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LIVRO - O que sao pessoas deficientes

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João B. Cintra Ribas 
O QUE SÃO PESSOAS DEFICIENTES 
 
 
 
Editora Brasiliense – 1985 
São Paulo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ÍNDICE 
- O deficiente e sua imagem... 7 
- Os meandros da deficiência... 25 
- As pessoas deficientes nos bastidores... 50 
- Pessoas deficientes: relações econômicas e políticas... 80 
- Indicações para leitura... 89 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para meus Pais 
Fábio meu irmão, 
Maria Helena Villas Boas Concone, Ana Rita de Paula: 
não sei o que eu faria 
sem as ideias, a abertura intelectual 
e o carinho de Vocês. 
É que Narciso acha feio 
O que não é espelho 
E a mente apavora 
O que ainda não é mesmo velho. 
Caetano Veloso 
 
 
 
 
O DEFICIENTE E SUA IMAGEM 
Escrever sobre pessoas deficientes é muito mais difícil e complexo do 
que poderia parecer. Um dos problemas sérios reside no fato de que 
qualquer "noção" ou "definição" de deficiência implica uma imagem 
que nós fazemos das pessoas deficientes. Sempre que usamos palavras 
do tipo "excepcional", "cego", "surdo", "inválido", "louco", "aleijado", 
"anormal" etc., temos em mente uma concepção daquilo que estas 
palavras querem dizer. Apesar de quase sempre as usarmos de forma 
indiscriminada, sem muita preocupação, elas sempre têm algum 
significado para nós. As palavras são expressões verbais criadas a partir 
de uma imagem que a nossa mente constrói. 
Digamos, então, que alguém pergunte a você o que são pessoas 
deficientes. Qual seria a sua resposta? Pense um Pouco. Todos nós, 
deficientes ou não, somos capazes de imaginar. A pessoa que agora 
esta em sua mente se adequa a um dos "conceitos" mencionados no 
Parágrafo anterior? Vale dizer: a pessoa que você imaginou tem as 
características de um "cego", de um "demente", ou de um "paralítico" 
com todas as pessoas possíveis ideias que se podem fazer a respeito 
dessas palavras? 
Para ficar mais claro vou dar alguns exemplos: 
Digamos que você tenha pensado num cego como aquele bilheteiro 
malvestido que ganha muito pouco vendendo a sorte grande. Se você 
não pensou nesta pessoa, digamos que você tenha pensado em alguém 
que não era deficiente, se acidentou num desastre de automóvel, foi 
para uma cadeira de rodas, se tornou, portanto, um deficiente físico e 
agora se recusa a sair de casa. Mas, se Você não pensou ainda nesta 
pessoa, digamos que Você tenha pensado num paraplégico dinâmico, 
que acorda cedo, trabalha, estuda, 
passeia e dorme tarde. Ou, então, naquela pessoa "normal" que você 
conhecia e que, de repente, não se sabe bem por que, desandou a ficar 
louca, e agora é considerada um deficiente ou doente mental. 
Todas estas imagens em mente estão, sem dúvida, permeadas por uma 
concepção de deficiência. Mais que isso, esta concepção implica que 
estamos situando o deficiente em relação àquilo que também 
imaginamos ser a sua própria vida. Quando falo naquela pessoa que se 
acidentou no desastre e agora se recusa a sair de casa, paralelamente 
eu faço uma comparação em minha mente de como acredito que era a 
vida dela antes e depois do acidente. Eu não a penso apenas como um 
homem ou uma mulher portadora de deficiência. 
Eu a penso segundo uma interpretação que me leva a construir 
imagens. Seja conhecendo alguma pessoa deficiente, seja por meio de 
relatos de pessoas ligadas, seja ainda com base em mensagens 
veiculadas ou artigos publicados pelos meios de comunicação, o 
importante a reter é que quando chamamos as pessoas deficientes de 
"inválidos", insanos", "ceguinhos" ou "portadores de handicap", 
estamos sempre pensando naquela imagem construída e impressa em 
nossa mente. 
 
A partir da década de 70, muita gente, principalmente fora de nosso 
País, começou a pensar que estes "termos" ou "definições" não davam 
conta da realidade total e concretadas pessoas deficientes. Poderiam 
ser termos equivocados. Ou poderiam ser conceitos enviesados por 
concepções ideológicas. Ou poderiam simplesmente ser palavras mal-
acabadas que tenderiam a fragmentar a imagem dos deficientes. 
Um pouco com o intuito de tentar precisar Nações Unidas se 
manifestaram em favor de lançar mundialmente o termo "pessoas 
deficientes". Surgiu a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, 
aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1975, 
que proclama em seu artigo 1: "O termo 'pessoas deficientes' refere-se 
a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou 
parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, 
em decorrência de uma deficiência congênita ou não, em suas 
capacidades físicas ou mentais". Por outro lado, a Organização Mundial 
de Saúde publicou em 1980 uma Classificação Internacional dos Casos 
de: 1) Impedimento (na tradução do inglês impediment), 2) Deficiência. 
(disability) e 3) Incapacidade (handicap). O impedimento diz respeito a 
uma alteração (dano ou lesão) psicológica, fisiológica ou anatômica em 
um órgão estrutura do corpo humano. A deficiência está ligada a 
possíveis sequelas que restringiriam a execução de uma atividade. A 
incapacidade diz respeito aos obstáculos encontrados pelos deficientes 
em sua interação com a sociedade, levando-se em conta a idade, sexo, 
fatores sociais e culturais. 
A Declaração e a nova terminologia, tentando colocar fim à 
ambiguidade que os antigos "termos" suscitam, tentam também, ao 
que parece, precisar melhor quem é ou não é deficiente, a fim de 
apagar uma eventual imagem deturpada. Afinal melhor os "termos" - e 
consequentemente as imagens -, alguns órgãos da Organização das 
a imagem estereotipada de uma pessoa cega, surda, paraplégica ou até 
deficiente mental faz dela uma pessoa deficiente? Resposta: não. No 
entanto, me parece que a ONU 
e a OMS, apontando seu foco para as pessoas deficientes, 
diagnosticando suas deficiências, e designando quem é ou não é 
deficiente, não chegam efetivamente a aclarar as imagens. Ao 
centralizar o foco nas pessoas e nas deficiências, a ONU e a OMS 
deixam de apontá-lo para a razão da obscuridade, qual seja a própria 
imagem que todos nós temos das pessoas deficientes. Eu não sei se a 
nossa imagem muda significativamente ao sabermos que tal pessoa não 
é "incapacitada", mas apenas deficiente". Acredito que a imagem não 
mude substancialmente a não ser quando trabalhada em si mesma. 
Se entrarmos por este caminho, surgirá ainda a seguinte pergunta: 
mesmo com a tentativa de "definição" por parte da Organização 
Mundial de Saúde (que tenta responder a estas questões), a rigor, 
grande parte de todos nós não é em maior ou menor grau deficiente? 
Afinal, muitos de nós são portadores de algum tipo de lesão, são 
míopes, diabéticos, hipertensos, têm altura ou peso não considerados 
adequados, possuem algum tipo de disfunção orgânica etc. Existem 
ainda pessoas que necessitam extrair um órgão ou uma parte do corpo: 
é o caso, por exemplo, das mulheres que precisam fazer a mastectomia 
(extração cirúrgica de um ou dos dois seios). Neste sentido, quando 
falamos de pessoas deficientes, podemos relativizar a este ponto? Até 
hoje este assunto não está fechado. Mas eu não sei se não seria perda 
de tempo se deter muito nele. Pois, se nos ativermos somente às 
pessoas isoladas nos esquecemos de que elas fazem Parte do mundo. 
Na nossa Sociedade, mesmo que a ONU e a OMS tenham tentado 
eliminar a incoerência dos "conceitos", a palavra "deficiente" tem um 
significado muito forte. De certo modo ela se opõe à palavra 
"eficiente". Ser "deficiente", antes de tudo, é não ser "capaz", não ser 
"eficaz". Pode até ser que, conhecendo melhor a pessoa, venhamos a 
perceber que ela não é tão "deficiente" assim. Mas, até lá, até segunda 
ordem o "deficiente" é o” não eficiente”. 
Assim é que em qualquer sociedade existem valores Culturais que se 
consubstanciam no modo como a sociedade está organiza. São valores 
que se refletem imediatamente no pensamento e nas imagens dos 
homens, e norteiam as suas ações. São valoresque terminam por se 
refletir nas palavras com que os homens se exprimem. Assim sendo, em 
todas as sociedades a palavra "deficiente” adquire um valor Cultural 
segundo padrões, regras e normas estabelecidos no bojo de suas 
relações sociais. 
A realidade natural é diversa: nós homens não somos fisicamente todos 
iguais. E claro que fazemos parte da mesma espécie, mas cada um de 
nós tem altura diferente, cor de pele e de olhos diferentes, peso 
diferente etc. Somos todos homens, porém diversos. Fisicamente 
temos, portanto, características diferentes uns dos outros. As pessoas 
deficientes talvez sejam um pouco mais diferentes, já que podem 
possuir sinais ou sequelas mais notáveis. 
Mas a realidade social também é diversa: nós homens não somos 
também socialmente todos iguais. Acontece, todavia, que não podemos 
meramente transpor a realidade natural para a realidade social. Não é 
porque os homens são naturalmente diferentes entre si que devem ser 
socialmente diferentes. O fato de os homens se relacionarem 
quantitativa e qualitativamente diferente no plano social é uma 
construção sociocultural. E uma diferença que não nasce da Natureza: 
nós homens a construímos. 
Vivemos, assim, em sociedades em que os homens são socialmente 
desiguais. São sociedades problemáticas, com profundas divisões entre 
classes sociais. Muito mais crítica do que a divisão entre deficientes e 
não deficientes, a divisão estrutural entre classes permeia todas as 
demais divisões. Se a sociedade está dividida pela base entre ricos e 
pobres, empresários e trabalhadores assalariados, e, por extensão, 
ideologicamente, entre superiores e inferiores, melhores e piores, estas 
divisões vão acabar por permear todas as outras. 
Nesta medida, não se trata também de querermos nos convencer que 
todas as pessoas são socialmente iguais. Muitos dizem que, "no fundo, 
somos todos iguais". Alguns profissionais chegam a dizer que "pessoas 
deficientes e não deficientes são iguais perante a sociedade". Não, não 
são. Todos são de fato diferentes socialmente. São diferentes 
socialmente porque construíram e foram construídos neste mecanismo 
de relações sociais que os diferenciam. 
Entretanto, não é nessa realidade social dividida que pensamos viver. 
Não é nessa sociedade fraturada entre homens que dizemos pertencer. 
A realidade se nos apresenta como um todo que deve ser organizado, 
homogêneo, em ordem, e em que cada homem deve ser solidário um 
com o outro. Pode ser que neste ou naquele momento a sociedade não 
esteja neste pé de equilíbrio. Este pode ser um momento de transição 
que tenderá a de novo se organizar. Para, além disso, sempre nos é 
colocado que a sociedade deve ser um corpo estruturado, o qual tem 
órgãos, sendo que cada órgão tem uma função social muito precisa. 
Trata-se de pensarmos a nossa realidade social de um ponto de vista 
fisiológico, como um corpo humano, com órgãos que se relacionam 
entre si numa estruturação que deve trazer o equilíbrio e a harmonia 
para este corpo. 
Assim sendo, para que não se quebre o equilíbrio, não pode haver 
"órgãos estragados" ou em mau funcionamento. Um corpo com órgãos 
"deficientes" não é um "corpo social" bem-estruturado e em ordem. 
Desta forma, não é toda a sociedade que estaria fragmentada, mas 
apenas uma parte dela seria considerada "fora do normal". 
O nosso corpo individual tem íntima ligação com esse "corpo social". 
Todos nós nos expressamos através da realidade sociocultural. Esta 
realidade está tão presente em nosso corpo, como o nosso corpo está 
presente na realidade. Na medida em que a sociedade não é vista como 
uma realidade sociocultural fraturada, diversa, que apresenta 
contradições internas, mas sim vista como um "corpo social" que deve 
estar em ordem, o corpo humano também deve acompanhar a ordem 
social. Isso equivale a dizer que um corpo humano que apresente 
qualquer malformação (amputações, sequelas de qualquer tipo etc.) 
não é um corpo estruturalmente em ordem. 
 
A realidade natural é diversa: nós homens não A realidade natural é 
diversa: nós homens não somos fisicamente todos iguais. E claro que 
fazemos parte da mesma espécie, mas cada um de nós tem altura 
diferente, cor de pele e de olhos diferentes, peso diferente etc. Somos 
todos homens, porém diversos. Fisicamente temos, portanto, 
características diferentes uns dos outros. As pessoas deficientes talvez 
sejam um pouco mais diferentes, já que podem possuir sinais ou 
sequelas mais notáveis. 
Mas a realidade social também é diversa: nós homens não somos 
também socialmente todos iguais. Acontece, todavia, que não podemos 
meramente transpor a realidade natural para a realidade social. Não é 
porque os homens são naturalmente diferentes entre si que devem ser 
socialmente diferentes. O fato de os homens se relacionarem 
quantitativa e qualitativamente diferente no plano social é uma 
construção sociocultural. E uma diferença que não nasce da Natureza: 
nós homens a construímos. 
Vivemos, assim, em sociedades em que os homens são socialmente 
desiguais. São sociedades problemáticas, com profundas divisões entre 
classes sociais. Muito mais crítica do que a divisão entre deficientes e 
não deficientes, a divisão estrutural entre classes permeia todas as 
demais divisões. Se a sociedade está dividida pela base entre ricos e 
pobres, empresários e trabalhadores assalariados, e, por extensão, 
ideologicamente, entre superiores e inferiores, melhores e piores, estas 
divisões vão acabar por permear todas as outras. 
Nesta medida, não se trata também de querermos nos convencer que 
todas as pessoas são socialmente iguais. Muitos dizem que, "no fundo, 
somos todos iguais". Alguns profissionais chegam a dizer que "pessoas 
deficientes e não deficientes são iguais perante a sociedade". Não, não 
são. Todos são de fato diferentes socialmente. São diferentes 
socialmente porque construíram e foram construídos neste mecanismo 
de relações sociais que os diferenciam. 
Entretanto, não é nessa realidade social dividida que pensamos viver. 
Não é nessa sociedade fraturada entre homens que dizemos pertencer. 
 A realidade se nos apresenta como um todo que deve ser organizado, 
homogêneo, em ordem, e em que cada homem deve ser solidário um 
com o outro. Pode ser que neste ou naquele momento a sociedade não 
esteja neste pé de equilíbrio. Este pode ser um momento de transição 
que tenderá a de novo se organizar. Para além disso, sempre nos é 
colocado que a sociedade deve ser um corpo estruturado, o qual tem 
órgãos, sendo que cada órgão tem uma função social muito precisa. 
Trata-se de pensarmos a nossa realidade social de um ponto de vista 
fisiológico, como um corpo humano, com órgãos que se relacionam 
entre si numa estruturação que deve trazer o equilíbrio e a harmonia 
para este corpo. 
Assim sendo, para que não se quebre o equilíbrio, não pode haver 
"órgãos estragados" ou em “mau funcionamento”. Um corpo com 
órgãos "deficientes" não é um "corpo social" bem-estruturado e em 
ordem. Desta forma, não é toda a sociedade que estaria fragmentada, 
mas apenas uma parte dela seria considerada "fora do normal". 
O nosso corpo individual tem íntima ligação com esse "corpo social". 
Todos nós nos expressamos através da realidade sociocultural. Esta 
realidade está tão presente em nosso corpo, como o nosso corpo está 
presente na realidade. Na medida em que a sociedade não é vista como 
uma realidade sociocultural fraturada, diversa, que apresenta 
contradições internas, mas sim vista como um "corpo social" que deve 
estar em ordem, o corpo humano também deve acompanhar a ordem 
social. Isso equivale a dizer que um corpo humano que apresente 
qualquer malformação (amputações, sequelas de qualquer tipo etc.) 
não é um corpo estruturalmente em ordem. 
 
Nesta nossa sociedade a ordem é por demais valorizada. Sempre 
ouvimos as pessoas dizerem que uma sociedade sem ordem jamais 
chegara ao progresso. Sempre ouvimos também que um órgão 
qualquer que esteja apresentando uma disfunção podecontaminar o 
resto do "corpo social". Estas são ideias facilmente transponíveis para o 
nosso corpo humano individual. Um corpo deficiente seria, sob este 
raciocínio, um corpo que apresenta necessariamente disfunções, 
incapacidades e não estaria em ordem. Um corpo que não está em 
ordem consequentemente não poderá alcançar o progresso tão 
desejado. Logo, será um corpo fadado a não ter realizações, não ter 
progressos, a ser sempre dependente. 
Além desses um outro valor muito cultuado em nossa sociedade é o 
valor do sucesso. A s pessoas se dispõem numa hierarquia tal que quem 
tem maior êxito nos seus papéis predeterminados maior status terá. 
Existe uma pré-noção que determina o que é o êxito e o que é o 
sucesso e como as pessoas terão de fazer para alcança-lo Muitas vezes, 
um corpo "bem-formado" essencial para conquista. Aliás, existem 
também pré-noções que determinam o que é a organização 
homogeneidade ordem... 
Isto é o estigma. Toda pessoa considerada fora das normas e das regras 
estabelecidas é uma pessoa estigmatizada. Na realidade, é importante 
perceber que o estigma não está na pessoa ou, neste caso, na 
deficiência que ela possa apresentar. Em sentido inverso, são os valores 
culturais estabelecidos que permitem identificar quais pessoas são 
estigmatizadas Uma pessoa traz em si o estigma social da deficiência. 
Contudo, é estigmatizada porque se estabeleceu que ela possui no 
corpo uma marca que a distingue pejorativamente das outras pessoas. 
Porque a nossa sociedade divide-se estruturalmente em classes sociais, 
aqueles considerados "iguais" colocam-se num polo da sociedade e 
aqueles considerados "diferentes" colocam-se no outro polo. Mais do 
que isso: muitos dos considerados "diferentes" introjetam essa divisão 
como se ela fosse absolutamente natural. Aceitam a consideração de 
"diferentes" e admitem até a condição de "inferiores". 
Pela lógica dos valores sociais dominantes, uma pessoa estigmatizada 
deve tentar se parecer como a mais "normal" possível. Até um 
educador de cegos, Wilhelm Heimers, em seu livro Como Devo Educar 
Meu Filho cego? afirma categoricamente: “Muitas deficiências físicas 
podem ser aliviadas por meio do uso de próteses que tornam defeito 
mais aceitável para as outras pessoas”. No caso da pessoa cega, o olho 
se apresenta deformado, como morto, e provoca repulsa, 
especialmente quando a pessoa esboça com o olho movimentos 
próprios dos videntes. Um olho artificial não ajuda a pessoa cega, mas 
permite-lhe disfarçar o defeito e elimina o aspecto desagradável da 
órbita ocular. Se por uma coincidência qualquer a aplicação de uma 
prótese se torna impossível, recomenda-se o uso de óculos escuros. A 
pessoa cega que se adapta ao ambiente e se comporta de um modo 
normal sem chamar a atenção sobre sua deficiência facilita 
enormemente o relacionamento com os outros e prestigia sua imagem 
no mundo dos "videntes". 
É interessante verificar que é incutido na pessoa deficiente que ela 
deve colocar um a prótese porque deve fazer tudo para se parecer com 
uma pessoa "normal". E o mais grave: o deficiente aceita isso. Quase 
nunca ele pensa que uma prótese se destina também à correção de 
uma situação física que se deixada para depois talvez venha a ser tarde. 
 No conjunto dos valores culturais que definem o indivíduo "normal", 
estão incluídos padrões" de beleza e estética voltados para um corpo 
esculturalmente bem-formado. Aqueles que fogem dos "padrões", de 
certa forma agridem a "normalidade" e se colocam à parte da 
sociedade É por isso que se procura alcançar por qualquer meio e a 
qualquer preço estes "padrões". E isso não diz respeito somente às 
pessoas deficientes... As pessoas estigmatizadas são pessoas que, muito 
embora tenham sido criadas nesta sociedade e nesta cultura, não são 
reconhecidas nem por esta sociedade, nem por esta cultura. 
Então estas pessoas são excluídas da sociedade? Isto não é tão simples 
assim. Estas pessoas não são sumariamente excluídas da sociedade. O 
processo não é automático Existe um mecanismo social muito bem 
feito que pende para a "exclusão" e ao mesmo tempo pende para a 
"integração". O "diferente" é segregado, não obstante existe na 
sociedade uma "ideologia de integração", que consiste em apregoar 
que todos os cidadãos são iguais e que por isso ninguém deve ser 
excluído do convívio social. Já vimos que os cidadãos não são iguais na 
sociedade. Por isso dizer que são iguais é esconder uma realidade 
diversa. No fundo, este mecanismo social é altamente discriminador. 
Essa tentativa de integração acontece concretamente através das 
instituições, quais sejam, a escola, os hospitais psiquiátricos, as 
penitenciárias e mesmo os centros de reabilitação. São eles que na 
maior parte das vezes tentam preparar o indivíduo para que seja aceito 
e integrado no social. Os centros de reabilitação tentam preparar os 
deficientes para que a sociedade os aceite. A tendência da sociedade, 
por sua vez, é continuar em sua lógica de exclusão. Instaura-se o 
impasse. 
O mecanismo social que exclui e a um só momento pretende integrar o 
deficiente traz para ele e para todos nós uma confusão muito grande de 
pensamentos. O nosso raciocínio não entende por que fala-se tanto em 
integração e mesmo assim o deficiente é marginalizado. Não entende 
por que não é reconhecido por esta mesma cultura em que encontra-se 
inserido. Isso pode levá-lo a considerar-se um estranho em seu próprio 
mundo. Toda pessoa, deficiente ou não, que, submetida à engrenagem 
da estrutura sociocultural, não se encontra em seu próprio mundo 
tende a se desligar dele. Como única e última alternativa tenta procurar 
um outro mundo em que seja reconhecida. 
E preciso perceber que a busca de um outro mundo, a busca de 
reconhecimento e identidade, está muito ligada a um processo social 
ambíguo e contraditório. As tensões familiares, profissionais, sociais, 
podem levar um indivíduo a apresentar "comportamentos desviantes", 
estando ele à procura de um mundo cujos valores lhe sejam 
identificáveis. Nesta medida (tento mostrar que deficiência e doença 
mental não representam necessariamente a mesma coisa), não só o 
deficiente mental (em geral considerado como portador de baixo 
potencial intelectivo) pode apresentar "comportamentos desviantes". 
Há também pessoas não deficientes mentais que, por se verem 
imbuídas de várias tensões, podem apresentar os ditos 
"comportamentos divergentes" e assim serem considera das "doentes 
mentais" ou "loucas". 
Michel Foucault, importante filósofo francês contemporâneo, em 
Doença Mental e Psicologia, afirma: "De fato, quando homem 
permanece estranho ao que se passa na sua linguagem, quando as 
determinações econômicas e sociais o reprimem, sem que possa 
encontrar sua pátria nesse mundo, então ele vive numa cultura que 
torna possível uma forma patológica como a esquizofrenia; estranho 
num mundo real é enviado a um 'mundo privado', que objetividade 
nenhuma pode mais garantir; submetido, entretanto, ao 
constrangimento desse mundo real, ele experimenta este universo para 
o qual foge, como um destino". Neste sentido, procurando um novo 
mundo para encontrar-se, a pessoa que não se reconhece em sua 
própria cultura encaminha-se para o que Foucault chamou de um 
"mundo mórbido". Essa pessoa seguramente se distinguirá das outras, 
pois apresentará comportamentos próprios deste "mundo mórbido" 
em que encontra. Essa pessoa será, no mínimo, "anormal" e, no 
máximo, "louca". 
Não é preciso ser deficiente para não ser reconhecido pela sua própria 
sociedade. O negro, o homossexual, O louco e até qualquer um que 
divirja das normas e regras da ordem social podem ser considerados 
"desviantes" e assim situarem-se fora da sociedade. O "desviante" é 
aquele que não está integrado, que não está adaptado, que se 
apresenta física e/ou intelectualmente normal, e portanto encontra-se 
à parte das regras e das normas. Deste modo, o que mede o "desvio" 
ou a "diferença" social são os parâmetros estabelecidos pelaorganização sociocultural. 
Porém, esta organização sociocultural precisa ser por nós 
desmistificada. O que quero dizer é que não podemos fazer dela uma 
noção abstrata que encubra e obscureça todas as suas articulações e 
mecanismos concretos que se refletem no nosso dia-a-dia. É muito 
comum jogarmos a culpa de tudo o que nos acontece numa entidade 
abstrata chamada sociedade ou sistema. Sempre ouvimos falar que a 
sociedade não costuma reintegrar ex-presidiários nem integrar 
deficientes. Isto não é verdade. A verdade é que esta tal sociedade é 
assim, discriminadora e excludente, ela é assim porque os homens que 
nela habitam construíram historicamente e reproduz em divisões 
estruturais entre classes, divisões estas permeadas por conflitos 
inconciliáveis, com desdobramentos múltiplos, que determinam todas 
as exclusões e discriminações efetuadas. 
 
E aqui voltamos para a imagem que fazemos das pessoas deficientes. 
Vimos que a nível da Natureza todos nós, seres humanos, 
apresentamos características diferentes uns dos outros. Vimos que 
neste nível as pessoas deficientes têm as suas diferenças mais notáveis; 
são, de fato, portadoras não de sequelas diferenciadoras. Vimos 
também que estas diferenças biológicas não podem jamais ser 
transportadas para as diferenças sociais, as quais são construídas 
culturalmente pela organização social forjada pelos homens. São estas 
diferenças sociais valorativas - e não necessariamente as biológicas - 
que determinam que as pessoas deficientes são pessoas submissas. São 
estas diferenças sociais que fabricam mecanismos de exclusão e de 
tentativa incoerente de integração social. São estas diferenças sociais e 
estes mecanismos que fazem os considerados "diferentes" construir um 
mundo próprio "mórbido", na medida em que não se "encaixam" e não 
se reconhecem neste mundo que também é deles. Vemos, enfim, que 
ao imaginarmos em nossa mente um "inválido", um "ceguinho" um 
"defeituoso" ou um "maluco", é imprescindível que busquemos os 
elementos que constituem essa imagem nas articulações concretas da 
estrutura sociocultural. 
Esta é uma breve introdução num breve livro. Muitas das questões que 
dizem respeito às pessoas deficientes foram e vão ser daqui por diante 
quase que apenas levantadas. Evidentemente não há espaço para uma 
discussão mais profunda. Gostaria apenas de indagar se não cabe, hoje, 
a todos nós, repensar a imagem que elaboramos com relação às 
pessoas deficientes. Uma imagem dominante, que incide 
arbitrariamente sobre interpretações subjetivas e que leva a ações 
paternalistas, assistencialistas e caritativas. Acredito que caiba a todos 
nós, deficientes ou não deficientes, reavaliarmos esta imagem, 
analisando a sua origem e sua articulação com a organização 
sociocultural em que vivemos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
OS MEANDROS DA DEFICIÊNCIA 
No Brasil não existem pesquisas para sabermos quantos deficientes 
existem ao certo e quais são suas deficiências. No mundo, a 
Organização Mundial de Saúde afirma que uma entre dez pessoas é 
portadora de deficiência física, sensorial ou mental, congênita ou 
adquirida. Isto equivale a dizer que por volta de 10% dos habitantes da 
Terra são pessoas deficientes. Aqui no Brasil, segundo a ONU, a 
porcentagem estatística deveria ser, por estimativa, a mesma: 10% da 
população seria deficiente. No entanto, acredito que aqui a 
porcentagem é maior. Primeiro, porque a OMS diz que nos países do 
Terceiro Mundo esta porcentagem pode chegar a 15% ou até 20%. 
Depois, porque aqui as regiões pobres são imensas (principalmente 
Norte e Nordeste), locais de maior incidência de deficiência, cujos 
meios de vida e prevenção são insatisfatórios. 
A rigor, existem três tipos de deficiência, sendo que um deles divide-se 
em dois. Existem as deficiências físicas (de origem motora: amputações, 
malformações ou sequelas de vários tipos etc.), as deficiências 
sensoriais, que se dividem em deficiências auditivas (surdez total ou 
parcial) e visuais (cegueira também total ou parcial), as deficiências 
mentais (de vários graus, de origem pré, peri ou pós-natal). 
 
Deixe-me trocar em miúdos. Vamos, porém por partes. Primeiro, vamos 
dividir a origem das deficiências em pré-natal, em que se incluem as 
congênitas, de um lado, e peri e pós-natal, de outro. Quanto à primeira 
origem, após a concepção, o embrião leva três meses para se formar 
definitivamente. É nesta época de formação que podem ocorrer as 
malformações. Aqui encontram-se basicamente duas causas: 1) doença 
da mãe ou do feto, ou 2) distúrbios genéticos. 
Se a mãe contrair alguma doença infecciosa (por exemplo: rubéola, 
toxoplasmose, sífilis) ou alguma doença metabólica (por exemplo: 
tireopatia) nos três primeiros meses de gravidez, o feto pode ser 
acometido de uma malformação. É neste primeiro trimestre de 
gestação que o feto se forma por inteiro: cabeça, braços, pernas, 
órgãos sexuais etc. A doença infecciosa metabólica da mãe pode acabar 
sendo transmitida para o filho em seu ventre, acarretando a 
malformaç5o. Há casos em que a mãe já é portadora da doença, mas 
não sabe por que não existem sintomas. No entanto, a doença está 
sendo transmitida ao filho e este pode nascer com alguma 
malformação. 
Por outro lado, a ingestão de drogas também pode ser responsável por 
malformações. Não é aconselhável a qualquer mulher grávida tomar 
qualquer tipo de remédio (principalmente calmante) sem orientação 
médica. Na década de 50, existiam calmantes considerados muito 
fracos, contendo talidomida, que foram responsáveis por um número 
muito grande de crianças deficientes. Até hoje existe uma associação 
chamada Associaç5o das Vítimas da Talidomida. 
Existem ainda os efeitos da radiação. O Raio-X, por exemplo, pode 
acarretar malformações no espermatozóide do pai, no óvulo da mãe, 
ou no embrião, o que pode gerar o nascimento de um filho deficiente. É 
por isso que as mães que estão gerando filhos não devem tirar 
radiografias. 
Dentro das malformações de origem pré-natal, encontramos também 
as causas congênitas. Estas dizem respeito à carga genética transmitida 
hereditariamente ao feto. Genes altera dos de antepassados podem 
ocasionar malformações. O feto pode adquirir um gene deletério 
(degenerado) de parte da família do pai ou da família da mãe, o que vai 
interferir na sua constituição. 
 
As malformações ocorridas no período dos primeiros três meses de 
gravidez podem trazer qualquer dos três tipos de deficiência. A 
deficiência física, a sensorial e a mental, e até mesmo a combinação de 
algumas deficiências (chamadas deficiências múltiplas) podem ser 
geradas por doenças da mãe ou do feto, por disfunç5o causada por 
radiação ou por transmissão hereditária de genes alterados. Podem 
nascer crianças portadoras da síndrome de Down (mongolismo), 
distrofia muscular progressiva, mielomeningocele, surdez, cegueira, 
hidrocefalia, microcefalia etc. 
 
Mas as deficiências não têm somente origem pré-natal. Elas também 
podem ter origem peri ou pós-natal, às quais chamamos deficiências 
adquiridas. Podem ocorrer por acidentes ou doenças. As doenças 
infecciosas que atacam crianças ou adultos podem ser responsáveis por 
sequelas. As doenças infecciosas mais comuns suo: varíola, meningite, 
encefalite, sarampo, tracoma, poliomielite, hanseníase etc. Estas 
doenças, se não são tratadas no início e com presteza, podem trazer 
qualquer dos três tipos de deficiência. As crianças prematuras, por 
possuírem menor defesa contra agentes agressores, podem vir a ser 
acometidas por doenças que acarretem deficiências. Em geral, são 
tomados os cuidados necessários. 
 
Existem, por outro lado, as doenças não infecciosas, que acometem 
mais os adultos. Estas são, na maioria, a hipertensão, que pode 
ocasionar o derrame e consequentemente a hemiplegia, e as doenças 
das artérias, que levam a amputações. As deficiências adquiridas 
podem ainda ter origem nos acidentes de parto, de trabalho, de 
trânsito etc. Em geral, a paralisia cerebral e aepilepsia, por exemplo, 
são deficiências ocorridas devido a um acidente no momento do parto. 
Um acidente de automóvel pode fazer deslocar alguma vértebra da 
coluna vertebral, atingindo a medula espinhal, trazendo a paraplegia ou 
até a tetraplegia. Um acidente de trabalho, o qual pelo menos aqui no 
Brasil é muito frequente, pode ocasionar uma amputação ou uma 
doença grave que traga algum tipo de sequela. 
Todas as pessoas deficientes são iguais? Claro que não. O estigma da 
deficiência acaba por fazer com que a população acredite que todos os 
deficientes são iguais. Isso não é verdade. Certamente teremos 
deficientes com graves limitações incapacitadoras, mas também 
teremos indivíduos cuja deficiência não lhes traz nenhuma (ou quase 
nenhuma) incapacidade. Um portador de deficiência mental severa tem 
limitações. Um portador de paralisia cerebral leve não tem limitações. 
Mas, então, novamente, podemos chamar de "deficientes" aqueles que 
não possuem nenhuma (ou quase nenhuma) limitação? 
 
O que me parece importante é que um deficiente físico que "transe" 
muito bem com o seu aparelho ortopédico, com a sua cadeira de rodas 
e com a vida, sem dúvida poderá ter as suas limitações atenuadas. Ao 
passo que um deficiente qualquer, que deixe a deficiência ou a vida 
comandá-lo mais do que a medida mesma em que ele comanda a 
deficiência ou a vida, um deficiente desses estará sujeito a ter mais 
limitações. Eu sei que isto não é fácil. Sei que quando o deficiente está 
posicionado numa classe social que o impede pela pobreza material de 
comprar aparelho, cadeira de rodas, aprender o alfabeto Braille ou o 
manual, fazer reabilitação etc., ele estará sentenciado a ser sempre 
comandado pela vida. Sei também que quando se tem tudo isso, mas 
faltam perspectivas que não surgem porque existe o paternalismo, o 
estigma, o preconceito e a sua própria cabeça, ele estará também 
fadado a ser comandado pela vida. 
O que estou querendo mostrar, apenas, é que a deficiência é relativa. 
Relatividade esta que se apresenta tanto a nível sociocultural, como 
também exclusivamente a nível físico. Aliás, nem a OMS conseguiu uma 
definição matematicamente precisa de quem é ou quem não é 
deficiente neste nosso mundo. De minha parte, acredito que precisar 
corretamente quem é e quem não é deficiente não é a coisa mais 
importante. A coisa mais importante são as implicações que decorrem a 
partir de um processo que engloba a deficiência. 
Mas, mesmo não dando muita importância para as definições exatas, 
acredito ser fundamental desmistificar algumas coisas. Dois pontos 
importantes, até porque eles se refletem nas relações sociais que se 
entabulam na nossa sociedade, precisam ser na medida do possível 
corretamente explicitados. Um deles diz respeito à diferenciação entre 
doença e deficiência. O outro diz respeito a se existe ou não a 
possibilidade de transmissão ou contágio da deficiência. Estes são dois 
pontos muito nebulosos que não raro, devido até à má informação 
reinante entre a população, são objeto de confusão, acarretando 
preconceitos infundados. Vamos, então, por partes. 
Quanto ao primeiro item - doença/deficiência - é preciso esclarecer a 
relação existente. As pessoas deficientes, salvo algumas poucas 
exceções, não são pessoas doentes. Ao contrário, como quaisquer 
outras pessoas, devem gozar de boa saúde. A relação existente entre 
doença e deficiência é que algumas deficiências se originam em 
doenças. A deficiência, neste caso, é a sequela trazida pela doença. A 
poliomielite, por exemplo, é uma doença infecciosa que traz como 
consequência urna sequela: a paralisia de um ou mais membros. E 
importante frisar que passada a fase da doença (pólio), a pessoa pode 
se tornar deficiente. Não obstante, esta mesma pessoa pode também 
gozar de boa saúde para o resto da vida. E verdade que existem 
algumas exceções, que são os casos em que a doença muito forte 
atingiu a pessoa de forma grave a ponto de trazer complicações como, 
por exemplo, complicações respiratórias. Mas é verdade também que 
grande parte (eu diria a maior parte) dos que tiveram pólio hoje são 
pessoas que gozam de muito boa saúde e, portanto, são apenas 
deficientes. 
A consideração de que todo (sem tirar nenhum) deficiente é um doente 
vai muito mais longe. Mesmo aqueles que se dizem especialistas 
consideram as pessoas deficientes como doentes. Peter Herriot, 
psicólogo inglês, organizador dos livros do Curso Básico de Psicologia, 
na introdução do livro de Rosemary Shakespeare, Psicologia do 
Deficiente, afirma: "À maneira da sociedade, é provável que nos 
congratulemos com o fato de termos começado a pensar nas pessoas 
deficientes como doentes e não como vítimas da punição divina". 
Doença é um processo. Deficiência é um estado físico ou mental 
eventualmente limitador. Existem, é verdade, alguns casos - mais 
incomuns - de simultaneidade. Nestes as pessoas são portadoras de 
uma doença que se associa à deficiência. Três exemplos devem ser o 
bastante: a distrofia muscular progressiva (tipo de doença muscular), a 
hanseníase (mal-de-Hansen, indevidamente chamada de lepra) e os 
distúrbios cardiovasculares. Mesmo assim, a maioria destas doenças 
pode ser curada, restando somente a deficiência ou nem isso. Com 
tratamento médico adequado, a hanseníase é curada, deixando na 
pessoa apenas as sequelas advindas da doença. Por outro lado, uma 
cirurgia cardíaca pode eliminar a doença, eliminando também a 
deficiência, pois, como os distúrbios cardiovasculares são responsáveis 
por algumas incapacidades físicas pessoais, uma vez eliminados estas 
são também eliminadas as incapacidades e a deficiência. Estes casos 
requerem cuidados médicos, já que a deficiência está associada a uma 
doença. Mas, sanada a doença, não há mais por que considerar como 
ainda sendo doente ou no mínimo "ex-doente" a pessoa que agora está 
completamente curada ou apenas deficiente. 
Contudo, preciso sublinhar que com isso não estou querendo minimizar 
uma doença ou dizer que consultar médico é bobagem. Isso nunca. 
Assim como o excesso de cuidado desnecessário pode ampliar a 
deficiência, a falta de cuidado também pode aumentá-la. Existe 
m casos de crianças que nascem deficientes e, por ignorância dos pais 
ou absoluta carência de condições financeiras, acabam por não 
consultar médicos especialistas ou por não fazer a reabilitação 
necessária. Além disso, existem também casos (e não são poucos) em 
que os pais deixam de consultar médicos e vão consultar milagreiros, 
pais-de-santo, benzedeiros etc. Acredito que. 
cada um tem a sua fé, o que leva as pessoas a procurar alternativas 
para o que consideram poder ser consertado. Mas nesta crença deve 
estar incluída também a fé no médico e nos profissionais de 
reabilitação que, em tese, saberão tratar da deficiência. 
Por outro lado, isto não exime de responsabilidade estes médicos e 
profissionais de reabilitação. Muitos pais procuram alternativas por se 
cansarem de ver o filho passar por vários médicos e não ter melhora 
significativa. O rosto dos pais sentados à porta dos consultórios dos 
médicos do INAMPS traduz um misto de esperança, desorientação, 
conformismo e desolação. Em geral estão mal informados acerca da 
deficiência e da viabilidade de reabilitação de seus filhos. São 
despachados de um posto do INAMPS para um outro local, muitas 
vezes longe, onde fazem exames clínicos, e depois para ambulatórios 
ou hospitais. São atendidos grosseiramente por algumas atendestes. 
São inseguros quanto ao futuro. Pior do que isto existe casos provados 
de pessoas deficientes que ao longo do caminho trilhado por 
consultórios e hospitais, foram acrescentando para si deficiências e 
incapacidades. Muitas cirurgias ou tratamentos equivocados levaram à 
aquisição de novas deficiências e não à superação delas. Alguns 
deficientes chegam até a se considerar como "cobaias". 
 
Alguns profissionais chegam até a confundir deficiências. Num trabalho 
apresentado no V Congresso Brasileiro de Prevençãoda Cegueira 
(1982), Júlia K. Hori, Nely Garcia e Tomázia Dirce P. Lara afirmam logo 
na primeira página: 
"A experiência no trabalho com crianças portadoras de deficiência 
mental ou visual tem demonstrado que algumas crianças que 
frequentam classes especiais para deficientes mentais são portadoras 
de dupla deficiência (mental e visual), ou apenas de deficiência visual; 
sendo diagnosticadas como deficientes mentais por interferências 
comportamentais, e por não poderem responder satisfatoriamente aos 
instrumentos convencionais de avaliaç5o psicológica". Por incrível que 
pareça, neste trabalho realizado em Garça, Marília e Quintana 
(municípios de São Paulo) foram encontradas crianças deficientes 
visuais cujo diagnóstico constava como deficiência mental. 
Sei que este é um assunto delicado. Sei também que vivemos num País 
pobre de recursos, que aqui o campo médico da fisiatria ainda é 
incipiente, e que muitas deficiências se configuram numa incógnita, 
devido muitas vezes à dificuldade de se encontrar a origem, as causas e 
o método mais adequado de reabilitação. Todavia, estamos muito 
acostumados a respeitar e aceitar sem questionamento um diagnóstico 
que consideramos legítimo porque foi proferido por um especialista 
autorizado e com competência suficiente para atar de doenças. Desta 
forma, se algo não der certo, aceitamos que o diagnóstico e/ou 
tratamento falharam, e não que a autoridade falhou. Os médicos e 
profissionais de reabilitação não estão também acostumados a fazer a 
integração médico/equipe/pais e/ou família/deficiente. Esquece-se que 
na ausência do médico ou da equipe de reabilitação são os pais que se 
tornam os terapeutas principais. Muitos médicos chegam a se ver 
completamente perdidos em algumas deficiências que a eles se 
apresentam e, ao invés de debater o caso com a família e com o próprio 
deficiente, se escondem atrás de diagnósticos confusos e abstratos e 
excluem os pais das terapias. Deste modo, pais e deficientes estarão 
desinformados, desorientados e impotentes para a total reabilitação. 
Nesta medida, pode ser que percamos a fé que nos move e nos 
incentiva a procurar no médico e nos profissionais de reabilitação a 
cura de uma doença ou a correção de uma deficiência. Perdemos a 
confiança e procuramos alternativas em milagreiros e pais-de-santo. 
Estes são também mais acessíveis, menos distantes, falam mais a nossa 
língua. Acredito que caiba a todos nós repensar a relação 
médico/paciente e profissionais de reabilitação/deficiente em todos os 
aspectos. Não só no aspecto da autoridade competente, como também 
na falta de comunicação que frequentemente se estabelece. 
 
Para tanto, é preciso rediscutir a visão médica e de reabilitação. É 
preciso notar que, muito mais do que "pacientes" ou "reabilitandos" as 
pessoas situam-se diferentemente em classes sociais, posicionam-se 
politicamente de diversas formas e possuem variadas crenças 
religiosas. 
O segundo ponto que chamei de nebuloso diz respeito à diferenciação 
entre transmissibilidade e contágio. A ignorância e o senso comum 
dizem que "deficiência pega". "A hanseníase (mais conhecida por lepra) 
é contagiosa." "Não se pode encostar no epilético, se não se quiser ser 
também um." Ou, por outro lado, dizem que "todo filho de deficiente 
será também um deficiente". Isto tudo não é bem verdade. 
Quanto à transmissibilidade já cheguei a tocar no assunto. E verdade 
que as deficiências causadas por disfunção de genes podem ser 
transmissíveis hereditariamente. Porém – e isso é importante -, essa 
transmiss5o é condicional, ou seja, pode ser que aconteça e pode ser 
que não aconteça. Dependendo da carga genética do deficiente, seu 
filho poderá ou não herdar seus genes responsáveis pela deficiência. 
Assim, não é regra geral que todo filha de deficiente será deficiente. 
Acredito que um aconselhamento genético não deve ser desprezado. 
Quanto ao contágio isto trata-se mais de um mito do que de uma 
argumentação verdadeira. Não sendo infecto-contagiosa nenhuma 
doença pode passar pelo contágio de pessoa para pessoa. Além do 
mais, para que a doença passe é preciso uma certa convivência com o 
doente, além de uma certa predisposição para pegar a doença. O 
hanseniano é portador de uma doença infecto-contagiosa. Não 
obstante, só se pega a doença se se conviver com ele um período 
suficientemente longo para que ela passe para o outro organismo. Caso 
contrário, pode-se tranquilamente ficar perto de um hanseniano sem 
correr nenhum risco. Por outro 1ado, quando a doença estiver em fase 
negativa (livre de contágio) ou quando restarem apenas às sequelas e a 
doença já tiver ido embora definitivamente, aí então é que nem 
convivendo com o agora ex-hanseniano se contrairá a doença. 
Existe também um mito muito grande que circunda a figura do 
epilético. Dizem que a saliva do epilético é contagiosa. Com efeito, a 
epilepsia é uma lesão cerebral e como tal não pode jamais passar para 
qualquer indivíduo pelo contágio. O indivíduo saliva por urna 
consequência da crise. Não se pega epilepsia pela saliva do epilético. 
Novamente: som ente doenças infecto-contagiosas podem ser passíveis 
de transmissão pelo contágio de um indivíduo doente para outro são. E 
preciso ficar claro, portanto, que sequela não pega em ninguém. A 
deficiência não é contagiosa: ela não contamina. As sequelas de 
qualquer doença, incluindo a hanseníase, bem como a epilepsia, e 
mesmo a distrofia muscular progressiva, que consiste numa doença 
aliada a uma deficiência, não são contagiosas. Pode-se tranquilamente 
conviver com as pessoas deficientes, usar suas roupas, beber e comer 
nos mesmos utensílios. 
No Brasil, a deficiência nos leva de chofre para a questão social. Nós 
somos considera dos um "país em desenvolvimento" (Terceiro Mundo). 
Nestes países a incidência de deficiência é maior: 
existem pelo menos 300 milhões de deficientes (num total de 500 
milhões no mundo inteiro). E, como afirma a Rehabilitation 
lnternational (entidade internacional de reabilitação, com sede em 
Nova York), os deficientes do Terceiro Mundo são "gente para quem as 
únicas condições de vida são a pobreza, a fome, a ignorância, a miséria 
e a falta de perspectiva". 
De fato, aqui no Brasil grande parte da população é subnutrida, o que 
leva à carência dos mais diversos tipos de proteínas e calorias, 
imprescindíveis para o organismo e para a geração de filhos sadios. Só 
no Nordeste o índice de cegueira causada pela falta de vitamina A é 
alarmante. Segundo os dados da RAIS (Relação Anual de Informações 
Sociais) e do Censo IBGE de 1980, 49,8% da população brasileira 
economicamente ativa recebe até 2 salários mínimos por mês, o que 
não dá para sustentar uma qualquer doença, incluindo a hanseníase, 
bem como a epilepsia, e mesmo a distrofia muscular progressiva, que 
consiste numa doença aliada a uma deficiência, não são contagiosas. 
Pode-se tranquilamente conviver com as pessoas deficientes, usar suas 
roupas, beber e comer nos mesmos utensílios. 
No Brasil, a deficiência nos leva de chofre para a questão social. Nós 
somos considera dos um "país em desenvolvimento" (Terceiro Mundo). 
Nestes países a incidência de deficiência é maior: existem pelo menos 
300 milhões de deficientes (num total de 500 milhões no mundo 
inteiro). E, como afirma a Rehabilitation lnternational (entidade 
internacional de tação?). No conceito de reabilitação está incluída a 
parte física, a parte psíquica (emocional) a parte social. Quando uma 
pessoa portadora de deficiência congênita ou nos casos mais 
frequentes adquirida por acidente entra num centro de reabilitação, a 
filosofia que a envolve é a de que ela é um ser humano que será 
reconhecido em sua totalidade. A sua reabilitação será, portanto, 
integral. Ela será reabilitada física, psíquica, profissional, socialmente 
etc. Acontece, todavia, que, no mais das vezes, isso não ocorre. Por 
quê? 
Porque existem vários fatores que podem estar dentro e/ou fora da 
instituição de reabilitação, eque impedem a total reabilitação do 
deficiente. Vamos por partes. Primeiro, vejamos o que ocorre por 
dentro da instituição. 
Os centros de reabilitação existentes esforçam-se para reabilitar as 
pessoas deficientes. Da equipe de reabilitação devem fazer parte o 
pessoal médico - fisiatra, neurologista, pediatra, urologista etc. - e o 
pessoal clínico - fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, 
psicólogo, assistente social, enfermeiro, técnico em órteses e próteses, 
pedagogo etc. E essencial que haja um entrosamento muito grande no 
interior da equipe. Mas isso não é sempre o que acontece. Dentre 
outros problemas, existe um que me parece ser muito sintomático. 
Trata-se da hierarquia existente no interior da equipe de reabilitação. 
Ao invés de um entrosamento de todos os membros da equipe, o que 
ocorre muitas vezes é uma relação autoritária entre um membro e 
outro, cada um querendo se colocar um degrau acima na escala 
hierárquica. Isto infelizmente ocorre em detrimento do reabilitando. E 
ele que, em última instância, sofre as consequências do mau 
entrosamento interno da equipe, o que redunda muitas vezes num 
empecilho para a sua completa reabilitação. 
Como já disse, a reabilitação deve levar necessariamente em conta que 
o reabilitando é um ser humano total. A meu ver, este deve ser o 
espírito não só da equipe de reabilitação, como também o das 
instituições. No entanto, aliado aos problemas suscitados na escala 
hierárquica, existe o fato de que os profissionais e algumas instituições 
enxergam a reabilitação segundo algumas "linhas" e "escolas" que 
entram em choque entre si. A princípio, não deveria haver problema. As 
várias "linhas" e "escolas" poderiam, numa discussão salutar, fazer 
trocas de experiências e expectativas, o que resultaria num benefício 
para o reabilitando. O que causa problema é que, ao que parece, o 
choque entre as diversas abordagens não se traduz na troca de 
experiências, mas, sim, na tentativa deste ou daquele profissional e 
deste ou daquele centro de reabilitação (ainda que inconscientemente) 
de querer impor "a melhor abordagem". 
Assim, é de extrema importância citar aqui algumas linhas do texto de 
José Geraldo Silveira Bueno, Excepcional: Integração ou Segregação. Diz 
assim: "O que não podemos deixar ocorrer é que profissionais fiquem 
se digladiando e tentando provar que seus procedimentos são os mais 
adequados e eficazes, porque se baseiam num corpo de princípios 
teóricos mais corretos. Esta disputa é altamente salutar quando ocorre 
a nível teórico, em estudos e polêmicas que têm como objetivo 
conhecer cada vez mais a problemática dos excepcionais. Mas quando 
ela ocorre em nível prático, com instituições querendo, de qualquer 
modo, manter toda a sua clientela dentro de seu esquema e recusando 
a verificar se muitos de seus educandos não seriam melhor atendidos 
através de outros processos, esta disputa acarretará, seguramente, 
grandes prejuízos aos indivíduos que dizemos ser a razão de nosso 
trabalho". 
Estes são alguns dos problemas internos apresentados pelos centros de 
reabilitação. Infelizmente, aqui não tenho espaço para tratar da vida 
cotidiana da instituição. Vejamos, agora, o que ocorre por fora da 
instituição. A que papel ela tem se prestado? 
Existem centros de reabilitação oficiais e particulares. A nível federal, 
existem os Centros de Reabilitação Profissional (CRPs) ligados ao 
INAMPS. Aqui em São Paulo, a nível estadual, só existe um: a Divisão de 
Reabilitação Profissional de Vergueiro, do Hospital das Clínicas da 
FMUSP. A nível municipal, a capital de São Paulo não conta com 
nenhum centro de reabilitação. Quanto aos particulares, estes estão 
mais voltados para o aspecto assistencial, de abrigo (asilo) e médico. 
Poucos são os que têm também caráter profissional. São centros em 
que o reabilitando paga por sua reabilitação, ou é encaminhado pelo 
INAMPS, ou entra na parte assistencial. Para suprir as defasagens 
orçamentárias, a Legião Brasileira de Assistência (LBA) ajuda a manter, 
através de verbas, os centros particulares. 
Há pessoas que dizem que são poucos os centros de reabilitação. Mas 
alguns dos que existem não estão com a sua lotação esgotada. Talvez 
os critérios de avaliação para atendimento de "pessoas deficientes 
reabilitáveís" sejam subjetivos a ponto de não superlotar os centros 
existentes. O fato é que a situação parece ser no mínimo controvertida: 
de um lado, os centros existem e, de outro, uma enorme parte das 
pessoas deficientes no Brasil é carente dos serviços de reabilitação. 
O Estado não tem uma política de reabilitação. A Comissão Estadual 
(São Paulo), que fez um relatório sobre pessoas deficientes no Ano 
Internacional das Pessoas Deficientes (1981), após afirmar que 
"reabilitação, ou habilitação Para alguns casos, é uma das necessidades 
básicas de toda pessoa deficiente", "considerou fundamental a criação 
de uma Coordenadoria de Atividades de Reabilitação que tenha a 
responsabilidade de planejar, incrementar e coordenar as atividades de 
atendimento a pessoas deficientes em todos os seus aspectos". Até 
hoje esta Coordenadoria não foi fundada. Aliás, diga-se de passagem, 
quase nada do que foi proposto num "plano de ação" pelas Comissões 
Nacional e Estadual para o Ano Internacional foi realizado. 
Para não dizer que nada se fez, em julho de 1982 foi montado, através 
da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, "um Grupo de Trabalho 
para estudar e propor o Plano de Operacionalização, visando o 
cumprimento, de imediato, da Proposta de Atuação no campo da 
Secretaria da Saúde, do recomendado pela Comissão Estadual de Apoio 
e Estímulo a o Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas 
Deficientes" (Diário Oficial nº 1 14, de 22/06/1982). Este Grupo de 
Trabalho apresentou um relatório extremamente sumário, com 
sugestões muitas vezes vagas, e em nenhum dos itens consta qualquer 
proposta de implantação da tão esperada Coordenadoria de Atividades 
de Reabilitação. Nenhum dos itens foi até hoje plenamente executado. 
Por mais que a filosofia interna dos centros de reabilitação seja a de 
reabilitar a pessoa deficiente, levando em conta que se está diante de 
uma pessoa total, a realidade social adversa de fora dos muros da 
instituição, para onde o "reabilitando" se dirige, vai fazer com que ele 
volte ao estágio em que se encontrava antes de ingressar no centro. Sei 
de exemplos de pessoas deficientes que saem de favelas, vão para o 
centro de reabilitação, se "reabilitam", mas voltam para a favela de 
onde vieram. Ora, voltar para a favela significa que novamente o 
"reabilitado" vai sofrer necessidades materiais, econômicas, 
psicológicas etc., que o farão regredir ao ponto em que se encontrava 
antes de ir para o centro. Muitas dessas pessoas, quando retornam ao 
centro, voltam com escaras, debilitados fisicamente, oprimidos 
psicologicamente, duplamente frustrados e sem perspectivas de vida. 
 
Imaginem uma pessoa que sai de uma favela (e não são poucas), vai 
para o centro de reabilitação e parte de lá cheio de expectativas, 
fazendo planos, acreditando que irá ser integrada ou reintegrada na 
sociedade. Imagine o baque que esta pessoa leva ao voltar para casa, 
passar necessidades materiais, não encontrar emprego, não poder 
estudar... A realidade em que se encontrava dentro da instituição é 
uma, e a realidade de fora é outra bem diferente. O mundo dentro da 
instituição é um, o mundo fora da instituição é outro. A sua vida dentro 
da instituição é estruturada, homogênea, em ordem; a sua vida fora da 
instituição é dividida, contraditória, incoerente e adversa. A instituição 
tenta integrá-lo, a realidade social tende a desintegrá-lo. 
Aqui se encontra, concretamente, aquilo de que falei, ainda que de 
forma um pouco abstrata, no capítulo anterior. O indivíduo, antes de ir 
para a instituição, vivia num mundo do qual era sempre excluído. Ao 
entrar na instituição, trabalha-se no sentido de integrá-lo. Mas ao sair 
depara-se novamente coma realidade social que mais uma vez tentará 
segregá-lo. A cabeça deste indivíduo não deve entender nada. E por 
isso que ele volta sistematicamente para a instituição. A instituição 
trabalha com ele e não com a sociedade. A instituição muitas vezes não 
percebe que aquele reabilitando é fruto do social. A instituição trabalha 
com o reflexo do social e não com o social propriamente dito. A 
instituição se fecha em si mesma. Às vezes tenho a impressão de que a 
instituição ajuda a manter este social. Muito embora alguns 
profissionais estejam cônscios do papel desempenhado pela instituição 
na sociedade e façam da sua consciência seu instrumento de trabalho. 
Hoje em dia fala-se muito em "reabilitação simplificada". Na verdade, 
este conceito ainda não está muito nítido. Mas, a grosso modo, trata-se 
do seguinte: seria a tentativa de descentralizar os serviços de 
atendimento de reabilitação, atendendo as pessoas deficientes na 
própria região onde moram, contando, para isso, com as técnicas e 
recursos próprios da região e com a colaboração da família e da 
comunidade enquanto um todo. Esta proposta está calcada no 
pressuposto de que os centros de reabilitação localizam-se apenas nas 
grandes cidades e que, assim, são de difícil acesso para os que moram 
no interior. Além disso, existe também a proliferação de clínicas que 
não são especialistas no atendimento à reabilitação (fisioterapia, 
fonoaudiologia etc.) e que, desta maneira, não estão essencialmente 
preocupadas com a reabilitação integral do indivíduo. 
O ponto central da "reabilitação simplificada" prende-se ao fato de que 
os países ditos em desenvolvimento deveriam adequar a necessidade 
de reabilitação de todas as pessoas deficientes à sua realidade social de 
países pobres. 
As notícias dizem que o México e alguns países da África já começaram 
a implementar a "reabilitação simplificada". Seria ela uma alternativa? 
É difícil dizer por enquanto. O que me parece claro, não obstante, é que 
se a "reabilitação simplificada" for a campo e se deparar com a 
diversidade e a adversidade social em que se encontram as pessoas 
deficientes que moram em subúrbios, periferias, favelas, cortiços, meio 
rural desprivilegiado etc., se deparará também com uma questão que é 
política. 
 
 
 
AS PESSOAS DEFICIENTES NOS BASTIDORES 
 
A família nuclear é a unidade mais próxima do indivíduo. Todos os 
valores culturais, estabelecidos pela forma de organização social 
(econômica, política etc.), passam pelo indivíduo, através da unidade 
familiar. A formação da personalidade é, sem dúvida alguma, 
influenciada pela família que detém e faz circular em seu interior o 
reflexo do social maior e mais abrangente de toda a organização. Nesta 
medida, a educação dispendida na criação de um filho, seja ele 
deficiente ou não deficiente, vai ter necessariamente que passar pelos 
valores culturais que envolvem todos os habitantes desta formação 
sociocultural. 
Esta, na realidade, não é uma relação mecânica. Não se trata de pensar 
a criança ou o adulto como um mero reprodutor daqueles valores que 
constam na organização cultural. De outra forma, as pessoas interagem 
com todos os valores culturais que a elas se apresentam, e se 
compõem, em si mesmas, numa rede de sentimentos, preocupações e 
consequentes ações. Existe, evidentemente, uma dominância da 
interferência de certos valores culturais estabelecidos pela divisão 
social. Mas a realidade é dinâmica, sempre em transformação, sempre 
se metamorfoseando em novas realidades e, assim, ou fazendo os 
valores dominantes se adequarem para continuarem dominantes, ou 
ocasionado uma ruptura que engendraria novos e transformados 
valores. De um modo ou de outro, as pessoas, os valores e a realidade 
estarão sempre em constante superação. 
Isto para mim é importante, pois o que vai neste capítulo (e, claro, o 
que vai no livro todo) não é aquilo que eu penso de como deve ou 
deveria ser uma pessoa deficiente. Jamais pensei em construir um 
"modelo" de deficiente. Modelos não existem. Todas as pessoas são 
aquilo que a sua história, sua condição social e seu eu permitem. Todas 
as pessoas devem ser exatamente como são, sem que ninguém possa 
dizer como deveriam ser. Existem circunstâncias na vida das pessoas - e 
a deficiência pode ser uma delas - que as levam a assumir atitudes 
perante a vida. Sempre assumimos atitudes. É verdade, 
porém, que eu não sei até que ponto segurei a minha interpretação 
sobre as pessoas deficientes. Este parágrafo eu escrevo depois do 
trabalho todo terminado, e decido encaixá-lo aqui, antes que você leia 
o resto. A minha intenção foi a de fazer apenas um relato 
 crítico do que acontece cotidianamente, em geral, com as pessoas 
deficientes e aqueles que as cercam. Não quis construir modelos mas 
quero ser sincero, acho que não consegui deixar de lado a minha 
imagem das pessoas deficientes. 
Acredito que grande parte das famílias não estão preparadas para 
receber um membro deficiente. Acredito mais: que não estão 
preparadas, principalmente porque receberam toda carga ideológica 
que reina no interior de nossa cultura. Deste modo as reações podem 
ser as mais variadas: rejeição simulação segregação superproteção 
paternalismo exacerbado, o mesmo piedade. 
Em geral, um casal nunca tem a ideia de que um dia Poderá ter um filho 
que nasça com qualquer tipo de deficiência Uma família não tem a ideia 
de que um membro poderá um dia sofrer um acidente que o faça 
deficiente. A palavra deficiente adquire uma conotação negativa 
Deficiente será aquele membro que dará sempre muito trabalho, que 
viverá encostado às custas da família. Pode ser que o deficiente 
congênito ou adquirido seja realmente portador de uma limitação ou 
incapacidade grave. Porém, uma enorme parte dos casos é passível de 
reabilitação a ponto de conseguir que, mesmo com graves lesões, uma 
pessoa deficiente leve uma vida independente e até com contribuições 
para a família e a sociedade. Existem casos de pessoas portadoras de 
síndrome de Down (mongolismo) e de deficiência mental 
(principalmente os mais próximos da condição limítrofe) que brincam, 
passeiam, trabalham em serviços simples, e até fazem compras sozinho 
s Quanto às deficiências físicas e sensoriais, estas são muito mais 
passíveis de reabilitação o que quer dizer que estas pessoas têm muito 
mais condições de nunca serem dependentes da família .Eu sei que 
pensar assim não é tão fácil quanto parece. As mães, principalmente, se 
abatem muito ao perceber que têm um filho deficiente. Muitas mães e 
país se esquivam de ler bons livros sobre deficiência ou de consultar 
médicos ou especialistas em reabilitação para não sofrerem ou (o que 
acreditam) não verem o seu filho sofrer Mas é importante dizer que 
esta parada tem que ser enfrentada. Se ela não for enfrentada, a 
tendência é a estagnação, o aprofundamento da deficiência e a 
consideração de que o filho é cada vez mais "anormal" Pelo contrário se 
a parada for assumida e enfrentada - e o enfrentamento pode muitas 
vezes ser mais ameno do que o esperado - os pais terão tudo para no 
futuro - e o futuro pode também estar mais próximo do que o esperado 
- conseguir enxergar a conquista do enfrentamento da parada. 
A imagem pejorativa da deficiência na cabeça das famílias repercute na 
educação que os pais oferecem aos filhos. J. Espínola Veiga (cego), em 
seu livro A Vida de Quem Não Vê, tem uma passagem primorosa sobre 
a atuação tradicional dos pais com relação ao filho deficiente: "O filho 
vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. 'Coitadinho, deixa!...' 
Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na boca, 
descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. 
'Coitadinho! Já basta o que ele sofre!...' E a criança não sofre nada com 
a falta da vista (. . .). Sofrera, sim, mais tarde, a conseqüência dessa 
educação mal dirigida". 
O que Espínola Veiga quer dizer com isso? Lá no fundo, ele quer dizer 
que a família as sume que tem um filho incapaz até de comersozinho. 
Quer dizer que a família subestima o filho a ponto de não permitir que 
as suas potencialidades aflorem naturalmente. Mais do que isso, a 
família acaba por querer sentir pela criança, além de imputar-lhe um 
sofrimento do qual ela não padece. 
Porque, em, geral, uma criança com deficiência congênita não sofre 
absolutamente nenhum constrangimento por ser deficiente. Na 
verdade, a criança deficiente nunca teve outro modelo a não ser o da 
deficiência. Ela nunca foi uma 
criança não-deficiente para saber o que é sê-lo. Ela, de início, não sofre 
por não ser um "normal". Uma criança que nasceu cega, nunca 
enxergou e por isso não tem por que sofrer. 
 Uma criança paraplégica, que sempre andou com aparelho ortopédico, 
dificilmente sofrerá por não andar sem ele. Somente a partir de uma 
certa idade, quando o mundo descobrir que ela é deficiente e começar 
a mostrar-lhe que ela é "diferente", então sim esta criança se verá mal 
com a sua deficiência e provavelmente sofrerá. Ninguém sofre com a 
deficiência, todos sofrem com o estigma. Deste modo, a atuação dos 
pais ou familiares, que no fundo é acreditar numa "anormalidade" do 
filho, incide diretamente na constituição física e intelectual, bem como 
na personalidade da criança deficiente. 
Muitos testes têm constatado que as pessoas deficientes têm tendência 
para terem um atraso ou mesmo um déficit cognitivo. Isso quer dizer 
que a interpretação de dados tem levado os profissionais 
(principalmente psiquiatras e psicólogos) a concluir que existe um 
"padrão" de desenvolvimento físico e intelectual, e que as pessoas 
deficientes estão sempre atrasadas para chegar neste "padrão". 
Rosemary Shakespeare, psicóloga inglesa, considerada especialista em 
pessoas deficientes, em Psicologia do Deficiente, afirma: "Muitas 
deficiências envolvem problemas de desenvolvimento cognitivo - 
progresso irregular nos processos pelos quais Percebemos o nosso meio 
circundante aprendemos, compreendemos e recordamos fatos sobre o 
mundo e atuamos apropriadamente". Mais adiante a autora conclui 
insofismável; "A deficiência motora, a cegueira e a surdez têm um e 
feito comprovadamente retardador em alguma fase do 
desenvolvimento". 
Os motivos causadores do retardamento cognitivo estariam na seguinte 
seqüência. 1) comprometimento do cérebro na deficiência ou seja, 
possuem retardamento pessoas com lesão cerebral estrutural; 2) "falta 
de experiência, quer resultante das limitações da própria deficiência, 
quer do ambiente em que a pessoa vive". Mesmo levando em 
consideração que o ambiente Pode causar o retardamento ainda assim 
a autora parece priorisar a deficiência em si mesma como motivo do 
retardamento. Pois ela afirma com todas as letras: "Sejam quais forem 
os fatos envolvidos, é evidente que a deficiência quer o cérebro esteja 
afetado ou não, está relacionada com o reduzido aproveitamento 
educacional". 
A questão, acredito eu, não está em saber se as pessoas deficientes são 
Portadoras de um retardamento cognitivo. Pode até ser que, na 
realidade, muitas delas, assim como também muitas outras pessoas 
não-deficientes sejam portadoras desse retardamento. A questão está 
em saber por que estas pessoas apresentam o atraso. 
Qualquer pessoa, quer seja ela deficiente ou não-deficiente, está sujeita 
a não conseguir passar pelas experiências cotidianas que todas as 
crianças passam. Isto pode decorrer da conjunção de fatores biológicos 
com fatores culturais. Uma criança portadora de um nível grave de 
deficiência sensorial, talvez, principalmente se não lhe derem os meios 
e métodos adequados, deixe de aprender a ler com a mesma idade de 
uma criança não-deficiente. No entanto, qualquer criança não-
deficiente, mas que seja subnutrida, que viva numa condição social 
precária, ou mesmo que viva num ambiente repressivo, pre 
conceituoso, autoritário, pode não apresentar a mesma resposta. 
Além disso, e aprofundando essa linha de raciocínio, se uma criança 
deficiente vive num ambiente em que é considerada como um 
"diferente", com toda a carga ideológica que essa palavra possui, e que 
assim precisa ser tratada pela família e pela sociedade como uma 
"anormal", esta criança está destinada a efetivamente não aprender a 
ler no tempo previsto para todas as crianças além de ter a sua 
deficiência acentuada ou multiplica da. Velamos, novamente, uma 
importante passagem do livro de J. Espínola Veiga, em que ele 
demonstra com muita pertinência como o ambiente familiar e 
Sociocultural pode propiciar o surgimento de uma defasagem cognitiva: 
"Mundo precário e mesquinho, ainda mais amesquinhado pela própria 
mãe atemorizada com a ideia do filho machucar-se. 'Tira a mão daí, 
meu filho, não mexe aí, isso faz dodói' (...). Enquanto o cérebro dos 
outros de contínuo se povoa de imagens, o dele se estiola na aridez 
que há de atormentar toda a vida. (...) Mas, pouquíssimas vezes o 
ambiente facilita-lhe o desenvolvimento dessas atividades. As 
amuações da casa, os receios da mãe, a compaixão dos que o cercam, 
manietam-no desde logo. (...) Essa estreiteza de mundo, essa falta de 
variedade nos brinquedos, essa repetição contínua das mesmas 
atividades, acaba por criar no cego O defeito mental que o 
acompanhará pela vida toda". 
Se a forma escolhida pelos pais para criar um filho deficiente estiver 
imbuída de valores negativos, esta criação Poderá até afetar outros 
filhos não-deficientes. As coisas precisam ser levadas naturalmente, 
mas nem sempre é isto O que acontece. Até que todos os valores 
culturais estejam, inculcados na cabecinha do irmão não deficiente, ele 
enxergará aquele irmão que nasceu com alguma deficiência apenas 
como uma pessoa que tem alguma coisa em seu corpo que não é igual 
ao dele. Ele fará distinções biológicas e estas evidentemente vão existir. 
Mas as distinções pessoais - como por exemplo, não querer brincar 
com o irmão deficiente, não querer falar com ele, ter vergonha dele 
etc, - não serão feitas porque neste nível para ele o irmão não é 
distinto. Mas, se no processo de crescimento os país e familiares 
separarem valorativamente um irmão do Outro, então aí poderá nascer 
a rejeição entre eles. 
Um irmão, por não ser deficiente, não terá que ter mais valor do que o 
deficiente. É claro que os cuidados dispendidos poderão ser 
eventualmente diferentes. Afinal, o irmão deficiente poderá solicitar 
maior atenção ou algum tipo de cuidado especial. Isso não quer dizer 
que tenha menos valor do que o outro. O não deficiente saberá 
entender de forma natural que seu irmão é diferente biologicamente 
mas não necessariamente a nível pessoal. 
Por outro lado, o que também não se pode deixar ocorrer é 
exatamente o inverso: o estigma de "diferente" passar para o filho não-
deficiente. Se houver numa casa dois filhos, sendo um deficiente e o 
Outro não-deficiente, e nesta casa estiver presente o estigma 
valorativo, então um vai ser diferente do outro e o outro vai ser 
diferente do primeiro. Complicado, não? Deixe-me explicar. 
Pode ser, por exemplo, que o primeiro filho de um casal tenha nascido 
sem deficiência, mas o segundo filho tenha nascido deficiente. Neste 
caso, pode ocorrer que a atenção dada ao filho não-deficiente se volte 
toda para o deficiente, mais a carga valorativa. Em primeiro lugar, o 
filho não-deficiente se sentirá, com toda a razão invadido. "Pronto, 
acabou-se o que era doce, este moleque nasceu assim e se tornou o 
centro das atenções." Em segundo lugar, o ir mão não-deficiente 
poderá correr o risco, por paradoxal que isto possa parecer, de não ter 
os seus feitos e ações observados em seu devido mérito. Na medida em 
que seu irmão é deficiente, ele que é "normal" e "sadio" não fará mais 
do que a obrigação de fazer as coisas bem-feitas. Assim sendo, por 
mais que seja fantástica, não haverá merecimento algum em sua ação. 
E o irmão deficiente que deverá fazer as coisas malfeitas, o irmão não-
deficiente deverá obrigatoriamente fazer as coisas bem-feitas. 
Passada a fase de criação,a criança deficiente entra na adolescência. 
Costuma-se dizer que a adolescência é a fase crítica das pessoas 
deficientes. Ora, a adolescência é a fase crítica de qualquer pessoa. Por 
ser crítica ela pode, na verdade, acrescentar alguns "grilos" na cabeça 
dos deficientes. Um deles é a "transa" com seu corpo. Existem na nossa 
sociedade valores culturais que dizem que o homem "perfeito" deve ser 
musculoso e viril e a mulher "ideal" possuir boas curvas. Até os 13 ou 
14 anos um jovem qualquer não precisa necessariamente estabelecer 
relações valorativas de seu corpo com a sociedade. Até esta idade os 
jovens usam seu corpo para brincar, correr, nadar etc., e, salvo as 
pessoas portadoras de limitações muito fortes, as demais, de um jeito 
ou de outro, se quiserem, podem fazer tudo isso. 
Mas chegada a fatídica "idade da puberdade", os jovens são cobrados a 
fazer o seu corpo corresponder à carga de valores culturais. Nesta 
ocasião um corpo que não estiver em "ordem" (física e 
intelectualmente) encontrará as primeiras barreiras para interagir com 
o social. Até este momento, até os 13 ou 14 anos, as pessoas são 
"crianças". Até esta idade, as pessoas não devem ter responsabilidades, 
não precisam pensar direito (porque têm quem pense por elas), não 
precisam ter físico muito bem arranjado (até porque têm quem cuide 
delas). Ao atingir a adolescência, o jovem é iniciado a uma fase pré-
adulta. Agora ele aprenderá a interagir com o mundo, a estudar de 
forma mais efetiva, a querer exprimir a sua sexualidade, a responder a 
uma série de responsabilidade a "começar a ser gente". Para tanto, este 
social em ordem não admitirá um a pessoa em desordem Uma pessoa 
"fisicamente diminuída" (expressão infeliz que consta de alguns livros 
sobre deficiência) ou "intelectualmente retardada" não poderá 
responder a todas as solicitações da formação sociocultural. 
Muita gente, inclusive alguns considerados especialistas, costumam 
dizer que as pessoas deficientes apresentam um comportamento 
próprio. Isso é como se existisse o "comportamento do deficiente". 
Equivale dizer todo o deficiente físico, sensorial e (até) mental 
apresentaria comportamentos análogos decorrentes, em última 
instancia, da sua própria deficiência. O cego seria desconfiado por 
natureza. O deficiente físico (principalmente o paraplégico) seria 
complexado por natureza. O deficiente mental se masturbaria por 
natureza. Todos os deficientes seriam sempre revoltados ou resignados 
por natureza. Sempre por natureza. 
Este é um outro aspecto que não está delineado. Vamos por partes. 
Aqui, acredito eu, precisamos verificar com muito cuidado os dois casos 
de deficiência - congênita e adquirida - em separado. Cabe lembrar, 
também, que à semelhança do que foi colocado anteriormente acerca 
da virtual presença de atraso e déficits cognitivos nas pessoas 
deficientes, aqui também não me parece que a questão está em saber 
se o deficiente apresenta ou não um tipo específico de 
comportamento. Pode ser que apresente, como também pode ser que 
muitas pessoas não-deficientes também apresentem, um tipo 
específico de comportamento. 
Na realidade, a questão está em saber por que um tipo específico de 
comportamento pode surgir. 
Vejamos os deficientes congênitos. Como já falei, as pessoas que 
nascem com deficiências crescem percebendo-se como pessoas que 
biologicamente possuem alguma diferença notável, a qual os outros 
não possuem. Muito provavelmente, não será isso que a fará ter um 
tipo qualquer de comportamento considerado "desviante". No que 
decorrer disto é que poderemos talvez encontrar o elemento gerador 
que faz apresentar este eventual comportamento. Quando criança, o 
deficiente não chega a ligar se aquela velhinha lhe disse que "Nosso 
Senhor Jesus Cristo, que para todo o sempre seja louvado, fará um dia 
você ficar bom". Ele também não chega a se preocupar quando a 
molecada da rua, o chama de "ceguinho", "aleijado", ou alguma coisa 
que o valha. Quando criança, ele como que adapta o mundo às suas 
limitações e, se não houver restrições, sairá por aí brincando correndo 
ao seu modo. 
É quando ele chega na adolescência que começará a ser cobrado por 
todos os valores socioculturais. Neste momento se apresentará para ele 
a divisão estrutural da sociedade. 
Ela o marcará e estigmatizará na subdivisão entre "iguais" e 
"diferentes". Ele a incorporará. Pode ser que se revolte ou se resigne ao 
se dar conta de que é um "deficiente". Pode ser que em fuga acredite 
que não é deficiente e inversamente assuma uma condição de 
"normal". Provavelmente, será aqui que se configurará seu primeiro 
"problema". 
Ao meu ver, é somente quando a pessoa deficiente introjecta as noções 
e regras socioculturais, que distinguem as pessoas em deficientes e 
não-deficientes, somente neste momento nascem de fato os 
"problemas". 
"Problema" é uma coisa relativa e também cultural. Para muitos 
deficientes as soluções possíveis e viáveis para a sua deficiência já 
foram encontradas. Não se trata mais, portanto, de um problema no 
sentido literal da palavra. As vezes, parece que as pessoas querem 
imputar um "problema" aos deficientes. As vezes, eles mesmo se 
imputam " problemas". O que estou querendo dizer é que esta palavra 
tem uma conotação pejorativa que indica que a pessoa tem um 
"problema" porque é deficiente. Não, não é bem assim. A não ser em 
casos de incapacidades gravíssimas, a deficiência em si não traz 
necessariamente "problemas" perpétuos e insolúveis. 
 O que traz de fato "problemas" para as pessoas deficientes são as 
coisas que decorrem de seu meio social de vida. Eles estão muito mais 
ligados à organização sociocultural, do que à capacidade física das 
pessoas. Algumas mães de deficientes mentais chegam a dizer que têm 
um "problema crucial": nunca haverá quem cuide de seus filhos com a 
mesma paciência e atenção que elas lhes dão e que eles necessitam. 
Por isso, sequer podem morrer... Mas, esquecem-se que não é porque 
o filho é deficiente mental que elas não podem morrer. Elas não podem 
morrer porque a organização social em que vivemos não está 
preparada para acolher os deficiente 
s mentais. 
Assim, "problema" é não ter como melhorar a condição física e 
intelectual deste deficiente mental. "Problema" é os deficientes não 
conseguirem emprego, escola, não terem dinheiro para fazer 
reabilitação, não serem aceitos nos centros de reabilitação, morarem 
em favelas, não terem dinheiro sequer para comprar um aparelho 
ortopédico, uma cadeira de rodas, um aparelho auditivo ou uma 
bengala. Existem muitas maneiras de resolver " problemas" advindos 
exclusivamente da deficiência biológica. Existem talvez poucas 
maneiras de resolver "problemas" advindos de uma condição de vida 
precária. 
Mas, às vezes, alguns deficientes encontram outro tipo de "problema". 
Existem deficientes que não gostam muito de responder perguntas. As 
crianças são as mais perguntadeiras que existem. Aproxime-as de um 
deficiente e elas logo o puxarão pelo braço para perguntar: "por que 
você é assim?" Ou: "o que é que você tem?" E se o deficiente se 
constrange - o que muitas vezes ocorre - a criança logo diagnostica: "já 
sei, você não tomou vacina quando era pequenininho que nem eu". 
Mas isto não acontece só com as crianças. Quantas vezes não vemos 
um deficiente passando na rua e uma pessoa o olhando com uma 
expressão facial exatamente igual a um ponto de interrogação? 
 
Quando a pessoa que olha é mais desinibida, ela chega até o deficiente 
e pergunta: "como é que foi isso aí, ô meu?" Porém, quase sempre o 
deficiente se esquiva da pergunta. Talvez lhe seja difícil falar sobre. 
Lembro-me do caso de um rapaz deficiente que, perguntado numa roda 
de bate-papo se queria dar alguma opinião sobre um assunto diverso, 
mas que se relacionava com deficiência, disse um "não" em alto e bom 
som. Estas pessoas não se expõem. 
Não acredito sinceramente que a simples curiosidade seja danosa ou 
mesmo ofensiva. Acho que ela não

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