa dos sistemas de justiça 
Introdução 
O sistema de justiça francês e brasileiro possuem características distintas que permitirão a síntese 
por meio do contraste dos textos abordados na disciplina. Desse modo, os temas trabalhados nos 
textos, informam sobre os procedimentos de funcionamento dos sistemas de dois países que 
adotaram como estrutura jurídica a civil law. Porém, apesar de ambos adotarem a civil law, as 
influencias culturais implicaram em diferenciadas práticas do sistema judiciário francês e brasileiro. 
Resultando em problemas e soluções distintas mas que de algum modo tocam-se em aspectos 
semelhantes devido a adoção da civil law. 
As Public Policy são medidas do Estado que também foram adotadas pelo sistema jurídico francês 
para melhorar a sua eficiência, o termo que por meio da tradução literal para o contexto brasileiro 
transforma-se em políticas públicas, possui uma relação divergente com o Estado daquela que é 
comumente encontrada com o Estado brasileiro. Uma vez que, na França as Public Policy não são 
absolutamente ligadas ao Estado, embora no Brasil quando há a tradução do termo ele converte-se 
em política e conecta-se automaticamente a ele. Demonstrando como os direitos brasileiros partem 
do Estado para a população, onde os cidadão de certa forma pouco ou quase não participam de algo 
que interfere na sua vida pública e privada. 
A justiça brasileira é repleta de relações de poder, subordinação e conflitos/disputas de interesses, 
onde a condição social e poder econômico dos indivíduos são fatores que influenciam na tomada de 
decisões. Uma sociedade que é pautada na desigualdade entre classes, onde as classes superiores 
possuem mais privilégios que as demais, a justiça tornou-se um retrato daquilo que é retratado na 
sociedade brasileira, implicando na questão de que “(…) para mudar a Justiça é necessário mudar a 
própria sociedade, assim como para mudar a sociedade é necessário transformar a Justiça” 
(Sinhoretto, 2005, p. 141). 
Sistemas de Justiça do Brasil e França 
A ideia de cidadania e exercício de direitos é algo pensando de forma diferente no Brasil e na 
França, sofrendo influencias da aproximação com o Estado, que pode ser vista como uma possível 
interferência ou não na vida do cidadão (Wyvekens, 2010). No Brasil, apesar da ampliação do 
Estado, isso não proporciona a administração dos conflitos e o acesso a justiça (Sinhoretto, 2007), 
tornando-a caracterizada pelo seu tratamento desigual e excludente. Sendo a consequência da forma 
tradicional em como os serviços de justiça são prestados e do jeito que são oferecidos, de maneira 
que torna-se uma das problemáticas determinantes na justiça brasileira. A partir disso, surgem 
medidas que visam amenizar a distância entre os cidadãos e o sistema jurídico, as quais foram 
implantadas na França e no Brasil com objetivos semelhantes. 
A fim de efetuar uma reforma na justiça, em especial em São Paulo, houve a instalação dos Centros 
de Integração da Cidadania (CIC), o qual foi objeto de pesquisa de (Sinhoretto, 2007) por meio da 
observação participante. Do mesmo modo que a justiça de proximidade francesa, os CIC 
pretendiam aproximar as leis com a população, tornando-a mais acessível e com a resolução dos 
problemas de modo mais prático. Posteriormente, foram adicionados ao CIC o Juizado Informal de 
Conciliação e o Juizado Especial Civil, apesar de não serem encontrados em todos os CIC, o que de 
certa forma desigualava os serviços que deveriam ser oferecidos igualmente. Ainda que a proposta 
inicial tenha sido de reformar a justiça, buscando ampliar os direitos depois de um longo período de 
cassação dos mesmos, os CIC não viabilizaram a igualdade de todos perante as leis e a ampliação 
do Estado de direito (Sinhoretto, 2007). Dado que, apesar do desejo de que a informalidade 
facilitasse as relações, a combinação com a fragmentação e pluralismo jurídico fez com que 
ocorresse o afastamento da construção de cidadania (Sinhoretto, 2007). 
Enquanto que o governo de São Paulo desenvolveu e implantou os Centro de Integração da 
Cidadania para conciliar os cidadãos com o seus direitos, na França criou-se a justiça de 
proximidade para ampliar o acesso a justiça e alcançar os cidadãos, medida que foi realizada 
primordialmente por meio das casas de justiça e direito, as quais eram instaladas em bairros de 
periferia com o objetivo inicial de reunir representantes em prol da expansão do acesso aos direitos 
e para proporcionar um “(…) tratamento judiciário mais rápido da pequena delinquência” 
(Wyvekens, 2010, p. 233). Posteriormente, as Maisons de la justice et du droit foram substituídas 
pela justiça de proximidade, passando a ser formalizada e jurídica. Desse modo, (Wyvekens, 2010) 
afirma que a proximidade geográfica, humana e temporal foram características que permitiram a 
aproximação do direito de pessoas/locais afastados com a possibilidade de mediação. 
A figura do juiz de proximidade sofre uma série de problemas interacionais com outros 
profissionais de direito. Com isso, as relações profissionais são marcadas pelo estigma recebido 
pelos juizes de proximidade, os quais trabalharam com o constante medo do apontamento de erros 
pelos magistrados (Geraldo, 2011). Isto é causado pelo fato de que o juízes de proximidade não 
precisam obrigatoriamente da formação em direito como pré-requisito para exercer a função, 
mesmo que boa parte deles tenham conhecimentos sobre direito. Diante disso, os juízes de 
proximidade sentem-se regularmente vigiados por aqueles que são magistrados. Assim, estes são os 
detentores do capital simbólico, pois tem o poder de dizer o que é o direito, aqueles que não 
possuem esse poder e estão fora do campo jurídico, são enquadrados como profanos (Bourdieu, 
2002), gerando uma separação entre os grupos e uma consequente violência simbólica efetuada 
pelos magistrados. 
A carreira de magistrado é iniciada por meio da aprovação no concurso público de ingresso, estágio 
e o aperfeiçoamento na escola de magistratura. Entretanto, para a França aprimorar o sistema de 
ingresso de magistrados após a crise, foram necessários debates para transformar o modo de 
formação na magistratura francesa, a fim de torná-lo democrático e proporcionar a entrada de novos 
magistrados de classes diferenciadas. Pois, até o “(… ) pós segunda guerra mundial é ainda 
marcado pelas modalidades tradicionais segundo as quais são o capital econômico e social herdados 
que determinam o acesso à uma posição (…).” (Boigeol, 2010, p. 66). No Brasil, os concursos 
públicos tornaram-se basicamente a única maneira de seguir carreira na magistratura no Estado 
(Fontainha, 2015), constituindo-se em um meio de alcançar a ascensão e o reconhecimento social. 
Todavia, para conseguir ingressar na carreira, os fatores socioeconômicos ainda são determinantes 
para conquistar a aprovação e inserção na magistratura. 
Os candidatos necessitam adotar estratégias que permitirão a sua boa classificação e consequente 
aprovação. Segundo a análise de (Fontainha, 2015), os concursos públicos são definidos por 
interações e regras que caracterizam a relação entre o candidato e os magistrados, o que de certo 
modo cria um ambiente cênico de acordo com a teoria dos jogos de Goffman. Apesar de Fernando 
Fontainha retratar os concursos da magistratura francesa, os concursos brasileiros também são 
marcados por disputas estratégicas, o que em alguns casos motiva o candidato recorrer ao auxílio do 
serviço de coaching, para assessora-lo em busca de alta performance perante a banca avaliadora. À 
vista disso, não trata-se somente de conhecimento sobre as leis, é necessário mais, desejando-se um 
comportamento que seja compatível com as regras dispostas implicitamente pelos magistrados 
avaliadores(Fontainha, 2015). 
O concurso de ingresso, de certa forma, demonstra-se ser um preparativo para como serão as 
interações de disputa dentro da magistratura. A competição é algo intrínseco no direito, os 
profissionais do sistema de justiça disputam o poder e tentam desqualificar as ocupações por meio 
do que (Bonelli, 2010) chama de disputas interprofissionais e intraprofissionais. Ela recorreu a 
observações e entrevistas que foram realizadas com juízes, promotores, advogados, delegados de 
polícia, advogados e funcionários de cartório judicial, para captar informações acerca da temática e 
poder compreender que a competição interprofissional demonstra a “(...) disputa por enfoques, 
perspectivas, privilégios, monopólios sobre objetos, campo de atuação e poder de decisão” (Bonelli, 
2010, p. 38), pois concerne a relações de disputa entre cargos que de certo modo, são hierárquicos. 
Enquanto que a competição intraprofissional refere-se a aquela que ocorre entre os indivíduos do 
meio jurídico que ocupam funções iguais. 
Do mesmo modo que há as relações hierárquicas entre os profissionais do direito, a aproximação 
entre os juízes e leigos da-se na maior parte das vezes de maneira desigual, seja pela diferença de 
postos ocupados ou pela linguagem diferenciada comumente utilizada no âmbito jurisdicional. O 
resultado disso é uma relação assimétrica dessa interação entre juízes e jurisdicionados franceses, 
de forma que os juízes se empenham para traduzir o direito em termos práticos, e os jurisdicionados 
se esforçam para aprender o contexto da audiência e a linguagem ali abordada (Geraldo, 2013). 
Todavia, no Brasil os jurisdicionados leigos dedicam-se a aprender os acontecimentos do ambiente 
jurídico, mas por outro lado os juízes não demonstram interesse em facilitar a compreensão dos 
termos e linguagem, o que dificulta essa aproximação. 
Nas audiências do Juizado de Menores do Tribunal de Grande Instance que ocorrem na França, a 
linguagem varia de formal a informal e são realizadas em um ambiente próximo e reservado para 
propiciar a administração do conflito através de um diversificado ritual de interação, o qual abarca 
vários atores (magistrados, advogados, assistentes sociais, famílias, crianças) (Israel, 2010). Visto 
que as relações entre os atores são hierarquizadas e marcadas pela violência simbólica do direito 
retratada por (Bourdieu, 2002), as decisões realizadas de modo a construir acordos, precisam 
recorrer a outros recursos, como ligações telefônicas (Israel, 2010). Diante disso, o objetivo é que 
os acordos busquem interferir na resolução da problemática enfrentada pelo envolvido diretamente 
no processo e auxiliar os familiares por meio de ações que influenciem na educação do menor, 
prezando pela solução do conflito. 
Considerações Finais 
O sistema jurídico francês segue uma lógica diferenciada da realidade presenciada no Brasil, o 
Estado brasileiro exerce uma relação de poder sobre a sociedade de um modo que interfere na vida 
dos indivíduos. Porém, para os franceses isso não é visto como algo desejável para uma sociedade 
republicana que preza por um ambiente igualitário. Ao passo que no Brasil a desigualdade é vista 
como algo frequente e que está impregnado no cotidiano da vida da população, trazendo 
consequências para os cidadãos que acabam sofrendo com o sistema de justiça seletivo. Parte disso 
advém da supervalorização dos magistrados, os quais são vistos como detentores do direito e de 
uma linguagem que não contribui para uma acessível compreensão, o que demanda a presença de 
um advogado. 
Em vista disso, algumas políticas públicas ou public policy, como a Justiça de Proximidade na 
França e os Centros de Integração da Cidadania (CIC) no Brasil, foram implementadas para 
amenizar a distância entre a justiça e os indivíduos que possuem certa dificuldade em acessa-la. 
Ambas passaram por obstáculos, como a desconfiança dos magistrados em relação aos juízes de 
proximidade e desarticulação entre os órgãos essenciais para os CIC, de forma que a efetivação e o 
desenvolvimento das mesmas foi afetado. Ainda assim, isso não mudou o fato de que são 
consideradas de essencial importância para a população. 
Portando, para chegar aos resultados e problemas apresentados, os autores utilizaram metodologias 
como a etnografia, pesquisa documental e ensaio, de maneira a contribuir para a exibição das 
temáticas abordadas sobre o contexto institucional referente ao sistema jurídico do Brasil e da 
França. Colaborando para que, a partir do conteúdo de cada texto fosse possível a realização de uma 
síntese comparativa sobre o olhar de diferentes perspectivas da realidade de cada sociedade. 
Referências 
BOIGEOL, Anne. A formação dos Magistrados: Do aprendizado na prática à escola profissional. 
Revista Ética e Filosofia Política, v. 2, n. 12, p. 61 - 97, 2010. 
BONELLI, Maria da Glória. “As interações dos profissionais do direito em uma Comarca do 
Estado de São Paulo”. In: SADEK, M. (org). O sistema de justiça. Rio de Janeiro: Centro 
Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. p. 24-70. 
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico: A força do direito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand 
Brasil, 2002. p. 209-254. 
FONTAINHA, Fernando. Interação Estratégica e Concursos Públicos: Uma Etnorafia do Concurso 
da Magistratura Francesa. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 58, n. 4, 2015, p. 1057 – 
1098. 
GERALDO, Pedro Heitor Barros. A proximidade dos juízes: Uma análise da socialização de juízes 
não-profissionais. Revista de Ciênciais Sociais, Rio de Janeiro, v. 17, 2011, p. 289–319. 
___________________________. A audiência judicial em ação: uma etnografia das interações 
entre juristas e jurisdicionados na França. Revista Direito FGV, São Paulo v. 9, n 2, 2013, p. 
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ISRAEL, Liora. Encenações de uma justiça cotidiana. Revista Ética e Filosofia Política, v. 2, n. 
12, 2010, p. 158- 183. 
SINHORETTO, Jacqueline. Corpos de poder: operadores jurídicos na periferia de São Paulo. 
Sociologias, Porto Alegre, n. 13, Junho, 2005. p. 136-161. 
_______________________. Reforma da justiça (estudo de caso). Tempo Social, v. 19, n. 2, 2007, 
p. 157-177. 
WYVEKENS, Anne. A justiça de proximidade, aproximar a justiça dos cidadãos? Civita, Porto 
Alegre, v.10 n. 2, 2010, p. 233 – 244.

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