Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
b l i t e r a t u r a CURSO 2 Paulo de Tarso Pardal bbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb l i t e r a t u r ab Paulo de Tarso Pardal b Sob as Asas da Jandaia Romantismo PARTE I Realização c e a r e n s e 1. ALÇAR VOO: APRESENTAÇÃO Romantismo, um dos princi- pais movimentos artísticos do século XIX, teve como marco inaugural no país a publicação de Suspiros poé- ticos e saudades, de um con- troverso Gonçalves de Ma- galhães (1811-1882). Emoções à fl or da pele, coração saindo pela boca, não podemos deixar de destacar o papel essencial que os romances românticos ti- veram na construção do público leitor bra- sileiro. Ou seja, eu e você! Nem de longe pretendemos abarcar tudo ou a todos nesses módulos que vi- rão, mas esperamos despertar em cada um dos cursistas a curiosidade e o inte- resse pelo estudo, pesquisa e leitura de algumas das obras produzidas no estado do Ceará e de seus autores que este breve espaço ousa trazer à luz. Neste módulo, em primeira parte, conver- saremos sobre o Romantismo, em especial de algumas de suas manifestações no Ceará. Por ser um tema, além de saboroso, mui- to complexo e diverso, optamos pelos seguin- tes recortes temáticos: o indianismo e o re- gionalismo de José de Alencar (1829-1877) e o regionalismo de Juvenal Galeno (1836-1931). Preparem os seus lenços e que as lágri- mas adocicadas brotem de seu coração: eles chegaram! 1. ALÇAR VOO: APRESENTAÇÃO não podemos deixar de destacar o papel essencial que os romances românticos ti- veram na sileiro. Ou seja, eu e você! Nem de longe pretendemos abarcar tudo ou a todos nesses módulos que vi- rão, mas esperamos despertar em cada um dos cursistas a curiosidade e o inte- resse pelo estudo, pesquisa e leitura de algumas das obras produzidas no estado do Ceará e de seus autores que este breve espaço ousa trazer à luz. Neste módulo, em primeira parte, conver- saremos sobre o Romantismo, em especial de algumas de suas manifestações no Ceará. Por ser um tema, além de saboroso, mui- to complexo e diverso, optamos pelos seguin- tes recortes temáticos: o indianismo e o re- gionalismo de regionalismo de Preparem os seus lenços e que as lágri- mas adocicadas brotem de seu coração: eles chegaram! 18 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 2. AFINAL, O QUE É O ROMANTISMO? Talvez eu seja o último romântico Dos litorais desse Oceano Atlântico Só falta reunir A Zona Norte à Zona Sul Iluminar a vida Já que a morte cai do azul. Lulu Santos, Sérgio Cardoso e Antônio Cicero, “Tudo Azul” ocê já ouviu, muitas vezes, ao longo da sua vida, as palavras “romântico”, “ro- mance” e “romantismo”. E, com certeza, tais palavras estavam associadas à pai- xão, ao sofrimento, à fanta- sia, à irrealidade, às coisas que não existem no nosso mundo real, ou seja, coisas idealizadas. Saiba, pois, que toda a base da corrente estética, que denominamos Romantismo, predominante no Brasil por mais de 40 anos, foi exatamente esse culto àquilo que não era real. Você também deve estar se pergun- tando a razão de tudo isso: por que “aqui- lo não real” era tão sedutor aos leitores e leitoras? Imagine o porquê de escritores – e também escritoras –, convivendo em um período extremamente difícil, dada a limitação das sociedades da época, esco- lheram por escrever sobre aquilo que não fazia parte do cotidiano real delas. Espero que, ao longo da sua leitura, cursista, você encontre essa resposta. Primeiramente, entenda que o escritor romântico construía um mundo ideali- zado e fazia do seu personagem um ser fantasioso, heroico, embora o ambiente, o espaço fi ccional em que a trama aconte- cia, muitas vezes, era descrito com muito realismo. Contudo, assistir a um passeio de personagens como Peri ou Iracema, por exemplo, pelas ruas do Rio de Janeiro ou mesmo nas areias da beira-mar de Forta- leza era impossível. A fantasia entra neste ponto, já que, na composição do persona- gem romântico, a beleza sem igual ou as raras virtudes humanas, somente eles, os heróis clássicos, possuíam. No momento de construção da nar- rativa de seus personagens – por en- quanto, refiro-me apenas à ficção –, os autores queriam caracterizá-los com to- das as boas e sublimes qualidades do ser humano, para mais impressionar os lei- tores, que sentiam-se representados nas ações das personagens, identificavam-se com seus ideais, pois, afinal, muitos de nós, desde crianças, queremos ser ou nos vemos como heróis ou heroínas de qualquer coisa. Naqueles tempos, a nova classe social fantasiava-se dentro de padrões criados pelos seus autores preferidos, fosse nos livros ou nos folhetins dos jornais. A vida como aventura e a morte como possibili- dade passou a fazer parte do imaginário coletivo daquela época. O romântico, dessa maneira, passou a sentir-se um porta-voz dos ideais coletivos, porque ele tinha consciência de que o Bra- sil, por exemplo, estava mudando, social e politicamente, e essa mudança deveria nos distinguir dos demais países. É aqui que entra outro grande pilar do Romantismo e uma das suas principais ca- racterísticas: o nacionalismo. Trama/Enredo Sucessão de acontecimentos que constituem a ação de uma obra de fi cção. Narrativa Exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens. Folhetim Texto literário (crônicas, fragmentos de romances ou novelas etc.) impresso de forma seriada na parte inferior da página de um jornal/periódico (rodapé), com o objetivo de vender mais exemplares. Muitos deles se diziam dirigir-se ao sexo frágil, crendo que elas, as mulheres, seriam as maiores leitoras da literatura fi ccional – não à toa, muitos autores se dirigiam a elas em suas interlocuções –, assim como eram elas também as protagonistas de grandes clássicos da época, em especial, nos romances urbanos. Os folhetins, que tiveram origem na França, fi zeram um sucesso absurdo no Brasil e foram responsáveis pelo lançamento e êxito de muitos de nossos autores, como Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882). A moreninha foi um dos folhetins mais populares do país, antes mesmo de ser publicado em livro. CURSO literatura cearense 19 Publicada em Paris (Dauvin et Fontaine, Libraires) em 1836 e trazendo como lema “tudo pelo Brasil e para o Brasil”, a revista Nitheroy é apontada como um dos marcos da instauração do Romantismo no Brasil. Teve apenas 2 números e seus artigos não se restringiam à arte (o primeiro número traz um extenso artigo sobre cometas). Seus redatores eram: Gonçalves de Magalhães, Francisco de Sales Torres Homem, Manuel de Araújo Porto Alegre. Entre seus artigos, “Ensaio sobre a his- tória da literatura no Brasil”, assinado por Gonçalves de Magalhães. Para ler a revista Niterói na íntegra, acesse: https://digital.bbm.usp.br/handle/ bbm/6859 Alguns fatos históricos contribuíram para o surgimento desse discurso de nacionalidade: a. A transferência da corte portu- guesa para o Brasil; b. A chegada ao Brasil de algumas mis- sões estrangeiras compostas por cientistas e artistas, entre elas as de 1816 (Auguste de Saint-Hilairee a Missão Artística Francesa) e 1817 (Friedrich von Martius e a Missão Artística Austríaca), com o intuito de conhecer o recém-criado Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar- ve (1815), e que além de divulgar os ideais liberais e nacionalistas euro- peus, vislumbravam nas exuberantes fauna e fl ora do Novo Mundo e na fi gura nativa do seu índio elementos fundantes da identidade brasileira; e c. A Proclamação da Independên- cia (1822), responsável, natural- mente, entre outros, por um grande impacto cultural. Todas essas movimentações sociais, econômicas e políticas, como é de se espe- rar e acontece no mundo inteiro, reverbe- raram no meio artístico. Na verdade, elas provocaram a criação de um imaginário e ideal de brasilidade, que impregnou o pensamento daqueles que por aqui vi- viam... e também escreviam. Na literatura, que é o que nos cabe, te- mos o ano de 1836 como marco do início do Romantismo brasileiro, quando da pu- blicação do livro Suspiros poéticos e sau- dades de Gonçalves de Magalhães no país e, na França, da Nitheroy: revista brasilien- se, que circulou por apenas dois números. Nela, Magalhães publica o “Ensaio sobre a história da literatura brasileira”, conside- rado o nosso primeiro manifesto românti- MALACA CHETAS co. Nesse ensaio, Magalhães afi rma: “Cada povo tem sua literatura, como cada ho- mem o seu caráter, cada árvore o seu fruto.” No texto, lamenta a inexistência de estudos sobre a história da literatura brasileira no pró- prio Brasil e reclama que os estudos realiza- dos em outros países nada ou pouco disses- sem sobre a nossa literatura, citando apenas – e com defasagem – o poeta árcade Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), o inconfi dente “Glauceste Satúrnio”. Também critica os poe- tas brasileiros que não aprenderam a olhar para o seu povo nem para a “Natureza virgem com tanta profusão”, limitando-se a importar temas, formas e valores portugueses. Falando em olhar para o nosso povo, re- conhecer o nosso ambiente e suas peculia- ridades, adentraremos, agora, a geração in- dianista do nosso Romantismo, lembrando, como defende Luiz Roncari, em sua Literatu- ra Brasileira: dos primeiros cronistas aos últi- mos românticos, que indianismo não signifi - ca apenas tomar como tema e assunto da literatura o indígena e seus costumes. Em outras obras anteriores também os índios apareciam, como em Caramuru, de Santa Rita Durão, e especialmente em Uraguai, de Basílio da Gama. “Tal realização implicava também e principalmente a construção de um novo ponto de vista e de uma nova visão do indígena, apreciado agora menos como uma realidade racial que como outra reali- dade ética e cultural, distinta da europeia.” É evidente que a exaltação de um “índio ideal” era uma maneira de exaltar a nossa terra e de valorizar um povo oprimido e em extinção e de enfatizar nossa independên- cia social e cultural de Portugal. Todo esse ideário – com generosa visão da pátria e do semelhante – fez com que os leitores se sentissem parte dessa história toda, daí aquela tal identifi cação com os personagens que já conversamos aqui. 20 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE O índio na literatura do século XIX está ali- cerçado na ideia de que, no Brasil, desde os primeiros momentos da colonização, sem- pre teve um lugar especial: o índio é bom por natureza – a bondade natural de que falaram os enciclopedistas. Evidentemente, o índio não era assim, “mas deveria ser”, este foi o enfoque, a fantasia da escola românti- ca. Esta é a tese, por exemplo, de Agripino Grieco (1888-1973), que diz que o índio de Alencar é uma “linda mentira”. Dessa forma, confrontar o índio literário, esse homem li- vre e incorruptível, com o índio real – ainda hoje muito desconhecido e pouco compre- endido – que vivia refugiado no interior do país não tem sentido, pois o índio literário é mais imaginação do que observação da rea- lidade. Assim, enquanto na Europa, os gran- des valores eram personifi cados por cavalei- ros medievais, no Brasil, eram nos indígenas que encontravam corpo. José de Alencar tinha plena consciên- cia disso. Em Como e porque sou romancista (1893), Alencar conta um pouco de seu pro- jeto literário. Explica como escreveu e criou suas personagens e narra sobre o fazer literá- rio do romance O Guarani, considerado pela crítica literária a expressão do nacionalis- mo romântico e a consolidação da fi gura do herói tipicamente brasileiro: “N’O Gua- rani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta gros- seira de que o envolveram os cronistas, e ar- rancando-o ao ridículo que sobre ele proje- tam os restos embrutecidos da quase extinta raça.”(ALENCAR, 1893, p. 47) Nas páginas dessa obra, percebemos o quanto Alencar era consciente da corrente estética à qual se fi liou. Pretendia ser nacionalista a partir da exaltação da natureza, da volta ao passado histórico e da criação do herói nacional na fi gura do índio. Em O Guarani a idealização do indígena reunia todas as qualidades do PASSANDO A LIMPO Embora Gonçalves de Magalhães, poeta favorito e amigo de dom Pedro II, seja fi gura imprescindível na história do Romantismo brasileiro, o seu poema épico Confederação dos tamoios (1856) foi redondamente desqualifi cado pelo jovem José de Alencar, sob pseudônimo “Ig”, ainda redator do Diário do Rio de Janeiro, tanto por motivos formais (gramática, estilo e metrifi cação), pela ausência de unidade, quanto pela falta de imaginação na descrição dos costumes indígenas, assim como da própria natureza. Também criticou a escolha do modelo épico, no qual dizia: “a forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios”. Seria incrível imaginar que o pensamento reformador tão propagado por Magalhães não atingisse a sua própria obra. A polêmica obra Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, de Alencar, publicada ainda em 1856, pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Digital do Senado Federal: https://www2.senado.leg.br/bdsf/ handle/id/242822 BOLACHINHAS Segundo José Alencar, em Como e porque sou romancista, a sua inspiração para O Guarani “caiu na imaginação da criança de nove anos, ao atravessar as matas e sertões no Norte, em jornada do Ceará à Bahia.” SABATINA Como e porque sou romancista é uma autobiografi a intelectual de Alencar. A obra representa importante testemunho para a nossa compreensão não só da personalidade do autor cearense, mas também dos alicerces de sua formação literária. O texto sob a forma de carta, foi escrito em 1873 e publicado em 1893, pela Tipografi a Leuzinger (RJ), 16 anos após a sua morte. Para lê-lo, basta acessar o material complementar disponível na sua biblioteca virtual do AVA. Lá, além desse título, existem outras obras de apoio para os seus estudos em Literatura. Aproveite! E caso queira acessá-lo da Biblioteca da Unesp: https://bibdig.biblioteca.unesp. br/bitstream/handle/10/6498/ como-e-porque-sou-romancista. pdf?sequence=2&isAllowed=y cavaleiro medieval, mas com a originalidade da ligação com a terra selvagem brasileira. Para Lilia Schwarcz, em Um monar- ca nos trópicos, o Romantismo brasileiro inseriu-se em um plano político de cunho nacionalista, e não apenas em um movi- mento estético. De perfi l eminentemente estratégico, encarregou-se de fazer as pa- zes com o indígena pelo passado de barbá- rie e intolerância, que ora comportava uma leitura honrosa. É dessa leitura que nos fala Schwarcz que iremos estudar a seguir. CURSO literatura cearense 21 3. O GUARANI: ROMANCE DE FUNDAÇÃO DO POVO BRASILEIRO Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante De uma estrela que virá numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul Na América, num claro instante Depois de exterminada a última nação indígena E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias Virá Impávido que nemMuhammad Ali Virá que eu vi Apaixonadamente como Peri Virá que eu vi. Caetano Veloso, em “Um índio” osé de Alencar é considerado um dos fundadores do romance bra- sileiro. Entre outros objetivos, ele queria representar, através da fi c- ção, toda a variedade do país, do sertão à corte, e, de certa forma, conseguiu, já que seus romances perfazem todo o caminho da di- versidade dos tipos brasileiros desde “Arnaldo”, o vaqueiro cearense (de Quixeramobim), um herói do sertão, no livro 22 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE MALACA CHETAS Outra característica da escola é a com- paração com a natureza, evocando o sím- bolo de perfeição. Vejamos na obra: “Peri, primeiro de todos, tu és belo como o sol, e fl exível como a cana selvagem...”; Outro exemplo é o fragmento: “ A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri; mil ar- cos ligeiros como o voo do gavião.” O autor romântico comparava as pro- tagonistas com a natureza para dizer da perfeição e da beleza de ambos: perso- nagens e natureza. Por essa razão a natu- reza é sempre idealizada e sempre pre- sente na fi cção romântica. O mito do “bom selvagem”, de Rosseau, que afi rma ser o homem bom por nature- za, sendo o viver em sociedade a causa da sua degradação moral, muito contribuiu para que o indianismo fosse uma tendên- cia generalizada do Romantismo. Aqui, vestido com a cor local, o índio literário do romance encarna a bondade natural que O Guarani obteve muito sucesso do público e da crítica quando lançado em 1857. Porém os leitores da época acostumados com a leitura de folhetins, surpreenderam-se com o formato livro (romance) ainda não tão bem desenvolvido no Brasil. Com esse lançamento, o novo gênero literário ganhou força e passou a ser produzido com maior frequência entre os escritores no país. Outra curiosidade dessa publicação, é que José de Alencar deixou o seu enredo ao gosto do público, alterando a história conforme a opinião que recebia constantemente dos seus leitores das páginas do Diário do Rio de Janeiro. O sertanejo (1875), ao gaúcho, em O gaúcho (1870), ambas obras regionalistas, como passando pela corte de “Aurélia Camargo”, no clássico Senhora (1875), romance urba- no e de costumes. Como dissemos, o autor exaltou em suas obras aquele que se tornou o símbolo nacional do romantismo: o ín- dio. São representantes da fase indianista do Romantismo brasileiro – também de- nominada nativista – as obras: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Embora a primeira obra de literatura cearense de Alencar seja Iracema (1865), discorreremos um pouco sobre O Guarani (1857), pois este romance inaugural da fi cção indianista no Brasil traz muitos dos elemen- tos que caracterizam a escola romântica. Publicado originalmente como folhetim, a obra narra, através da história de amor do ín- dio Peri e a jovem lusa Ceci, o tema da misci- genação entre o índio e o branco. Para Ângela Gutierrez, “a sugestão do conúbio entre dois seres harmoniosos e superiores, símbolos das raças indígena e branca, ratifi ca a obser- vação de Doris Sommer (2004, p. 179) de que Alencar alinhava-se a von Martius, ‘um histo- riador que identifi cava a mestiçagem como a matriz da brasilidade’”. O que fi ca implícito em O Guarani será, oito anos depois, explicita- do com o nascimento de Moacir, fi lho da dor, em Iracema”. (GUTIERREZ, 2009, p. 10) A descrição de Peri é clara: “Enquanto falava [Peri], um assomo de orgulho selva- gem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, fi lho das fl orestas, era um rei; tinha a realeza da força.” Esse exagero está em todos os capí- tulos do romance. Isto, porém, não é um defeito e, sim, uma característica da escola. Era assim que os personagens ro- mânticos se posicionavam diante do mun- do, exagerando, sendo demasiadamente apaixonados e, por isso, sofrendo muito. Essa era a postura romântica. ele deveria ter já que vivia harmonicamen- te com os seus e com a natureza. A afi nidade entre o público e o indianis- mo deve-se ao nativismo: a valorização do índio ia ao encontro dos desejos, dos sen- timentos e do conteúdo emocional dos lei- tores que compunham majoritariamente a classe burguesa. Logo após o processo de Independência, desenvolveu-se entre nós o sentimento de nacionalidade, e nada melhor do que um herói para representar este anseio. Isto não quer dizer que o Brasil pudesse viver, naquele período, sem o por- tuguês, pelo contrário, o Brasil era comple- tamente dependente da coroa portuguesa. Não podendo valorizar o negro, o fi ccionista voltou-se para o índio, heroicizando-o. Antonio Candido afi rma ser Alencar “o único escritor de nossa literatura a criar um mito heroico, o de Peri” e explica: “Assim como Walter Scott fascinou a imaginação da Europa com seus castelos e cavaleiros, Alencar fi xou um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do índio ideal [...]” (CANDIDO,1969, p. 223-4) CURSO literatura cearense 23 MALACA CHETAS A canção “Maracatu Fortaleza”, de autoria de Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry, foi tema ofi cial do Maracatu Az de Ouro no início da década dos anos 2000. A música ganhou videoclipe com direção de Petrus Cariry e está disponível no canal Pingo de Fortaleza Solar, do artista cearense João Wanderley Roberto Militão, conhecido simplesmente como Pingo de Fortaleza. Confi ra no link: https://www.youtube.com/ watch?v=nijgoEZrWyM 4. IRACEMA: LENDA DO CEARÁ Iracema hoje quer ser moderna Loura a força, ela deseja ser Mas a cor que lhe veste o corpo é de cabocla que a faz sofrer O estrangeiro foi para não voltar Deixou o seu fi lho que não quer mais ver. Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry, em “Maracatu Fortaleza” romance Iracema (1865) é considerado, segundo o pesquisador Sânzio de Azevedo, a primeira obra de literatura cearense de José de Alencar. Acerca de Iracema, nos explica o pesquisador: “No Ceará, o Indianismo é representado precisamente por uma das obras principais do movimento brasileiro, Iracema.” (AZEVEDO, 1976, p.51). A paisagem e a cultura da sua terra foi o que de mais especial José de Alencar nos deixou, mesmo dentro dos cânones da épo- ca. O nacionalismo, que toda a doutrina ro- mântica possui, teve em Alencar um vigoro- so pintor. Essa ideia de terra nossa, de país nosso, de cultura nossa está em quase todos os seus livros. Em dois deles, toda a paisa- gem exuberante do Ceará foi essencial, para fi rmar um imaginário regional: Iracema e O sertanejo como veremos mais a seguir. Observe o que Alencar diz, no prólogo da primeira edição de Iracema oferecido pelo “fi lho ausente” à terra natal: MALACA CHETAS 24 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, per- longando as alvas praias ensombradas de coqueiros; […] Onde vai a afouta jangada, que deixa rápi- da a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela? […] Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das fl o- restas, e brincam irmãos, fi lhos ambos da mesma terra selvagem (...) (ALENCAR, 2005) Perceba que, nesse trecho, encontra- mos, além da paisagem, o mito da origem. O livro inicia trazendo o fi m da história de Iracema e de Martim, o “guerreiro branco”, cujos descendentes comporão nosso povo: este é o mito. A criança na jangada, o Moa- cir (“fi lho da dor”, “o que vem da dor”, em tu- pi-guarani) é símbolo da mistura das raças, é o branco e o índio compondo a diversida- de cultural do povo brasileiro. Ao longo da narrativa, surge a nossa paisagem geográfi ca: Ipu, chapada da Ibia- paba, Meruoca, Uruburetama, Maranguape,Parangaba, Sapiranga, Messejana etc. Os meninos brincam na sombra do outão com pequenos ossos de reses, que fi gu- ram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede. […] Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências da infância avi- vadas recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derramao, a brisa que per- passou os espatos da carnaúba e na rama- gem das aroeiras em fl or. O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu cristalino azul, e depois vazado no coração cheio de recordações vivazes de uma imaginação virgem, Es- crevio para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmuros do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros.[…] Se, porém, ao abordar às plagas do Mucuri- pe, for acolhido pelo bom cearense, preza- do de seus irmãos ainda mais na adversi- dade do que nos tempos prósperos, estou certo que o fi lho de minha alma achará na terra de seu pai a intimidade e conchego da família […] (ALENCAR, 2005) Observe que, só nessas primeiras li- nhas, a autor traz em suas memórias mui- tos elementos indicadores dos costumes e da paisagem cearenses. Sua maneira de avivar as cores e os gestos só reforçam sua identidade romântica. A seguir, temos alguns trechos da obra, nos quais a terra cearense, espaço geográfi co, é ambienta- da como o cenário de Iracema: CURSO literatura cearense 25 5. A COR DA TERRA: O SERTANEJO frânio Coutinho, a respeito do regionalismo: A procura do colorido local pe- culiar conduziu à compreensão da cultura popular, onde, para os românticos, residiria o cará- ter original da criatividade lite- rária, e de onde partiria o veio formador da literatura. Assim, como endossa Sânzio: “Essa busca de cor local, porém, não privilegiou apenas o aborígine, mas também o mestiço, igualmente brasileiro, e cuja cultura era própria, diferente, portanto, da cultura portuguesa.” Em O sertanejo, umas das obras regio- nalistas do autor, o personagem Arnaldo é jovem, belo, livre, forte, apaixonado e completamente integrado ao seu am- biente, o seu lugar. E os lugares, a cultura e os costumes do povo cearense ganham outras cores. Aqui, o que é acentuado é o imaginário do sertão, a organização das famílias, com sua ética e seus códigos de sobrevivência. A primeira parte do livro é quase uma identidade da terra natal: Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infi ndos, é o sertão de minha terra natal. Aí campeia o destemido vaqueiro cearense, que à unha de cavalo acossa o touro indô- mito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com admirável destreza. Aí, ao morrer do dia, reboa entre os mugi- dos das reses, a voz saudosa e plangente do rapaz que aboia o gado para o recolher aos currais no tempo da ferra. Quando te tomarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos na au- rora serena e feliz da minha infância? Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante? 26 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS Ao contrário de boa parte de seus romances urbanos, em que as mulheres eram as protagonistas, Alencar, em seus romances regionalistas, trazia personagens masculinos. CONFEITOS O personagem Arnaldo, vez ou outra aparece acompanhado por um “tigre”. No passado, era possível ser encontrada com mais facilidade no interior cearense a onça suçuarana. Os antigos denominavam essa suçuarana de “tigre” (nunca haviam visto o asiático animal), diferenciando-a da onça pintada. Porém, o espaço, a terra descrita não é fan- tasia: é realidade projetada do cotidiano. Como consequência disso, emerge a sau- dade, sentimento impulsionador do orgu- lho de pertencer a uma determinada terra. Isto é o que alavancou o nacionalismo ro- mântico e fez dele um dos principais ele- mentos de aceitação do público. Outros fatores de “cearensidade” vão aparecendo durante a narrativa, principalmente do va- queiro/sertanejo cearense, inclusive nela o autor descreve muitas características que ele diz ser do “cearense da gema”. Nos últimos ramos, lá no tope do jacaran- dá, havia o sertanejo armado a rede, em que se embalava. Devia de achar-se mais de cem pés acima da terra; e nessa grande altura, suspenso por duas fi nas cordas de algodão trançado, estava mais tranquilo do que se pousasse no chão, [...] Cessaram os repiques do sino; o sertanejo adivinhando que estavam na reza ajoelhou também num ramo da árvore, e com sin- cero fervor acompanhou de longe no seu nicho agreste a oração que lá se estava elevando ao Senhor pela boa volta e feliz chegada dos donos da Oiticica. Começou a ladainha cantada. [...] Em que pese a fantasia, o uso da rede ca- racteriza nossa terra, ainda hoje. As orações ao fi nal da tarde e um dos cantos de louvor bem exemplifi cam o cotidiano do cearense, devoto que sempre foi dos santos e obediente aos ri- tuais da igreja. O herói é perfeitamente adap- tado à natureza, porque é fruto dela, e com ela vive em harmonia. Essa é outra ideia que Alencar passa, em muitos de seus romances. Sobre o aboio, tão característico, ainda hoje, nas brenhas do nosso sertão: Ainda retiniam as últimas badaladas das trindades, quando longe, pela várzea além, começaram a ressoar as modulações afe- tuosas e tocantes de uma voz que vinha aboiando. [...] Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro; nem ele as articula, pois fala ao seu gado, com essa outra lin- guagem do coração, que enternece os ani- mais e os cativa. [...] O gado dos currais, que já se tinha acomodado e ruminava deitado, levantando-se para responder ao canto do aboiador, mugia não ruidosamente. [...] Como vemos, ser humano e animal co- municam-se como se o animal soubesse do signifi cado do aboio, pois responde ao apelo do vaqueiro. Aqui, mais uma vez, a harmonia entre os seres que vivem num mesmo espa- ço geográfi co é fundamental. Esse elemento de harmonia é uma tática, para o leitor sentir a necessidade de integração com a sua terra e que dela tenha orgulho. Talvez este seja um dos objetivos de Alencar. Com todos esses exemplos, tanto de Ira- cema, como de O sertanejo, podemos deduzir que José de Alencar queria muito mais do que representar uma região, com seus costumes e suas crenças. Ele queria dizer que a região é essencial, para uma ideia mais ampla e cons- ciente do Brasil: esse é o seu nacionalismo. Aboio/Aboiado Canto dolente e monótono, sem palavras, com que os vaqueiros guiam as boiadas ou chamam as reses. A referência à imensa campina é como o autor intenciona impressionar o leitor pela visão e pelas qualidades inerentes a esse espaço. Apesar dos percalços, a terra signifi ca a origem e a construção da vida. E os elementos da região vão aparecendo: a derruba do gado pela cauda; a destreza do vaqueiro e o seu aboio típico, que tantos ar- tistas exaltaram; a ferra do gado, que é mo- mento de repartição e de propriedade das reses; os odores do sertão etc. Perceba, cursista, que o narrador fala das coisas do sertão com muito orgulho – esta é a visão do romântico sobre a sua terra, porque é a terra da sua identidade, das suas aventuras e da sua memória, mesmo que tal memória, em relação às pe- ripécias das personagens, venha revestida de muita imaginação e irrealidade, para atender os cânones do Romantismo. CURSO literatura cearense 27 6. O REGIONALISMO DE JUVENAL GALENO Romantismo cearense tem como marco inaugural o lançamento de Prelúdios poéticos (1856), livrode estreia de Juvenal Galeno, publicado no Rio de Janei- ro (Iracema teria sua publi- cação 9 anos depois). E se- ria apenas esse o destaque de Galeno na Literatura Cearense? Decerto que não, vejamos: Ainda aos 13 anos, ao lado de Gustavo Gurgulino de Souza, foi fundador do primeiro jornalzinho puramente literário do Ceará: o Sempreviva. Aos 17, ao ingressar no Liceu, junto com colegas, criou o Mocidade cearen- se, pioneiro da imprensa estudantil no es- tado. Em 1859, escreveu Quem com ferro fere com ferro será ferido, primeira peça escrita e encenada no Ceará (1861). Em 1859, publi- cava em jornais do Ceará, de Pernambuco e na Revista popular, editada no Rio de Janeiro por Louis Garnier, editor e livreiro, continuan- do ainda no Jornal das famílias, desde 1863, também de Garnier, impresso em Paris, jun- tamente com Joaquim Manuel de Macedo, Lúcio de Mendonça e Machado de Assis. Em 1860, quando preso por desacato ao coman- dante Machado, da Guarda Nacional, escre- veu A machadada: poema fantástico, primei- ra obra literária impressa no Ceará. Em 1871, publicou Canções da escola, primeira obra infantojuvenil cearense, e, no mesmo ano, publica Cenas populares, primeiro livro de contos do Ceará. É um dos fundadores do Clube Literário (1886), do Instituto do Ceará (1887) e do Centro Literário (1894). Foi padei- ro-mor honorário da Padaria Espiritual (1895) e é considerado um dos primeiros poetas abolicionistas e folcloristas do Brasil. Como podemos constatar, não seria possível nesse módulo dar conta de expor a vida e a obra desse autor que inaugura quase tudo a que se refere à literatura pro- duzida no estado. “Era um romântico, mas com uma parti- cularidade que faz dele fi gura ímpar nos qua- dros da poesia cearense, ou mesmo brasilei- ra: a inspiração genuinamente popular.” Dessa forma o pesquisador Sânzio de Azeve- do apresenta Juvenal Galeno. E diz mais: O cantor das Lendas e canções populares re- presenta, assim, melhor talvez do que qual- quer outro poeta do Brasil, aquela vertente do Romantismo que procurava identifi car- -se profundamente com a alma popular, produzindo a arte anunciada por Herder, antes mesmo do advento da escola. Por isso, falando da obra do poeta cearen- se, disse João Clímaco Bezerra ser ela, “na literatura brasileira, a primeira tentativa de uma poesia tipicamente regionalista”. De fato, reconhecido poeta social, com o olhar voltado aos pobres, aos humildes – embora de origem socialmente privilegiada –, Galeno dedica a eles a sua obra, ao afi r- mar: “Sei que mal recebido serei nos salões aristocratas e entre os críticos que, estudan- 6. O REGIONALISMO DE JUVENAL GALENO Romantismo cearense tem como marco inaugural o lançamento de Prelúdios poéticos (1856), livro de estreia de Juvenal Galeno, publicado no Rio de Janei- ro (Iracema teria sua publi- cação 9 anos depois). E se- ria apenas esse o destaque de Galeno na Literatura Cearense? Decerto que não, vejamos: Ainda aos 13 anos, ao lado de Gustavo Gurgulino de Souza, foi fundador do primeiro jornalzinho puramente literário do Ceará o Sempreviva. Aos 17, ao ingressar no Liceu, junto com colegas, criou o Mocidade cearen- se, pioneiro da imprensa estudantil no es- tado. Em 1859, escreveu Quem com ferro fere com ferro será ferido, primeira peça escrita e encenada no Ceará (1861). Em 1859, publi- 28 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS Franklin Távora (1842-1888), considerado o fundador do regionalismo no Nordeste, era opositor ferrenho da literatura dita nacional de José de Alencar. Franklin nasceu no Ceará. Aos 2 anos, com os pais, passou a residir em Pernambuco, estado que é cenário de sua obra O Cabeleira (1876). do no livro do estrangeiro o nosso povo, des- conhecem-no a tal ponto de escreverem que o Brasil não tem poesia popular! [...] Despre- zado nos salões, encontrarei bom gasalha- do na ofi cina, na choça, no seio do povo; o operário entoará no trabalho estas canções, as crianças repeti-las-ão no lar, e o veterano recrutado, o escravo, o oprimido... derrama- rão muitas lágrimas ao escutá-las. E, assim, cumprirei a minha missão.” (GALENO, 2010). Mesmo em Prelúdios poéticos, em meio a poemas tipicamente românticos, Azevedo observou que Galeno traz três peças poéticas que comprovam a sua tendência à poesia popular. São elas: “A noite de S. João”, “Can- tiga do violeiro: poesia popular” e “A canção do jangadeiro”. Até então, se dizia, equivoca- damente, que os poemas do livro de estreia de Galeno eram de característica neoclássi- ca e que nada tinham de popular, o que fez com que muitos acreditassem que Gonçalves Dias, o primeiro grande indianista do Roman- tismo, quando de sua passagem no Ceará, 3 anos depois da sua publicação, teria sido o responsável por dar ao poeta o conselho, do nada, de produzir e cultuar a poesia popular. Em 2010, durante a organização e publi- cação da Coleção Juvenal Galeno: obra com- pleta, Raymundo Netto encontrou os manus- critos da única peça escrita por Galeno, Quem com ferro fere, com ferro será ferido – encenada posteriormente, em 1861 –, e neles constatou o ano de sua escrita: 1859. A descoberta gerou duas constatações: seria essa a segunda obra produzida por ele, e não A machadada: poe- ma fantástico (1860), como até então se pen- sava. Segundo: “na peça, Juvenal denuncia e critica o abuso da autoridade dos delegados nas pequenas cidades do interior, a utilização do recrutamento e da cadeia pública como instrumentos de vingança, a omissão e a par- ceria dos latifundiários, dos ricos e dos padres aos desmandos do poder, a hipocrisia e dis- criminação social, a defi ciência e corrupção da justiça, o estado de pobreza e penúria da maior parte da população indefesa”. (NETTO, 2010), o que demonstra, novamente, a aten- ção do autor dedicada não apenas à poesia popular, mas ao povo em si, a quem dedica- ria a maior parte de seus trabalhos, incluindo Lendas e canções populares, que seria escrito no período de 1859 a 1865. Também Netto, em sua Cronologia comentada, por intermé- dio de cartas encontradas de Gonçalves Dias destinadas a Galeno, afi rma ser Cantigas do sertão, o primeiro título de Lendas e canções populares e que Canções da escola seria a primeira obra da literatura infanto-juvenil cea- rense, como dissemos anteriormente. Voltando ao tema e para irmos adiante, em primeiro lugar, é fundamental que o(a) cursista compreenda que o denominado regionalismo não se trata de uma escola literária, como o Romantismo ou o Realis- mo, por exemplo. Nas obras românticas, depois do indíge- na, a fi gura local, como o sertanejo, assumiu o papel de herói idealizado. Para tanto, esse regionalismo foi fundamental. Além disso, observamos ainda mais sua importância ao trazer para o palco romântico – geralmente urbano e centrado na corte – os tipos, cos- tumes, valores e paisagens de um Brasil ain- da desconhecidos por ela. Galeno, após sua estreia em Prelúdios..., da escrita de sua única peça, da publicação de A machadada: poema fantástico (1860) e de A Porangaba: lenda americana (1861) – um poema indianista que, este, sim, traz a infl uência do amigo Gonçalves Dias –, pu- blica, em 1865, ano em que é lançado Ira- cema, de Alencar, Lendas e canções popula- res. Assim como José de Alencar, escolheu alguns tipos para compor sua obra, Juve- nal Galeno, como todos os regionalistas, tirou do seu espaço real os modelos para a sua composição literária, desta feita, não mais como romance, mas como poesia. Dolor Barreira afi rma: “No Quadro sintético da evolução dos gêneros na Literatura Brasilei- ra, da autoria de Sílvio Romero, Juvenal, aliás o único cearense citado no quadro relativo à poesia, fi gura como representante do período romântico (quarto momento) entre os serta- nistas, tradicionalistas e campesinos [...]” O regionalismo na poesia está ligado às particularidades dos agrupamentos sociais de cada canto do país, apresentandoclima, costumes, fala, cultura, aspectos do cotidia- no, o que dá uma enorme riqueza de detalhes a serem estudados sobre os tipos e o ambien- te que os envolvia. Sobre isso, José Aurélio Saraiva Câmara afi rma: “Sem as poesias de Juvenal Galeno e sem as crônicas históricas de João Brígido, será impossível recompor a verdadeira fi sionomia do Ceará oitocentista.” CURSO literatura cearense 29 Assim, Juvenal Galeno nos apresenta muitos temas caros à região, como o janga- deiro, o mar, o boiadeiro, o escravo, o lavra- dor, a lavadeira, entre outros, e, sem perder o tom romântico, característico da sua compo- sição poética, vai além e revela as injustiças e a desigualdade sociais, a política, a explora- ção, o sofrimento, mas também as alegrias, o modo de viver e a beleza de seu povo. Encontramos alguns desses elementos nos fragmentos dos poemas abaixo: “Ai, vida qu´eu levo por montes e vales, Catingas e grotas se vou campear; E após descansando, cercado dos fi lhos, E junto à consorte nos gozos do lar! A vida qu´eu levo, Ouvi-me cantar. (...)” “O vaqueiro”. In: Lendas e canções populares, 2010. “Minha jangada de vela Que ventos queres levar? Tu queres vento da terra Ou queres vento do mar? Minha jangada de vela Que vento queres levar? (...)” “A jangada”. In: Lendas e canções populares, 2010. “Além dos males que padece o corpo, Medonha fome, o desarrimo, as dores, Mortais angústias que o cidadão deplora, Sem da justiça, sem da lei favores, Do povo o espírito ignorante perde-se Em noite umbrosa, oh, do poder senhores! “A instrução”. In: Lendas e canções populares, 2010. O último poema, “A Instrução”, tem início com o alerta de que a Constituição garante a instrução primária a todos os cidadãos. É o Galeno engajado contra o analfabetismo. Mas, voltando ao regionalismo, vaquei- ros e jangadas bem ilustram o tom regio- nal. Se há temas que se repetem, aqui, no Ceará, podemos dizer que esses dois estão em muitos momentos históricos da nossa terra, não só na literatura, mas na pintura, no desenho, na escultura, no folclore, na literatura de cordel etc. Agora, vamos fazer uma leitura mais de- talhada do poema “Cajueiro pequenino”, uma das pérolas do nosso Romantismo regional, e um dos mais festejados do au- tor, para identifi carmos fatores essenciais, por meio dos quais poderemos classifi cá-lo como romântico e como regionalista. “Ca- jueiro pequenino” fazia parte do folclore e da tradição dos trovadores cearenses. Cajueiro pequenino, Carregadinho de fl or, À sombra das tuas folhas Venho cantar meu amor, Acompanhado somente Da brisa pelo rumor, Cajueiro pequenino, Carregadinho de fl or. Tu és um sonho querido De minha vida infantil, Desde esse dia... me lembro... Era uma aurora d´abril, Por entre verdes ervinhas Nasceste todo gentil, Cajueiro pequenino, Meu lindo sonho infantil. “Cajueiro pequenino”. In: Lendas e canções populares, 2010. O poema todo é uma declaração de amor. Há dois elementos marcantes: o tom de ingenuidade, de delicadeza, de fragili- dade, inclusive (“Tu que foste sempre en- fermo”); e o elemento saudade, associada a uma certa dor, à tristeza, à melancolia e à partida. Esses elementos, atuando con- juntamente, darão a tônica do poema: o sentimentalismo e a dor, dois fatores nu- cleares do Romantismo. O tom de ingenuidade é dado por dois ele- mentos: o próprio motivo e a seleção lexical. A lembrança da infância de um narrador já adulto (“Fui-me longe... muitos anos”), de sua amizade com um cajueiro (coisa de menino), que ganha status de pessoa, se antropomorfi za: embora não fale, sabe muito bem escutar: “Se tu sofrias... eu, tris- te,/Chorava como... ninguém!/ Cajueiro pe- quenino,/ Por mim sofrias também!” (nesse último verso, o narrador interpreta o senti- mento do outro, como os outros dois). O narrador entra no mundo inanima- do do cajueiro e conta a história dos dois: “Quando em casa me batiam,/ Contava-te o meu penar;/ Tu calado me escutavas,/ Pois não podias falar”. Perceba que o ca- jueiro é o irmão e o amigo: “Que de ti seria, irmão?” Isso também dá um tom de proxi- midade, de confi ança, de um tipo de acon- chego muito próprio da infância. Se no Romantismo a construção do herói era uma de suas forças, aqui, os pri- meiros sinais românticos estão na lingua- gem, no discurso, na seleção do léxico: pequenino, carregadinho, sonho, querido, vida infantil, verdes ervinhas, todo gentil, sonho infantil. Esses termos no diminuti- vo, algumas expressões gentis, delicadas, tudo isso aproxima o discurso do poema da linguagem da criança. Porém, a caracterização romântica está mais presente na partida, na dor e na sauda- de. O narrador sofre pelo cajueiro, por ele ser frágil, doente: é a sua sina ter crescido no chão agreste, sobre o qual adiante falaremos: (“Tu que foste sempre enfermo). Há um sofrimen- to sem referencial explícito: é um sentimento tipicamente romântico (não há romantismo Antropomorfi zar é atribuir, adquirir características humanas. 30 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense. Fortaleza: Publicação da Academia Cearense de Letras, 1976. AZEVEDO, Sânzio. Juvenal Galeno e a poesia do povo. Palestra pronunciada em 10.3.81, em celebração ao 50º aniversário de falecimento de Juvenal Galeno. In Revista da Academia Cearense de Letras, 1981. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo : Cultrix, 1995. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª Ed. Rio de Janeiro : Lucerna, 2001. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro. São José, 1966, p.171. CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo: Editora Ática, 1986. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 17a.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. GUTIÉRREZ, Ângela. O Guarani e a Construção do Mito do Herói. In: Rev. de letras, nº. 29. Vol. 1. jan./jul. 2009. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo : Cultrix, 1995. _______. História da literatura brasileira, V. 2, Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1985. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 8.ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992. PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. PONTARA, Marcela; ABAURRE, M. Luiza. Literatura brasileira: tempos, leitores e leituras. São Paulo: Moderna, 2006. RAYMUNDO NETTO. Cronologia comentada de Juvenal Galeno. Fortaleza: Secult, 2010. RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp, 1995, p. 365. SCHWARCZ, Lilia M. Um monarca nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro, a Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio Pedro II. In: As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 125-157. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Tradução de José Palla e Carmo. Lisboa: Publicações Europa-América, 1971. meio dela que os leitores se sensibilizam. Importante atentar também que o próprio cajueiro – o caju e/ou a castanha – é um dos principais indicadores do regionalismo, uma imagem muito presente, mesmo por aqueles que nunca provaram da fruta. Outro dado que remete para esse as- pecto particularizado do Ceará é a terra, o chão agreste, seco, sem água. Isso é muito característico de textos nordestinos. Ve- mos nos versos: “Afogado nestes matos,/ Morto à sede no verão.../ Tu que foste sem- pre enfermo/ Aqui neste ingrato chão!” O cajueiro, antromorfi zado, foi enfermo, porque é fruto deste chão. Há, aqui, um julgamento da terra: ingrata. Como ro- mântico, o narrador não poderia dar uma explicação naturalista, científi ca, ele pre- fere a explicação sentimental, que é o que lhe interessa, a da terra não reconhecer os benefícios do cajueiro, nem os cuidados de quem dele cuida, daí a ingratidão, muito própria nasnarrativas românticas. A voz do poema é a do próprio narrador: um ser que canta sua vida de amizade e de sofrimento. E um ser que trata o cajueiro como se fosse uma pessoa, daí a afeição e a identifi cação. No poema, há uma narra- tiva, há uma história, há uma sequência de ações, que, no fundo, constrói a história e a vida de um ser que muito sofreu. Ora, tudo do romântico é exagerado: no Romantismo, não há meio-termo: “Chorando beijei-te as folhas...”. Não precisamos comentar essa passagem, pois está muito clara a intenção do autor em “humanizar” o cajueiro que, pagaria assim o alto preço de sofrer. Esses parágrafos mais técnicos e analí- ticos foram aqui colocados para que você, cursista, sinta as inúmeras possibilidades de leituras, a enorme variedade de elementos e o vasto campo de pesquisa que pode ser feita na análise de um texto, além, claro, de compreender o jogo retórico e estilístico dos autores românticos, por esses dois grandes mestres do Romantismo brasileiro. sem sofrimento): “Se tu sofrias... eu, triste,/ Chorava como... ninguém!/ Cajueiro pequeni- no,/ Por mim sofrias também!”. O sofrimento é condicional, apenas uma possibilidade: se o narrador não indica a causa do sofrimento, da tristeza, ele está dizendo para o leitor que isso não tem importância: o importante é sofrer – esta é a causa romântica. Um detalhe lexical importante, nes- te momento da análise, é a dinâmica do verbo ausentar: “Mas um dia... me au- sentaram...” Tal verbo é essencialmente pronominal, reflexivo e, normalmente, transitivo indireto: alguém se ausenta por causa de algo, ou se ausenta por algo; ou se ausenta de algo: por exemplo, eu me ausentei da reunião. Juvenal Galeno torna o verbo não-re- fl exivo, embora permaneça transitivo indi- reto (“eles ausentaram a mim”). O impacto é muito maior, além de esteticamente ser muito mais rico, porque proporciona uma das mais belas imagens do poema. Usado em um sentido não comum (alguém fê-lo partir contra a vontade), ele não se ausen- tou, mas alguém o ausentou. Essa construção mostra o quanto os autores românticos também estavam aten- tos à linguagem, porque sabiam que é por CURSO literatura cearense 31 Realização Apoio Patrocínio FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional CURSO LITERATURA CEARENSE Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Carlus Campos Ilustrador Luísa Duavy Produtora ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-29-9 (Fascículo 2) Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br AUTOR Paulo de Tarso Pardal Atuou como entalhador, escultor, bancário e economista. É compositor, luthier e instrumentista (toca violão, cavaquinho e viola de 10 cordas). Ao lado da música, construiu sua carreira acadêmica. Graduou-se e concluiu o mestrado em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi professor da Universidade Vale do Acaraú (UVA), Universidade Estadual do Ceará (Uece), Faculdade Farias Brito e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem 11 livros publicados, entre ensaios, contos, poemas e partituras e 5 CDs gravados, entre canções e chorinhos. ILUSTRADOR Carlus Campos Artista gráfi co, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfi ca ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Compartilhar