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Stephane D’arc 5° semestre - Medicina Leishmaniose Visceral A leishmaniose visceral ganhou o nome de Calazar, palavra de origem hindu que significa “febre negra”, devido ao escurecimento característico da pele, descrito na Índia. Apesar de tal característica não acompanhar a doença em outras regiões do mundo como o Brasil, o nome calazar ficou consagrado e se transformou em sinonímia. O que é calazar? Trata-se da forma sistêmica da infecção causada por uma das três subespécies do complexo Leishmania donovani – protozoários flagelados (da classe Mastigophora) que pertencem à ordem Kinetoplastida, família Trypanosomatidae (a mesma do Trypanosoma cruzi, agente da doença de Chagas). A doença é transmitida por mosquitos flebotomíneos que se contaminam com o protozoário ao picar o homem ou outros mamíferos infectados. A principal característica do gênero Leishmania é o dimorfismo, isto é, presença de duas formas evolutivas: (1) amastigota – forma aflagelada, arredondada, parasito intracelular obrigatório; (2) promastigota – forma flagelada, alongada e móvel. Os protozoários do gênero Leishmania sp. se reproduzem de maneira assexuada, por divisão binária. A forma amastigota se reproduz no citoplasma dos macrófagos/monócitos do hospedeiro, ao passo que a forma promastigota se reproduz no intestino do inseto vetor Na América Latina, o Brasil representa 90% de todos os casos! São cerca de 3.400 por ano. Minas Gerais e os estados da região Nordeste são os maiores responsáveis, especialmente Bahia, Ceará, Piauí e Maranhão. Outros estados contribuem com uma pequena parcela dos casos: Roraima, Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Rio de Janeiro (Baixada Fluminense). No Brasil, a doença predomina no meio “periurbano”, isto é, regiões periféricas das cidades, na medida em que elas “avançam” sobre zonas rurais ou de mata virgem. O agente etiológico do calazar brasileiro (bem como de outros países da América Latina) é a Leishmania chagasi. Não só o calazar (leishmaniose visceral), mas qualquer tipo de leishmaniose (incluindo a tegumentar) tem o mesmo ciclo evolutivo. A doença é transmitida pela picada de um mosquito flebotomíneo. No Brasil, a principal espécie transmissora é o Lutzomyia longipalpis – Este mosquito é encontrado em várias regiões do país, sendo conhecido popularmente como mosquito-palha, birigui ou tatuquira. As fêmeas do flebotomíneo têm hábito hematófago, alimentando-se no crepúsculo ou durante a noite. Abrigam-se em tocas de animais silvestres, buracos de árvores e invadem o domicílio, concentrando-se nas fendas de paredes. Esta espécie é antropozoofílica, ou seja, alimenta-se tanto do sangue humano como de outros mamíferos. Uma outra espécie de mosquito transmissor, encontrado no estado de Mato Grosso do Sul, é o Lutzomyia cruzi. Em nosso meio, os cães são os principais reservatórios da leishmaniose – Figura 4, seguidos pela raposa (Lucalopex vetulus). Infectados pela Leishmania chagasi, estes animais podem Stephane D’arc 5° semestre - Medicina permanecer assintomáticos ou desenvolver uma doença debilitante. O mosquito transmissor contém as formas promastigotas infectantes da L. chagasi em seu aparelho digestivo. Durante o repasto sanguíneo, este material é regurgitado, permitindo a inoculação dos parasitas na derme do hospedeiro. Neste local, são internalizados por macrófagos locais, após ligarem-se a receptores específicos. No interior do vacúolo fagocítico, as formas promastigotas perdem o flagelo, transformando-se em formas amastigotas. Estas se proliferam por divisão binária, gerando múltiplos protozoários que se acumulam no citoplasma do macrófago provocando o rompimento da célula. Ao serem liberados no meio extracelular, infectam novos macrófagos ou monócitos. No interior destas células, o protozoário caminha pela corrente sanguínea, alcançando órgãos do sistema reticuloendotelial, como fígado, baço e medula óssea, onde encontram novos macrófagos, mantendo um ciclo proliferativo celular. Ao picar o homem ou animal infectado, o flebotomíneo ingere monócitos contendo forma amastigotas ativas, que são libertadas no intestino do inseto. Aí encontram um meio propício para evoluírem até a forma promastigota metacíclica, invadindo retrogradamente o aparelho digestivo proximal (estômago, esôfago e faringe) do mosquito. Nesse momento, cerca de cinco dias após ter adquirido o parasita, o mosquito já pode transmiti-lo para um novo hospedeiro. Nas áreas endêmicas, esta é a forma mais comum da doença. Os sinais e sintomas são inespecíficos e são constituídos por febrícula, tosse seca, adinamia, diarreia, sudorese e discreta hepatomegalia. Apesar de ser a forma mais comum de leishmaniose visceral, é muito pouco diagnosticada, dada a inespecificidade dos sintomas. O paciente costuma pensar que está com uma “virose prolongada”... Qual é a história natural dessa forma da doença? Uma parte (cerca de 60-70%) evolui com resolução espontânea do quadro em 3-6 meses. O restante progride para o calazar clássico. Esta forma de apresentação da leishmaniose visceral pode ser facilmente confundida com outras síndromes febris agudas que cursam com esplenomegalia (febre tifoide, malária, febre de Katayama da esquistossomose, doença de Chagas aguda, endocardite bacteriana etc). Manifesta-se frequentemente com febre alta, calafrios, diarreia e esplenomegalia até 5 cm do RCE. A tendência do hemograma é para a pancitopenia (Hg < 10 g/dl, leucometria entre 2.000- 4.000/mm3, plaquetometria < 200.000/mm3); não há eosinofilia. Pancitopenia é definida como uma diminuição de todas as três linhagens de células sanguíneas e que pode manifestar-se com sintomas resultantes de anemia, leucopenia e trombocitopenia. Esta é forma mais importante e marcante. Predomina em crianças < 10 anos e em pacientes imunodeprimidos. Seu curso é prolongado e insidioso, com um período de incubação médio de 3-8 meses, mas podendo ser tão curto quanto dez dias ou tão longo quanto três anos.. A febre pode ser persistente, com dois a três picos diários, em torno de 38-38,5oC, ou intermitente e irregular, com períodos de apirexia durando dias a semanas. Associado à febre, o paciente pode relatar tosse seca, mal-estar (um quadro muito semelhante a uma pneumonia atípica – “gripe ou resfriado que não passa”), astenia e sintomas gastrointestinais (anorexia, diarreia, disenteria, constipação). Com o progredir da doença, nota-se a típica perda ponderal que pode levar ao estado de caquexia. O exame físico revela palidez cutaneomucosa, desnutrição, cabelos quebradiços, pele de coloração pardacenta ou de cera vermelha (nas Américas) ou escurecida (na Índia), abdome volumoso, por conta de uma hepatoesplenomegalia de grande monta. O baço costuma ser palpável a mais de 5 cm do RCE. Algumas vezes pode atingir a cicatriz umbilical e até mesmo repousar na crista ilíaca do lado oposto. O desconforto abdominal pode ser o primeiro sintoma a trazer o paciente ao médico. Stephane D’arc 5° semestre - Medicina À medida em que a doença progride, a pancitopenia torna-se grave, provocando complicações, como intensa astenia, dispneia e insuficiência cardíaca (anemia), infecções bacterianas e sepse (neutropenia) e epistaxe/gengivorragia (plaquetopenia). Se não tratado, o paciente evolui com infecções bacterianas fatais, principal causa de óbito nessa forma da doença. A coinfecção leishmania-HIV tem sido relatada com frequência cada vez maior nos países da Europa Mediterrânea, como Itália, sul da França e Espanha. Um estudo mostrou que nessas regiões cerca de 70% dos casos de calazar em adultos estão associados à infecção pelo HIV. No Brasil, diversos casos foram descritos recentemente desta importante associação. Como vimos, a leishmaniosevisceral tem como principal mecanismo de defesa a resposta imune celular, dependente de linfócitos Th1 (CD4+), justamente aquela comprometida na infecção pelo HIV... Muitas vezes, o indivíduo já era infectado pela Leishmania sp., mas manteve-se a vida toda assintomático, até que ao desenvolver a imunodepressão (neste caso, a queda dos linfócitos CD4+), a doença pode se manifestar, numa espécie de reativação do parasita. Outras vezes, o paciente HIV positivo foi recém-infectado pelo protozoário e, em vez de evoluir assintomático, desenvolve o calazar. Em cerca de 90% dos casos de calazar em pacientes HIV positivos, a contagem CD4 é inferior a 400/mm3 e, frequentemente, inferior a 200/mm3. Clinicamente, sinais e sintomas clássicos predominam: febre, emagrecimento, hepatoesplenomegalia, porém, eventualmente a esplenomegalia pode não ocorrer. Linfadenomegalia está presente em 60% dos casos, e não é incomum uma evolução mais disseminada, com acometimento pulmonar, pleural, gastrointestinal, cutâneo e medular (aplasia de medula grave). Os pacientes com calazar devem ser internados para o início da terapia. A solicitação de exames como ureia e creatinina, amilase sérica, eletrólitos, aminotransferases, eletrocardiograma e RX de tórax, é requerida antes do início do tratamento. Seus resultados vão servir de base para a avaliação de possíveis efeitos colaterais das drogas empregadas. Os antimonias pentavalentes são utilizados como primeira escolha no Brasil, pela sua eficácia e baixo custo relativo. São usados para o tratamento do calazar desde 1915. A dose consiste de 20 mg/kg/dia de antimônio (Sb5+) por via intravenosa ou intramuscular, administrada por um período de 20-30 dias consecutivos, máximo de 40 dias. O antimoniato de N- metilglucamina (GLUCANTIME – ampolas de 5 ml a 8,5%, com 81 mg/ml de Sb5+) e o estibogluconato de sódio (PENTOSTAN – frascos de 60 ml a 10%, com 100 mg/ml de Sb5+) são as preparações disponíveis no mercado (no Brasil, só é comercializado o glucantime). A refrateriedade aos antimoniais é mais frequente nos pacientes com formas graves e avançadas de calazar, caracterizadas por esplenomegalia > 10 cm, hepatomegalia > 8 cm, Hg < 8 g/dl, leucometria < 3.000/mm3 e/ou plaquetometria < 40.000/mm3 . A droga de segunda escolha é a anfotericina B (desoxicolato), um medicamento parenteral, utilizado em casos de falência dos antimoniais pentavalentes. Esta droga não deve ser usada na vigência de insuficiência renal (pois é nefrotóxica). Nos EUA, a anfotericina B lipossomal (menos nefrotóxica) é considerada a droga de primeira linha para o tratamento do calazar... No Brasil, devido ao elevado custo das anfotericinas, os antimoniais ainda são os medicamentos preferidos. Stephane D’arc 5° semestre - Medicina No entanto, de acordo com o Ministério da Saúde, a anfotericina B desoxicolato é considerada a droga de primeira escolha para pacientes coinfectados por Leishmania/HIV. A anfotericina B lipossomal, menos tóxica e mais cara, torna-se a droga de primeira escolha para pacientes com idade > 50 anos, para portadores de transplante hepático, renal e/ou cardíaco, portadores de insuficiência renal crônica e nas gestantes. Pacientes refratários à formulação desoxicolato também têm indicação de trocar o esquema para anfotericina B lipossomal.
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