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Tomaz Tadeu da Silva DOCUMENTOS de IDENTIDADE Umaintrodução às teorias do currículo Traçar Jam mapá dos estudos sobre currículo desde SH Rencsc;mpsiáinos vinte, atéeteorias póscríticas é o | que se propõe este livro. Em capítulos ncurtos e redibidos emlinguagem direta o autor nos f m. panorama sini tico, mas abrangente, das princi perspectivassobre Clrrícuto. 4 O que ensinar” se. comida do cur questão que rículo. temt princípio, as teoria responder, Concebida nas perspectivas tradicionais comouma questão simplesameiie técni naria mais cojhplexa na medi Ea] ensin dida e se coficentravam náquestão ABlcemo ensinar” Para essas, o cuirículoSA perspectivas, “teori tir as melhores e mais ef clentes formas de organizáro. As teorias criticas iriam contestar, de forma radical, esse movim o seria, o nar o conhecimemocorporificadono cur rículo, Elas então perguntam: por quees conheci faz pare do curriculo e não outro? Por que alguns conhecimentos são considerados validose não outros? Quais são os interesses e as relações depos » quedeterminados cu abem fazendo parte da ros ãoeia der que fazem € nhecimentos Copyright 1999 by Tomaz Tadeu da Siva CAPA Jairo Alvarenga Fonseca, composição sobre as pinturas “The teacher (suba” “Jesus — Serene", de Marlene Dumas, reproduzidas com autorização da artista, do livro Marlene Dumas, de autoria de Dominic van den Boogerd, Barbara Bloom e Mariuccia Casadio,publicado pela editora Phaidon. EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Woldênia Alvarenga Santos Ataide REVISÃO Roberto Arreguy Maia Siva, Tomaz Tadeu da S586d * Documentos de idendidade ; uma introdução às teorias do currículo / Tomaz Tadeuda Silva - 2.ed. 9º reimp. — Belo Horizonte: Autêntica, 2005. I56p. ISBN 85.86583-44.8 |. Educação 2, Currículos escolares. |. Título cou37 3712141 2005 tidos às dircitos reservados pela Autêntica Editora «causa pane desta publicaçãopederá ser teproduzida, seja por meios mecânicos cia cópia serogeálica sem a autorizaçãoprévia da ediura AUTÊNTICA EDITORA Nova Floresta — fela Horizontina ua São Bartolomeu, 16% 140.200 —PABX: (55 31) M24 3022 vi autenticaeditora-combr emmadt amenaautemicaeditora com br Agradecimentos Meu muito obrigado às pessoasque leram as primeiras versões deste livro e me deram valiosas sugestões: Alfredo, Antonio Flávio, Gelsa, Guacira, Sandra. Agra- deço, especialmente, à Guacira, o estímulo e o apoio que me fizeram sobreviver às solitárias sessões frente à tela do computador. Agradeçoà Rejane, da Autêntica Editora, pelo apoio irrestrito à concepção do livro. LIVRARIA CONHECER TEL. (011) 4506-2951 asas-ao70 Sumái |. INTRODUÇÃO Teorias do currículo: o que isto? Hl. DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS TEORIAS CRÍTICAS Nascem os “estudossobre curriculo"as teorias tradicionais Onde a crítica começa:ideologia, reprodução,resistência Contra a concepçãotécnica: os reconceptualistas A crítica neomarxista de Michael Apple currículo comopolítica cultural: Henry Giroux Pedagogia do oprimido versus pedagogia dos conteúdos O currículo como construção social, a “nova sociologia da educação” Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein Quem escondeu o currículo oculto? HI. AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS Diferença e identidade: o currículo multiculturalista Asrelaçõesde gênero e a pedagogia feminista currículo como narrativa érnicae racial Umacoisa “estranha”no currículo: a teoria queer fim das metanarrativas: o pós-modernismo A crítica pós-estruturalista do currículo Umateoria pós-colonialista do currículo Os EstudosCulturais e o currículo pedagogia como cultura, a cultura como pedagogia IV. DEPOIS DAS TEORIAS CRÍTICASE PÓS-CRÍTICAS Currículo: uma questão de saber, podere identidade REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 24 292 37 45 HI) 57 5 71 7” E 91 9 105 o A 125 BI 139 145 151 1. INTRODUÇÃO Teorias do currículo: o queé isto? O que é umateoria do currículo? Quando se pode dizer que se tem uma “teoria do currículo"! Onde começae como se desenvolve a história das teorias do currículo? O que distingue uma “teoria do currículo” da teoria educacional mais ampla? Quais sãoas principais teorias do currículo? O que distingue as teorias tra- dicionais das teorias críticas do currículo? E o que distingue as teoriascríticas do currículo das teorias pós-críticas? Podemos começar pela discussão da própria noção de “teoria”. Em geral, está implícita, na noção de teoria, a suposição de que a teoria “descobre” o “real”, de que há uma correspondência entre a “teoria” e a “realidade”. De uma forma ou de outra, à noção envolvida é sempre representacional, especular, mimética: a teoria representa, reflete, espelha a reali- dade. A teoria é umarepresentação, uma imagem, um reflexo, um signo de uma realidade que — cronologicamente, on- tologicamente — a precede. Assim, para já entrar no nosso tema, uma teoria do currículo começaria por suporqueexiste, “láfora”, esperando para ser descoberta, descrita e explicada, uma coisa chamada curriculo”. O currículo seria um objeto que precederia a teoria, a qual só entraria em cena para descobri-lo, descrevê-lo, explicá-lo. Daperspectiva do pós-estruturalismo, hoje predominante na análise social e cul- tural, é precisamente esse viés represen- tacional que torna problemáticoo próprio conceito de teoria. De acordo com essa visão, é impossível separar a descrição simbólica, lingúística da realidade — isto é, a teoria — deseus “efeitos de realida- de”, A “teoria” não se limitaria, pois, a descobrir, a descrever,a explicar a reali- dade: a teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descre- ver um “objeto”, a teoria, de certo modo, inventa-o. O objeto quea teoria suposta- mente descreve é, efetivamente, um pro- duto de suacriação. Nessadireção, faria mais sentido falar não em teorias, mas em discursos ou tex- tos. Ao deslocar à ênfase do conceito de teoria para o de discurso,a perspectiva pós-estruturalista quer destacar precisa- mente o envolvimento das descrições lin- glísticas da “realidade”em sua produção. Uma teoria supostamente descobre e descreve um objeto que tem umaexis- tência independente relativamente à teo- ria. Um discurso, em troca, produz seu próprio objeto:a existência do objeto é inseparável da tramalinguística que su- postamente o descreve. Para voltar ao nosso exemplo do “currículo”, um dis- curso sobre o currículo — aquilo que, numaoutra concepção,seria umateoria — não se restringe a representar uma coisa que seria o “currículo”, que existi- ria antesdessediscursoe que está ali ape- nas à espera de ser descoberto e descrito. Um discurso sobre o currículo, mesmo que pretenda apenas descrevê-lo “tal como ele realmente é”, o que efetivamen- te faz é produzir umanoçãoparticular de currículo. A suposta descrição é, efetiva- mente, umacriação. Doponto de vista do conceito pós-estruturalista de discurso,a teoria” está envolvida num processocir- cular: ela descreve como umadescober- taalgo que ela própria criou. Ela primeiro cria e depois descobre, mas, por um arti- fício retórico, aquilo que ela cria acaba aparecendo como uma descoberta. Podemosver comoisso funciona num caso concreto. Provavelmente o currículo aparece pela primeira vez como um ob- jeto específico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos dosanosvinte. Em co- nexão com o processo de industrializa- ção e os movimentosimigratórios, que intensificavam a massificação da escolari- zação, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas sobretudo à administra- ção da educação, para racionalizar o pro- cesso de construção, desenvolvimento e testagem de currículos. As idéias desse grupo encontram sua máxima expressão no livro de Bobbit, The curriculum (1918). Aqui, O currículo é visto como um pro- cesso de racionalização de resultados edu- nais, cuidadosa e rigorosamente ificadose medidos. O modelo insti- tucional dessa concepção de currículo é a fábrica. Sua inspiração “teórica” é a “ad- ministração cientifica”, de Taylor. No modelo decurrículo de Bobbitt, os estu- dantes devem ser processados como um produro fabril. No discurso curricular de Bobbitt, pois, o currículo é supostamen- te isso; a especificação precisa de objeti- vos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados. Se pensamos no modelo de Bobbitt através da noção tradicional de teoria,ele teria descoberto e descrito o que, verdadeiramente,é o “currículo”. Nesse entendimento,o “cur- rículo”sempre foi isso que Bobbitt diz ser: ele se limitou a descobrilo e ades- crevêlo, Da perspectiva da noção de “discurso”, entretanto, não existe ne- nhum objeto “lá fora" que se possa cha- mar de “currículo”. O que Bobbitt fez, comooutros antes e depois dele,foi criar uma noção particular de “curriculo”. Aquilo que Bobbitt dizia ser “currículo” passou, efetivamente,a ser o “currículo”. Para um número considerável de esco- fas, de professores, de estudantes, de ad- ministradores educacionais, “aquilo”que Bobbitt definiu como sendocurrículo tor- nou-se uma realidade, A noção de discurso teria uma vanta- gem adicional. Ela nos dispensaria de fazer 0esforço de separar — como seria- mos obrigados, se ficássemos limitadosà noção tradicional de teoria — asserções sobre arealidade de asserções sobre como deveria sera realidade, Comosa- bemos, as chamadas “teorias do curricu- lo”, assim como as teorias educacionais mais amplas, estão recheadas de afirma- ções sobre como as coisas deveriam ser. Da perspectiva da noção de discurso, es- tamos dispensados dessa operação,na medida em que tanto supostas asserções sobre a realidade quanto asserções so- bre comoa realidade deveria ser têm “efeitos de realidade” similares, Para di zer de outra forma, supostas asserções sobre a realidade acabam funcionando como se fossem asserções sobre como a realidade deveria ser. Elas têm o mesmo efeito: o de fazer com quea realidade se torne o que elas dizem que é ou deveria ser. Para retomar o exemplo de Bobbitt, &irrelevante saber se ele está dizendo que o currículo é, efetivamente, um proces. so industrial e administrativo ou, em vez disso, que o currículo deveria ser um pro- cessoindustrial e administrativo. O efei- to final, de uma forma ou outra, é que o currículo se torna um processo industrial administrativo. Apesar dessas advertências, a utilização dapalavra “teoria” está muito amplamen- te difundida para poder ser simplesmente abandonada. Em vez de simplesmente abandoná-la,parece suficiente adotar uma compreensão da noção de “teoria” que nos mantenha atentos ao seu papel ativo na constituição daquilo que ela suposta- mente descreve. É nesse sentido que a palavra “teoria”, aolado das palavras “dis- curso”e “perspectiva”, será utilizada ao longo deste livro. A adoção de uma noção de teoria que levasse em conta seus efeitos discursivos nos pouparia de uma outra dor de cabe- çaa das definições. Todo livro de curri culo que se preze inicia com uma boa discussão sobre o queé,afinal, “curricu- lo”. Em geral, começam comas definições dadas pelo dicionário para, depois, per- correras definições dadas por uns quan- tos manuais de currículo. Na perspectiva aqui adotada, que vê as “teorias” do cur- rículo a partir da noção de discurso,as definições de currículo nãosão utilizadas para capturar,finalmente, o verdadeiro significado de currículo, para decidir qual delas mais se aproxima daquilo que o currículo essencialmente é, mas, em vez disso,para mostrar que aquilo que o cur- rículo é depende precisamente da forma comoele é definido pelos diferentes au- tores e teorias. Uma definição não nos revela O que é, essencialmente, o curri- culo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o curri culo é, A abordagem aqui é muito menos ontológica (qual é o verdadeiro “ser” do currículo?) e muito mais histórica (como, em diferentes momentos, em diferentes teorias, o currículo tem sido definido?) Talvez mais importante e mais interes- sante do que a busca da definição última de “currículo”seja a de saber quais ques- tões uma “teoria” do currículo ou um discurso curricular busca responder. Per- correndoasdiferentes e diversas teorias do currículo, quais questões comunselas tentam, explícita ou implicitamente, res- ponder? Além das questões comuns, que questões específicas caracterizam as di- ferentes teorias do currículo? Comoes- sas questões específicas distinguem as diferentes teorias do currículo? A questão central queserve de pano de fundo para qualquer teoria do currícu- lo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado, De umaforma maissintética a questão central é: o quê? Para respon- dera essa questão,as diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do co- nhecimento, da cultura e da sociedade. As diferentes teorias se diferenciam, inclusi- ve, pela diferente ênfase que dão a esses elementos. Ao final, entretanto,elas têm que voltar à questão básica: o que eles ou elas devem saber? Qual conhecimento ou saber é considerado importante ou válido ou essencial para merecer ser considera- do parte docurrículo! A pergunta “o quê?”, por sua vez, nos revela que as teorias do currículo estão envolvidas, explícita ou implicitamente, em desenvolvercritérios de seleção que justifiquem a resposta que darão àquela questão. O currículo é sempreo resulta- do de umaseleção: de um universo mais amplo de conhecimentose saberessele- ciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo, As teorias do currículo, tendo decidido quais conheci- mentos devem ser selecionados, buscam justificar por que “esses conhecimentos” não “aqueles” devem ser selecionados. Nas teorias do currículo, entretanto,a pergunta “o quê?”nunca está separada de uma outra importante pergunta:“o que eles ou elas devem ser?” ou, melhor, “o que eles ou elas devem se tornar?”Afinal, um currículo busca precisamente modif- car as pessoas que vão “seguir” aquele currículo, Na verdade, de algumaforma, essa pergunta precede à pergunta “o quê”, na medida em queas teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento consi- deradoimportante justamente a partirde descrições sobre o tipo de pessoa queelas consideram ideal, Qual é o tipo de ser hu- mano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoaracionale ilus- trada do ideal humanista de educação? Será pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cida- dania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses “modelos” de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo. No fundodas teorias do currículo está, pois, uma questão de “identidade” ou de “subjetividade”, Se quisermosrecorrer à etimologia da palavra “currículo”, que vem do latim curriculum, “pista de corrida”, podemos dizer que no curso dessa “corri- da” que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões coti- dianas, quando pensamos em currículo pensamosapenas em conhecimento,esque: cendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmen- te, centralmente, vitalmente, envolvido na- quilo que somos,naquilo que nostornamos: nanossa identidade,na nossa subjetivida- de. Talvez possamos dizer que,além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão deidentidade. É so- breessa questão,pois, que se concentram tambémas teorias do currículo. Da perspectiva pós-estruturalista, po- demos dizer que o currículo é também uma questão de podere queas teorias do currículo, na medida em que buscam dizer o que o currículo deve ser, não podem deixar de estar envolvidas em questões de poder. Selecionar é uma ope- ração de poder.Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de po- der. Destacar, entre as múltiplas possibi- lidades, umaidentidade ou subjetividade como sendoa ideal é uma operaçãode poder. As teorias do currículo não es- tão, neste sentido, situadas num campo “puramente” epistemológico, de compe- tição entre“puras”teorias. As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso,de obter hegemonia. As teorias do currí- culo estão situadas num campo episte- mológicosocial. As teorias do currículo estão no centro de um território con- testado. É precisamente questão do poder que vai separar as teorias tradicionais das teo- ras críticas e pós-críticas docurrículo. As teorias tradicionais pretendem ser apenas isso: “teorias” neutras,científicas, desin- teressadas. As teorias críticas e as teorias pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhumateoriaé neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavel- mente, implicada em relações de poder. Asteorias tradicionais, ao aceitar mais fa- cilmente status quo, os conhecimentose os saberes dominantes, acabam por se concentrar em questões técnicas. Em ge- ral, elas tomam resposta à questão “o quê?" como dada, como óbvia e por isso buscam responder a uma outra questão: "eomo?”, Dado que temos esse conheci- mento (inquestionável?) a ser transmitido, qual é a melhorforma de transmiti-lo? As teorias tradicionais se preocupam com questões de organização. As teorias críti- case pós-críticas, porsuavez, não se limi- tam a perguntar “o quê?', mas submetem este “quê” a um constante questionamen- to, Suaquestãocentral seria, pois, não tanto mas “por quê?”. Por que esse conhecimento e não outro? Quais interes- ses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo? Por que privilegiar um determinado tipo de iden- tidade ou subjetividade e não outro? As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexõesen- tre saber, identidade e poder. Comovimos, umateoria define-se pe- los conceitos que utiliza para conceber a “realidade”. Os conceitos de uma teoria dirigem nossaatenção para certas coisas que sem eles não “veríamos”. Os concei- tos de umateoria organizam estruturam nossa forma de ver “realidade”, Assim, uma formaútil de distinguirmosasdife- rentes teorias do currículo é através do examedos diferentes conceitos queelas empregam. Neste sentido,as teorias criti- cas de currículo, ao deslocar à ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino & aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder, por exemplo, nos permitiram ver a educação de uma nova perspectiva. Da mesmaforma,ao enfatiza- rem o conceito de discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias pós-criti- cas de currículo efetuaram um outro im- portante deslocamento na nossa maneira de concebero currículo. Por isso, à medi- da que percorrermos, nos tópicos a se- guir, as diferentes teorias do currículo, pode ser útil ter em mente o seguinte qua- dro, que resume as grandescategorias de teoria de acordo com os conceitos que elas, respectivamente, enfatizam. TEORIAS TRADICIONAIS aprendizagem avaliação organização planejamento eficiência objetivos TEORIAS CRÍTICAS ideologia reprodução cultural e social poder classesocial capitalismo relações sociais de produção conscientização emancipação e libertação currículo oculto resistência TEORIAS PÓS-CRÍTICAS identidade, alteridade, diferença subjetividade significação e discurso saber-poder representação cultura gênero, raça, etnia, sexualidade multiculturalismo H. DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS TEORIAS CRÍTICAS Nascem os “estudos sobre currículo” as teorias tradicionai A existência de teorias sobre o curri- culo está identificada com a emergência do campo do currículo como um campopro- fissional, especializado, de estudose pes- quisas sobre o currículo. As professoras e os professores de todas as épocas e luga- res sempre estiveram envolvidos, de uma forma ou outra, com currículo, antes mesmo que o surgimento de uma palavra especializada como “curriculo” pudesse designar aquela parte de suasatividades que hoje conhecemos como “curriculo”. A emergência do currículo como campo de estudosestá estreitamenteligada à pro- cessostais comoa formação de um corpo de especialistas sobre currículo, a forma- ção de disciplinas e departamentos univer- sitários sobrecurriculo,a institucionalização de setores especializados sobre currículo ma burocracia educacional do estado e o surgimento de revistas acadêmicas espe- cializadas sobre currículo. Decerta forma, todas as teorias peda- gógicas e educacionais são também teorias sobre o currículo. As diferentes filosofias educacionais e as diferentes pedagogias, em 2 diferentes épocas, bemantes da institucio- nalização do estudo do currículo como campo especializado, não deixaram de fa- zer especulações sobre o currículo, mes- moquenão utilizassem o termo. Masasteorias educacionais e peda- gógicas não são, estritamente falando, teorias sobre o currículo. Há anteceden- tes, na história da educação ocidental moderna, institucionalizada, de preocu- pações com a organização da atividade educacional e até mesmo de uma aten- ção consciente à questão do queensi- nar. A Didactica magna, de Comenius,é um desses exemplos. A própria emer- gência da palavra curriculum, no sentido que modernamente atribuímos ao ter- mo,está ligada à preocupações de or- ganização e método, comoressaltam as pesquisas de David Hamilton. O termo curriculum, entretanto, no sentido que hoje lhe damos,só passou a ser utiliza- do em países europeus como França, Alemanha, Espanha, Portugal muito re- centemente, sob influência da literatu- ra educacional americana. É precisamente nessa literatura que o termo surge para designar um campo es- pecializado de estudos. Foramtalvez as condições associadas com ainstitucionali- zaçãoda educação de massas que permi ram queo campode estudos do currículo surgisse, nos Estados Unidos, como um campoprofissional especializado. Estão entre essas condições: a formação de uma burocracia estatal encarregada dos negó- cios ligados à educação;o estabelecimen- to da educação como um objetopróprio de estudo científico; a extensão da educa- ção escolarizada em níveis cada vez mais altos a segmentos cada vez maiores da população; as preocupações com a manu- tenção de umaidentidade nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigra- ção; O processo de crescente industriali- zação e urbanização. É nesse contexto que Bobbitt escre- ve, em 1918,o livro queiria ser conside- rado o marco no estabelecimento do currículo como um campo especializado de estudos: The curriculum. O livro de Bobbite é escrito num momento crucial da história da educação estadunidense, num momento em que diferentes forças econômicas, políticas e culturais procu- ravam moldaros objetivose as formasda = educação de massas de acordo com suas diferentes e particulares visões. É nesse momento quese busca responder ques- tões cruciais sobre as finalidadese os con- tornosda escolarização de massas. Quais os objetivos da educação escolarizada: formar o trabalhador especializado ou proporcionar umaeducação geral, acadê- mica, à população? O que se deve ensi- nar: às habilidadesbásicas de escrever,ler e contar; as disciplinas acadêmicas hu- manísticas; as disciplinas científicas;as habilidades práticas necessárias para as ocupações profissionais? Quais as fontes. principais do conhecimento a ser ensina- do: o conhecimento acadêmico;as disci- plinas científicas; os saberes profissionais do mundo ocupacional adulto! O que deve estar no centro do ensino: ossabe- res “objetivos” do conhecimento organi- zado ou as percepçõese as experiências “subjetivas” das crianças e dos jovens? Em termos sociais, quais devem ser as finali- dades da educação: ajustar as crianças e os jovens à sociedade tal comoela existe. ou prepará-lospara transformá-la; a pre paração para a economia ou a prepara- ção para a democracia? As respostas de Bobbitt eram claramen- te conservadoras, embora sua intervenção buscasse transformar radicalmente o siste- ma educacional. Bobbitt propunha que a escola funcionasse damesma forma que qualquer outra empresa comercial ou in- dustrial. Tal como uma indústria, Bobbit queria que o sistema educacional fosse capaz de especificar precisamente que re- sultados pretendia obter, que pudesse es- tabelecer métodos para obtê-los de forma precisa e formas de mensuração que per- mitissem saber com precisão se eles foram realmente alcançados. O sistema educacio- nal deveria começar porestabelecer de for- maprecisa quais são seus objetivos, Esses objetivos, por suavez, deveriam se basear num exame daquelas habilidades necessá- rias para exercer com eficiênciaas ocupa- ções profissionais davida adulta. O modelo de Bobbitt estava claramente voltado para a economia. Sua palavra-chave era “eficiên- cia”. O sistemaeducacional deveria ser tão eficiente quanto qualquer outra empresa econômica. Bobbic. queria transferir para a escola o modelo de organização propos- to por Frederick Taylor. Naproposta de Bobbitt, a educação deveria funcionar de acordo com os princípios daadministração científica propostospor Taylor. A orientação dada por Bobbitt iria constituir uma das vertentes dominantes da educação estadunidensenorestante do século XX. Masela iria concorrer com vertentes consideradas mais progressistas, comoa liderada por John Dewey, por exemplo. Bem antes de Bobbitt, Dewey tinha escrito, em 1902, um livro que tinha a palavra “curriculo” notítulo, The child and the curriculum. Neste livro, Dewey estava. muito mais preocupado com a constr ção da democracia que com funciona mento da economia. Também em contrasta com Bobbitt, ele achava importante levar em consideração, no planejamento currl- cular, osinteresses as experiências das criançase jovens. Para Dewey,a educação nãoera tanto umapreparação paraa vida ocupacional adulta, como um local de vi- vência e prática direta de princípios democráticos. A influência de Dewey, en- tretanto, nãoiria se refletir da mesma forma que a de Bobbitt na formação do currículo como campo de estudos, A atração e influência de Bobbitt de. vem-se provavelmente ao fato de quesua proposta parecia permitir à educação tor- nar-secientifica. Não havia por que dis- cutir abstratamente as finalidades últimas da educação: elas estavam dadas pela pró- pria vida ocupacional adulta. Tudo o que era preciso fazer era pesquisar e mapear quais eram as habilidades necessárias para as diversas ocupações. Com um mapa preciso dessas habilidades, era possivel, então, organizar um currículo que per- mitisse sua aprendizagem. A tarefa do es- pecialista em currículo consistia, pois, em fazer o levantamento dessas habilidades, desenvolver currículos que permitissem que essas habilidades fossem desenvol. vidase, finalmente, planejar e elaborar instrumentos de medição que possibili- tassem dizer com precisão se elas foram realmente aprendidas, Naperspectiva de Bobbitt, a questão do currículo se transforma numa ques- tão de organização. O currículo é sim- plesmente uma mecânica. À atividade supostamentecientifica do especialista em currículo não passa de uma atividade burocrática. Não é poracaso que o con- ceito central, nessa perspectiva, é “desen- volvimento curricular", um conceito que iria dominar a literatura estadunidense sobre currículo até os anos BO, Numa perspectiva que considera que as finali- dades da educação estão dadaspelasexi- gências profissionais da vida adulta, o currículo se resume a uma questão de desenvolvimento, a uma questão técnica Tal como na indústria, é fundamental, na educação, de acordo com Bobbitt, que seestabeleçam padrões. O estabelecimento 24 de padrões é tão importante na educação quanto, digamos, numa usina de fabrica- cão de aços, pois, de acordo com Bobbitt, “a educação, tal como a usina de fabrica- ção de aço, é um processo de moldagem! O exemplo dado pelo próprio Bobbitt é esclarecedor. Numaoitavasérie, ilustraele, algumas criançasrealizam adições “a um ritmo de 35 combinaçõespor minuto”, enquanto outras, “ao lado,adicionam a um ritmo médio de 105 combinações por minuto”. Para Bobbitr, o estabelecimento de um padrão permitiria acabar com essa variação. Nas últimas décadas, diz ele, os educadores vieram a "perceber que é pos- sivel estabelecer padrões definitivos para os vários produtos educacionais. A capa- cidadepara adicionar a uma velocidade de 65 combinações por minuto (..) é uma especificação tão definida quanto a que se pode estabelecer para qualquer aspecto do trabalho da fábrica de aços"! O modelo de currículo de Bobbitt iria encontrar sua consolidação definitiva num livro de Ralph Tyler, publicado em 1949. O paradigma estabelecido por Tyler iria dominar o campo do currículo nos Esta- dos Unidos, com influência em diversos países, incluindo o Brasil, pelas próximas quatro décadas. Com o livro de Tyler, os estudos sobre currículo se tornam deci- didamente estabelecidos em torno da idéia de organização e desenvolvimento. Apesar de admitir a filosofia e a socieda- de como possíveis fontes de objetivos para o currículo, paradigma formulado por Tyler centra-se em questões de or- ganização e desenvolvimento. Tal como no modelo de Bobbitt,o currículo é, aqui, essencialmente, uma questão técnica. Vejamos, de forma sintética, o modelo proposto por Tyler. A organização e o desenvolvimento do currículo deve buscar responder, de acordo com Tyler, quatro questões bási- cas: “|. que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?; 2. que experiên- cias educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos?; 3. como organizar eficientemente essas experiências educa- cionais?; 4. como podemoster certezade que esses objetivosestão sendo alcança- dos?” As quatro perguntas de Tyler cor- respondem à divisão tradicional da atividade educacional: “currículo”(1), “en- sino e instrução”(2 e 3) “avaliação” (4), Em termos estritos, pois, apenas à pri- meira questão diz respeito a “curriculo”, as É precisamentea esta questão que Tyler dedica a maior parte de seu livro. Tyler identifica três fontes nas quais se devem buscar os objetivos daeducação, afirmans do que cada uma delas deve ser igualmen- te levada em consideração: |. estudos sobre os própriosaprendizes; 2. estudos sobre a vida contemporânea fora da edu- cação; 3, sugestões dos especialistas das diferentes disciplinas. Aqui, Tyler expan- de o modelo de Bobbitt, ao incluir duas fontes que não eram contempladas por Bobbitt: a psicologia e as disciplinas acadê- micas, A segundafonte é uma demonstra- ção de certa continuidade relativamente ao modelo de Bobbitt. Essas fontes gerariam, entretanto, um número excessivo de objetivos, os quais poderiam,além disso, ser mutuamente contraditórios. Para consertar essasitua- ção, Tyler sugere submetê-los a duas es- pécies de “filtros”: filosofia social e educacional com qual a escola está com- prometidae psicologia da aprendizagem, Tyler insiste na afirmação de que os objetivos devem ser claramentedefinidos estabelecidos, Osobjetivos devem ser formulados em termos de comportaman= to explícito. Essa orientação comporta- mentalista iria se radicalizar,alás, nos anos 60, com o revigoramento de uma tendên- cia fortemente tecnicista na educação estadunidense, representada, sobretudo, porum livro de Robert Mager, Análise de objetivos, também influente no Brasil na mesmaépoca, É apenasatravésdessafor- mulação precisa, detalhada e comporta- mental dos objetivos que se pode responder às outras perguntas que cons- tituem o paradigma de Tyler. A decisão sobre quais experiências devem ser pro- piciadas e sobre como organizá-las de- pende dessa especificação precisa dos objetivos. Da mesmaforma, é impossível avaliar, como adiantava Bobbitt, sem que se estabelecesse com precisão quais são os padrões de referência. E inieressanto obsemarqiêlisiito 08 modelos mais tecnocráticos, como os de Bobbitt e Tyler, quanto os modelos mais progressistas de currículo, como o de Dewey, que emergiram no início do sé- culo XX, nos Estados Unidos, constituíam, de certa forma, uma reação ao currículo clássico, humanista,que havia domina- do a educaçãosecundária desde suains- titucionalização. Comose sabe, esse currículo era herdeiro do currículo das chamadas “artes liberais” que, vindo da Antiguidade Clássica, se estabelecera na educação universitária da Idade Média e do Renascimento, na forma dos chama- dostrivium (gramática, retórica, dialética) e quadrivium (astronomia, geometria, mú- sica, aritmética). Obviamente, o currícu- lo clássico humanista tinha implicitamente uma“teoria” do currículo. Basicamente, nesse modelo, o objetivo era introduzir os estudantesaorepertório das grandes obras literárias e artísticas das heranças clássicas grega e latina, incluindo o domí- nio das respectivas línguas. Supostamen- te, essas obras encarnavam as melhores realizações e os mais altos ideais do espi- rito humano. O conhecimento dessas obras não estava separado do objetivo de formar um homem (sim, o macho da es- pécie) que encarnasse esses ideais, Cada um dos modelos curriculares contemporâneos, o tecnocrático e o pro- gressista, ataca o modelo humanista por um flanco. O tecnocrático destacavaa abs- tração e a suposta inutilidade — para a vida modernae para as atividades laborais — das habilidades e conhecimentos cultiva- dos pelo currículo clássico, O latim eo grego — e suas respectivasliteraturas — pouco serviam comopreparaçãopara o trabalho da vida profissional contemporânea. Não se aceitava, aqui, nem mesmoos argumen- 26 tos que no século XIX tinhamsido de- senvolvidos pela perspectiva do “exerci- cio mental”, segundo a quala aprendizagem de matérias como latim, por exemplo, servia para exercitar os “músculos men- tais”, de uma forma que podia se aplicar a outros conteúdos. O modelo progressis- ta, sobretudo aquele “centrado na crian- ça”, atacava o currículo clássico por seu distanciamento dos interesses e das ex- periências das crianças e dos jovens. Por estar centrado nas matérias clássicas, o currículo humanista simplesmente des- considerava a psicologia infantil. Ambas as contestações só puderam surgir, obvia- mente, no contexto da ampliação da es- colarização de massas, sobretudo da escolarização secundária que era o foco do currículo clássico humanista. O currículo clássico só pôde sobreviver no contexto de uma escolarização secundária de aces- so restrito à classe dominante, A demo- cratização da escolarização secundária significou também o fim do currículo hu- manista clássico. Os modelos mais tradicionais de cur- rículo, tanto os técnicos quanto os pro- gressistas de basepsicológica, por suavez, só iriam ser definitivamente contestados, nos Estados Unidos, partir dos anos 70, com o chamado movimento de “recon- ceptualização do currículo”, Mas esta é umaoutrahistória Leituras HAMILTON,David “Sobre as origens dos termos. classe e curriculum", Teoria e educação,6, 1992: pa3s1 KUEBARD,Herbert M. “Os principios de Tylr in Rosemary G. Massice, Lyra Paixão e Lila da R. Bastos (org) Currículo: andise e debate, Rio; Zahar, 1980: 39.52. KLIEBARD,Herbert M. “Burocracia e teoria docur- rio”, In Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e la ca R. Bastos (org). Curriculo: onde e debo- te Rio: Zahar, 1980: p.107-126. MOREIRA, Antonio F. 8, e SILVA, Tomaz T. da, “Sociologia e teoria crítica do curriculo: uma Introdução”. In Antonio F. B, Moreira e Tomaz T. da Siva(orgs). Curriculo, sociedade e cultura, São Paulo: Cortez, 1999: p.7-38, TYLER, Ralph W. Princípios básicosde curíuto e ensi no. Porto Alegre: Globo, 1974. Nota “Para não sobrecarregar o texto, as fonces de todas as citações estão listadas 10 final do livro, na seção Referências bibliográficas” 2 Onde a crítica começa: ideologia, reprodução, resistência Como sabemos,a década de 60 foi umadécadade grandes agitações e trans- formações. Os movimentos de indepen- dência das antigas colonias européias;os protestos estudantis na França e em vá- rios outros países; a continuação do mo- vimento dos direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietnã; os movimentos de contracultura; o movimentofeminista; liberação sexual; as lutas contra a ditadura milicar no Bra- sil: são apenas alguns dos importantes movimentos sociais e culturais que carac- terizaram os anos60. Não por coincidên- cia foi também nessa décadaque surgiram livros, ensaios, teorizações que colocavam em xeque o pensamentoe a estrutura educacional tradi nais. É compreensível que as pessoas en- volvidas em revisar esses movimentos tendam reivindicar a precedência para aqueles movimentos iniciados em seu próprio país. Assim, para a literatura edu- cacional estadunidense, à renovação da teorização sobre currículo parecetersido exclusividade do chamado “movimento de reconceptualização”. Da mesma forma, a » literatura inglesa reinvidica prioridade para a chamada “nova sociologia da educação”, um movimento identificado com soció- logo inglês Michael Young. Umarevisão brasileira não deixaria de assinalar o im- portante papel da obra de Paulo Freire, enquanto os franceses certamente não deixariam dedestacar o papel dosensaios fundamentais de Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet, Umaavalia- ção mais equilibrada argumentaria, entre- tanto, que o movimento de renovação da teoria educacional que iria abalar a teoria educacional tradicional, tendo influência nãoapenasteórica, mas inspirando verda- deiras revoluções nas próprias experiên- cias educacionais, “explodiu” em vários locais ao mesmotempo. As teorias críticas do currículo efetuam uma completa inversão nosfundamentos das teorias tradicionais. Comovimos, os modelostradicionais, como o de Tyler,por exemplo, não estavam absolutamente pre- ocupados em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical relativamen- te aosarranjos educacionais existentes,às formas dominantes de conhecimento ou, de modo mais geral, à forma social domi- rante. Ao tomar O status quo comorefe- rência desejável, as teorias tradicionais se concentravam, pois, nas formas de orga- nização e elaboração do currículo, Os modelos tradicionais de currículo restrin- giam-seà atividade técnica de comofazer o currículo. Asteorias críticas sobre o cur- rículo, em contraste, começam por co- locar em questão precisamente os pressupostos dos presentes arranjos so- ciais e educacionais. As teorias críticas des- confiam dostatus quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais. As teorias tradicionais eram teorias de aceita- ção,ajuste adaptação. As teoriascríticas são teorias de desconfiança, questionamen- to e transformação radical. Para as teorias críticas o importante não é desenvolver técnicas de como fozer o currículo, mas desenvolver conceitos que nospermitam compreender o que o currículo faz. preciso fazer uma distinção,inicial- mente, entre, de um lado,as teorizações críticas mais gerais como, porexemplo, oimportante ensaio de Althusser sobre a ideologia ou o livro conjunto de Bour- dieu e Passeron, À reprodução, e, de ou- tro, aquelas teorizações centradas de forma mais localizada em questões de 30 currículo, como,por exemplo, a “nova sociologia da educação”ou o “movimen- to de reconceptualização” da teoria cur- ricular. É importante, de qualquer forma, revisar também aquelas teorias críticas mais gerais sobre educação pela influên- cia que teriam sobre o desenvolvimento da teoria crítica do currículo. Poderíamos começar por uma breve cronologia dos marcos fundamentais tanto da teoria edu- cacional crítica mais geral quanto da teo- ria crítica sobre o currículo: 1970 — Paulo Freire, A pedagogia do oprimido 1970 — Louis Althusser, À ideologia e os aparelhos ideológicos de estado 1970 - Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, À reprodução 1971 — Baudelot e Establet, L'école capi- taliste en France 1971 Basil Bernstein, Class, codes and control v. | 1971 — Michael Young, Knowledge and control: new directions for the socio- logy of education 1976 - Samuel Bowies e Herbert Gintis, Schooling in capitalist America 1976 - William Pinar o Madeleine Gru- mer, Toward a poor curriculum 1979— Michael Apple,Ideologia e currículo O agora famoso ensaio do filósofo francês Louis Althusser, À ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado, iria for- neceras bases para ascríticas marxistas da educação que se seguiriam. Particu- larmente, Althusser, nesse ensaio, iria, fazer a importante conexãoentre edu- cação e ideologia que seria central às subsequentes teorizaçõescríticas da educação e do currículo baseadas na análise marxista da sociedade.A referên- cia que Althusser faz à educação neste breve ensaio é bastante sumária. Essen- cialmente, argumenta Althusser, a per- manência da sociedade capitalista depende da reprodução de seus com- ponentes propriamente econômicos (força de trabalho, meios de produção) e da reprodução de seus componentes ideológicos. Além da continuidade das condições de sua produção material, a sociedade capitalista não se sustentaria se não houvesse mecanismose instituições encarregadas de garantir que o status quo não fosse contestado.Isso podeser obti- do através da força ou do convencimen- to, da repressão ou da ideologia. O primeiro mecanismo está a cargo dosaparelhos re- pressivosdeestado(a polícia, o judiciário) o segundo é responsabilidade dos apa- 31 relhosideológicos de estado(a religião, mídia, a escola,a família). Na primeira parte do ensaio, Alehusser dê, implicitamente, umadefinição bastan- tesimples de ideologia. A ideologia é cons: tituída poraquelascrenças quenos levam a aceitar as estruturas sociais (capitalistas) existentes como boas e desejáveis. Essa definição é substancialmente modificada na segunda parte do ensaio, naqual o concei- to de ideologia se torna bastante mais com» plexo, mas esta é umaoutra discussão. À produção e a disseminação da ideologia é feita, como vimos, pelos aparelhos ideo- lógicos de estado, entre os quais se situa, de modoprivilegiado, na argumentação de Althusser, justamente à escola, A es- cola constitui-se num aparelho ideológico central porque, afirma Althusser, atinge praticamente toda a população por um período prolongado de tempo. Comoa escola transmite a ideologia? escola atua ideologicamente através de seu currículo, seja de uma formamais di- reta, através das matérias mais suscetíveis ao transporte de crenças explícitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais exis» tentes, como Estudos Sociais, História, Geografia, por exemplo; seja de uma for- ma mais indireta, através de disciplinas mais “técnicas”, como Ciências e Mate- mática. Além disso, a ideologia atua de forma discriminatória: ela inclinaas pes- soas das classes subordinadas à submis- são e à obediência, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a co- mandar e a controlar. Essa diferenciação é garantida pelos mecanismosseletivos que fazem com que as crianças das clas- ses dominadas sejam expelidas da escola antes de chegarem àqueles níveis onde se aprendem os hábitose habilidades pró- prios das classes dominantes. Aproblemática central da análise mar- xista da educação e da escola consiste, como mostra o exemplo de Althusser, em buscar estabelecer qual é a ligação entre a escola e a economia, entre à edu cação e a produção. Uma vez que,na aná- lise marxista, a economia e a produção estão no centroda dinâmica social, qual é o papel da educação e da escola nesse processo? Como a escola e a educação contribuem para que a sociedade conti- nue sendo capitalista, para que a socie- dade continue sendo dividida entre capitalistas (proprietários dos meios de produção), de um lado, e trabalhadores (proprietáriosunicamente de sua capaci dade de trabalho),de outro? Althusser = nos deu, como vimos, um tipo de res- posta: a escola contribui para a reprodu- ção da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares,as crenças que nosfazem ver osarranjos sociais exis- tentes comobons e desejáveis. Baudelor e Establet, num livro também agora clássi- co, À escola capitalista na França, iriam desenvolver, em detalhes, a tese althus- seriana. Caberia, entretanto, a dois eco- nomistas estadunidenses, Samuel Bowles e Herbert Gintis, fornecer umarespos- ta um pouco diferente àquela pergunta central sobre as conexões entre produ- cão e educação. Em seu livro, À escola capitalista na América, Bowles e Gintis introduzem o conceito de correspondência para esta- belecera natureza da conexão entre es- cola é produção. Comovimos, Althusser enfatizava o papel do conteúdo das maté- rias escolares na transmissãoda ideologia capitalista, embora à definição de ideolo- gia que ele dava na segunda parte de seu ensaio (a ideologia comoprática) apontas- se para a possibilidade de uma outra utili- zação desse conceito. Em contraste com essa ênfase no conteúdo, Bowles e Gintis enfatizam a aprendizagem, atravésda vi- vência das relações sociais da escola, das atitudes necessárias para se qualificar como um bom trabalhador capitalista. As relações sociais do local de trabalho capi- talista exigem certas atitudes porparte dotrabalhador: obediência a ordens, pon- tualidade, assiduidade, confiabilidade, no caso do trabalhador subordinado; capa cidade de comandar, de formular planos, de se conduzir de forma autônoma, no caso dostrabalhadoressituados nos nú veis mais altos da escala ocupacional. Como, no esquemade Bowlese Gintis, a escola garante que essas atitudes sejam incorporadas à psique do estudante, ou seja, do futuro trabalhador? A escola contribui para esse processo não propriamente através do conteúdo explicito de seu currículo, mas ao espe- lhar, no seu funcionamento,as relações sociais do local de trabalho. As escolas di- rigidas aos trabalhadores subordinados tendem privilegiar relações sociais nas quais, ao praticar papéis subordinados, os estudantes aprendem a subordinação. Em contraste, as escolas dirigidas aos trabalha- dores dos escalões superiores da escala ocupacional tendem a favorecer relações sociais nas quais os estudantestêm a opor- tunidade de praticar atitudes de comando e autonomia. É, pois, através de uma cor- respondêncio entre as relações sociais da = escola e as relações sociais dolocal de trabalho quea educação contribui para a reprodução das relações sociais de produção da sociedade capitalista, Tras ta-se de um processo bidirecional. Num primeiro movimento, a escola é um re: flexo da economia capitalista ou, mais es- pecificamente, do local de trabalho capitalista, Esse reflexo, por sua vez, ga- rante que, num segundo movimento, de retorno, local de trabalho capitalista receba justamente aquele tipo de traba- lhadorde que necessita. A crítica da escola capitalista,nesse es-. tágio inicial, não ficaria limitada, entretan= to, à análise marxista. Os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron iriam desenvolver umacrítica da educação que, embora centrada no con- ceito de “reprodução”, afastava-se da anás lise marxista em vários aspectos, Além do conceito de “reprodução”, a análise de Bourdieu e Passeron desenvolvia-se atras vés de conceitos que eram devedores, embora apenas metaforicamente, de con- ceitos econômicos. Mas, contrariamente à análise marxista, O funcionamentoda es= cola e dasinstituições culturais não é deduzido do funcionamento da economia, Bourdieu e Passeron vêem, entretanto, o funcionamento da escola e da cultura através de metáforas econômicas. Nessa análise, a cultura não dependeda econo- mia: a cultura funciona como uma econo- mia, como demonstra, por exemplo, a utilização do conceito de “capital cultural”. Para Bourdieu e Passeron, a dinâmica da reprodução social está centrada no pro- cesso de reprodução cultural. É através da reprodução da cultura dominante que à reprodução mais ampla da sociedade fica garantida. A cultura que tem prestígio e valorsocialé justamente a cultura das clas- ses dominantes: seus valores, seus gostos, seus costumes, seus hábitos, seus modos de se comportar, deagir. Na medida em queessa cultura tem valor em termos so- ciais; na medida em que ela vale algumacoi- sa; na medida em que ela faz com que a pessoaque a possui obtenha vantagens materiais e simbólicas, ela se constitui como capital cultural. Esse capital cultural existe em diversosestados. Ela pode se manifes- tar em estado objetivado:as obras de arte, as obrasliterárias, as obras teatrais etc. À cultura podeexistir também soba forma de títulos, certificadose diplomas:é o ca- pital cultural institucionalizado. Finalmen- te, o capital cultural manifesta-se de forma incorporada, introjetada, internalizada Nessa última forma ele se confunde com O habitus, precisamente o termo utilizado 34 por Bourdieu e Passeron para sereferir às estruturas sociais e culturais que se tor- nam internalizadas. O domínio simbólico, que é o domínio por excelência da cultura, da significação, atuaatravés de um ardiloso mecanismo. Ele adquire sua força precisamenteao de- finir a cultura dominante como sendo q cultura. Os valores,os hábitos e costumes, os comportamentos da classe dominante são aqueles que são considerados como constituindo a cultura. Osvalorese hábi- tosde outras classes podem ser qualquer outra coisa, mas não são a cultura, Agora é que vem o truque, A eficácia dessa def nição da cultura dominante comosendo a cultura depende de uma importante ope- ração.Para que essa definição alcance sua máximaeficácia é necessário queela não apareça como tal, que ela não apareça jus- tamente como o que ela é, como uma de- finiçãoarbitrária, como umadefinição que não tem qualquerbase objetiva, como uma definição que está baseada apenas na força (agorapropriamente econômica) da cias- se dominante. É essa força original que permite quea classe dominante possa de- finir sua cultura como a cultura, mas nes- se mesmoato de definição oculta-se a força que tornapossível queela possa im- por essa definição arbitrária. Há, portanto, aqui, dois processos em funcionamento: de um lado, à imposição e, de outro, à ocultação de quese trata de uma imposi- ção, que aparece, então, como natural. É a esse duplo mecanismo que Bourdieu e Passeron chamam de dupla violência do processo de dominação cultural. Agora, onde entram a escola e a edu- cação nesse processo? Em Bourdieu e Passeron, contrariamente a outras análi- ses críticas, a escola não atua pela incul- cação da cultura dominante às crianças é jovens das classes dominadas, mas, ao contrário, por um mecanismoque acaba por funcionar como um mecanismo de exclusão. O currículo da escola está ba- seado na cultura dominante: ele se ex- pressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural dominante. As crianças das classes domi nantes podem facilmente compreender esse código, pois durante toda sua vida elas estiveram imersas, o tempo todo, nesse código,Esse código é natural para elas. Elas se sentem à vontade noclima cultural e afetivo construído por esse código. É o seu ambiente nativo. Em contraste, paraas crianças e jovens das classes dominadas, esse código é sim- plesmente indecifrável. Eles não sabem do que se trata. Esse código funciona as como uma linguagem estrangeira:é incom- preensível. À vivência familiar das crian- ças ejovens das classes dominadas nãoosacostumou aesse código, quelhes aparece como algoestranhoe alheio. O resultado é queas crianças e jovens das classes dominantes são bem-sucedidas na. escola, o que lhes permite o acessoaos graus superiores do sistema educacional. Ascrianças e jovens das classes domina- das, em troca, só podem encararo fra- casso,ficando pelo caminho, As crianças ejovens dasclasses dominantes vêem seucapital cultural reconhecido e fortalecido, As crianças e jovens das classes domina- das têm sua cultura nativa desvalorizada, ao mesmo tempo que seu capital cultural, já inicialmente baixo ou nulo,não sofre qualquer aumento ou valorização. Com- pleta-se o ciclo da reprodução cultural, É essencialmente através dessa reprodução cultural, por sua vez, queas classes sociais se mantêm tal como existem, garantindo o processo de reprodução social. Em geral, tem-se deduzido da análise de Bourdieu e Passeron (e, particularmen- te, das análises individuais de Bourdieu) uma pedagogia e um currículo que, em oposição ao currículo baseado na cultura dominante, se centrariam nas culturas dominadas. Trata-se, provavelmente, de um mal-entendido. Sua análise não nos diz que a cultura dominante é indesejável e quea cultura dominadaseria, em troca, desejável. Dizer que a classe dominante define arbitrariamente sua cultura como desejável não é a mesma coisa quedizer que cultura dominada é queé desejável. OqueBourdieu e Passeron propõem, atra- vésdo conceito de pedagogia racional, é queas crianças das classes dominadas te- nham uma educação que lhes possibilite ter — maescola — a mesmaimersão du- radoura na cultura dominanteque fazparte — nafamília — da experiência das crian- ças das classes dominantes. Fundamental: mente, sua proposta pedagógica consiste emadvogar uma pedagogia e um currículo que reproduzam, na escola, para as crian- ças das classes dominadas, aquelas condi- ções que apenas ascrianças das classes dominantes têm na família. Em seuconjunto,esses textos formam a base da teoria educacional crítica queiria se desenvolver nos anos seguintes, Eles podem ter sido amplamente criticados e questionados na explosão da lieratura crá- tica ocorrida nos anos70 e 80,sobretudo porseu suposto determinismo econômi- co, mas, depois deles, a teoria curricular seria radicalmente modificada. A teorização cur- ricular recente ainda vive desse legado. Leituras ALTHUSSER,Louis. Aparelhos ideológicosde Estado. Rio: Graal 1983, BOURDIEU, Pierre é PASSERON, Jean-Claude. A reprodução, Rio: Francisco Alvez, 1975. BOURDIEU,Pierre. Esciosde educação, Petrópolis Vozes, 1999. (Organização de Maria Álice No- gueira e Afrânio Catani) BOWILES,Samuel e GINTIS, Herbert La instrucción escalar en la América capitalista. México: Siglo 2X, 1981 SILVA, Tomaz Tadeu da O que produze o que reproduz em echucação. Porto Alegre: Artes Médicas, 199. 36 Contra a concepção técnica: os reconceptualistas Nofinal dos anos sessenta, podia-se já dizer quea hegemonia da concepção téc- nica do currículo estava com seus dias contados. Como vimos, esboçavam-se, em v ios países, ao mesmo tempo, movimen- tos de reação às concepções burocráticas administrativas de currículo. Em países como Françae Inglaterra, os contornos mais gerais de umateoria educacional crí- tica tendiam a partir de campos não dire- tamente pedagógicos ou educacionais, comoa sociologia crítica (Bourdieu, por exemplo) a filosofia marxista (Althusser, por exemplo). Nos Estados Unidos e Ca- nadá, entretanto, o movimento de crítica às perspectivas conservadoras sobre cur- rículo tinha origem no próprio campo de estudo da educação. Osantecedentesdarejeição dos pres- supostos da concepção técnica de curri- culo tal comoconsolidada pelo modelo de Tyler esboçavam-se já nosescritos de au- tores como James McDonald e Dwayne Huebner. Um movimento mais organiza- do visível, entretanto, somente ia ganhar impulso sob liderança de William Pinar, 37 com a | Conferência sobre Currículo organizada pelo grupo, na Universidade de Rochester, Nova York, em [973, O movimento de reconceptualização ex- primia uma insatisfação crescente de pessoas do campodo currículo com os parâmetros tecnocráticos estabeleci- dos pelos modelos de Bobbitt e Tyler,As pessoas identificadas com o que passou à ser conhecido como “movimento de re- conceptualização” começavam a perce- ber que a compreensão do currículo como umaatividade meramente técnica administrativa não se enquadrava mul- to bem com as teorias sociais de origem sobretudo européia com as quais elas estavam familiarizadas: a fenomenologia, à hermenêutica, o marxismo,a teoria criti- ca da Escola de Frankfurt. Aquilo que, nas perspectivas tradicionais, era entendido como eurrículo era precisamente o que, de acordo com aquelas teorias sociais, precisava ser questionado e criticado, Assim, por exemplo,do ponto de vis da fenomenologia,as categorias de apren- dizagem, objetivos, medição avaliaçãonada tinham a ver com ossignificados do 'mundo da vida”através dos quais as pessoas constroem e percebem sua ex- periência. De acordo com perspectiva fenomenológica, essas categorias tinhaim que ser “postas entre parênteses”, ques- tionadas, para se chegar à “essência” da educação e do currículo. Do ponto devista marxista, para tomar um outro exemplo, a ênfase na eficiência e na racionalidade administrativa apenas refletia a dominação docapitalismo sobre a educação e o cur- rículo, contribuindo para a reproduçãodas desigualdades de classe. Esses dois exemplos refletem, aliás, um antagonismo entre os dois campos nos quais, nos Estados Unidos, dividiu-se crí- tica dos modelos tradicionais. De um lado, estavam aquelas pessoas que utilizavam os conceitos marxistas, filtrados através de análises marxistas contemporâneas, como as de Gramsci e da Escola de Frankurt, parafazera crítica da escolae do currículo existentes. Essas análises enfatizavam o papel das estruturas econômicas e políti- cas na reprodução cultural e socialaera- vês da educação e docurrículo. De outro lado, colocavam-se as críticas da educação e do currículo tradicionais inspiradas em estratégias incerpretativas de investigação, comoa fenomenologia e a hermenêutica. Aqui, à ênfase não estava no papel das estruturas ou em categorias teóricas abs- tratas(comoideologia, capitalismo, contro- le, dominação de classe), mas nos significados subjetivosque as pessoas dão às suas ex- periências pedagógicas e curriculares. Em ambas as perspectivas tratava-se de desa- fiar os modelostécnicos dominantes; em ambas as perspectivas procurava-se lançar mão de estratégias analíticas que permitis- sem colocar em xeque as compreensões naturalizadas do mundo social e, em pari- cular, da pedagogia e do currículo. No caso da fenomenologia, da hermenêutica, da au- tobiografia, entretanto, desnaturalizaras categorias com as quais, ordinariamente, compreendemose vivemos o cotidiano, significa focalizá-las através de uma perspec- tiva profundamente pessoal e subjetiva. Há um vínculo com o social, na medida em que essas categorias são criadas e mantidas, in- tersubjetivamente e através da linguagem, mas, em últimaanálise, o foco está nas ex- periências e nas significações subjetivas. Em contraste, nacrítica deinspiração marxista, desnaturalizar o mundo “natural” da peda- gogia e do currículo significa submetêo a umaanálise científica, centrada em concei- tos que rompem comas categorias de sen- so comum comas quais, ordinariamente, vemos e compreendemos aquele mundo. 38 O movimento de reconceptualização, tal como definido por seus própriosini- ciadores, pretendia incluir tanto as verten- tes fenomenológicas quanto as vertentes marxistas, mas as pessoas envolvidas nes- sas últimas recusaram, em geral, umaiden- tificação plena com aquele movimento, Na verdade, procuraram até distanciar-se de um movimento que viam como excess vamentecentrado em questões subjetivas, como um movimento muito pouco políti- co. Para autores de inspiração marxista, como Michael Apple, o movimento de re- conceptualização, embora constituísse um questionamento do modelo técnico do- minante, era visto como umrecuo aopes- soal, ao narcisístico e ao subjetivo. Aofinal, o rótulo da “reconceptualização”que ca- racterizou um movimento hoje dissolvido no pós-estruturalismo, no feminismo, nos estudos culturais, ficou limitado às concep- ções fenomenológicas, hermenêuticas e autobiográficas de crítica aos modelos tra- dicionais de currículo. É porisso que,nesta seção, limitaremos nossa discussão a es- sas concepções, As perspectivas mais mar- xistas e estruturais, como a de Michael Apple e a de Henry Giroux, serão trata- das em outraseção. A concepção contemporânea de fe- nomenologia tem origem, comosabemos, 3 em Edmund Husserl, sendo posterior» mente desenvolvida por autores como. Heiddeger e Merleau-Ponty. O ato feno- menológico fundamental consiste em sub- meter o entendimento que normalmente temos do mundo cotidiano a uma sus» pensão. A investigação fenomenológica começa por colocar os significadosordi- nários do cotidiano “entre parênteses”, Aqueles significados que tomamos como. naturais constituem apenas a “aparência” das coisas, Temos que colocar essa apa- rência em dúvida, em questão, para que possamos chegar à sua “essência”, A in= vestigação fenomenológica coloca em questão,assim, as categorias do senso co- mum, mas elas não são substituídas por categorias teóricas e cientificasabstratas, Ela está focalizada, em vez disso, na expe- riência vivida, no “mundo da vida”, nos significadossubjetiva e intersubjetivamen- te construídos. O conceito de “significa- do” não tem,para a fenomenologia, o mesmo sentido que, depois, teria para. uma semiologia estruturalista, a qual sur- gee se desenvolve,decerta forma,pre- cisamente em reação e oposição a el O “significado”, para a fenomenologia, não pode ser simplesmente determinado por seu valor "objetivo"numa cadeia de opo» sições estruturais, como na semiologia, O significado é, aoinvés disso, algo pro- fundamente pessoal e subjetivo. Sua co- nexão com socialse dá não através de estruturas sociais impessoais e abstratas, mas através de conexões intersubjetivas. Para a fenomenologia, o significado mani- festa-se na linguagem, através da lingua- gem, mas é também aquilo quede certa forma escapa à linguagem ordinária, ao senso comum implantado na linguagem. Os verdadeirossignificados de nossas experiências têm de voltar à linguagem para encontrarsua expressão, mas eles têm, antes, de certa forma, de ser recu- perados embaixo da linguagem, naquilo que foge à linguagem, no seu substrato. Intelectuais como Max van Mannen, TedAoki (ambos do Canadá) e Madelei- ne Grumet (Estados Unidos), que esti- veram centralmente envolvidos, naqueles países, no desenvolvimento de uma com- preensão fenomenológica do currículo, não estavampreocupadostanto com os aspectos filosóficos da fenomenologia quanto com as possibilidadesque a feno- menologia apresentava para o estudo do currículo. A perspectiva fenomenológica de currículo é, em termosepistemológi cos, a mais radical das perspectivas críti- cas, na medida em que representa um ao rompimento fundamental com a episte- mologia tradicional, A tradição fenome- nológica de análise do currículo é aquela que talvez menos reconhecea estrutu- ração tradicional do currículo em disci- plinas ou matérias. Para a perspectiva fenomenológica, com sua ênfase na ex- periência, no mundovivido,nos signifi- cados subjetivos e intersubjetivos, pouco sentido fazem as formas de compreen- são técnica e científica implicadasna or- ganização e estruturação do currículo em torno de disciplinas. As disciplinas tradicionais estão concebidas em tor- no de conceitos científicos, instrumen- tais, isto é, do mundode segunda ordem dos conceitos e não do mundo depa meira ordem das experiênciasdiretas. No máximo,as disciplinas e matériastra- dicionais aparecem como categorias a serem questionadas, a serem “colocadas entre parênteses”. Na perspectiva fenomenológica, o cur- rículo não é,pois, constituído de fatos, nem. mesmode conceitos teóricos e abstratos: o currículo é um local no qual docentese aprendizes têm a oportunidade de exami- har, de forma renovada, aqueles significa- dosda vida cotidiana que se acostumaram a ver comodadose naturais. O currículo é visto como experiência e como local de interrogação e questionamento da expe- riência. Na perspectiva fenomenológica, são, primeiramente,as próprias categorias das perspectivas tradicionais sobre curri- culo, sobre pedadogia e sobre ensino que são submetidas à suspensão e à redução fenomenológicas. “Objetivos”, “aprendiza- gem”, “avaliação”, “metodologia” são todos conceitos de segunda ordem, que aprisio- nam a experiência pedagógica e educa- cional do mundo vivido de docentes e estudantes. Depois, é a própria experiên- cla dosestudantes que se torna objeto da investigação fenomenológica. Assim, en- quanto no currículo tradicional os estu- dantes eramencorajadosaadotar a atitude supostamentecientifica que caracterizava as disciplinas acadêmicas, no currículo fe- nomenológico eles são encorajados a apli- car à sua própria experiência, ao seu próprio mundo vivido a atitude que ca- racteriza a investigação fenomenológica. A atitude fenomenológica envolve, primeiramente, selecionar temas que pos- sam sersubmetidos análise fenomeno- lógica. Em geral, esses temas, como se depreende dos exemplos desenvolvidos na literatura educacional de análise feno- menológica, são temas que fazem parte 41 da vida cotidiana, rotineira, seja da pró- pria pessoa que faz a análise,seja das pes- soas envolvidas na situação analisada. Assim, para dar um exemplo pedagógico, umaprofessora iniciante poderia analisar sua própria experiência ao dar suaspri meiras aulas. Ela procuraria evitar, antes de mais nada, uma descrição que se limi- tasse ao significado comumente atribuído a uma situação como essa, assim como buscaria fugir de uma descrição demasia- damente dependente de categorias abs- tratas ou científicas. Ela se centraria, ao invés disso, na singularidade do significa- do queessa experiência tem para ela.Ela buscaria a “essência” dessa experiência, nãono sentido de uma “essência” anterior, pré-existente, mas no sentido de uma “essência” que esteja paraalém das cate- gorias tanto do senso comum quanto da ciência. Além de uma demorada intros- pecção, a professora, transformada em analista fenomenológica, poderia lançar. mão dossignificados que outras pessoas atribuem essa situação, bem comodos significados com quea situação possa ter sido descrita naliteratura e na arte, A análise fenomenológica termina numa. escrita fenomenológica, na qual a analista reconstitui, através dalinguagem (sempre uma experiência de segunda ordem), a experiência vivida por ela ou poroutras pessoas envolvidas na situação. Os temas submetidos à análise na ratura fenomenológica sobre currículo parecem quase sempre “banais”, precisa- mente porque são retirados da experiên- cia banalizada da vida cotidiana, Em certo sentido, o que a análise fenomenológica procura é desbanalizá-los, torná-los, outra vez, significativos. Assim, por exemplo, um conjunto de textos fenomenológicos di vulgados recentemente pelo canadense Max van Manen, na Internet, focaliza os seguintes temas, entre outros: a espera; o sentir-se em casa; a saudação “como vai você?" a experiência de ser madrasta; a “malhação” (exercício físico); bem como temas nem tão banais como a morte, a doença e a experiência dese receber um diagnóstico médico. Algumas vezes o objeto daanálise fenomenológica coincide com o objeto de outros tipos de análise, tas a abordagem é radicalmente diferen- te. Um dos textos mencionados focaliza, por exemplo, a noção de tempo da crian- qa. Pode-se comparar, aqui, essa análise com aquelas análises de inspiraçãopiagetia- na da mesma cemática. A análise piagetia- na estaria centrada, provavelmente, numa a descrição objetiva, abstrata, universalizada, dos conceitos de tempo utilizados pela criança. Uma análise fenomenológica, em contraste, procuraria destacar os aspec- tos subjetivos, vividos, concretos,situados, da experiência de tempoda criança. É precisamente o carátersituacional, singular, único, concreto da experiência vivida — o aqui e o agora — que a análise fenomenológica procuradestacar. À aná- lise fenomenológica foge dos universais e abstratos do conhecimento científico, conceitual, para se focalizar no concreto e no histórico do mundo vivido. A análi- se fenomenológica é, assim, profunda- mente pessoal, subjetiva, idiossincrárica. Em seus momentos mais reveladores,ela é comovedoramente poética. Ela revela mais por evocare sugerir do que por mostrar é convencer, Na teorização sobre currículo, a análi se fenomenológica tem sido, frequente- mente, combinada com duas outras estratégias de investigação:a hermenêuti ca ea autobiografia. Por exemplo, Max van Manen,já citado, pratica aquilo que ele chama de “hermenêutica fenomenológica”, uma abordagem que combinaas estratégias da descrição fenomenológica com as estra- tégias interpretativas da hermenêutica, De formageral, a hermenêutica,tal como desenvolvida modernamente por autores como Gadamer, destaca, em contraste com a suposta existência de um significa- do único e determinado, a possibilidade de múltipla interpretação que têm os textos — entendidos, aqui, não apenas como o texto escrito, mas como qual- quer conjunto de significados, Embora a fenomenologia, tal como definida origi- nalmente por Husserl, esteja centrada numadescrição das coisas tais como elas são,ela também envolve, em última aná- lise, a utilização de umagamade estraté- gjas incerpretativas, Já a autobiografia tem sido combinada com uma orientaçãofenomenológica para enfatizar os aspectosformativos do cur- ículo, entendido, de forma ampla, como experiência vivida. Em alguns autores, como Wi im Pinar, por exemplo, recor- re-se também a recursos analíticos da psicanálise. Nessa perspectiva, o método autobiográfico nos permitiria investigar as formas pelas quais nossa subjetividade e identidade são formadas. William Pinar recorreà etimologia da palavracurriculum para dar-lhe um sentido renovado. Ele destaca queessa palavra,significando ori- ginalmente “pista de corrida”, deriva do a verbo currere, em latim, correr. É, antes de tudo, um verbo, umaatividade e não umacoisa, um substantivo. Ao enfatizar o verbo, deslocamos a ênfase da “pista de corrida" para o ato de “percorrer à pista”. É comoatividade que o currículo deve ser compreendido — uma ativida- de quenão selimita à nossavida escolar, educacional, mas à nossavidainteira, Em oposição tantoàs perspectivastra dicionais quanto às perspectivas críticas macrossociológicas, o métodoautobiográ- fico, navisão de Pinar, permitefocalizar o concreto, o singular, o situacional, o histó- rico na nossavida.Ele permite conectar o individual ao social de umaforma que as outras perspectivas não fazem. O método autobiográfico não se limita a desvelar os momentose os aspectosformativos de nossa vida, sobretudode nossa vida edu cacional e pedagógica: ele próprio tem uma dimensão formativa, autotransfor- mativa. Em última análise, ao menos na linguagem dos anosiniciais de desenvol. vimento da perspectiva autobiográfica,a autobiografia tem um objetivolibertador, emancipador. Ao permitir que se façam conexões entre o conhecimento esco lar,a história de vida e o desenvolvimento intelectual e profissional, a autobiografia contribui para a transformação do pró- prio eu. Na perspectiva da autobiogra- fia, uma maior compreensãode si implica um agir mais consciente, responsável e comprometido. Tal como à perspectiva mais geral de análise fenomenológica do currículo,a au- tobiografia, como umavisão epistemológi- ca que vai contra as formas racionalistas de conhecerdasciências sociais, não com- bina bem com a forma como o currículo oficial está organizado,isto é, em torno de matérias ou disciplinas, Talvezseja porisso que os exemplos dados nessa literatura tendam a sereferir à área de formação docente. William Pinar, por exemplo, su- gere que se examine autobiograficamente nossavida escolar e educacional: como foi nossa experiência educacional quando entramos na escola; quais episódios lem- bramos; quais nossos sentimentos nesses episódios; quais as conexõesentre nosso eu e o conhecimento formal! Por seu caráter autotransformativo,essa inves- tigação autobiográfica seria extremamen- te importante no processo de formação docente. A literatura autobiográfica é menosclara noque se refere à aplicação do métodoautobiográfico à educação de crianças e jovens. Pode-se imaginar como a autobiografia poderia ser utilizada como um recurso educacional nesse nível edu- cacional, mas fica dificil pensar na auto- biografia como uma abordagem única do processo curricular. Leituras MARTINS, Joel, Um enfoque fenomenológicado curr- culo; educação como pofesis. São Paulo: Cortez, 1992. DOMINGUES,José Luiz, “Interesses humanos e paradigmas curriculares”. Revista brosieira de estudos pedagógicos, 67(156), 1986: p.351-66. 4 A crítica neomarxista de Michael Apple O início dacrítica neomarxista às teo- rias tradicionais do currículo e ao papel ideológico do curriculo está fortemente identificado com o pensamento de Michael Apple. Trabalhos anteriores, comoos de Althusser e Bourdieu, por exemplo, ti- nham estabelecido as bases de umacrítica radical à educaçãoliberal, mas não tinham propriamente tomado comofoco de seu questionamento currículo e o conheci- mento escolar. Apple aproveita-se dessas críticas e de outras tradiçõesda teoriza- ção social crítica mais ampla (Raymond Wiliams, por exemplo),para elaborar uma análise crítica do currículo que iria ser muito influente nas décadas seguintes. Apple toma como ponto de partida os elementos centrais da crítica marxista da sociedade, A dinâmicada sociedade capi- talista gira em torno da dominação de classe, da dominação dosque detêm o con- trole da propriedade dos recursos mate- riais sobre aqueles que possuem apenas sua força de trabalho.Essa característica da organização da economia nasociedade capitalista afeta tudo aquilo que ocorre em as outras esferas sociais, como a educação e a cultura, por exemplo.Há, pois, uma rela- ção estrutural entre economia e educação, entre economia e cultura. Nos termos da terminologiaintroduzida por autores como Bernstein e Bourdieu, há um vínculo en- tre reprodução cultural e reproduçãoso- al, Mais especificamente, há uma clara conexãoentre à forma como a economia está organizada e a forma comoo curricu- lo está organizado. Para Apple, entretanto,essaligação não. é uma ligação de determinação simples e direta. À preocupação em evitar uma con- cepção mecanicista e determinista dos vinculos entre produção e educação já estava presente em seu primeiro livro, Ideologia e currículo, publicado pela primei- ra vez nosEstados Unidos em 1979, mas ela iria se tornarainda mais forte nosseus livros posteriores. Basicamente, paraele, não é suficiente postular um vínculo en- tre, de um lado,as estruturas econômi- cas e sociais mais amplase, de outro, à educação e o currículo. Esse vinculo é mediado por processos que ocorrem no campoda educação e do currículo e que são aíativamente produzidos. Ele é me- diadopela ação humana. Aquilo que ocor- re na educação e no currículo não pode ser simplesmente deduzido do funciona- mento da economia É essa preocupação queleva Apple a recorrer ao conceito de hegemonia,tal como formulado por Antonio Gramsci e desenvolvido por Raymond Williams. É o conceito de hegemonia que permite ver o camposocial como um campocontes- tado, como um campo onde os grupos dominantes se vêem obrigados a recor- rer a um esforço permanente de conven- cimento ideológico para manter sua dominação. É precisamente através des- se esforço de convencimento que a do- minação econômica se transforma em hegemonia cultural. Esse convencimento atinge sua máxima eficácia quando se transforma em senso comum,quando se naturaliza. O campo culturalnão é um sim- ples reflexo da economia: ele tem a sua própria dinâmica, As estruturas econô- micas não são suficientes para garantir a consciência; a consciência precisa ser conquistada em seu próprio campo. É com esses elementos, acrescidos de elementos tomados de empréstimo à autores como Pierre Bourdieu, Basil Bernstein e Michael Young, que Michael Apple vai colocaro currículo no cen- tro das teorias educacionais críticas. Con- trapondo-se às perspectivas tradicionais sobre currículo, Apple vê o currículo em termos estruturais e relacionais. O currículo está estreitamente relaciona- do às estruturas econômicas e sociais mais amplas. O currículo não é um cor- po neutro, inocente e desintéressado de conhecimentos. Contrariamente ao que supõe o modelo de Tyler, por exemplo, o currículo não é organizadoatravés de um processo de seleção que recorreàs fontes imparciais da filosofia ou dos valo- res supostamente consensuais da socie- dade. O conhecimento corporificado no eurrículo é um conhecimento particular. A seleção que constitui o currículo é o resultado de um processoquereflete os interesses particulares das classes e gru- pos dominantes Na análise de Apple, a preocupação não é com a validade epistemológica do conhecimento corporificado no curricu- lo. A questão não é saber qual conhecimen- to é verdadeiro, mas qual conhecimento é considerado verdadeiro. A preocupação é com as formas pelas quais certos conhe- cimentos são considerados como legiti- mos, em detrimento de outros, vistos a6 como ilegítimos. Nos modelos tradi ps nais, O conhecimento existente é toma- do como dado, como inquestionável. Se existe algum questionamento,ele não além de critérios epistemológicos estrei- tos de verdade e falsidade. Como conse- quiência, os modelostécnicos de currículo limitam-se à questão do “como” organi- zar o currículo. Na perspectiva política postulada por Apple, a questão importan- te é, ao invés disso, a questão do “por quê”. Por que esses conhecimentos e não outros! Por que esse conhecimento é considerado importante e não outros? E para evitar que esse “porque” seja res- pondido simplesmente porcritérios de verdade e falsidade, é extremamente im- portante perguntar: “trata-se do conhe- cimento de quem?”. Quais interesses guiaram a seleção desse conhecimento particular? Quais são as relações de po- der envolvidas no processo de seleção que resultou nesse currículo particular? Noque concerne ao papel do currículo no processo de reprodução cultural e so- cial, essa crítica inicial do currículo esteve frequentemente dividida entre duas ênfa- ses, De um lado, estavam aquelas críticas que enfatizavam o papel do chamado “cur- rículo oculto” nessa reprodução. É o caso, por exemplo, de Bowles e Gintis, que chamaram a atençãopara o papelexerci- dopelas relaçõessociais da escolano pro- cesso de reprodução social. É o caso também de Bernstein, que centrousua análise menos naquilo que é transmitido émais na forma comoé transmitido. De outro, situam-se aquelas críticas que de- ram mais importância ao currículo expli- cito, oficial, ao “conteúdo”do currículo. Pode-se dizer que este foi o caso de Althusser, ao menosna primeira parte de seu ensaio sobrea ideologia e osapa- relhos ideológicos de estado. Apple pro- cura realizar uma análise que dê igual importância aos dois aspectos do curri- culo, emborase possa notar uma ênfase ligeiramente maior no seu conteúdo ex- plícico, naquilo que ele chama de “curri- culo oficial”. Ele considera necessário examinartanto aquilo que ele chama de “regularidades do cotidiano escolar” quanto o currículo explícito;tanto o ensi- noimplícito de normas, valores e disposi- ções quanto ospressupostos ideológicos e epistemológicos das disciplinas que cons tituem o currículo oficial Comoboa parte da literatura socloló- gica crítica sobre currículo desse perfodo inicial, Apple colocava uma grande ênfase, em Ideologia e currículo, no processo que a escola exerce na distribuição do conheci- mento oficial. A suposição é de que a es- cola simplesmente transmite é distribui o conhecimento queé produzido em algum outro lugar. Apple, entretanto, concede um papel igualmente importante à escola comoprodutora de conhecimento, sobre- tudo daquilo que ele chamade “conheci- mento técnico”. O “conhecimentotécnico” relaciona-se diretamente com aestrutura é o funcionamento da sociedade capita- lista, uma vez que se trata de conheci- mento relevante para a economia e à produção. Obviamente, essa produção se dá principalmente nosníveis superiores do sistema educacional,istoé, na universi- dade, Mas na medida em queos requisitos de entrada na universidade pressionam os currículos dos outrosníveis educacionais, esses currículos refletem a mesma ênfa- se no “conhecimento técnico”. É esse tipo de conhecimento que acaba sendo visto como tendo prestígio, em detri- mento de outras formas de conhecimen- to, como o conhecimentoestético
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