Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Brasília-DF. PsicoteraPia de GruPo no contexto de crise Elaboração Luciana Raposo dos Santos Fernandes Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 5 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7 UNIDADE I INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS ............................................................... 9 CAPÍTULO 1 O INDIVÍDUO E O COLETIVO .................................................................................................... 9 UNIDADE II PSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO ......................................................................................... 30 CAPÍTULO 1 A COMUNICAÇÃO ENTRE OS INDIVÍDUOS E A IMPORTÂNCIA DA PSICOLOGIA DO SELF .......... 30 UNIDADE III A PSICOTERAPIA DE GRUPO ................................................................................................................. 59 CAPÍTULO 1 O GRUPO E SUA ATUAÇÃO NO PROCESSO PSICOTERÁPICO ................................................... 59 UNIDADE IV A CRISE E AS POSSIBILIDADES DE SUPORTE EFICAZ ATRAVÉS DA PSICOTERAPIA DE GRUPO ..................... 96 CAPÍTULO 1 CARACTERIZANDO A INTERVENÇÃO GRUPAL PARA A DEMANDA DE CRISE .............................. 96 PARA (NÃO) FINALIZAR .................................................................................................................. 111 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 112 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução Ao longo da história, unir-se a outras pessoas para compartilhar os desafios da vida tem sido um meio importante de manter a saúde mental. Existem agora centenas de grupos de apoio mútuo disponíveis, e muitos desses grupos estão acessíveis na Internet. Nos últimos cem anos, os profissionais de saúde vêm desenvolvendo grupos formais de psicoterapia. Grupos de terapia contemporânea podem ser amplamente classificados como grupos interacionais ou grupos psicoeducacionais. Os grupos interacionais concentram-se em aprender com as transações que ocorrem entre membros de um grupo. Grupos de psicoeducação ensinam habilidades de enfrentamento específicas para uma ampla variedade de preocupações pessoais. Psicoterapia de grupo é o tratamento de problemas psicológicos, comportamentais, emocionais e interpessoais por um profissional de saúde mental que se reúne regularmente com clientes em um grupo, em vez de um contexto individual. A psicoterapia de grupo é usada para tratar uma variedade de distúrbios, incluindo vício, distúrbios cognitivos, distúrbios alimentares, distúrbios caracterológicos, depressão e muito mais, usando métodos que são tão variados quanto aqueles usados em abordagens individuais. Múltiplos fatores em nível de grupo, incluindo a instilação de esperança, aprendizado social, apoio social e autoconhecimento operam para promover ajustes em grupos de psicoterapia, e pesquisas sugerem que essa técnica de tratamento é tão eficaz quanto métodos mais individualizados quando administrada adequadamente. O tratamento orientado para a crise é uma abordagem promissora para a resolução definitiva de crises que surgem como resultado da mudança de eventos da vida que interromperam um equilíbrio anterior. A patologia não é enfatizada e o foco está na identificação clara da cadeia de eventos que levou à crise. Juntamente com a formulação cognitiva, o tratamento de crises proporciona a expressão do afeto apropriado e a formulação conjunta do paciente e do terapeuta das estratégias de enfrentamento para lidar com o problema recém-definido. A psicoterapia de grupo focada no contexto de crise trabalha para lidar com rupturas na coerência narrativa e na desregulação afetiva, explorando os significados psicológicos dos sintomas e suas relações com eventos traumáticos. O terapeuta trabalha para identificar conflitos intrapsíquicos, efeitos negativos intensos e mecanismos de defesa relacionados aos sintomas apresentados por 8 seu paciente em uma formulação psicodinâmica que fornece a estrutura para o tratamento. A transferência oferece um fórum para os pacientes lidarem com sentimentos de desconfiança, dificuldades com autoridade, medo de abuso e sentimentos/fantasias de raiva e culpa. Objetivos » Ampliar o conhecimento teórico e prático sobre a Psicoterapia de Grupo enquanto modalidade da psicologia clínica. » Compreender a implicação do psicólogo diante do desenvolvimento sensorial do cliente a partir da vivência grupal. » Aproximar-se da ação clínica do psicólogo que trabalha com Psicoterapia de Grupo no contexto de crise, sendo o foco desse profissional o cuidado com o paciente. » Contribuir para que os profissionais se sensibilizemfrente às necessidades que devem ser encaradas e acolhidas diante de situações de crise que as pessoas enfrentam. 9 UNIDADE I INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS Nesta Unidade abordaremos as influências sociológicas na relação entre o sujeito e o outro. Nos seus escritos anteriores à Segunda Guerra Mundial, Lacan define essa relação em termos de identificação. No entanto, a partir de 1953, ele o define em termos do sujeito da fala e do Outro Simbólico. É uma noção popular caracterizar essa mudança em termos de uma quebra radical, influenciada pela leitura de Lévi-Strauss. Contudo, através de uma leitura atenta dos primeiros escritos de Lacan e de suas influências durkheimianas, demonstraremos que o que mudou é a conceitualização de Lacan da relação entre o indivíduo e o coletivo. Essa mudança foi gradual e não repentina. Além disso, pode situar-se na evolução teórica dos campos contíguos da sociologia, antropologia e psicanálise. Assim, rejeitamos a ideia de uma brecha dentro de seu próprio pensamento e com o que veio antes dele. Estabeleceremos o panorama da relação entre o indivíduo e o coletivo que foi teorizada antes de Lacan. Durkheim conceituou essa relação como dupla: o indivíduo e o coletivo são radicalmente separados. Mauss tentou unificar o campo da antropologia através do conceito holístico do homem total. Na formalização de Lévi-Straus, o indivíduo se torna uma função dentro de um sistema simbólico estruturado. Por fim, propomos uma reflexão sobre a noção de lógica do coletivo atestando as tentativas de formular uma noção do sujeito que se afirma contra esse coletivo, mantendo ao mesmo tempo a sua natureza de função lógica. CAPÍTULO 1 O indivíduo e o coletivo Uma noção popular entre os estudiosos lacanianos é a ocorrência de uma mudança radical de um Lacan preocupado com a ordem imaginária para um Lacan focado no simbólico. O primeiro está centrado em torno de sua teoria no palco do espelho (LACAN, 2006 [1949]), o último surgiu através da leitura do antropólogo Claude Lévi-Strauss (ZAFIROPOULOS, 2001; ZAFIROPULOS, 2010 [2003]) e é inaugurado por sua apresentação intitulada A função e o campo da fala e da linguagem na psicanálise em 1953 (LACAN, 2006 [1953b]). 10 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS Rejeitamos a noção de uma mudança radical do imaginário para o simbólico. Além disso, defendemos a ideia de que a estrutura conceitual em evolução de Lacan pode estar situada dentro de uma história intelectual mais ampla do pensamento antropológico e sociológico sobre a relação entre o indivíduo e o coletivo. Portanto, não aceitamos uma brecha dentro de seu próprio pensamento. A relação entre o indivíduo e o coletivo ocupa a psicanálise desde os escritos de Freud sobre psicologia de grupo (FREUD, 1955 [1921]) e tem sido mantida por psicanalistas como Bion e Rickman, que influenciaram Lacan (2001 [1947]) . No entanto, também tem sido um dos princípios da sociologia e da antropologia. A noção de individualidade e a influência do coletivo são centrais no trabalho de Durkheim, que terminou em um impasse em que ambos eram radicalmente separados. Marcel Mauss tentou resolver esse impasse com sua noção do homem total e Lévi-Strauss formalizou essa noção e suas implicações. Neste capítulo, focamos no período entre os escritos de Lacan sobre a família, onde essa relação é baseada na identificação e fortemente influenciada por Durkheim, e seus escritos sobre o simbólico, onde a relação é baseada na linguagem e fortemente influenciada por Mauss e Lévi Strauss. Como Freud (1955 [1921]) e Lacan (2001 [1938]) observaram, os fundamentos da vida social do homem e, portanto, sua relação com o coletivo, são estabelecidos na família. Zafiropoulos (2001) afirma que Lacan foi influenciado por Durkheim em seus escritos sobre a família. Durkheim afirmou que a família é uma instituição social sujeita a uma evolução cultural, tendo a família conjugal sua conclusão final. Não é apenas um assunto biológico, mas tem implicações morais e judiciais que são protegidas pelo coletivo no qual a família está inserida. A evolução da instituição da família é determinada pelo que Durkheim (1975 [1892]) chama de lei da contração: ao longo da história, o número de parentes que constituem uma família diminuiu progressivamente. O ponto de partida histórico da família é o clã. Nessa estrutura social, um totem ou suposto antepassado é responsável pela criação da sociedade e forma o centro da vida familiar. Os membros de um clã eram parentes e concidadãos (LAMANNA, 2002). Nessas sociedades, não havia noção de indivíduo e os diferentes membros do grupo dificilmente se distinguiam um do outro. Somente quando o clã deixou de ser nômade e começou a atribuir valor ao território em que vivia, a família e o clã se tornaram duas entidades separadas. Um sistema familiar amplo e amorfo se distinguiu de uma organização política e territorial de clãs (DURKHEIM, 1984 [1893]). Famílias com uma estrutura patrilinear ou matrilinear originaram-se 11 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I no clã (DURKHEIM, 1975 [1892]). Uma contração adicional foi realizada pelas famílias agnáticas, que eram menores e mais igualitárias que as famílias baseadas em totens. Essas famílias estavam centradas em posses compartilhadas, em vez de religião e podiam ser patrilineares ou matrilineares. Isso difere das famílias patriarcais romanas, que eram estritamente patrilineares e governadas pelo princípio de patria potestas. O pai representava o grupo e sua autoridade sobre os seus membros e posses era absoluta. Isso contrasta com a família paterna alemã, em que o domínio paterno era menos rigoroso. O filho poderia emancipar-se e deixar a família por sua própria vontade. A família conjugal é a estrutura familiar discernida por Durkheim na sociedade francesa de sua época. É mais uma contração da família paterna do que da família patriarcal, pois esta era muito rígida para permitir qualquer contração adicional. Os únicos elementos permanentes dentro deste sistema são marido e mulher, embora ainda existissem zonas secundárias de parentesco (isto é, parentes até o sexto grau), como remanescentes das estruturas anteriores. Uma criança depende do pai até se casar. Como Zafiropoulos (2001) aponta corretamente, com a contração da família, os direitos disciplinares do pai diminuíram bastante. No entanto, a interferência do estado aumentou. Na França, a partir de 1889, o pai pode até ser expulso desses direitos paternos pelo Estado. Segundo Durkheim, a intervenção estatal era um pré-requisito necessário para a existência da família conjugal. Enquanto as relações de parentesco em sociedades constituídas por famílias patriarcais só poderiam ser rompidas sob a autoridade do pai, no caso daquelas baseadas na família conjugal, o Estado deve aprovar em caso de divórcio ou adoção. Durkheim nos adverte, porém, que com a contração da família, a individualidade e a busca de objetivos puramente individuais aumentaram. Quando o indivíduo “busca seu objetivo dentro de si mesmo, cai em um estado de miséria moral que o leva ao suicídio” (DURKHEIM, 1975 [1892], p. 236). No entanto, de acordo com Lamanna (2002), Durkheim não é necessariamente pessimista no que diz respeito ao aumento da individualidade e à diminuição da autoridade paterna. O primeiro deu origem à liberdade individual e o último consolidou os laços entre os membros da sociedade através da intervenção do Estado. Segundo Zafiropoulos (2001), Lacan foi fortemente influenciado pelos escritos de Durkheim sobre a família quando ele escreveu sua própria contribuição sobre os complexos familiares (LACAN, 2001 [1938]). Lacan afirma que o processo de desenvolvimento subjetivo é estruturado por três complexos fundamentais, centrados em torno de três imagens: o complexo de desmame com a imagem da 12 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROSmãe, o complexo de intrusão com a imagem do rival e o complexo de Édipo com a imagem do pai . A estruturação desses complexos ocorre dentro da família como uma instituição historicamente determinada. Contudo, em nossas famílias ocidentais modernas (para as quais Lacan usa o termo “famílias conjugais”), o pai se tornou progressivamente ausente devido à “contração da instituição da família” (LACAN, 2001 [1938], p. 27). Como consequência, o complexo de Édipo na sociedade ocidental começou a vacilar, o que explica o surgimento de formas modernas de psicopatologia, como as neuroses do caráter. O primeiro complexo que a criança humana encontra, o complexo de desmame, é “o complexo mais primitivo do desenvolvimento psíquico” e “forma a base dos sentimentos mais arcaicos e estáveis que unem o indivíduo e a família” (LACAN, 2001 [1938], p. 30). Esse complexo se origina da separação do bebê do útero, que, para o homem, é sempre uma separação prematura. A repercussão de sua prematuridade é o apelo universalmente compartilhado do jovem humano ao grupo social e, em primeiro lugar, a família, que é de fato um apelo a algum tipo de função social que atenda às necessidades emanadas dessa insuficiência vital da sociedade. A primeira forma que essa conexão social apresenta com o mundo exterior é através da imagem da mãe, trazendo à forma e reconhecendo-a como uma resposta à insuficiência vital. É a primeira conexão com a outra que o bebê faz. É também a conexão na qual todas as conexões consecutivas serão feitas. Uma transição bem-sucedida do complexo de desmame é, portanto, fundamental para o desenvolvimento social. A imagem da mãe é marcada por uma estranha e importante ambivalência. O anseio pela imagem materna pode se tornar um anseio pelo estado antes do nascimento e, como tal, instigar a pulsão de morte. Por causa dessa ambivalência, a atração da morte, de um retorno ao estado de vida tranquilo e inanimado antes do nascimento, permanece presente na forma ambígua da imagem da mãe. O complexo de intrusão oferece uma solução para essas convocações da morte através de um confronto com o duplo, representado arquetipicamente na forma do irmão. Esse complexo é despertado pela primeira percepção da presença de um irmão e dos sentimentos de ciúmes em relação à mãe que isso provoca. Lacan nos adverte que não devemos confundir ciúme humano com rivalidade biológica. Pois, na sua essência, o ciúme pressupõe a identificação mental. Lacan considera a identificação como primária, a agressividade que provoca como secundária. A descrição de Lacan do complexo de intrusão é uma forma inicial de sua teoria no estágio do espelho (LACAN, 2006 [1949]). Ele afirma que, através do reconhecimento de sua própria imagem no espelho, o bebê humano recupera a unidade que experimentou no útero. 13 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I Ao mesmo tempo, o corpo é experimentado como unidade, o mundo, que foi igualmente percebido como fragmentado, é organizado refletindo as formas do corpo. Consequentemente, Lacan declara que a imagem no espelho é um bom símbolo para a realidade, como é vivida naquele momento no desenvolvimento humano. O mundo nesta fase é um mundo narcísico no qual a imagem do duplo é central e não há lugar para os outros (como verdadeiramente “outro”). De fato, a experiência do outro como imagem no espelho não ajuda o sujeito a romper o isolamento afetivo causado por sua prematuridade. No entanto, à medida que a formação do ego surge, através da identificação com uma imagem externa, ocorre o drama do ciúme e da rivalidade entre irmãos. A identificação com o irmão não desmamado provoca agressividade, porque desencadeia a imagem materna e, portanto, o desejo de morte. É por isso que Lacan afirma que a agressividade é secundária à identificação: a identificação com o outro desperta o masoquismo primário (isto é, o impulso da morte) do complexo de desmame. No entanto, esse masoquismo primário pode ser superado se for transformado em sadismo na forma de rivalidade. Através da identificação, o bebê pode consertar um dos pólos do masoquismo primário e transformá-lo em agressividade em relação ao irmão não desmamado. “Assim, a não-violência da forma primordial de suicídio gera a violência do assassinato imaginário do irmão” (LACAN, 2001 [1938], p. 40). Consequentemente, o outro é reconhecido como verdadeiramente outro. É por isso que Lacan afirma que o ciúme é o arquétipo de todos os sentimentos sociais. No entanto, o complexo de intrusão também pode terminar em um impasse imaginário em que o ego e o alter-ego não se distinguem. Isso pode levar a formas graves de psicopatologia (por exemplo, paranoia). Finalmente, o complexo de Édipo instala duas instâncias psicológicas fundamentais: a repressão e o ideal do ego. Ao contrário da doutrina freudiana, que reconhece o pai como o principal agente de castração, Lacan afirma que a causa original da repressão decorre da atração da morte presente na imagem da mãe. Os desejos sexuais do complexo de Édipo reativam o desejo da mãe e, portanto, a antiga pulsão de morte que é então reprimida. O pai, como aquele que se opõe a esse desejo pela mãe, figura apenas como uma fonte secundária de repressão. Como tal, a repressão abre caminho para mais uma forma de identificação com o rival, mas desta vez como ideal do ego: “o ideal de virilidade no menino e na menina o ideal de virgindade” (LACAN, 2001 [1938], p. 56). No entanto, Lacan observa que nem toda sociedade concede o mesmo lugar ao pai e seu desenvolvimento bem-sucedido depende em grande parte da extensão em que as funções repressiva e sublimatória estão unidas na imagem do pai. No Trobriand da Melanésia, por exemplo, a função repressiva é atribuída ao tio materno, a função sublimatória ao 14 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS pai biológico. O efeito é uma relativa ausência de neurose e uma grande rigidez no nível das produções culturais. Em nossa sociedade ocidental “o pai [...] sempre está ausente de uma maneira ou de outra – ausente ou presente humilhando” (LACAN, 2001 [1938], p. 61) e a razão para isso Lacan encontra “no mesmo progresso social que faz a família evoluir em direção à forma conjugal que a submete cada vez mais a variações individuais” (LACAN, 2001 [1938], p. 74). Quando isso acontece, a dialética da sublimação é negada e a energia libidinal é exaurida, o que acaba levando à neurose do caráter. Zafiropoulos (2001) afirma que as visões de Lacan traem uma influência durkheimiana porque ele vincula a degradação do complexo de Édipo à contração da família. O autor afirma que Lacan é estritamente não-freudiano, desde que foi influenciado por Durkheim. Em Totem e Tabu, Freud (1953 [1912]) afirmou que a sociedade humana começou com o assassinato do pai primitivo. Como tal, o pai morto e degradado está na base de toda sociedade humana e não em uma contingência histórica. Somente com a descoberta da antropologia estrutural através dos escritos de Lévi-Strauss, Lacan seria capaz de reconhecer a função paterna estruturalmente ausente e iniciar seu retorno a Freud. Embora reconheçamos a presença de influências durkheimianas no texto de Lacan de 1938, encontramos os argumentos de Zafiropoulos sobre a sua transição de durkheimianos/não-freudianos para estruturalistas/freudianos, deixando muito a desejar. Primeiro, embora ele cite o trabalho de Lévi-Strauss como responsável por essa súbita mudança no pensamento de Lacan, Zafiropoulos nunca demonstra realmente como esse trabalho levou a uma interpretação do pai como estruturalmente ausente. Ao discutir essa mudança, sua principal referência é o escritor francês Paul Claudel e sua peça Le père humilié. Segundo, vimos que, com a contração da família, houve uma mudança na autoridade do pai para o Estado. Mesmo que Durkheim escreva sobre a degradação do pai, ele leva em conta outras formas de autoridade e lei. Ao discutir as visõesde Durkheim sobre a relação entre o indivíduo e o coletivo, vemos que essa mudança pode ser explicada por uma evolução nessa relação. Por último, mas certamente não menos importante, temos dificuldade em aceitar que um processo tão lento e árduo como a evolução do pensamento de alguém, de Lacan, neste caso, seja marcado por revoluções repentinas. Durante uma análise, algo pode acontecer com o paciente e criar uma nova percepção – mas todo analista sabe que revoluções são muito raras na sala de consultoria. Sempre há o processo de elaboração para levar em consideração. Portanto, é mais interessante observar o desenvolvimento histórico que liga Durkheim a Lacan por Lévi-Strauss, porque este último não seria possível sem Durkheim. A seguir, apresentaremos a evolução da conceitualização da relação entre o sujeito e o Outro (em termos sociológicos: entre o indivíduo e o coletivo) de Durkheim a Lacan. Este ponto de vista nos permitirá ligar melhor a evolução gradual do pensamento de Lacan aos desenvolvimentos da sociologia e antropologia que o precederam. 15 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I Em The Division of Labor in Society, Durkheim (1984 [1893]) descreve duas formas de relação entre o indivíduo e o coletivo: solidariedade mecânica, uma relação baseada em similaridade e solidariedade orgânica, uma relação baseada em diferenças. Entre essas duas formas, ele descreve uma evolução. As sociedades primitivas são primariamente baseadas na solidariedade mecânica. Os membros dessas sociedades são dificilmente diferenciados. Essa forma de solidariedade é representada na “totalidade de crenças e sentimentos comuns aos membros comuns de uma sociedade” que então “forma um sistema determinado com uma vida própria” (DURKHEIM, 1984 [1893], p. 39). Este sistema é a consciência coletiva ou comum, que não pode ser localizada dentro de um único substrato físico, mas está presente na sua totalidade em todos os membros da sociedade. No entanto, existe independente desses indivíduos: “Os indivíduos passam adiante, mas permanecem” (DURKHEIM, 1984 [1893]). Não muda de uma geração para a outra, mas liga as diferentes gerações entre si. A origem do inconsciente coletivo reside no confronto de sentimentos e representações compartilhados. O ponto central da teoria de Durkheim sobre a consciência coletiva é a noção de vitalidade. A consciência, seja individual ou coletiva, deriva sua força, sua vitalidade, de representações fortes. O confronto de representações compartilhadas dentro de uma sociedade confere a essas representações coletivas uma vitalidade maior, que supera amplamente a vitalidade das representações individuais. Esse modo de conceituar a consciência tem várias consequências. Primeiro, Durkheim conclui uma divisão dentro da mente humana entre um indivíduo e uma consciência coletiva, onde o último aparece como “um eco que ressoa dentro de nós uma força que é estranha, além disso superior à que somos nós mesmos” (DURKHEIM, 1984 [ 1893], p. 56). Segundo, devido à sua maior vitalidade, a consciência coletiva aparece como uma força moral. É também a forma mais forte de autoridade. Quando uma determinada representação ou ato vai contra essas representações coletivas, contra a ordem moral e a maior autoridade, isso provoca uma forte resposta emocional do grupo. Portanto, Durkheim afirma que o direito penal é a expressão mais comum da consciência coletiva. Por fim, implica também que essa autoridade não é uma função social, que recebe uma importância relativa de acordo com a sociedade em que ocorre, mas representa a sociedade como um todo. Por exemplo, nas famílias patriarcais romanas, o pai não encarnava uma função social específica, mas representava o grupo e sua ascendência moral como tal. Enquanto a solidariedade mecânica se baseia na semelhança, a solidariedade orgânica se baseia na diferença e na especialização. Mais especificamente, é baseada no que Durkheim chama de “divisão do trabalho”. À medida que a sociedade se torna maior e mais complexa, as funções que os diferentes membros cumprem se 16 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS tornam mais diversificadas. Isso, por sua vez, aumenta o grau de individualidade dentro dessa sociedade. Também muda radicalmente a relação entre os membros, porque agora todos eles dependem um do outro (como os órgãos que constituem um corpo), enquanto nas sociedades baseadas na solidariedade mecânica praticamente não havia diferenciação e cada membro poderia ser facilmente substituído por outro. Segundo Durkheim, a expressão padrão dessa forma de solidariedade não é o direito penal, mas o direito contratual. A relação entre os membros dessas sociedades é consolidada por contrato. No entanto, isso não significa que essas sociedades se baseiem apenas no livre comércio, onde as relações são passageiras e existem apenas durante o contrato. O Estado regula e harmoniza as diferentes relações (profissionais, domésticas, etc.) entre os indivíduos, oferecendo uma estrutura legal dentro da qual os contratos podem ser feitos, bem como depende da alternância dos diferentes membros da sociedade em relação ao papel do Estado. A sociedade não trata mais seus membros como coisas sobre as quais têm direitos, mas como membros cooperantes dos quais depende e com relação a quem tem certas obrigações. Desse modo, Durkheim explica a autoridade degradada do pai, na qual Lacan baseou suas teorias no complexo de Édipo em 1938, através de uma mudança na natureza da relação entre o indivíduo e o coletivo. Nas sociedades patriarcais de outrora, os membros eram pouco diferenciados e o pai representava o grupo como uma autoridade sobre-humana. Nas sociedades modernas, baseadas na divisão do trabalho, essa autoridade muda para o estado como uma instância governante que depende tanto dos indivíduos quanto do coletivo. É por isso que Durkheim afirma que “cada vez que nos encontramos diante de um mecanismo de governo dotado de grande autoridade, devemos buscar a razão não na situação particular dos que governam, mas na natureza das sociedades que governam” (DURKHEIM , 1984 [1893], pp. 143-144). Mesmo discernindo uma evolução em direção à individualidade, Durkheim continua a enfatizar a importância das representações coletivas e os seus efeitos sobre o indivíduo. Em um artigo escrito com seu sobrinho, Marcel Mauss (DURKHEIM; MAUSS, 1903), ele descreve o impacto da morfologia social (isto é, a composição e estrutura de uma sociedade) nos sistemas de classificação usados pelos membros de uma determinada sociedade. Seja uma classificação primitiva de plantas baseada em uma crença animística ou uma classificação científica baseada em genética, o homem categoriza o mundo que o rodeia em sistemas representacionais que possuem uma certa estrutura e hierarquia. Durkheim afirma que esses sistemas de classificação são moldados por um processo influenciado por todos os tipos de elementos externos, o mais fundamental dos quais é a organização social de uma sociedade. Portanto, muitos dos sistemas de 17 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I classificação primitiva refletem a morfologia da sociedade da qual se originam. No entanto, uma vez que esses sistemas representacionais conquistaram sua independência das estruturas sociais de onde surgiram, eles funcionam de acordo com a sua própria lógica. Em conclusão, podemos afirmar que a consciência coletiva de Durkheim contém suas próprias representações coletivas, sua própria vitalidade e funciona de acordo com as suas próprias leis. Além disso, Durkheim (1924 [1898]) mantém uma separação estrita entre o coletivo e o indivíduo. O consciente coletivo existe tanto como uma entidade independente e reside na sua totalidade em todos os indivíduos, ainda que de forma inconsciente. Ele deduz isso do fato de que as representações coletivas parecem vir de fora do indivíduo e se impõem de maneira coercitiva,sob a forma de obrigações morais. Karsenti (1997) afirma que a conceitualização de Durkheim coloca a sociologia em uma posição embaraçosa. Ele materializou o coletivo (chosification) e transformou-o em uma consciência coletiva que é inconsciente no nível individual. Como tal, a sociologia só pode estudar o social à luz desse dualismo irredutível, onde o coletivo tem certa ascendência sobre o indivíduo. Isso se deve ao fato de que para Durkheim uma representação só pode existir se representar algo para alguém. Para permitir a ideia de uma representação inconsciente, ele precisa dissociar a noção de representação e consciência individual. Posteriormente, ele postula a existência de uma consciência coletiva que existe ao lado da consciência individual, porque somente então as representações coletivas podem ser inconscientes para nós, indivíduos, mas não como tais. Só depois é que essas representações coletivas aparecem, não como o produto de algum sujeito impessoal, mas como o efeito de sua inserção no nível da consciência individual limitada. Assim, a noção de representação leva Durkheim a um impasse em que o indivíduo e o coletivo são estritamente dissociados. Mauss e o homem total Mauss fornecerá à sociologia um novo objeto: o homem total (l’homme total). Em uma mudança da sociologia para a antropologia, que estuda o homem em todos os seus aspectos (social, individual, biológico etc.), ele retificará a descentralização de Durkheim do indivíduo e reunirá o indivíduo e o coletivo. De modo geral, as formas sociais representam mais um aspecto deste ‘homem total’ mencionado por Mauss. A de Maus não é mais uma abordagem dualística, mas que se concentra na relação complexa e dialética entre o indivíduo e o coletivo, em um esforço para expor suas 18 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS regras e estruturas subjacentes, e não as suas representações. Mauss defende a noção de uma diferença gradual entre individual e coletivo. Representações individuais podem permear o coletivo e vice-versa. Todo indivíduo possui um fragmento da totalidade das representações coletivas, além disso marcadas pela singularidade do indivíduo. Ele encontra um dos exemplos mais convincentes dessas transições entre coletivo e individual nos efeitos físicos e psicológicos no indivíduo da sugestão coletiva de morte. Mauss (1950 [1926]) descreve como, em certas culturas primitivas na Austrália e na Nova Zelândia, os indivíduos morrem por causas mágicas ou morais sugeridas por crenças compartilhadas coletivamente. O indivíduo morre não por causa de algum distúrbio físico, convicção ou ação pessoal, mas por conta da maneira como o coletivo se manifesta em um nível individual – ou, que se resume ao mesmo na visão de Mauss, da maneira como o indivíduo se posiciona dentro do coletivo. A consciência subjetiva e a vontade de viver pálida em comparação com a necessidade coletiva de morrer. No entanto, não é, como seria na lógica durkheimiana, porque as representações coletivas atuam no indivíduo como uma causa externa, mas porque o indivíduo assume uma determinada posição dentro da estrutura social da tribo. Portanto, esse estado geralmente coincide com uma violação da comunidade. Através da magia ou do crime, o indivíduo rompe com as forças que o apoiavam até então. Por exemplo, o Wakelbura que come caça proibida ficará doente, se consumir e, eventualmente, morrerá enquanto engasga os sons do animal em questão. Segundo Mauss, o efeito destrutivo dessa sugestão coletiva ocorre na articulação entre a natureza social e biológica do homem, embora minimamente mediada por sua consciência individual. Karsenti (1997) afirma que isso só é possível se se supuser que o coletivo reside dentro do indivíduo, ao lado da vontade individual de viver. Mauss explica esse fenômeno partindo do pressuposto de que forças psicológicas, físicas e sociais coincidem no indivíduo e rejeita a ideia de uma dissociação estrita entre o coletivo e o indivíduo. Como tal, esse fenômeno está estruturado ao longo desses três eixos: (1) uma convicção de morrer com experiência individual responde a (2) uma sugestão coletiva compartilhada de morrer, sobre a qual (3) ocorre um evento físico. Ao contrário de Durkheim, que considerou as representações coletivas como o principal objeto da sociologia, Mauss quer estudar o indivíduo total por meio da antropologia. Ele defende um retorno ao homem em sua forma mais concreta. É um indivíduo psicológico e biológico que se apropria de um fragmento do coletivo em um processo chamado socialização. O homem é totalmente individual e totalmente 19 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I coletivo. Além disso, ambas as ordens estão sujeitas à mesma lógica e às mesmas leis. Essa totalidade pode ser encontrada igualmente na linguagem. A sociologia e a antropologia se beneficiariam da adaptação dos métodos linguísticos, porque eles formam uma ciência que estuda um fenômeno fisiológico, psicológico e social. Lévi-Strauss será quem irá assumir o desafio e aplicar os métodos da linguística às estruturas sociais. Lévi-strauss e a função simbólica Para nossa discussão da elaboração de Lévi-Strauss da estrutura simbólica de Mauss, basearemos-nos fortemente em sua Introdução ao trabalho de Marcel Mauss (LÉVI-STRAUSS, 1987 [1950]). Nesta análise sucinta do corpo de trabalho deste último, Lévi-Strauss aborda a questão da implicação subjetiva do antropólogo em suas observações de outras sociedades, que consideramos uma formulação específica no que diz respeito à relação entre o indivíduo e o coletivo. O conceito de Mauss do homem total implica que o antropólogo, como observador, é da mesma natureza que o seu objeto de observação. Ele não apenas aborda essa sociedade como objeto de estudo, mas também participa como sujeito desse chamado objeto. Além disso, ele precisa externalizar a sua experiência subjetiva para apresentá-la de maneira formalizada. Essa tarefa seria impossível se o subjetivo e o objetivo não se encontrassem em um determinado momento. Polynesian settlement of New Zealand and the impacts of volcanism on early Maori society: an update https://researchcommons.waikato.ac.nz/bitstream/handle/10289/2690/ Lowe%202008%20Polynesian%20settlement%20guidebook.pdf;jsessionid =F3FE869683B251E868BE505706EFA3E5?sequence=1 Lévi-Strauss é solicitado a formular uma resposta a essa pergunta por uma incongruência que ele percebe no ensaio de Mauss sobre o presente (MAUSS, 2011 [1925]). Neste trabalho seminal, Mauss descreve os princípios da troca de presentes em diferentes culturas. O estudo produz vários princípios observados, que podem ser encontrados em culturas muito diferentes em todo o mundo: a obrigação de dar, receber e retribuir. Além disso, muitas culturas formulam uma explicação para esses princípios em termos de seus próprios sistemas de crenças. Por exemplo, os maoris da Nova Zelândia se referem ao hau. Esta é uma essência espiritual que segue o dom aonde quer que vá e tem a tendência de retornar às suas origens. Portanto, se A oferece um presente para B e B o transmite para C, C deve retribuir a A, pois https://researchcommons.waikato.ac.nz/bitstream/handle/10289/2690/Lowe%202008%20Polynesian%20settlement%20guidebook.pdf;jsessionid=F3FE869683B251E868BE505706EFA3E5?sequence=1 https://researchcommons.waikato.ac.nz/bitstream/handle/10289/2690/Lowe%202008%20Polynesian%20settlement%20guidebook.pdf;jsessionid=F3FE869683B251E868BE505706EFA3E5?sequence=1 https://researchcommons.waikato.ac.nz/bitstream/handle/10289/2690/Lowe%202008%20Polynesian%20settlement%20guidebook.pdf;jsessionid=F3FE869683B251E868BE505706EFA3E5?sequence=1 20 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS o hau presente no presente precisa ser devolvido à sua fonte original. No entanto, Lévi-Strauss salienta que nunca devemos considerar essas explicações indígenas pelo valor de face. Um conceito como o hau éum elemento dentro de um determinado sistema simbólico que governa a troca de presentes e, como tal, deve ser examinado quanto à sua função nesse sistema. O hau Aqui temos um termo interessante para tratar na cultura mauri, que possui aspectos diferentes quanto ao significado. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao hau do homem, pode-se dizer que essa é uma qualidade que combina o que definimos pelos termos personalidade e aura. Ao mesmo tempo, o conceito inclui recursos que não são atendidos em nossas próprias crenças. O hau do homem é uma qualidade que permeia todo o seu ser, embora ele, ou parte dele, seja aparentemente destacável; não está localizado em nenhum órgão (GODELIER, 1999). Os significados comuns da palavra hau são “vento” e “ar”, e esse fato confundiu aqueles que procuraram descobrir o significado do hau do homem e expressões como whangai hau. Existe uma conexão mundial entre termos que denotam vento, ar, respiração e espírito. Esse conceito maori de hau é interessante, porque, ao usá-lo como meio, a vida de sua base física pode ser destruída. Por exemplo, uma parte do hau de uma pessoa adere a qualquer lugar em que ele se sentou ou caminhou. Outra pessoa poderia, “pegando” o hau invisível daquele assento, ou pegada, e realizando certas artes mágicas sobre ele, matar aquele que se sentou ou andou sobre ele. Em alguns casos, se alguém suspeitasse de seus vizinhos, ele pegaria o hau aderente de qualquer lugar em que estivera sentado antes de deixá-lo e o levaria consigo. O hau da pegada humana é denominado manea pelo povo Tuhoe, e um pouco de solo retirado da pegada serve como um excelente meio para a magia. Sabe-se que as pessoas evitam caminhos e andam na água sempre que possível, a fim de evitar deixar pegadas das quais o hau possa ser tomado pelos inimigos (MAUSS, 1966). Um nativo costuma explicar o hau do homem dizendo que é sua ahua, que é sua aparência (“forma, em oposição à substância” é a definição dessa palavra). A palavra hau também é empregada para denotar caráter. O termo hau parece ser frequentemente usado em sentido anagógico e é usado em conexão com coisas imateriais. Assim, os nativos falam do hau de um discurso ou observação. Seria um erro crasso descrever o hau como um espírito, pois isso causaria uma impressão 21 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I errada, e o leitor o confundiria com o wairua. O hau é uma qualidade intangível e sempre invisível, mesmo para videntes talentosos, uma qualidade auditiva. A mesma palavra é empregada para denotar fama. O hau do homem representa a sua vitalidade ou essência vital, embora não seja o seu princípio de vida. A palavra hauora carrega os significados de saúde, vigor, espírito de vida, saudável (MACCORMACK, 1982). Quando um nativo desejava usar o hau de uma pessoa como um meio para suas artes mágicas, por meio do qual ele poderia matá-lo ou afetá-lo de outras maneiras, esforçava-se por obter algum objeto material que estava impregnado por ele. Poderia ser a terra em que a sua pegada havia sido impressa, uma mecha de cabelo, um fragmento de suas roupas, um pouco de cuspe, qualquer coisa a que alguns de seus hau aderissem. Esse meio material costuma ser chamado de hau, mas o nome exato para ele é ohonga. Sobre esse objeto foram realizados os terríveis rituais do bruxo que afetavam o original, a base física do hau imaterial (MAUSS, 1966). O mesmo termo é aplicado a várias formas de mídias. Quando uma vitória foi conquistada sobre um inimigo, um dos primeiros atos do partido vitorioso foi tomar o hau ou ahua dessa vitória. Este era um meio material, como uma mecha de cabelo da cabeça de um inimigo morto, e costuma ser chamado de mawe. Isso foi levado para a casa da vila e para o local sagrado daquela vila, onde foi realizada uma cerimônia chamada whangai hau. Esse rito parece ter sido em homenagem aos deuses, uma oferta do hau da vitória a eles. A mecha de cabelo é o ahua da vitória, como o ohonga descrito acima é o ahua do hau humano (MAUSS, 2011 [1925]). Antigamente, era costume entre os navegadores tomar todas as precauções para proteger suas vidas e seu bem-estar quando estavam prestes a partir em uma viagem, além de garantir a segurança de seus navios. O procedimento era transmitir o hau ou aparência de uma embarcação e de sua tripulação para um local sagrado e ali realizar um ritual que colocava a embarcação e a tripulação sob os cuidados dos deuses. O hau pode ser representado por algo material, por menor que seja o objeto (MAUSS, 2011 [1925]). No mito de Maui transportando terra das profundezas do oceano, somos informados de que ele transmitiu o mauri de seu peixe ao local dos ritos em que especialistas sacerdotais poderiam realizar uma cerimônia. Não é usual empregar a palavra mauri nesse sentido, mas o termo hau ou mawe. Geralmente, esse é um objeto material usado como meio para representar objetos mediúnicos usados na magia negra (MAUSS, 2011 [1925]). 22 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS Os mauri materiais, como a pedra talismã que preserva a produtividade de uma floresta, são frequentemente mencionados como hau. Esses mauri representam os poderes dos deuses que conservam essa produtividade e vigor saudável, ou seja, que protegem o hama imaterial da floresta. São feitas oferendas na floresta invocando os deuses mauri. O primeiro pássaro capturado da estação é oferecido como oferenda ao hau da floresta. Agora, há algum raciocínio entrelaçado aqui na mente maori. O mauri é responsável pela presença dos pássaros na floresta, e os poderes de um especialista sacerdotal dotaram o mauri de seus poderes; portanto, diz-se que os pássaros pertencem a esses deuses. Certos pássaros da primeira captura são cozidos no fogo e comidos pelos especialistas sacerdotais, de modo que o hau ou essência vital ou aparência dos pássaros mortos possa retornar à floresta e ao seu mauri. Na verdade, a pessoa infeliz que tenta sondar a mente maori e compreender os seus caminhos e manifestações erráticas trilha um caminho tortuoso (MACCORMACK, 1982). O ohonga ou meio material que representa o hau humano em rituais mágicos parece ser conhecido como maunu nas ilhas havaianas. Infelizmente, nenhum colecionador parece ter investigado profundamente os conceitos espirituais dos nativos da Polinésia; o assunto registrado é extremamente escasso (GODELIER, 1999). O hau do homem e das florestas precisava de proteção, na medida em que ambos poderiam ser destruídos ou afetados de maneira prejudicial pelas artes mágicas. Portanto, essa qualidade imaterial era protegida, frequentemente por meio de material mauri, de tais perigos. Todas essas medidas de proteção, sejam mauri ou encantos, extraíam a sua virtude dos deuses (MACCORMACK, 1982). A cultura maori (maori: maoriitanga) envolve os costumes, práticas culturais e crenças do povo maori indígena da Nova Zelândia. Originou-se e ainda faz parte da cultura da Polinésia Oriental. A cultura maori também forma uma parte distinta da cultura da Nova Zelândia e, devido a uma grande diáspora e à incorporação dos motivos maori na cultura popular, é encontrada em todo o mundo. Dentro do Māoridom, e em menor escala em toda a Nova Zelândia como um todo, a palavra Māoritanga é frequentemente usada como sinônimo aproximado da cultura Maori (PAENGA; DAWN TE, 2016). A história cultural maori está inextrincavelmente ligada à cultura da Polinésia como um todo. A Nova Zelândia é o canto sudoeste do Triângulo Polinésio, uma região do Oceano Pacífico com três grupos de ilhas nos seus cantos: Ilhas Havaianas, Rapa Nui (Ilha de Páscoa) e Nova Zelândia (Aotearoa em 23 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I Maori). As muitas culturas insulares do Triângulo Polinésio compartilham línguas semelhantes derivadas de uma língua proto-malaio-polinésia usada no sudeste da Ásia há 5.000 anos. Os polinésios também compartilhamtradições culturais como religião, organização social, mitos e cultura material. Os antropólogos acreditam que todos os polinésios descendem de uma protocultura do Pacífico Sul criada por um povo austronésio (malaio-polinésio) que havia migrado do sudeste da Ásia. As outras principais culturas polinésias são Rapa Nui (agora conhecida como Ilha de Páscoa), Havaí, Marquesas, Samoa, Tahiti, Tonga e Ilhas Cook. Nos últimos cinco milênios, uma sequência de trilhas transoceânicas complicadas e notáveis foi feita em uma realização sem precedentes de navegação e curiosidade. Os segmentos finais desses feitos foram através de distâncias extremas e inigualáveis: para o Havaí, Rapa Nui e Aotearoa (LIMITED, MAORI TOURISM, 2017; ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 2017; SOMERVILLE, 2009). Os marítimos polinésios eram navegadores oceânicos e astrônomos. Os polinésios viajariam longas distâncias por mar. A forte presença feminina entre os primeiros colonos da Nova Zelândia sugere que as viagens de migração da Polinésia não foram acidentais, mas deliberadas. A evidência confiável mais atual indica fortemente que o assentamento inicial da Nova Zelândia ocorreu por volta de 1280 d.C., nas Ilhas da Sociedade. Em 1769, o experiente navegador da Society Island, Tupaia, juntou-se ao capitão Cook no Endeavour em sua viagem ao sul. Apesar de uma lacuna de centenas de anos, Tupaia foi capaz de entender a língua maori, que era muito semelhante à língua que ele falava. Sua presença e capacidade de traduzir evitavam grande parte do atrito entre outros exploradores europeus e os Maori na Nova Zelândia. Marinheiros europeus, incluindo Cook, encontraram marinheiros polinésios perdidos no mar, sugerindo que em meados do século 18 o conhecimento da navegação de longa distância não era onipresente (LOWE, 2008). Lévi-Strauss compara o hau e conceitos semelhantes com noções algébricas, que representam um valor indefinido de significado, mas são completamente desprovidos de significado. Sua função é conciliar a lacuna entre significante e significado. Eles são uma tentativa de restaurar uma unidade anteriormente perdida. Como tal, eles não representam um valor afetivo, como argumenta Mauss, mas têm uma função lógica e devem estar situados no mesmo nível da relação que tentam construir, que é um nível simbólico. Se algo, um objeto, pertence a uma pessoa ou a outra é apenas um derivado do caráter relacional original da realidade subjacente. De fato, de acordo com Lévi-Strauss e de acordo com a abordagem holística de Mauss do 24 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS homem total, a realidade subjacente a essas obrigações e seu princípio unificador do hau é a totalidade da troca. Essa totalidade se reflete em certas expressões linguísticas usadas por algumas culturas primitivas, em que dar e receber, ou pedir empréstimos e emprestar, são designados por uma mesma palavra. Como em qualquer forma de comunicação, os diferentes termos implícitos (isto é, remetente, destinatário, presente ou mensagem) são apenas elementos secundários que dividem uma realidade unificada e subjacente. The Gift é livro do sociólogo francês Marcel Mauss (1966) que é a base das teorias sociais da reciprocidade e da troca de presentes. A peça original de Mauss foi intitulada Essai sur le don. Forme et raison du changement dans les sociétés archaïques – em postuguês Forma e razão de mudança nas sociedades arcaicas - (“Um ensaio sobre o presente: a forma e a razão da troca nas sociedades arcaicas”) e foi publicado originalmente em L’Année Sociologique em 1925 (FOURNIER, 2006). O ensaio de Mauss concentra-se na maneira como a troca de objetos entre grupos constrói relações entre seres humanos; analisando as práticas econômicas de várias sociedades ditas arcaicas, descobre que elas têm uma prática central comum, centrada no intercâmbio recíproco. Nelas, ele encontra evidências contrárias às suposições das sociedades ocidentais modernas sobre a história e a natureza da troca. Ele mostra que os primeiros sistemas de intercâmbio se concentram nas obrigações de dar, receber e, o mais importante, em retribuir. Eles ocorrem entre grupos, não apenas indivíduos, e são uma parte crucial dos “fenômenos totais” que trabalham para construir não apenas riqueza e alianças, mas também solidariedade social, porque “o presente” permeia todos os aspectos da sociedade. Ele usa um método comparativo, com base em bolsas de estudos secundárias publicadas sobre povos de todo o mundo, mas especialmente o noroeste do Pacífico. Depois de examinar as práticas recíprocas de presentear cada uma, ele encontra nelas características comuns, apesar de algumas variações. A partir de evidências díspares, ele constrói um argumento para a fundação da sociedade humana baseada em práticas de intercâmbio coletivo (versus individual). Ao fazer isso, ele refuta a tradição inglesa do pensamento liberal, como o utilitarismo, como distorções das práticas de intercâmbio humano. Ele conclui especulando que os programas de assistência social podem estar recuperando alguns aspectos da moralidade do presente nas economias de mercado modernas. 25 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I Lévi-Strauss enfatiza o caráter relacional do simbólico. Através do uso de elementos discretos, ele tenta diferenciar essa realidade anteriormente indiferenciada. Termos como sujeito e objeto, individual e coletivo, eu e outros, são diferenciados pelo uso do sistema simbólico. Isso é especialmente palpável nos princípios presentes na troca de presentes. No entanto, em tal sistema, dificilmente existe lugar para um indivíduo separado do coletivo. Realmente Lévi-Strauss enfatiza o fato de que, no estudo de Mauss da noção de pessoa (MAUSS, 1938), o indivíduo é relegado a uma função lógica dentro do sistema simbólico – que só pode ser coletivo. Lacan: a lógica do coletivo e a afirmação do sujeito Já abordamos a visão de Lacan acerca da relação com o outro em termos de identificação, o que é onipresente em seu artigo sobre os complexos familiares. No entanto, os eventos da Segunda Guerra Mundial trouxeram os efeitos terríveis da identificação à atenção de Lacan (ROUDINESCO, 1997 [1993]). Além disso, uma visita à Inglaterra em 1947 o familiarizou com a abordagem de Rickman e Bion ao trabalhar com grupos de pacientes com transtornos mentais durante a Segunda Guerra Mundial. Seus pontos de vista sobre terapia de grupo foram baseados em uma conceituação do grupo em termos de identificação horizontal (BION; RICKMAN, 1943). Em 1953, Lacan escreveu uma carta ao seu ex-analista, Rudolph Loewenstein, onde afirma que chegou a um ponto em que se sente “um homem mais seguro de seus deveres e seu destino”, que tem uma garantia crescente do que tem a dizer em “uma experiência da qual apenas os últimos anos lhe permitiram reconhecer a natureza” (LACAN, 1976 [1953a], p. 132). Isso também marca o ano de seu Discurso de Roma (LACAN, 2006 [1953b]), um texto em que a influência de Lévi-Strauss quase pode ser negada. No entanto, nos anos anteriores, vemos Lacan como um buscador, tentando não apenas conceituar uma relação entre o sujeito e o outro que não depende apenas da identificação, mas também formalizar essa relação em um sistema lógico. Traços de sua busca podem ser encontrados em seus trabalhos sobre a lógica do coletivo (LACAN, 2001 [1945-1946], 2006 [1945]). Em um artigo denso, Lacan (2001 [1945–1946]) nos apresenta um enigma matemático que revela o princípio de uma conexão lógica entre um grupo e os indivíduos que o constituem. Nos são oferecidas 12 moedas visualmente idênticas, entre as quais se pode discernir com base em seu peso. Não sabemos se essa moeda, a “moeda ruim”, é mais leve ou mais pesada que as outras. Sua 26 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS qualidade não nos preocupa, a única coisa que nos preocupaé a noção de sua diferença absoluta. Além disso, temos à nossa disposição um par clássico de balanças. Nossa tarefa é discernir a “moeda ruim” com no máximo três pesagens separadas. Depois de ilustrar a solução para o problema conforme é apresentado, Lacan aumenta a aposta adicionando outra moeda à coleção. Ainda podemos resolver o enigma se tivermos de discernir a “moeda ruim” entre as 13 moedas? Isso pode realmente ser feito, desde que utilizemos outro procedimento que não o aplicado a uma coleção de 12 peças. Além disso, esse novo procedimento permite que Lacan elabore uma fórmula que permita encontrar a “peça ruim” entre uma quantidade máxima de moedas com o auxílio de uma quantidade mínima de pesagens. Basta seguir três princípios simples: primeiro, é preciso isolar uma peça livre de qualquer suspeita; a seguir, produz-se uma discórdia na distribuição da suspeita (por exemplo, a quantidade de moedas que se suspeita ser mais leve que as outras é maior que a quantidade que se suspeita ser mais pesada); finalmente, discriminamos as peças restantes até encontrar a “peça ruim”. Sem a solução completa à sua disposição, isso sem dúvida parecerá complicado – e é. No entanto, o importante a reter é o fato de que essa coleção não pode ser definida com a ajuda de qualquer critério externo. Não há outra característica unificadora além da uniformidade da coleção. A única maneira de discernir a “moeda ruim” é através da comparação com as outras moedas. Mesmo quando, no primeiro passo, isolamos uma moeda que serve como norma com a qual comparar as outras moedas, isso é feito através de uma comparação com as moedas já presentes. Em outras palavras, a diferença absoluta que constitui o indivíduo nesse coletivo só pode ser alcançada através da comparação com os demais. Além disso, essa relação entre o indivíduo e o coletivo pode ser formalizada através de uma fórmula lógica. Como tal, Lacan pode sustentar a noção de separação entre o indivíduo e o coletivo (que era radical demais no caso de Durkheim) e, ao mesmo tempo, formalizar essa relação como uma função lógica (que era o objetivo de Lévi-Strauss). Num artigo que precede cronologicamente a este, mas que logicamente forma sua consequência, Lacan (2006 [1945]) formula como o sujeito se afirma contra o coletivo. Lacan nos apresenta mais um enigma. Três prisioneiros são convocados pelo diretor que promete conceder liberdade a um, se ele passar por uma prova. Ele os apresenta com cinco discos: três brancos e dois pretos. Cada prisioneiro terá um disco preso às costas, de modo que ele próprio não possa ver a cor de seu próprio disco, mas poderá observar perfeitamente os discos que os outros dois 27 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I estão usando. Além disso, eles não têm permissão para se comunicar. O objetivo do teste é inferir que disco colorido está sendo usado com base na razão lógica. Então, o diretor distribui os discos brancos entre os prisioneiros. Depois de se encararem por algum tempo, os três prisioneiros se dirigem ao diretor. O que aconteceu? (DURKHEIM, 1975 [1892]). Na solução ideal, um prisioneiro, A, parte da hipótese de que ele é negro. Dentro dessa condição, outro prisioneiro, B, poderia fazer a mesma hipótese e facilmente chegar à conclusão. Se ele fosse de fato negro, o terceiro prisioneiro, C, veria dois discos pretos e partiria de uma só vez. No entanto, C não se move de uma só vez. Portanto, B pode concluir que ele não é preto e sair. No entanto, B também não sai. Assim, A só pode concluir que sua hipótese inicial (“eu sou negro”) era falsa. E porque, na realidade, todos os três prisioneiros seguiram o mesmo caminho de raciocínio, todos eles partem quando chegam a essa conclusão. Lacan é pressionado a apontar a natureza sofisticada dessa solução. Pois, se todos partem ao mesmo tempo, todos devem duvidar de sua conclusão inicial, baseada no fato de que os outros permaneceram parados. Portanto, depois que todos saírem, suas dúvidas farão com que todos parem. Esse cenário lembra Aquiles e a tartaruga, e podemos imaginar se eles chegarão ao diretor. Lacan argumenta que sim, e que eles só precisam de duas paradas para chegar a uma certeza lógica e absoluta. Pois a primeira parada objetiva a conclusão de B: se C tivesse visto dois discos pretos, ele nunca faria uma pausa. A segunda parada objetiva a conclusão de A: se B pausa uma segunda vez, isso significa que a primeira pausa não foi conclusiva para ele (o que seria se A fosse preto). Assim, conclui Lacan, essas hesitações temporais são uma necessidade para se chegar a um argumento logicamente sólido. A introdução do tempo para chegar a uma conclusão lógica não concorda com a natureza espacial da lógica clássica, que se baseia na universalidade de certas formas. Não precisamos de tempo: ou vemos a solução ou não a vemos. No entanto, Lacan afirma que nessa lógica do coletivo três tempos lógicos podem ser discernidos. O primeiro é o que ele chama de instante do olhar. O enigma seria limitado a esse tempo se dois discos pretos fossem distribuídos, sua solução resumida na seguinte declaração: “Sendo opostos a dois negros, sabe-se que um é branco” (LACAN, 2006 [1945], p. 167). O assunto desta afirmação é o “único” impessoal de toda afirmação lógica. Esse também é o assunto presente na solidariedade mecânica de Durkheim: a “única” que representa a consciência coletiva e é expressa através do direito penal. De fato, segundo Durkheim, este último não implica que “eu não pratique um determinado ato porque é punível”, 28 UNIDADE I │ INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS mas sim que “é punível, porque não se pratica tais atos”. No entanto, esse assunto também está presente no raciocínio de Mauss e Lévi-Strauss e pode ser comparado a noções como o hau. Ele serve apenas uma função lógica dentro de um sistema simbólico fechado. No entanto, Lacan tem algo diferente em mente, a saber, um sujeito que se afirma contra o coletivo. Para chegar a essa afirmação, o sujeito precisa encontrar o outro. De fato, a situação em que um prisioneiro vê dois discos pretos não se apresenta. Portanto, é inaugurada uma segunda vez com a seguinte declaração (intuitiva): “Se eu fosse negro, os dois brancos que vejo não perderiam tempo percebendo que são brancos” (LACAN, 2006 [1945], p. 168). Nesse momento, um prisioneiro (A em nosso exemplo) se torna objeto do olhar dos outros dois e se coloca em sua posição. Nesse caso, é necessário tempo para os outros dois chegarem a uma conclusão, porque se baseia no fato de o outro ficar parado (o que é interpretado como uma hesitação). Lacan chama isso de tempo para compreender. O assunto desse tempo é determinado pela reciprocidade do outro. A relação entre esses sujeitos é de natureza imaginária, o que significa que os prisioneiros se espelham (AUCREMANE, 1985). O tempo para compreender também coloca todos os sujeitos sob pressão lógica. De fato, quanto tempo essa compreensão leva? Se A hesitar em chegar a uma conclusão e os outros dois o precedem, ele nunca será capaz de chegar a nenhuma conclusão sólida, porque ela só pode se basear em permanecerem parados. Portanto, um momento necessário de conclusão interrompe o tempo de compreensão através da seguinte afirmação: “Eu me apresso em me declarar branca, para que esses brancos, a quem eu considero assim, não me precedam em reconhecer a si mesmos pelo que são ”(LACAN, 2006 [1945], p. 168). Esta afirmação é a afirmação subjetiva. O tempo para compreender leva a uma conclusão, mas somente se o sujeito antecipar a certeza de sua conclusão e a apreender em um momento de urgência. Lacan opera uma mudança da espacialidade para a temporalidade, de um sujeito apreendido por uma lógica intersubjetiva para um sujeito que se afirma em um ato baseado em um julgamento que carece de fundamento lógico suficiente. Este assunto é o assunto pessoal, aquele que pronuncia “I” (em francês: “je”). Só podeexistir com a condição de que ele tenha assumido as outras formas de subjetividade (isto é, o impessoal “um” e o sujeito recíproco). A afirmação desse sujeito é diferente do sujeito como mera função do sistema simbólico – e, no entanto, Lacan afirma que esse sujeito também tem uma forma lógica e deriva de um processo lógico. 29 INFLUÊNCIAS SOCIOLÓGICAS NA RELAÇÃO SUJEITO-OUTROS │ UNIDADE I Segundo Lacan, a lógica temporal desse enigma pode ser aplicada a grupos de tamanho indefinido, uma vez que sempre há um disco preto menor do que o de prisioneiros. Como no caso das 13 moedas, o grupo não é constituído por uma característica comum. A característica é definida retroativamente pelo grupo através da afirmação do sujeito. O coletivo se baseia na reciprocidade da diferença. Como tal, a lógica coletiva pode ser expressa de acordo com os seguintes princípios: “(1) um homem sabe o que não é um homem; (2) os homens se reconhecem entre si como homens; (3) declaro-me homem por medo de ser convencido pelos homens de que não sou homem ”(LACAN, 2006 [1945], p. 174). Assim, Lacan formaliza a relação entre o indivíduo e o coletivo. Nesta formalização, o indivíduo é um sujeito e, como tal, dentro de um processo lógico. No entanto, através da antecipação de sua verdade, pode afirmar-se contra esse coletivo e escapar da relação recíproca em que foi capturado. As visões de Lacan sobre a relação entre o sujeito e o outro mudam gradualmente entre 1938 e 1953. Inicialmente, essa relação é concebida como estritamente baseada no princípio da identificação. Tal foi o caso em seu artigo sobre os complexos familiares, em que o processo de socialização é descrito como uma série de identificações consecutivas. A partir de 1953, Lacan conceitua o Outro não mais como uma imagem com a qual se identificar, mas como um sistema simbólico governado pelas leis da linguagem. Essa nova conceituação é realizada através das ferramentas entregues a ele pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Neste artigo, demonstramos que, entre 1938 e 1953, Lacan tentou formular o indivíduo como uma função, o sujeito, dentro de uma lógica do coletivo. Assim, embora Lévi-Strauss lhe tenha entregue a metodologia, esse encontro não constitui uma brecha radical no trabalho de Lacan – é apenas um refino do trabalho que ele já havia iniciado. Além disso, demonstramos que as afirmações de Lacan sobre a lógica do coletivo podem estar situadas dentro de um quadro de referência mais amplo. Enquanto Durkheim terminou em uma situação em que individual e coletivo são radicalmente separados, Mauss e Lévi-Strauss relegaram o indivíduo a uma mera função lógica dentro de um sistema simbólico coletivo. Lacan, por outro lado, conceituou um assunto que pode afirmar-se um contra o outro enquanto ainda permanece parte de um sistema lógico. Esse é o enigma que Lacan enfrentará repetidamente ao longo de seus ensinamentos e que precisa ser levado em consideração quando se deseja estudar a influência adicional de Lévi-Strauss em Lacan. O sujeito, uma função lógica dentro do simbólico, fala e se afirma. 30 UNIDADE IIPSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO A psicoterapia do self, e suas aplicações clínicas, foi concebida por Heinz Kohut nas décadas de 1960, 1970 e 1980 e ainda está se desenvolvendo como uma forma contemporânea de tratamento psicanalítico. Nesta abordagem é realizado um esforço para entender os indivíduos de dentro de sua experiência subjetiva por meio da introspecção vicária, baseando as interpretações no entendimento de si como a agência central da psique humana. Os conceitos de empatia, auto-objeto, espelhamento, idealização, alter ego/gêmeo e eu tripolar são essenciais para a compreensão da psicologia do eu. Embora a psiologoa do self também reconheça certos impulsos, conflitos e complexos presentes na teoria psicodinâmica freudiana, eles são entendidos dentro de uma estrutura diferente. A abordagem foi vista como uma ruptura importante da psicanálise tradicional e é considerada o começo da abordagem relacional da psicanálise (KOHUT, 1971). CAPÍTULO 1 A comunicação entre os indivíduos e a importância da psicologia do self Heinz Kohut (1966) propôs inicialmente um auto bipolar comprometendo dois sistemas de perfeição narcísica: 1) um sistema de ambições e 2) um sistema de ideais. Kohut chamou o pólo das ambições de eu narcísico – mais tarde, o eu grandioso (KOHUT, 1971) – enquanto o polo dos ideais foi designado como imago ou a imagem parental idealizada. Segundo Kohut, esses polos do eu representavam progressões naturais na vida psíquica de bebês e crianças pequenas. As visões atuais do self na psicologia posicionam o self como desempenhando um papel integral na motivação humana, cognição, afeto e identidade social (SEDIKIDES; SPENCER, 2007). Pode ser o caso de podermos agora tentar 31 PSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II utilmente basear a experiência do eu em um processo neural com consequências cognitivas, o que nos dará uma visão dos elementos dos quais se compõem os ‘Eus’ complexos da identidade de cada pessoa. O self tem muitas facetas que ajudam a compor suas partes integrantes, como a autoconsciência, a autoestima, o autoconhecimento e a autopercepção. Todas as partes do eu permitem que as pessoas alterem, acrescentem e modifiquem aspectos de si mesmas, a fim de obter aceitação social na sociedade. Uma explicação útil dos fatores que contribuem para o que chamamos de “individualidade” é que o eu emerge gradualmente e surge na interseção entre: os hábitos em nossos processos biológico-metabólicos, os hábitos socioculturais da cultura local inculcados em nós, nossos modelos de papel, bons e maus, quanta responsabilidade o indivíduo leva para fazer com que as escolhas saudáveis ganhem e, novamente, desenvolvam e fortaleçam o seu próprio Eu. Sobre o imago A palavra latina imago significa simplesmente “imagem”, mas adquiriu várias conotações poderosas ao longo do tempo. A teologia cristã se refere à “imago Dei”, a imagem de Deus com base na qual os seres humanos foram criados e deveriam se esforçar para seguir. Carl Gustav Jung (1952) introduziu o termo em psicologia; para Jung, o indivíduo forma uma personalidade, identificando-se com imagens que emergem do inconsciente coletivo, um reservatório compartilhado de figuras e cenários míticos. Lacan adota o termo para se referir à imagem que a criança vê no espelho (ou à imagem do cuidador) e com a qual a criança se identifica (LACAN, 1984). Na experiência ah-ha que caracteriza o estágio do espelho, o bebê apreende a conexão entre a imagem e sua própria existência. A criança experimenta a imago como uma Gestalt, uma forma significativa. É importante notar que a imagem é externa ao bebê. O “eu” passa a existir não como uma emanação do indivíduo, mas como resultado de um encontro com o outro. Em Psicologia, Imago é definido como um protótipo inconsciente de personas. A imago determina a maneira pela qual o sujeito apreende os outros. É elaborada com base nas primeiras relações intersubjetivas reais e fantásticas com os membros da família. O termo imago apareceu pela primeira vez na obra de Carl Gustav Jung em 1912, e a mesma palavra latina foi adotada em várias línguas. O conceito 32 UNIDADE II │ PSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO foi emprestado de um romance de mesmo nome de Carl Spitteler (2016) publicado em 1906. Na psicologia junguiana, o termo imago acabou substituindo o termo complexo. O imago está vinculado à repressão que, na neurose, por meio da regressão, provoca o retorno de um antigo relacionamento ou forma de relacionamento, a reanimação de um imago parental. Essa regressão está ligada a uma qualidade particular do inconsciente, a de ser construída através da estratificação histórica. Intencionalmente Jung deu primazia à expressão imago sobre o complexo de expressões, pois desejou dotar o fato psíquico, escolhendo o termo técnico, com independênciaviva na hierarquia psíquica, ou seja, a autonomia que as múltiplas experiências mostraram ser a particularidade essencial do complexo imbuído de afeto, e que é lançada em alívio pelo conceito de imago. Mais tarde, Jung substituiu o termo imago por arquétipo, a fim de expressar a ideia de que ele envolve motivos impessoais e coletivos, mas, na verdade, essa ideia já estava presente em suas primeiras descrições de imagens. Ele novamente explicou a escolha deste termo afirmando que a imagem intrapsíquica vem de duas fontes: a influência dos pais, por um lado, e as relações específicas da criança, por outro. É, portanto, uma imagem que apenas reproduz o seu modelo de maneira extremamente convencional. Por fim, ele situou a imagem entre o inconsciente e a consciência traçando um paralelo entre o claro e o escuro. É um complexo parcialmente autônomo que não está completamente integrado à consciência. Sigmund Freud et al. (1912), “esquecendo” que o romance de Spitteler havia inspirado Jung, usaram o mesmo título, Imago, para a crítica intitulada The dynamics of transference que foi apresentada em Viena, em março de 1912. O conceito de imago, muito raramente usado por Freud, apareceu em seus escritos pela primeira vez no mesmo ano, no texto supracitado The dynamics of transference – em português A dinâmica da transferência (1912), onde escreveu: “Se o ‘pai-imago’ usar o termo apropriado introduzido por Jung [...] é o fator decisivo para isso, o resultado corresponderá às relações reais do sujeito com o médico” (p. 100). Nos raros textos em que ele usou esse termo, o imago se refere apenas a uma fixação erótica relacionada a traços reais de objetos primários. No entanto, em outros lugares, Freud já havia demonstrado a importância dos vínculos da criança com seus pais e explicado que o mais importante é a maneira pela qual a criança percebe subjetivamente seus pais; essas ideias estão contidas na noção de imago. Ele também distinguira certas representações que 33 PSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II tinham o status da imago (a imagem mnêmica da mãe ou a imagem da mãe fálica na obra de Leonardo da Vinci). No entanto, em O problema econômico do masoquismo (1924), ele usou o termo imago no sentido junguiano, em relação ao masoquismo moral e ao superego. De fato, ele escreveu que por trás do poder exercido pelos primeiros objetos dos instintos libidinais (os pais) estava oculta a influência do passado e das tradições. Na sua opinião, a figura de Destiny, a última figura de uma série que começa com os pais, pode ser integrada à agência do superego se for concebida “de maneira impessoal”, mas, na maioria das vezes, de fato, permanece diretamente vinculada às imagens dos pais. Na época em questão, o termo imago era comumente usado na comunidade psicanalítica, mas era particularmente desenvolvido no trabalho de Melanie Klein. Além das imagens clássicas, ela descreveu “imagens parentais combinadas” que provocam os estados mais terríveis de ansiedade. Ela os vinculou ao “estágio do apogeu do sadismo”, que em 1946 se tornou a “posição esquizóide-paranóica”. O trabalho do analista é trazer à tona a ansiedade ligada a essas imagens aterrorizantes, facilitando a passagem para o “amor genital” (que em 1934 se tornou a “posição depressiva”), transformando essas imagens aterrorizantes em imagens úteis ou benevolentes. Para ela, a criança desenvolve fantasias cruéis e agressivas sobre os pais. A criança então projeta essas fantasias nos pais e, portanto, tem uma imagem distorcida, irreal e perigosa das pessoas ao seu redor. A criança então introjeta essa imagem, que se torna o superego inicial. Assim, Klein descreveu o superego inicial mais como uma imagem do que como uma agência (KLEIN, 1996). Melanie Klein (Viena, 30 de março de 1882 - Londres, 22 de setembro de 1960), nascida Melanie Reizes, foi uma psicanalista austríaca. Em geral, é como uma psicoterapeuta pós-freudiana. Em 1916, em Budapeste, teve o primeiro contato com uma obra de Sigmund Freud e fez uma análise com Sándor Ferenczi. Estimulada por ele, iniciou o atendimento de crianças. Em 1919, tornou-se membro da Sociedade de Psicanálise de Budapeste. No ano seguinte conheceu Freud e Karl Abraham, no Congresso Psicanalítico de Haia. Abraham convidou-a para trabalhar em Berlim. Em 1921, o marido se transferiu para a Suécia e Melanie permaneceu em Berlim com os filhos. A partir de 1923, passou a dedicar-se integralmente à Psicanálise e, aos 42 anos, iniciou uma análise de 14 meses com Abraham. Em 1924, no VIII Congresso Internacional de Psicanálise, Klein apresentou o trabalho A técnica de análise de crianças pequenas. Em 1927, Anna Freud publicou o livro O tratamento psicanalítico de crianças e Melanie criticou suas idéias, dando início a um 34 UNIDADE II │ PSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO subgrupo kleiniano na Sociedade Britânica de Psicanálise. No mesmo ano, tornou-se membro da Sociedade. De 1929 a 1946, Melanie Klein realizou uma análise em Dick, um menino autista com cinco anos. Em 1930 começou como análises didáticas e o atendimento de adultos. Em 1932 publicou sua obra A psicanálise da criança, simultaneamente em inglês e alemão; em 1936, durante a conferência sobre O desmame explicou a relação entre o seio bom e o seio mau; em 1937 publicou Amor, ódio e recuperação, com Joan Rivière; entre 1942 e 1944 elaborou, com discípulos, a sua teoria. Em 1945, a Sociedade Britânica de Psicanálise foi dividida em três grupos: annafreudianos (freud contemporâneo), kleiniano e independente. Em 1947, aos 65 anos, publicou Contribuições à psicanálise. Em 1955 foi fundada a Fundação Melanie Klein. No mesmo ano foi publicado o artigo A técnica psicanalítica através do brinquedo; sua história, sua significação, escrita a partir de uma conferência de 1953. Em 1960, ficou anêmica e em setembro foi operada por um câncer de cólon. Morreu no dia 22 de setembro, aos 78 anos de idade (LUZES, 1978). Klein deixou para Susan Isaacs definir o que ela queria dizer com imago: uma imagem, ou imago é o que é introjetado durante o processo de introjeção. Envolve um fenômeno complexo que começa com o objeto externo concreto para se tornar aquilo que foi “levado para o eu” (p. 89), ou seja, um objeto interno, explicou Isaacs em A Natureza e a Função da Fantasia (1948), acrescentando: “No pensamento psicanalítico, ouvimos mais ‘imago’ do que imagem. As distinções entre ‘imago’ e ‘imagem’ podem ser resumidas como: (a) ‘imago’ refere-se a um imagem inconsciente; (b) ‘imago’ geralmente se refere a uma pessoa ou parte de uma pessoa, os objetos mais antigos, enquanto ‘imagem’ pode ser de qualquer objeto ou situação, humana ou não e (c) ‘imago’ inclui todos os elementos somáticos e emocionais na relação do sujeito com a pessoa fotografada, os vínculos corporais na fantasia inconsciente com o id, a fantasia de incorporação subjacente ao processo de introjeção; enquanto na “imagem” os elementos somáticos e muitos dos emocionais são amplamente reprimidos” (ISAACS, 1986, p. 93). Em seu artigo de 1938, intitulado Les Complexes familiaux in the formation of l’individu (Os complexos familiares na formação do indivíduo), Jacques Lacan traçou a conexão entre imago e complexo. Foi nessa época que ele avançou sua primeira teoria do imaginário. A imago é o elemento constitutivo do complexo; o complexo permite compreender a estrutura de uma instituição familiar, presa entre a dimensão cultural que a determina e os elos imaginários que a organizam. Lacan descreveu três estágios: o complexo de desmame, o complexo de intrusão 35 PSICOLOGIA DO SELF E A COMUNICAÇÃO │ UNIDADE II (no qual o estágio de espelho é descrito) e o complexo de Édipo. Essa estrutura imago complexa prefigurava o que se tornaria sua topologia do Real, do Imaginário e do Simbólico. A psicologia do self Kohut argumentou que, quando as ambições e os esforços exibicionistas da criança
Compartilhar