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a l i t e r a t u r a 1 Literatura CearenseNotas IntrodutóriasCURSO Charles Ribeiro Pinheiro e Lílian Martins Realizaçãoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa c e a r e n s e Copyright © 2020 Fundação Demócrito Rocha FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional CURSO LITERATURA CEARENSE Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Carlus Campos Ilustrador Luísa Duavy Produtora Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949 Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019Circuito de Artes e Juventudes 2019, , Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949 C977 Curso Literatura Cearense / vários autores ; organizado por Raymundo Netto; coordenação de Lílian Martins; ilustrado por Carlus Campos - Fortaleza, CE : Fundação Demócrito Rocha, 2020. 192 p. ; 25cm x 29,5cm. - (Curso Literatura Cearense; 12v.). ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-23-7 (Fascículo 1) 1. Literatura brasileira. 2. Literatura cearense. I. Netto, Raymundo. II. Martins, Lílian. III. Campos, Carlus. IV. Título. V. Série. CDD869.31 2020-881 CDU821.134.3(813.1) lá! Seja muito bem-vindo(a) ao curso Literatura Cearense da Fundação Demócrito Ro- cha (FDR) em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC). Este curso, com 140h, que tem apoio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, é ofer- tado GRATUITAMENTE e com- pletamente na modalidade de Educação a Distância (EaD), para todos os estados do país, por meio de nosso Am- biente Virtual de Aprendizagem (AVA). Os fãs e estudiosos da nossa Literatura Brasileira terão, agora, a possibilidade de ampliar seu repertório de saberes, conhe- cendo um pouco mais sobre a literatura produzida no estado cearense, seja por autores nascidos no Ceará ou que nele dei- xaram seu maior legado literário. Além de nomes como o de José de Alencar, fi guram neste curso, outros pertencentes a escolas, academias, movimentos e agremiações literárias que conhecemos e/ou estamos familiarizados desde a escola. Porém, aqui, também evidenciamos a presença de auto- res e autoras que, por motivos outros, ain- da são pouco conhecidos do grande públi- co, a despeito de seu talento ou produção, proporcionando, assim, a alegria da desco- berta, o fomento a novos estudos e pesqui- sas, a ampliação da crítica literária de alto teor epistemológico e, quem sabe, o seu interesse leitor e/ou editorial. No curso, percorreremos 12 módulos que vão desde o século XIX à Contempo- raneidade, abrangendo ainda escritores independentes e agremiações de maior relevo em consonância com diferentes estudos nas Artes e, sobretudo, em Litera- tura Brasileira. Dessa forma, pretendemos Aprochegar-se Chegar bem perto; aproximar-se, achegar-se, abeirar-se. Epistemologia Estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científi co, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história; teoria da ciência. desenvolver subsídios teóricos para a for- mação de estudantes, professores, pes- quisadores e demais interessados acerca da Literatura Cearense, sistematizando e aprofundando esses conhecimentos em seu aspecto histórico-cultural. Parafraseando o pensamento do fi ló- sofo norte-americano Richard Rorty: “A literatura não faz progresso por tornar-se mais rigorosa, porém, por tornar-se mais criativa.” Neste sentido, este curso inova ao criar um novo compêndio de estudos para a nossa formação em Literatura Brasileira às cores de nossos “verdes mares bravios”. Nosso objetivo é ampliar, criar possibi- lidades diferentes de análise para o campo literário, propiciando instâncias signifi ca- tivasde interação mediante o uso da Lite- ratura Cearense no panorama artístico na- cional, abrindo campo para a renovação de estudos, temas, obras e autores, e pro- movendo a integração e o conhecimento desta literatura entre as demais literaturas de estados brasileiros participantes. Vamos juntos aprender para transfor- mar! Pois, como já nos ensinava Paulo Freire: “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca.” Busquemos, então, conhecer mais e aprender cada vez mais sobre este tesouro que é a literatura de um país, o nosso país, e que nos sintamos fe- lizes ao nos reconhecer parte dele através do contato com diferentes obras e autores. Quem sabe assim, aprendamos a valorizar a diversidade cultural brasileira por meio da contribuição artística e intelectual de seus escritores de todas as suas regiões. Acesse agora o nosso AVA, se inscreva e compartilhe o nosso curso. Bom aprendizado! cursos.fdr.org.br Lílian Martins COORDENADORA DE CONTEÚDO * Trecho do poema “Terra Bárbara”, publicado em livro homônimo (1965). APROCHEGUE-SE! Na minha terra, as estradas são tortuosas e tristes como o destino de seu povo errante. Jáder de Carvalho* achegar-se, abeirar-se.achegar-se, abeirar-se. Estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos dos diferentes ramos do saber científi co, ou das teorias e práticas das teorias e práticas cognitiva, ou descritas cognitiva, ou descritas paradigmas estruturais paradigmas estruturais paradigmas estruturais paradigmas estruturais paradigmas estruturais ou suas relações com a ou suas relações com a sociedade e a história; sociedade e a história; sociedade e a história; sociedade e a história; sociedade e a história; Eu sou de uma terra que o povo padece / Mas nunca esmorece, procura vencê,/ Da terra adorada, que a bela caboca/ De riso na boca zomba no sofrê./ Não nego meu sangue, não nego meu nome,/ Olho para fome e pergunto: o que há?/ Eu sou brasilêro fi o do Nordeste,/ Sou cabra da peste, sou do Ceará. [...] Patativa do Assaré em Cante lá que eu canto cá. poema “Sou cabra da pes- te”, do qual destacamos um trecho acima, é um dos mais conhecidos de auto- ria de Patativa do Assaré. Publicado no livro Cante lá que eu canto cá, o poema expressa a condição so- frida do homem cearense que, apesar das difi cul- dades do meio em que vive, não esmorece e tem resiliência para vencer. Ele é defi nido como “cabra da peste”, expressão nordesti- na que designa homem valente, corajoso e batalhador. Desta forma, o poeta situa sua condição expressando-a de modo múltiplo. Ele se identifi ca como o sujeito do tipo cabra da peste, o cearense, nordestino e brasileiro. SABATINA Patativa do Assaré (1909-2002) foi um poeta e repentista brasileiro, considerado um dos principais representantes da arte popular nordestina do século XX. O seu poema “Triste partida”, em 1964, foi musicado e gravado por Luiz Gonzaga (1912-1989), o que lhe rendeu projeção nacional. Seus versos, traduzidos em vários idiomas, são temas de estudos em diversas universidades pelo mundo, a exemplo da Universidade de Sorbonne, na França, em sua disciplina “Literatura popular universal”. Estudaremos mais sobre ele adiante. Por ora, aproveite para assistir o poeta declamando “Sou cabra da peste” no link a seguir, do canal do Museu de Arte Kariri: https://www.youtube.com/ watch?v=FNZTn6w8cXQ 1. O PIONEIRISMO ARTÍSTICO- CULTURAL CEARENSE SABATINA (1909-2002) foi um poeta e repentista brasileiro, considerado um dos principais representantes da arte popular nordestina do século XX. O seu poema “Triste partida”, em 1964, foi musicado e gravado por Luiz Gonzaga (1912-1989), o que lhe rendeu projeção nacional. Seus versos, traduzidos em vários idiomas, são temas de estudos em diversas universidades pelo mundo, a exemplo da Universidade de Sorbonne, na França, em sua disciplina “Literatura popular universal”. Estudaremos mais sobre ele adiante. Por ora, aproveite para assistir o poeta declamando “Sou cabra da peste” no link a seguir, do canal do Museu de Arte Kariri: https://www.youtube.com/ watch?v=FNZTn6w8cXQ O PIONEIRISMO ARTÍSTICO- 4 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE CONFEITOSEm outros trechos, Patativa descreve vá-rias imagens do Ceará, considerando, desta vez, não apenas a sua condição de um se- quioso topônimo, mas como terra fértil do vaqueiro e do jangadeiro, e, o mais interes- sante, uma terra de escritores, pois cita o poeta Juvenal Galeno e o romancista José de Alencar. Logo, percebemos que o poeta tem consciência do lugar a que pertence e da tradição literária que veio antes dele. Esse conhecimento literário, também o im- pulsiona na criação da sua própria poesia de expressão matuta, gênero da poesia po- pular, cearense e brasileira. Mas, com isso, você deve estar se perguntando: de onde vem essa tradição literária cearense? Desde o início do século XIX, o Ceará tem-se mostrado pleno de atividades lite- rárias. Berço de José de Alencar (1829- 1877), romancista mais representativo do Romantismo brasileiro e o responsável pelo projeto de identidade nacional da Li- teratura Brasileira. No início da década de 1870, fomos um dos estados pioneiros na divulgação da fi lo- sofi a positivista no Brasil, por meio da Acade- mia Francesa (1873-1875). O primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão, em 1884. So- mos também pioneiros na divulgação da es- tética simbolista por meio da irreverente Pa- daria Espiritual (1892-1898). Antecedemos, em dois anos, a criação de uma Academia de Letras no Brasil, com a Academia Cea- rense, em 1894. Veio de uma cearense, Emília Freitas, em 1899, a primeira publicação de um romance de fantasia científi ca, ou, como pre- ferem afi rmar pesquisadores a exemplo de Constância Lima Duarte, o primeiro roman- ce fantástico brasileiro, A rainha do ignoto. E foi também uma cearense, Rachel de Quei- roz, em 1977, a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras e a primeira a mulher a receber o Prêmio Camões, o maior da Língua Portuguesa, em 1993. Embora esses diferentes marcos históri- cos demonstrem o pioneirismo artístico-cul- Tradição É oriundo do termo latino traditio/ onis, “ato de entregar”, um derivado do verbo tradere, “entregar, passar adiante”. A palavra signifi ca “passar algo a alguém”, como costumes, cerimônias, hábitos, características de um grupo. No sentido antropológico, é herança cultural, mas também o reaprendizado das relações de vivências profundas entre os homens e o seu meio, permitindo, portanto, a consciência do pertencimento. tural cearense, a literatura produzida nestas plagas ainda margeia o espaço do campo do poder destinado à Literatura Brasileira. Uma das respostas para se entender este fe- nômeno pode estar na própria concepção e formação do Estado brasileiro, que, desde o início de seu Período Colonial, demonstrou ser um país continental, com múltiplas cul- turas e expressões. A difi culdade de acesso dos grandes centros urbanos e políticos na- cionais, concentrados majoritariamente nas regiões sul e sudeste do país, a essas diferen- tes culturas e expressões oriundas de regiões menos prestigiadas socioeconomicamente, e vice-versa, além de, mais tardiamente e especialmente no século XIX, a própria di- nâmica editorial no Brasil, também em efer- vescência nesses eixos no referido período, podem nos fornecer pistas que nos condu- zam a pontos de refl exão sobre o país e a sua histórica política cultural. Daí podemos nos Neste curso, pretendemos dar voz aos pesquisadores e críticos de literatura, lançando nesse espaço de construção de conhecimento os seus conflitos teóricos e/ou conceituais, cabendo as cursistas pesquisá-los, estudá-los, compará-los, ler a obra em questão, claro, e tirar as suas próprias conclusões. Por exemplo, enquanto alguns estudiosos como Constância LimaDuarte e Otacílio Colares concordam ser A rainha do ignoto – que em sua primeira edição trazia o subtítulo “romance psicológico – o primeiro romance fantástico brasileiro, Sânzio de Azevedo e Almeida Fischer defendem que o romance romântico é, à luz de Todorov, maravilhoso e não fantástico. Campo do Poder Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1996), “o campo do poder é o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural, especialmente)”. Portanto, no campo do poder existem sujeitos pertencentes às classes dominantes, pessoas reais possuidoras de capital econômico, detentoras de poder material, que interferem na sociedade em prol de seus interesses. rias imagens do Ceará, considerando, desta vez, não apenas a sua condição de um se- quioso topônimo, mas como terra fértil do vaqueiro e do jangadeiro, e, o mais interes- sante, uma terra de escritores, pois cita o poeta Juvenal Galeno e o romancista José de Alencar. Logo, percebemos que o poeta tem consciência do lugar a que pertence e da Esse conhecimento literário, também o im- pulsiona na criação da sua própria poesia de expressão matuta, gênero da poesia po- pular, cearense e brasileira. Mas, com isso, você deve estar se perguntando: vem essa tradição literária cearense? tem-se mostrado pleno de atividades lite- rárias. Berço de 1877), romancista mais representativo do Romantismo brasileiro e o responsável pelo projeto de identidade nacional da Li- teratura Brasileira. dos estados pioneiros na divulgação da fi lo- sofi a positivista no Brasil, por meio da mia Francesa brasileiro a abolir a escravidão, em 1884. So- mos também pioneiros na divulgação da es- tética simbolista por meio da irreverente daria Espiritual em dois anos, a criação de uma de Letras no Brasil rense, em 1894. Veio de uma cearense, Emília Freitas, em 1899, a primeira publicação de um romance de fantasia científi ca, ou, como pre- ferem afi rmar pesquisadores a exemplo de Constância Lima Duarte, o ce fantástico brasileiro E foi também uma cearense, Rachel de Quei- roz, em 1977, a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras e a primeira a mulher a receber o da Língua Portuguesa, em 1993. cos demonstrem o pioneirismo artístico-cul- Tradição É oriundo do termo latino traditio/ onis, “ato de entregar”, um derivado do verbo tradere, “entregar, passar adiante”. A palavra signifi ca “passar algo a alguém”, como costumes, cerimônias, hábitos, características de um grupo. No sentido antropológico, é herança cultural, mas também o reaprendizado das relações de vivências profundas entre os homens e o seu meio, permitindo, portanto, a consciência do pertencimento. CURSO literatura cearense 5 questionar: culturalmente, é possível crer em uma unidade nacional? Para uma maior re- fl exão, precisamos nos debruçar na História. Em, 1926, Gilberto Freyre lançou o seu Manifesto Regionalista, em que desenvolve basicamente dois temas interligados: (1) a defesa da região enquanto unidade de or- ganização nacional e (2) a conservação dos valores regionais e tradicionais do Brasil, em geral, e do Nordeste, em particular. O que Freyre afi rma é que o único modo de ser nacional no Brasil é ser primeiro regional. Qual seria, então, o nosso propósito: procurar entender a di- versidade brasileira ou defender uma ho- mogeneidade talvez idealizada? E se levarmos essa questão para o cam- po dos estudos literários, será que estamos dispostos a trazer as “literaturas periféricas” para o centro do cânone literário nacional, ocupando, assim, o espaço invisibilizado a elas durante um século e meio em seus manuais didáticos e pela própria crítica tida como especializada? Afi nal, como diz Wilson Martins, a história literária “é feita de exclu- sões e se defi ne tanto pelo que recusa e igno- ra, quanto pelo que aceita e consagra.” Cla- ro que estas perguntas e esse debate ainda estão longe de alcançar um consenso, mas esperamos provocar em você, cursista, inte- resse em repensar o lugar da literatura pro- duzida na cidade/estado em que mora, e o espaço que dizem a ela pertencer ou não nos estudos da denominada Literatura Brasileira. Iremos refl etir sobre esses questiona- mentos ao longo deste módulo que obje- tiva servir também de introdução aos pro- blemas relacionados ao estudo da própria produção literária no Ceará. Trabalharemos com uma abordagem his- toriográfi ca, discutindo a origem da Literatura Cearense apontada por diferentes historiado- res que tratam do tema e a sua contribuição para a constituição da Literatura Brasileira, além do debate das relações entre o Ceará e os demais centros culturais do país, levando em conta as categorias regional e nacional. Cânone Literário É um conjunto e seleção de obras que permanecem com o tempo e se destinam ao estudo por sua suposta qualidade estética superior. Essa seleção, enquanto favorece a algumas obras, invisibiliza muitas outras, a partir de critérios considerados por vezes controversos, questionados por sua ligação com o poder representado por uma classe dominante. PASSANDO A LIMPO O escritor Pedro Nava, no livro Baú de ossos (1972), ao falar do grêmio Padaria Espiritual, do qual seu pai foi membro, o associou ao movimento modernista de 1922, por conta de dois itens do Programa de Instalação – uma espécie de estatuto – que enaltecia o emprego da fl ora, da fauna e da cultura brasileira em detrimento de elementos estrangeiros que povoavam com frequência a literatura da época (1892). Por conta disso, até hoje, muita gente erroneamente cita a Padaria Espiritual como precursora do Modernismo brasileiro. Sânzio de Azevedo, no opúsculo Padaria Espiritual, em 1970, ou seja, dois anos antes de Pedro Nava, já indicava essa característica no Programa de Instalação. Entretanto, afi rmava que esses itens apenas antecedem ao Modernismo por remeter a ideais nacionalistas posteriormente defendidos por seus integrantes. Entretanto, os ditos “padeiros”, em suas produções literárias, em nada tinham de modernistas. Eram essencialmente parnasianos, simbolistas, naturalistas e realistas. Inclusive, essa defesa bem- humorada de elementos nacionais pela Padaria remete mais ao projeto romântico do que ao modernista. A Padaria tem o mérito de, por meio de Phantos (1893), de Lopes Filho, ser uma das precursoras da estética simbolista no Brasil, publicado um mês antes de Broquéis de Cruz e Souza. Aprenderemos mais sobre a Padaria Espiritual e o Simbolismo no módulo 6 deste curso, de autoria de Sânzio de Azevedo. Aguarde! 6 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE MALACA CHETAS Quem primeiro escreveu sobre os Oiteiros foi o pesquisador Dolor Barreira. Toda a documentação que tinha em mãos lhe chegou por meio do historiador Raimundo Girão, que salvou esses registros após a casa do barão de Studart ter sido invadida pelas águas das chuvas que inundaram muitos de seus arquivos depois de sua morte. O barão colecionava esses originais recebidos do duque de Palmela, fi lho do governador Sampaio. Muito se perdeu, escreveu Girão para a Revista do Instituto do Ceará. 2. REGISTROS DA PRODUÇÃO LITERÁRIA NO CEARÁ esde os Oiteiros (1813) até hoje, são diversas as gera- ções de escritores e intelec- tuais cearenses que se or- ganizaram em grupos, cujos integrantes, na maioria, sen- tiam-se incomodados com o cenário que denominavam de “marasmo cultural”. Daí o desejo de inspirar o senso crí- tico e estético entre a população por meio de diversas ações e até a publicação de re- vistas, jornais, antologias etc. Mozart Soriano Aderaldo nos diz que “a colonização de nossa capitania, depois pro- víncia e hoje estado, foi tardia e descontínua. A tentativa de Pero Coelho de Sousa (1603-1606) fracassou anteo primeiro fl agelo de natureza climática que o homem branco europeu teve de enfrentar no Ceará” (apud MARTINS, 1984). Além da exploração portuguesa, em 1649, o ter- ritório cearense foi ocupado pelos holandeses, tendo à frente Matias Beck. Essa ocupação du- rou até 1654, quando os portugueses expulsa- ram os holandeses. Durante o resto do período colonial, não houve acontecimentos culturais que transformassem o status quo da província. Temos os primeiros registros literários es- critos quando o português Manuel Inácio de Sampaio (1778-1856) veio assumir o gover- no-geral da capitania do Ceará. Entusiasta das letras, ele organizava, por volta de 1813, algumas tertúlias no seu palácio. Nessas reuniões, denominadas depois de Oiteiros, participavam alguns homens letrados, da época, que recitavam vários tipos de gêne- ros poéticos, principalmente os sonetos. Membros dos Oiteiros eram José Pache- co Espinosa (? -1814), Antônio de Castro e Silva (1787-1862), Pedro José da Costa Bar- ros (1779-1839), padre Lino José Gonçalves de Oliveira (?) e Manuel Correia Leal (?). A poesia e odes produzidas por este grupo de feição neoclássica era povoada por elo- gios ao governador Sampaio e celebrava os feitos de sua administração pública. Pode- mos observar esse tom elogioso no soneto abaixo, intitulado “Para o chafariz da vila da Fortaleza”, de Pacheco Espinosa. Tertúlia A palavra vem do castelhano “tertúlia” e signifi ca reunião familiar ou entre amigos, que se reúnem frequentemente para discutir temas e assuntos literários ou musicais. CURSO literatura cearense 7 Esta que, vês, curioso passageiro Límpida Fonte, clara, sussurrante, De cristalinas águas abundante, Que o Sítio faz ameno, e lisonjeiro: Este manancial de água, o primeiro, Que fez surgir na Vila arte prestante, Para a sede saciar o caminhante, O sábio, o nobre, o rico, o jornaleiro: Edifi cada foi incontinenti, No memorável, ótimo Governo, De Sampaio, Varão reto, ciente. Como ao Povo mostrou amor Paterno, Para todo o seu bem foi diligente, Nesta Fonte deixou seu nome eterno. (apud Azevedo, 1976, p. 20-21). Este soneto nos parece ser um tipo de produção mais alinhada aos interesses po- líticos de agradar o governador do que de elaborar uma literatura ousada ou criativa, com objetivos estéticos bem delineados. O mérito dos Oiteiros é, contudo, históri- co, pois essas reuniões palacianas, mesmo com feição supostamente aristocrática, de- senvolveram um tipo de sociabilidade lite- rária, ensaiando os primeiros passos para uma literatura no Ceará. Para Artur Eduardo Benevides (1976), os Oiteiros eram “uma espécie de justa ou prélio intelectual, de origem portuguesa, realizando-se nos fi ns das festas de cará- ter religioso ou profano, após solenidades maiores. Eles assinalam, no Ceará, a aber- tura da vida intelectual e artística”. SABATINA É do aracatiense Pedro José da Costa Barros (1779-1839) a legenda escrita em latim na placa de pedra lioz portuguesa fi xada na muralha do Forte Nossa Senhora da Assunção (de frente para a av. Leste-Oeste) quando de sua inauguração. Diz: “Ano de 1817. As naus escarneciam de mim quando eu era um monte informe; agora que sou uma grande fortaleza, de longe tomam-se de respeito. Aqui, reinando D. João VI, Sampaio me fundou bela: o engenho de [Silva] Paulet resplandece. Os donativos dos cidadãos me tornaram forte pelas muralhas, e dos dispêndios reais me fazem forte pelas armas. Costa Barros fez.” Este soneto nos parece ser um tipo de produção mais alinhada aos interesses po- líticos de agradar o governador do que de elaborar uma literatura ousada ou criativa, com objetivos estéticos bem delineados. O mérito dos Oiteiros é, contudo, históri- co, pois essas reuniões palacianas, mesmo com feição supostamente aristocrática, de- senvolveram um tipo de sociabilidade lite- rária, ensaiando os primeiros passos para uma literatura no Ceará. Para Artur Eduardo Benevides (1976), os Oiteiros eram “uma espécie de justa ou prélio intelectual, de origem portuguesa, realizando-se nos fi ns das festas de cará- ter religioso ou profano, após solenidades maiores. Eles assinalam, no Ceará, a aber- tura da vida intelectual e artística”. engenho de [Silva] Paulet resplandece. Os donativos dos cidadãos me tornaram forte pelas muralhas, e dos dispêndios reais me fazem forte pelas armas. Costa Barros fez.” Sânzio de Azevedo (1976) ainda com- plementa: Sua poesia não se afastava dos louvores aos heróis e aos governantes, com o que seguiam um dos postulados neoclássicos de Luís Antônio Verney, teórico da corren- te em Portugal; mas, ainda impregnados de racionalismo barroco, os poetas dos Oiteiros não se entregaram aos temas pastoris, a fi m de embelezar a realidade. Daí, sua produção versifi cada, que não se eleva pela grandeza do estro, não poder ser considerada puramente arcádica ou neoclássica. (1976, p. 19). Apesar de ser ainda os Oiteiros o registro mais antigo de expressão literária no Ceará, ele não é uma unanimidade quando o as- sunto se trata do marco inicial da Literatura Cearense. A partir do fi nal do século XIX, há um esforço por parte de diferentes intelec- tuais em sistematizar um estudo acerca da produção literária cearense. 8 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Contribuíram para essa construção his- toriográfi ca e literária: Antônio Sales (1868- 1840), Dolor Barreira (1893-1967), Abelardo F. Montenegro (1912-2010), Artur Eduardo Benevides (1923-2014), Braga Montenegro (1907-1979), Otacílio Colares (1918-1988), Sânzio de Azevedo (1938), Mário Linhares (1889-1965), Edigar de Alencar (1901-1993), José Ramos Tinhorão (1928), Nilto Maciel (1945-2014), entre outros. Antônio Sales foi o primeiro autor a formalizar uma historiografi a da Lite- ratura Cearense, publicando, em 1897, o artigo “Pelo Ceará intelectual”, na Revista Brasileira, de José Veríssimo. Nela, associa a literatura às atividades jornalísticas, si- tuando o início da literatura no Ceará, em 1824, coincidindo com o aparecimento do primeiro jornal cearense, O Diário do Gover- no do Ceará, tendo como principal redator o padre Mororó. Tanto Sales, quanto Má- MALACA CHETAS Você deve ter achado estranho os pontos de interrogação nas datas de nascimento de alguns dos nossos personagens, não? Mas, calma, antes de pensar que isso foi um erro de edição, saiba que na verdade esses sinais representam a falta de registro biográfi co mais completo de cada um deles, a partir da investigação do pesquisador Dolor Barreira. O que nos mostra que, mesmo sabendo tão pouco sobre cada um deles, ainda assim eles foram imortalizados na historiografi a literária, além de emprestarem seus nomes a logradouros da cidade, como as ruas Costa Barros e Castro e Silva. rio Linhares, em História Literária do Ceará (1948), concordam que o marco literário cearense foi a publicação de Prelúdios Poé- ticos (1856), de Juvenal Galeno, do qual fala- remos no segundo módulo de nosso curso. Entretanto, para Tristão de Ataíde, o marco teria sido dois anos mais tarde, em 1859, quando da chegada, no Ceará, da Co- missão Científi ca Exploradora, da qual fazia parte o poeta Gonçalves Dias. Não obstan- te, o poeta Cruz Filho, ao escrever a obra História do Ceará (1931), fi xa o ano de 1872, data do início das atividades da Academia Francesa do Ceará, agremiação que divul- gou e defendeu as ideias positivistas no es- tado, como marco do princípio de nossa li- teratura – embora a agremiação fosse mais fi losófi ca do que literária. Se tomarmos por critério as evidências materiais, de registros históricos, levando em conta o critério da produção escrita, concordamos com Dolor Barreira e Sânzio de Azevedo, que defendem os Oiteiros como sendo as primeiras manifestações da li- teratura no Ceará, pois não há registros anteriores a elas. Em seu livro Literatura Cea- rense (1976), Sânzio de Azevedo traz à tona, além das discussõesde Antônio Sales, Mário Linhares e Dolor Barreira acerca das origens da Literatura Cearense, também aquelas sobre os critérios historiográfi cos que defi ni- riam o autor cearense para além do requi- sito “natalidade”. De acordo com Sânzio: a literatura às atividades jornalísticas, si- tuando o início da literatura no Ceará, em 1824, coincidindo com o aparecimento do primeiro jornal cearense, O Diário do Gover- no do Ceará, tendo como principal redator o padre Mororó. Tanto Sales, quanto Má- sobre cada um deles, ainda assim eles foram imortalizados na historiografi a literária, além de emprestarem seus nomes a logradouros da cidade, como as ruas Costa Barros e Castro e Silva. tado, como marco do princípio de nossa li- teratura – embora a agremiação fosse mais fi losófi ca do que literária. Se tomarmos por critério as evidências materiais, de registros históricos, levando em conta o critério da produção escrita, concordamos com Dolor Barreira e Sânzio de Azevedo, que defendem os Oiteiros como sendo as primeiras manifestações da li- teratura no Ceará anteriores a elas. Em seu livro rense (1976), Sânzio de Azevedo traz à tona, além das discussões de Antônio Sales, Mário Linhares e Dolor Barreira acerca das origens da Literatura Cearense, também aquelas sobre os critérios historiográfi cos que defi ni- riam o autor cearense sito “natalidade”. De acordo com Sânzio: CURSO literatura cearense 9 discordamos do sistema adotado pelo emi- nente historiador Guilherme Studart (barão de Studart), em seu Dicionário Biobiblio- gráfi co Cearense, em que só são incluídas pessoas nascidas no Ceará, não obstante algumas haverem deixado muito cedo a terra do berço. Assim, deixa de fi gurar um Rodolfo Teófi lo, por haver nascido aciden- talmente na Bahia, fi gurando, porém, um Oscar Lopes, do qual se pode dizer que so- mente nasceu aqui...” (1976, p. 15). Como vimos, Sânzio de Azevedo defen- de a inclusão, por exemplo, do nome de Ro- dolfo Teófi lo (1863-1932), entre os autores cearenses, cujo nome não foi citado no refe- rido Dicionário... do Barão de Studart, por- que apesar de ter nascido na Bahia, o au- tor de A Fome fez categoricamente a maior e melhor defesa de sua “cearensidade” ao afi rmar: “sou cearense porque quero!”, além de ter construído toda a sua obra literária, historiográfi ca e científi ca no Ceará, a partir do homem e da paisagem cearense. Como o livro de Sânzio pretendia ser um manual didático-historiográfi co para os estudos de Literatura Cearense, posterior- mente adotado como obra de referência para a disciplina homônima no curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, os critérios de inclusão de autores se deram no âmbito temático e regionalista. Assim como Dolor Barreira, em Literatura Cearense, Sânzio inclui: (1) autores nascidos aqui e que aqui produziram literariamente, como Juvenal Galeno, Oliveira Paiva, Fil- gueiras Lima e inúmeros outros; (2) auto- res nascidos em outros estados, mas que produziram literariamente entre nós, como Rodolfo Teófi lo [Bahia], Pápi Júnior [Rio de Janeiro], Alf. Castro [Pernambuco] ou De- mócrito Rocha [Bahia]; (3) autores que se ausentaram, mas ainda assim escreveram SABATINA Para o fi lósofo Zygmunt Bauman (2005), a ideia de pertencer a uma nação ou comunidade apenas por nascimento é uma convenção intensamente construída pela humanidade. O pertencimento ou a identidade, na modernidade, não são defi nitivos nem tão sólidos assim, mas negociáveis e revogáveis; tudo depende das decisões que o indivíduo toma, do caminho que percorre e da maneira como age. obras cearenses, como Domingos Olímpio, Gustavo Barroso, e outros (1976, p. 15). Outro ponto interessante neste critério de Sânzio de Azevedo é a inclusão de José de Alencar (1829-1877) apenas com a obra Ira- cema e O sertanejo. O pesquisador considera Alencar um autor mais integrado ao cânone da Literatura Brasileira, visto que seu projeto de romance romântico previa abordar vários personagens e paisagens da cultura brasilei- ra, não se detendo ao cenário cearense. Há na obra também outro ponto de discordância, desta vez, acerca do escritor Franklin Távora (1842-1888). Para Azevedo, mesmo tendo o autor nascido em Baturi- té, interior cearense, Franklin Távora ainda criança foi morar em Pernambuco, onde se formou e produziu boa parte de sua obra li- terária. Seu projeto bibliográfi co era construir uma Literatura do Norte – como se intitulava o Nordeste à época –, e, assim, publicou O Cabeleira (1876), O matuto (1878) e Lourenço (1878), narrativas que evidenciavam a história 10 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE de Pernambuco como uma representa- ção cultural dessa região e, portanto, não deveria ser ele considerado um escritor cearense. Entretanto, Dolor Barreira e, pos- teriormente, Artur Eduardo Benevi- des, em Evolução da poesia e do roman- ce cearense (1976), adotaram apenas o critério de nascimento em suas pesquisas e, dessa forma, situam o romance Os índios do Jaguaribe (1862), de Franklin Távora, como o primeiro romance cearense, o que Sân- zio de Azevedo (1976) discorda, ao afi rmar que mesmo sendo “uma glória para o Ceará [...] o escritor nada produziu que se relacio- ne ao menos com a terra natal” (idem, p. 16). Apesar das discordâncias históricas, há um ponto em comum entre esses historia- dores e pesquisadores ao tentar estabelecer um início para a Literatura Cearense, que são os critérios historiográfi cos aqui abor- dados. Esses critérios repousam na ideia de representatividade, identidade, regionali- dade e, nos dias atuais, também o de per- tencimento. Ou seja, não se trata de aspec- tos valorativos entre escritores e/ou obras, tampouco, de regiões. Cada crítico e/ou pesquisador literário, à sua maneira, faz sua seleção e estabelece critérios para abordar a literatura. Cabe a nós tentar ao máximo ler e ter contato com o maior número diferente de obras literárias, críticas e historiográfi cas, observando suas divergências e confl uên- cias. Desse mosaico, construiremos nossas próprias fundamentações teóricas, defi nin- do as nossas escolhas sempre a partir de pesquisa, estudo e refl exão crítica. Afi nal, a literatura, assim, como as demais linguagens artísticas, é também balizada pela pesquisa científi ca que nos exige dedi- cação, comprometimento e muitas leituras. de Pernambuco como uma representa- ção cultural dessa região e, portanto, não deveria ser ele considerado um Entretanto, Dolor Barreira e, pos- teriormente, Artur Eduardo Benevi- Evolução da poesia e do roman- (1976), adotaram apenas o critério de nascimento em suas pesquisas e, Os índios do (1862), de Franklin Távora, como , o que Sân- zio de Azevedo (1976) discorda, ao afi rmar que mesmo sendo “uma glória para o Ceará [...] o escritor nada produziu que se relacio- idem, p. 16). Apesar das discordâncias históricas, há um ponto em comum entre esses historia- dores e pesquisadores ao tentar estabelecer um início para a Literatura Cearense, que são os critérios historiográfi cos aqui abor- dados. Esses critérios repousam na ideia de representatividade, identidade, regionali- dade e, nos dias atuais, também o de per- . Ou seja, não se trata de aspec- tos valorativos entre escritores e/ou obras, tampouco, de regiões. Cada crítico e/ou pesquisador literário, à sua maneira, faz sua seleção e estabelece critérios para abordar a literatura. Cabe a nós tentar ao máximo ler e ter contato com o maior número diferente de obras literárias, críticas e historiográfi cas, observando suas divergências e confl uên- cias. Desse mosaico, construiremos nossas próprias fundamentações teóricas, defi nin- do as nossas escolhas sempre a partir de Afi nal, a literatura, assim, como as demais linguagens artísticas, é também balizada pela pesquisa científi ca que nos exige dedi- cação, comprometimento e muitas leituras. CURSO literatura cearense 11 3. INTERSEÇÕESLITERÁRIAS: CEARÁ E BRASIL Amanhã se der o carneiro, o carneiro/ vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro/ As coisas vêm de lá,/ eu mesmo vou buscar/ e vou voltar em videotapes e revistas supercoloridas/ pra menina meio distraída repetir a minha voz/ Que Deus salve todos nós/ e Deus guarde todos nós... Ednardo e Augusto Pontes canção “Carneiro”, de Ed- nardo e Augusto Pontes, nos fala do tema da mi- gração e do fascínio que a metrópole urbana, o Rio de Janeiro, exercia nos jovens artistas cearenses na déca- da de 1970. Estes artistas mantinham o desejo de se fi rmar no mercado fono- gráfi co que, invariavelmente, dependia do acesso ao grande “centro” econômico e cul- tural do país que estava não no Ceará, mas na cidade carioca, ao menos naquela épo- ca. Hoje, com o advento da globalização e a democratização ao acesso pelas plata- formas virtuais de streaming popularizadas com a internet, as redes sociais e as novas tecnologias de informação e comunicação, algumas culturas estão mudando. 3. INTERSEÇÕES LITERÁRIAS: CEARÁ E BRASIL Amanhã se der o carneiro, o carneiro/ vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro/ As coisas vêm de lá,/ eu mesmo vou buscar/ e vou voltar em videotapes e revistas pra menina meio distraída repetir a minha voz/ Que Deus salve todos nós/ e Deus guarde todos Ednardo e Augusto Pontes canção “Carneiro”, de Ed- nardo e Augusto Pontes, nos fala do tema da mi- gração e do fascínio que a metrópole urbana, o Rio de Janeiro, exercia nos jovens artistas cearenses na déca- da de 1970. Estes artistas mantinham o desejo de se fi rmar no mercado fono- gráfi co que, invariavelmente, dependia do acesso ao grande “centro” econômico e cul- tural do país que estava não no Ceará, mas na cidade carioca, ao menos naquela épo- ca. Hoje, com o advento da globalização e a democratização ao acesso pelas plata- formas virtuais de streaming popularizadas com a internet, as redes sociais e as novas tecnologias de informação e comunicação, algumas culturas estão mudando. 12 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHASEm outras palavras, viver da própria arte era o grande sonho desses artistas, assim como fazer sucesso, alcançar o grande pú- blico, aparecer nas revistas e tocar nas gran- des rádios. Em outras palavras, saltar do plano local/regional para o nacional. Ao compararmos a situação do eu-lírico da letra da música com a situação do artis- ta local, percebemos que não existem dife- renças entre as difi culdades na produção e na divulgação das realizações artísticas, no país, sejam elas musicais, literárias, teatrais etc. Para essa discussão, uma contribuição importante é a de Antônio Candido em For- mação da Literatura Brasileira (1959), na qual interpreta a literatura como um sistema lite- rário, um fenômeno complexo e orgânico, or- ganizado em torno do triângulo “autor-obra- -público”. Essa interação dinâmica permite a continuidade da tradição. Resumindo: para que haja literatura, é preciso haver o conjun- to integrado: escritores, obras e leitores. O conjunto desses três elementos dá lugar a um tipo de comunicação em que a literatura aparece como um sistema simbó- lico, pelo qual os homens expressam e in- terpretam diferentes esferas da realidade e profundos dramas da humanidade. Quando um escritor toma consciência que integra um sistema literário, ou seja, faz parte de uma complexa cadeia na qual há circula- ção de obras de escritores de tempos remo- tos ou mais recentes, ocorre “a transmissão da tocha” (1981, p. 24). Essa metáfora é utilizada por Cândido para indicar que a literatura, por meio da leitura, ocasiona a existência de no- vos autores e constrói uma continuidade li- terária. Antônio Cândido nos explica que: É uma tradição [...] isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de ele- mentos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao com- portamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenô- meno de civilização (1981, p. 24). A canção “Carneiro” foi composta pelo músico Ednardo e o poeta Augusto Pontes no bar do Anísio, famoso espaço da boêmia cearense na avenida Beira-Mar, em Fortaleza, na década de 1970. A música figurou no LP O romance do pavão mysteriozo, lançado pela RCA Victor, em 1974. O sucesso do álbum projetou Ednardo nacionalmente, tendo suas canções veiculadas em novelas da Rede Globo de Televisão. Assista ao clipe da música “Carneiro” no link: https://www.youtube.com/ watch?v=-e58na36-ps A literatura é esse movimento: ocorre quando há o ato da leitura. Por isso é tão importante ampliar os espaços de leitura, seja onde for, e democratizar o acesso às obras literárias. Não podemos nos restringir aos espaços das escolas, bibliotecas ofi ciais ou agremiações e academias. As bibliotecas comunitárias e os clubes de leitura vêm nos provando que é possível levar o livro, a leitu- ra e a literatura a qualquer lugar. É necessário refl etir também que se eu não conheço uma obra ou um acervo lite- rário, eu não os valorizo. Da mesma forma, se eu desconheço as obras de autores e au- toras de meu estado ou região, detendo-me apenas ao que a mídia ou as grandes editoras nos oferecem como best-sellers, perdemos a oportunidade de conhecer esse legado lite- rário, de nos reconhecer ou de compreender- mos o sentido de identidade que povoa essas obras que falam de nós. Da mesma forma, as universidades devem provocar e estimular essa busca, promover esse encontro com a literatura produzida em seu estado. Por isso, entendemos a tradição literá- ria de modo crítico e não enxergamos os escritores passivos diantes dos autores do passado. A tradição torna social a ex- periência individual, tendo o poeta como mediador, que interliga o passado e o pre- sente por meio da linguagem literária. Por- tanto, ao se contemplar o estudo da Lite- ratura Cearense, estamos empreendendo um esforço para entendermos as heranças culturais transmitidas pelas distintas gera- ções de escritores, cuja produção constitui um capital cultural da região. Nessa relação entre o regional e o nacio- nal, Alfredo Bosi nos alerta que o Brasil deve ser entendido como uma cultura plural: Estamos acostumados a falar em cultu- ra brasileira, assim, no singular, como se existisse uma unidade prévia que agluti- nasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro. Mas é claro que uma tal unidade ou uniformidade parece não existir em sociedade moder- na alguma e, menos ainda, em uma so- ciedade de classes (1992, p. 308). Existem variadas culturas brasileiras, não apenas em relação a etnias, mas tam- bém nos níveis educacionais e sociais. E a ideia de cultura está intimamente ligada à colonização. Para Bosi, a categoria “coloni- zação” não tem apenas uma natureza polí- tica, mas é um processo ao mesmo tempo material e simbólico: as práticas econômi- cas dos seus agentes estão fortemente vin- culadas aos seus modos de representação de si e dos outros (1992, p. 15). Logo, inter- pretamos o Brasil como uma variedade de centros culturais regionais. CURSO literatura cearense 13 O pensamento de Bosi (1992) e Cândido (1981) nos auxiliam a entender que o Brasil não é nem pode ser um espaço cultural homogêneo, e essa discussão levamos à li- teratura. Desde o século XIX, os artistas e es- critores buscavam os centros econômicos e culturais do país para publicar suas obras e se tornar conhecidos perante uma elite cultural. Para essa discussão, citamos Antônio Sales que, em seu artigo sobre a literatura do Ceará, ressalta seu engajamento: Somos pela Pátria unida para que seja for- te; mas, em troca de nossa lealdade, exigi- mos que não nos tratem como um parente pobre e rústico, de quem se pode caçoar ou apenas merece um sorriso de benevolên- cia protetora. O Ceará não é apenas uma expressão geográfi ca no mapa do Brasil, um joão-ninguém na comunidadenacio- nal (apud GIRÃO, 1987). No trecho, Sales se contrapõe a um dis- curso de que há um centro hegemônico cul- tural. Portanto, é preciso estabelecer um pro- cesso dialético entre o “centro nacional” e os centros regionais. Citamos “centro nacional”, pois ainda há um discurso político e cultural que tenta legitimar e homogeneizar a Litera- tura Brasileira a partir de um cânone literário. Alguns de nossos escritores, assim como Ed- nardo e outros músicos, precisaram ir ao Su- deste na tentativa de validar e legitimar sua obra artística. Até quando essa migração será imposta ou necessária? Temos o intuito de construir uma discussão acerca da formação da Lite- ratura Brasileira, a princípio pelo estu- do da Literatura Cearense, parte indis- sociável dela, estimulando que outros estados também procurem conhecer e pesquisar a sua historiografi a e bibliogra- fi a, considerando as diferenças e singula- ridades regionais e problematizando as desigualdades políticas e econômicas que têm repercussão na divulgação e na circu- lação de suas literaturas. 14 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE O pensamento de Bosi (1992) e Cândido o Brasil não é nem pode ser um espaço cultural , e essa discussão levamos à li- teratura. Desde o século XIX, os artistas e es- critores buscavam os centros econômicos e culturais do país para publicar suas obras e se tornar conhecidos perante uma elite cultural. Para essa discussão, citamos Antônio Sales que, em seu artigo sobre a literatura Somos pela Pátria unida para que seja for- te; mas, em troca de nossa lealdade, exigi- mos que não nos tratem como um parente pobre e rústico, de quem se pode caçoar ou apenas merece um sorriso de benevolên- cia protetora. O Ceará não é apenas uma expressão geográfi ca no mapa do Brasil, um joão-ninguém na comunidade nacio- No trecho, Sales se contrapõe a um dis- curso de que há um centro hegemônico cul- tural. Portanto, é preciso estabelecer um pro- cesso dialético entre o “centro nacional” e os centros regionais. Citamos “centro nacional”, pois ainda há um discurso político e cultural que tenta legitimar e homogeneizar a Litera- tura Brasileira a partir de um cânone literário. Alguns de nossos escritores, assim como Ed- nardo e outros músicos, precisaram ir ao Su- deste na tentativa de validar e legitimar sua estados também procurem conhecer e pesquisar a sua historiografi a e bibliogra- fi a, considerando as diferenças e singula- ridades regionais e problematizando as desigualdades políticas e econômicas que têm repercussão na divulgação e na circu- FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE FAÇA ACONTECER REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976. BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. Fortaleza: Ins� tuto do Ceará, 4. vol. 1948, 1951, 1954 e 1962. BAUMAN, Z. Iden� dade: entrevista a Benede� o Vecchi. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BENEVIDES, Artur Eduardo. Evolução da poesia e do romance cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária/UFC, 1976. BOSI, Alfredo. Dialé� ca da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte, Ed. Ita� aia, 1981. v. I e II. GIRÃO, Raimundo; MARTINS FILHO, Antônio. O Ceará. Ed. Fac-símile. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2011. GIRÃO, Raimundo; Sousa Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza: Imprensa Ofi cial do Ceará – IOCE, 1987. MARTINS, Claudio (org.). A Quinzena: propriedade do Club literário. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1984. MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. 2. Ed. Fortaleza: UFC, 1994. 4. CONCLUSÃO pós essa travessia inicial pela Literatura Cearense, aprendemos que um escri- tor local não fala somente da sua terra natal, mas, ao fazê-lo, parte de suas pró- prias experiências e vivên- cias. Ao pisar em seu chão, salta para infi nitos territó- rios da linguagem, conse- guindo acessar o código linguístico que tra- ta da condição pertinente a toda e qualquer literatura: a condição humana. Fato: muitos estudiosos e leitores que transitam pela Literatura Brasileira, mesmo residentes no estado cearense, desconhecem os autores e as obras publicadas no Ceará. É por isso que é tão pertinente ampliar esses pontos de acesso, evitando uma lite- ratura exclusiva, restrita àqueles já reconhe- cidos e consagrados. Nós, enquanto leitores críticos e refl exivos, temos o poder de eleger e consagrar obras esquecidas e obscurecidas pelo tempo ou pela história ofi cial, mas que têm tanto apuro estético quanto aquelas. E não é Tzvetan Todorov que nos ensina que a literatura nos faz descobrir mundos que nos colocam em continuidade com as experi- ências das outras pessoas e nos ajudam com- preender a nossa casa e a nós mesmos? Este curso pode ser um excelente cami- nho para entendermos nossas particula- ridades culturais, e é essa diversidade que nos enriquece culturalmente. Não nos es- queçamos de Casimiro de Abreu, quando afi rma “todos cantam a sua terra, também vou cantar a minha”. Ou mesmo Tólstoi: “Fale de sua aldeia e estará falando do mun- do”. Então, que possamos juntos aprender a descobrir a beleza de nossos quintais. E, no próximo módulo, estudaremos os românticos. Prepare o coração. É provável que onde você mora – na sua rua, bairro, cidade, estado – exista um(a) escritor(a) interessante e uma obra a ser descoberta com o ato mágico da sua leitura. Que tal fazermos dessa experiência de deleite, um espaço de partilha? Crie um clube de leitura de autores da sua cidade, região ou estado, e seja também um(a) multiplicador(a) literário(a). Já pensou como será rica esta experiência? Não deixa de nos contar depois o que achou dessa atividade de imersão literária. CURSO literatura cearense 15 4. CONCLUSÃO AUTORES Charles Ribeiro Pinheiro Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará (2008), mestre em Literatura Comparada pela UFC, e doutor em Literatura Comparada, também pela UFC. Participante do grupo de pesquisa “Espaço de Leituras: cânones e bibliotecas”, foi coordenador do projeto de extensão e docência “O entre-lugar na Literatura cearense”. Atua como revisor, redator, roteirista e autor de livros didáticos de Literatura. Lílian Martins É jornalista, tradutora, professora, pesquisadora e militante em Literatura Cearense. Mestre em Literatura Comparada pela UFC, vencedora do Prêmio Bolsa de Fomento à Literatura da Fundação Biblioteca Nacional e Ministério da Cultura e do Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor). ILUSTRADOR Carlus Campos Artista gráfi co, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfi ca ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Realização Apoio Patrocínio b l i t e r a t u r a CURSO 2 Paulo de Tarso Pardal bbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbl i t e r a t u r ab Paulo de Tarso Pardal b Sob as Asas da Jandaia Romantismo PARTE I Realização c e a r e n s e 1. ALÇAR VOO: APRESENTAÇÃO Romantismo, um dos princi- pais movimentos artísticos do século XIX, teve como marco inaugural no país a publicação de Suspiros poé- ticos e saudades, de um con- troverso Gonçalves de Ma- galhães (1811-1882). Emoções à fl or da pele, coração saindo pela boca, não podemos deixar de destacar o papel essencial que os romances românticos ti- veram na construção do público leitor bra- sileiro. Ou seja, eu e você! Nem de longe pretendemos abarcar tudo ou a todos nesses módulos que vi- rão, mas esperamos despertar em cada um dos cursistas a curiosidade e o inte- resse pelo estudo, pesquisa e leitura de algumas das obras produzidas no estado do Ceará e de seus autores que este breve espaço ousa trazer à luz. Neste módulo, em primeira parte, conver- saremos sobre o Romantismo, em especial de algumas de suas manifestações no Ceará. Por ser um tema, além de saboroso, mui- to complexo e diverso, optamos pelos seguin- tes recortes temáticos: o indianismo e o re- gionalismo de José de Alencar (1829-1877) e o regionalismo de Juvenal Galeno (1836-1931). Preparem os seus lenços e que as lágri- mas adocicadas brotem de seu coração: eles chegaram! 1. ALÇAR VOO: APRESENTAÇÃO não podemos deixar de destacar o papel essencial que os romances românticos ti- veram na sileiro. Ou seja, eu e você! Nem de longe pretendemos abarcar tudo ou a todos nesses módulos que vi- rão, mas esperamos despertar em cada um dos cursistas a curiosidade e o inte- resse pelo estudo, pesquisa e leitura de algumas das obras produzidas no estado do Ceará e de seus autores que este breve espaço ousa trazer à luz. Neste módulo, em primeira parte, conver- saremos sobre o Romantismo, em especial de algumas de suas manifestações no Ceará. Por ser um tema, além de saboroso, mui- to complexo e diverso, optamos pelos seguin- tes recortes temáticos: o indianismo e o re- gionalismo de regionalismo de Preparem os seus lenços e que as lágri- mas adocicadas brotem de seu coração: eles chegaram! 18 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 2. AFINAL, O QUE É O ROMANTISMO? Talvez eu seja o último romântico Dos litorais desse Oceano Atlântico Só falta reunir A Zona Norte à Zona Sul Iluminar a vida Já que a morte cai do azul. Lulu Santos, Sérgio Cardoso e Antônio Cicero, “Tudo Azul” ocê já ouviu, muitas vezes, ao longo da sua vida, as palavras “romântico”, “ro- mance” e “romantismo”. E, com certeza, tais palavras estavam associadas à pai- xão, ao sofrimento, à fanta- sia, à irrealidade, às coisas que não existem no nosso mundo real, ou seja, coisas idealizadas. Saiba, pois, que toda a base da corrente estética, que denominamos Romantismo, predominante no Brasil por mais de 40 anos, foi exatamente esse culto àquilo que não era real. Você também deve estar se pergun- tando a razão de tudo isso: por que “aqui- lo não real” era tão sedutor aos leitores e leitoras? Imagine o porquê de escritores – e também escritoras –, convivendo em um período extremamente difícil, dada a limitação das sociedades da época, esco- lheram por escrever sobre aquilo que não fazia parte do cotidiano real delas. Espero que, ao longo da sua leitura, cursista, você encontre essa resposta. Primeiramente, entenda que o escritor romântico construía um mundo ideali- zado e fazia do seu personagem um ser fantasioso, heroico, embora o ambiente, o espaço fi ccional em que a trama aconte- cia, muitas vezes, era descrito com muito realismo. Contudo, assistir a um passeio de personagens como Peri ou Iracema, por exemplo, pelas ruas do Rio de Janeiro ou mesmo nas areias da beira-mar de Forta- leza era impossível. A fantasia entra neste ponto, já que, na composição do persona- gem romântico, a beleza sem igual ou as raras virtudes humanas, somente eles, os heróis clássicos, possuíam. No momento de construção da nar- rativa de seus personagens – por en- quanto, refiro-me apenas à ficção –, os autores queriam caracterizá-los com to- das as boas e sublimes qualidades do ser humano, para mais impressionar os lei- tores, que sentiam-se representados nas ações das personagens, identificavam-se com seus ideais, pois, afinal, muitos de nós, desde crianças, queremos ser ou nos vemos como heróis ou heroínas de qualquer coisa. Naqueles tempos, a nova classe social fantasiava-se dentro de padrões criados pelos seus autores preferidos, fosse nos livros ou nos folhetins dos jornais. A vida como aventura e a morte como possibili- dade passou a fazer parte do imaginário coletivo daquela época. O romântico, dessa maneira, passou a sentir-se um porta-voz dos ideais coletivos, porque ele tinha consciência de que o Bra- sil, por exemplo, estava mudando, social e politicamente, e essa mudança deveria nos distinguir dos demais países. É aqui que entra outro grande pilar do Romantismo e uma das suas principais ca- racterísticas: o nacionalismo. Trama/Enredo Sucessão de acontecimentos que constituem a ação de uma obra de fi cção. Narrativa Exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens. Folhetim Texto literário (crônicas, fragmentos de romances ou novelas etc.) impresso de forma seriada na parte inferior da página de um jornal/periódico (rodapé), com o objetivo de vender mais exemplares. Muitos deles se diziam dirigir-se ao sexo frágil, crendo que elas, as mulheres, seriam as maiores leitoras da literatura fi ccional – não à toa, muitos autores se dirigiam a elas em suas interlocuções –, assim como eram elas também as protagonistas de grandes clássicos da época, em especial, nos romances urbanos. Os folhetins, que tiveram origem na França, fi zeram um sucesso absurdo no Brasil e foram responsáveis pelo lançamento e êxito de muitos de nossos autores, como Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882). A moreninha foi um dos folhetins mais populares do país, antes mesmo de ser publicado em livro. CURSO literatura cearense 19 Publicada em Paris (Dauvin et Fontaine, Libraires) em 1836 e trazendo como lema “tudo pelo Brasil e para o Brasil”, a revista Nitheroy é apontada como um dos marcos da instauração do Romantismo no Brasil. Teve apenas 2 números e seus artigos não se restringiam à arte (o primeiro número traz um extenso artigo sobre cometas). Seus redatores eram: Gonçalves de Magalhães, Francisco de Sales Torres Homem, Manuel de Araújo Porto Alegre. Entre seus artigos, “Ensaio sobre a his- tória da literatura no Brasil”, assinado por Gonçalves de Magalhães. Para ler a revista Niterói na íntegra, acesse: https://digital.bbm.usp.br/handle/ bbm/6859 Alguns fatos históricos contribuíram para o surgimento desse discurso de nacionalidade: a. A transferência da corte portu- guesa para o Brasil; b. A chegada ao Brasil de algumas mis- sões estrangeiras compostas por cientistas e artistas, entre elas as de 1816 (Auguste de Saint-Hilaire e a Missão Artística Francesa) e 1817 (Friedrich von Martius e a Missão Artística Austríaca), com o intuito de conhecer o recém-criado Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar- ve (1815), e que além de divulgar os ideais liberais e nacionalistas euro- peus, vislumbravam nas exuberantes fauna e fl ora do Novo Mundo e na fi gura nativa do seu índio elementos fundantes da identidade brasileira; e c. A Proclamação da Independên- cia (1822), responsável, natural- mente, entre outros, por um grande impacto cultural. Todas essas movimentações sociais, econômicas e políticas, como é de se espe- rar e acontece no mundo inteiro, reverbe- raram no meio artístico. Na verdade, elas provocaram a criação de um imaginário e ideal de brasilidade, que impregnou o pensamento daqueles que por aqui vi- viam... e também escreviam. Na literatura, que é o que nos cabe,te- mos o ano de 1836 como marco do início do Romantismo brasileiro, quando da pu- blicação do livro Suspiros poéticos e sau- dades de Gonçalves de Magalhães no país e, na França, da Nitheroy: revista brasilien- se, que circulou por apenas dois números. Nela, Magalhães publica o “Ensaio sobre a história da literatura brasileira”, conside- rado o nosso primeiro manifesto românti- MALACA CHETAS co. Nesse ensaio, Magalhães afi rma: “Cada povo tem sua literatura, como cada ho- mem o seu caráter, cada árvore o seu fruto.” No texto, lamenta a inexistência de estudos sobre a história da literatura brasileira no pró- prio Brasil e reclama que os estudos realiza- dos em outros países nada ou pouco disses- sem sobre a nossa literatura, citando apenas – e com defasagem – o poeta árcade Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), o inconfi dente “Glauceste Satúrnio”. Também critica os poe- tas brasileiros que não aprenderam a olhar para o seu povo nem para a “Natureza virgem com tanta profusão”, limitando-se a importar temas, formas e valores portugueses. Falando em olhar para o nosso povo, re- conhecer o nosso ambiente e suas peculia- ridades, adentraremos, agora, a geração in- dianista do nosso Romantismo, lembrando, como defende Luiz Roncari, em sua Literatu- ra Brasileira: dos primeiros cronistas aos últi- mos românticos, que indianismo não signifi - ca apenas tomar como tema e assunto da literatura o indígena e seus costumes. Em outras obras anteriores também os índios apareciam, como em Caramuru, de Santa Rita Durão, e especialmente em Uraguai, de Basílio da Gama. “Tal realização implicava também e principalmente a construção de um novo ponto de vista e de uma nova visão do indígena, apreciado agora menos como uma realidade racial que como outra reali- dade ética e cultural, distinta da europeia.” É evidente que a exaltação de um “índio ideal” era uma maneira de exaltar a nossa terra e de valorizar um povo oprimido e em extinção e de enfatizar nossa independên- cia social e cultural de Portugal. Todo esse ideário – com generosa visão da pátria e do semelhante – fez com que os leitores se sentissem parte dessa história toda, daí aquela tal identifi cação com os personagens que já conversamos aqui. 20 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE O índio na literatura do século XIX está ali- cerçado na ideia de que, no Brasil, desde os primeiros momentos da colonização, sem- pre teve um lugar especial: o índio é bom por natureza – a bondade natural de que falaram os enciclopedistas. Evidentemente, o índio não era assim, “mas deveria ser”, este foi o enfoque, a fantasia da escola românti- ca. Esta é a tese, por exemplo, de Agripino Grieco (1888-1973), que diz que o índio de Alencar é uma “linda mentira”. Dessa forma, confrontar o índio literário, esse homem li- vre e incorruptível, com o índio real – ainda hoje muito desconhecido e pouco compre- endido – que vivia refugiado no interior do país não tem sentido, pois o índio literário é mais imaginação do que observação da rea- lidade. Assim, enquanto na Europa, os gran- des valores eram personifi cados por cavalei- ros medievais, no Brasil, eram nos indígenas que encontravam corpo. José de Alencar tinha plena consciên- cia disso. Em Como e porque sou romancista (1893), Alencar conta um pouco de seu pro- jeto literário. Explica como escreveu e criou suas personagens e narra sobre o fazer literá- rio do romance O Guarani, considerado pela crítica literária a expressão do nacionalis- mo romântico e a consolidação da fi gura do herói tipicamente brasileiro: “N’O Gua- rani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta gros- seira de que o envolveram os cronistas, e ar- rancando-o ao ridículo que sobre ele proje- tam os restos embrutecidos da quase extinta raça.”(ALENCAR, 1893, p. 47) Nas páginas dessa obra, percebemos o quanto Alencar era consciente da corrente estética à qual se fi liou. Pretendia ser nacionalista a partir da exaltação da natureza, da volta ao passado histórico e da criação do herói nacional na fi gura do índio. Em O Guarani a idealização do indígena reunia todas as qualidades do PASSANDO A LIMPO Embora Gonçalves de Magalhães, poeta favorito e amigo de dom Pedro II, seja fi gura imprescindível na história do Romantismo brasileiro, o seu poema épico Confederação dos tamoios (1856) foi redondamente desqualifi cado pelo jovem José de Alencar, sob pseudônimo “Ig”, ainda redator do Diário do Rio de Janeiro, tanto por motivos formais (gramática, estilo e metrifi cação), pela ausência de unidade, quanto pela falta de imaginação na descrição dos costumes indígenas, assim como da própria natureza. Também criticou a escolha do modelo épico, no qual dizia: “a forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios”. Seria incrível imaginar que o pensamento reformador tão propagado por Magalhães não atingisse a sua própria obra. A polêmica obra Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, de Alencar, publicada ainda em 1856, pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Digital do Senado Federal: https://www2.senado.leg.br/bdsf/ handle/id/242822 BOLACHINHAS Segundo José Alencar, em Como e porque sou romancista, a sua inspiração para O Guarani “caiu na imaginação da criança de nove anos, ao atravessar as matas e sertões no Norte, em jornada do Ceará à Bahia.” SABATINA Como e porque sou romancista é uma autobiografi a intelectual de Alencar. A obra representa importante testemunho para a nossa compreensão não só da personalidade do autor cearense, mas também dos alicerces de sua formação literária. O texto sob a forma de carta, foi escrito em 1873 e publicado em 1893, pela Tipografi a Leuzinger (RJ), 16 anos após a sua morte. Para lê-lo, basta acessar o material complementar disponível na sua biblioteca virtual do AVA. Lá, além desse título, existem outras obras de apoio para os seus estudos em Literatura. Aproveite! E caso queira acessá-lo da Biblioteca da Unesp: https://bibdig.biblioteca.unesp. br/bitstream/handle/10/6498/ como-e-porque-sou-romancista. pdf?sequence=2&isAllowed=y cavaleiro medieval, mas com a originalidade da ligação com a terra selvagem brasileira. Para Lilia Schwarcz, em Um monar- ca nos trópicos, o Romantismo brasileiro inseriu-se em um plano político de cunho nacionalista, e não apenas em um movi- mento estético. De perfi l eminentemente estratégico, encarregou-se de fazer as pa- zes com o indígena pelo passado de barbá- rie e intolerância, que ora comportava uma leitura honrosa. É dessa leitura que nos fala Schwarcz que iremos estudar a seguir. CURSO literatura cearense 21 3. O GUARANI: ROMANCE DE FUNDAÇÃO DO POVO BRASILEIRO Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante De uma estrela que virá numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul Na América, num claro instante Depois de exterminada a última nação indígena E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias Virá Impávido que nem Muhammad Ali Virá que eu vi Apaixonadamente como Peri Virá que eu vi. Caetano Veloso, em “Um índio” osé de Alencar é considerado um dos fundadores do romance bra- sileiro. Entre outros objetivos, ele queria representar, através da fi c- ção, toda a variedade do país, do sertão à corte, e, de certa forma, conseguiu, já que seus romances perfazem todo o caminho da di- versidade dos tipos brasileiros desde “Arnaldo”, o vaqueiro cearense (de Quixeramobim), um herói do sertão, no livro 22 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE MALACA CHETAS Outra característica da escola é a com- paração com a natureza, evocando o sím- bolo de perfeição. Vejamos na obra: “Peri, primeiro de todos, tu és belo como o sol, e fl exível como a cana selvagem...”; Outro exemplo é o fragmento: “ A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri;mil ar- cos ligeiros como o voo do gavião.” O autor romântico comparava as pro- tagonistas com a natureza para dizer da perfeição e da beleza de ambos: perso- nagens e natureza. Por essa razão a natu- reza é sempre idealizada e sempre pre- sente na fi cção romântica. O mito do “bom selvagem”, de Rosseau, que afi rma ser o homem bom por nature- za, sendo o viver em sociedade a causa da sua degradação moral, muito contribuiu para que o indianismo fosse uma tendên- cia generalizada do Romantismo. Aqui, vestido com a cor local, o índio literário do romance encarna a bondade natural que O Guarani obteve muito sucesso do público e da crítica quando lançado em 1857. Porém os leitores da época acostumados com a leitura de folhetins, surpreenderam-se com o formato livro (romance) ainda não tão bem desenvolvido no Brasil. Com esse lançamento, o novo gênero literário ganhou força e passou a ser produzido com maior frequência entre os escritores no país. Outra curiosidade dessa publicação, é que José de Alencar deixou o seu enredo ao gosto do público, alterando a história conforme a opinião que recebia constantemente dos seus leitores das páginas do Diário do Rio de Janeiro. O sertanejo (1875), ao gaúcho, em O gaúcho (1870), ambas obras regionalistas, como passando pela corte de “Aurélia Camargo”, no clássico Senhora (1875), romance urba- no e de costumes. Como dissemos, o autor exaltou em suas obras aquele que se tornou o símbolo nacional do romantismo: o ín- dio. São representantes da fase indianista do Romantismo brasileiro – também de- nominada nativista – as obras: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Embora a primeira obra de literatura cearense de Alencar seja Iracema (1865), discorreremos um pouco sobre O Guarani (1857), pois este romance inaugural da fi cção indianista no Brasil traz muitos dos elemen- tos que caracterizam a escola romântica. Publicado originalmente como folhetim, a obra narra, através da história de amor do ín- dio Peri e a jovem lusa Ceci, o tema da misci- genação entre o índio e o branco. Para Ângela Gutierrez, “a sugestão do conúbio entre dois seres harmoniosos e superiores, símbolos das raças indígena e branca, ratifi ca a obser- vação de Doris Sommer (2004, p. 179) de que Alencar alinhava-se a von Martius, ‘um histo- riador que identifi cava a mestiçagem como a matriz da brasilidade’”. O que fi ca implícito em O Guarani será, oito anos depois, explicita- do com o nascimento de Moacir, fi lho da dor, em Iracema”. (GUTIERREZ, 2009, p. 10) A descrição de Peri é clara: “Enquanto falava [Peri], um assomo de orgulho selva- gem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, fi lho das fl orestas, era um rei; tinha a realeza da força.” Esse exagero está em todos os capí- tulos do romance. Isto, porém, não é um defeito e, sim, uma característica da escola. Era assim que os personagens ro- mânticos se posicionavam diante do mun- do, exagerando, sendo demasiadamente apaixonados e, por isso, sofrendo muito. Essa era a postura romântica. ele deveria ter já que vivia harmonicamen- te com os seus e com a natureza. A afi nidade entre o público e o indianis- mo deve-se ao nativismo: a valorização do índio ia ao encontro dos desejos, dos sen- timentos e do conteúdo emocional dos lei- tores que compunham majoritariamente a classe burguesa. Logo após o processo de Independência, desenvolveu-se entre nós o sentimento de nacionalidade, e nada melhor do que um herói para representar este anseio. Isto não quer dizer que o Brasil pudesse viver, naquele período, sem o por- tuguês, pelo contrário, o Brasil era comple- tamente dependente da coroa portuguesa. Não podendo valorizar o negro, o fi ccionista voltou-se para o índio, heroicizando-o. Antonio Candido afi rma ser Alencar “o único escritor de nossa literatura a criar um mito heroico, o de Peri” e explica: “Assim como Walter Scott fascinou a imaginação da Europa com seus castelos e cavaleiros, Alencar fi xou um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do índio ideal [...]” (CANDIDO,1969, p. 223-4) CURSO literatura cearense 23 MALACA CHETAS A canção “Maracatu Fortaleza”, de autoria de Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry, foi tema ofi cial do Maracatu Az de Ouro no início da década dos anos 2000. A música ganhou videoclipe com direção de Petrus Cariry e está disponível no canal Pingo de Fortaleza Solar, do artista cearense João Wanderley Roberto Militão, conhecido simplesmente como Pingo de Fortaleza. Confi ra no link: https://www.youtube.com/ watch?v=nijgoEZrWyM 4. IRACEMA: LENDA DO CEARÁ Iracema hoje quer ser moderna Loura a força, ela deseja ser Mas a cor que lhe veste o corpo é de cabocla que a faz sofrer O estrangeiro foi para não voltar Deixou o seu fi lho que não quer mais ver. Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry, em “Maracatu Fortaleza” romance Iracema (1865) é considerado, segundo o pesquisador Sânzio de Azevedo, a primeira obra de literatura cearense de José de Alencar. Acerca de Iracema, nos explica o pesquisador: “No Ceará, o Indianismo é representado precisamente por uma das obras principais do movimento brasileiro, Iracema.” (AZEVEDO, 1976, p.51). A paisagem e a cultura da sua terra foi o que de mais especial José de Alencar nos deixou, mesmo dentro dos cânones da épo- ca. O nacionalismo, que toda a doutrina ro- mântica possui, teve em Alencar um vigoro- so pintor. Essa ideia de terra nossa, de país nosso, de cultura nossa está em quase todos os seus livros. Em dois deles, toda a paisa- gem exuberante do Ceará foi essencial, para fi rmar um imaginário regional: Iracema e O sertanejo como veremos mais a seguir. Observe o que Alencar diz, no prólogo da primeira edição de Iracema oferecido pelo “fi lho ausente” à terra natal: MALACA CHETAS 24 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, per- longando as alvas praias ensombradas de coqueiros; […] Onde vai a afouta jangada, que deixa rápi- da a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela? […] Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das fl o- restas, e brincam irmãos, fi lhos ambos da mesma terra selvagem (...) (ALENCAR, 2005) Perceba que, nesse trecho, encontra- mos, além da paisagem, o mito da origem. O livro inicia trazendo o fi m da história de Iracema e de Martim, o “guerreiro branco”, cujos descendentes comporão nosso povo: este é o mito. A criança na jangada, o Moa- cir (“fi lho da dor”, “o que vem da dor”, em tu- pi-guarani) é símbolo da mistura das raças, é o branco e o índio compondo a diversida- de cultural do povo brasileiro. Ao longo da narrativa, surge a nossa paisagem geográfi ca: Ipu, chapada da Ibia- paba, Meruoca, Uruburetama, Maranguape, Parangaba, Sapiranga, Messejana etc. Os meninos brincam na sombra do outão com pequenos ossos de reses, que fi gu- ram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede. […] Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências da infância avi- vadas recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derramao, a brisa que per- passou os espatos da carnaúba e na rama- gem das aroeiras em fl or. O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu cristalino azul, e depois
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