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História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 3 A fragmentação do Ocidente A instalação de novos povos Como enfatizam muitos historiadores, a vulnerabilidade do Império Romano, evidenciada pela anarquia militar e pelas crises sociais e econômicas recorrentes sobretudo no século III, favoreceu a pressão de povos estrangeiros sobre os seus domínios. Se entre os anos 300 e 500 os povos germânicos entraram de maneira relativamente pacífica e lenta nas porções do Império, de 500 a 700 as ocupações se intensificaram com a pressão dos eslavos – russos, búlgaros, sérvios e macedônios. A união de algumas tribos germânicas, composta por suevos, vândalos e alanos em uma federação informal (obediente a Roma), em 406, gerou devastações na Gália. Pelo caminho aberto por essa federação, os burgúndios avançaram entre Worms e Spira (atual Alemanha) e os alamanos na região da Alsácia. Os suevos se estabeleceram ao norte do rio Douro, os vândalos na região de Sevilha e os alanos no planalto central da Espanha. Embora o Império tenha procurado inicialmente incorporar esses povos, colocando-os a seu serviço, encontrou forte oposição de alguns chefes germânicos. Por exemplo, em 429, Genserico, líder dos vândalos, único dos povos que possuía uma frota, cruzou o estreito de Gibraltar e conseguiu estabelecer, ainda que dez anos mais tarde, seu domínio sobre o norte da África. Enquanto isso, os visigodos ocuparam a Aquitânia e foram expandindo seu domínio em direção da Espanha. Os burgúndios, por sua vez, aproveitando-se da grande invasão de 406, penetraram a Gália e instalaram-se em Saboia, nos vales do Saona e do Ródano, fundando, assim, o seu reino. Ainda que teoricamente federados e obedientes a Roma, esses povos foram constituindo domínios soberanos e independentes. https://www.google.com.br/search?biw=1311&bih=640&tbm=isch&sa=1&ei=ZjUEXO3yAoqywAS8qKGACQ&q=povos+germ %C3%A2nicos+s%C3%A9culo+V&oq=povos+germ%C3%A2nicos+s%C3%A9culo+V&gs_l=img.3...170004.174657..174889.. .4.0..0.138.1399.0j11......1....1..gws-wiz-img.......0j0i30j0i5i30j0i8i30.W- cxGrI0PgE#imgdii=MQN9QaGSGtv2CM:&imgrc=sRlmyP-DXwZ2VM: De acordo com os estudos de Michel Banniard – historiador que dedicou grande parte de suas investigações à gênese e história das línguas romanas de origens latinas na Idade Média –, a unidade imperial do Ocidente tornou-se insustentável diante da chegada desses povos. No entanto, é importante lembrar, segundo Banniard, que as primeiras ondas de invasores germânicos foram conduzidas por povos que haviam sofrido certa influência romana e que, aliás, lutaram ao lado dos romanos contra os hunos. Contra os invasores hunos, formou-se, no Ocidente, uma espécie de liga romano-bárbara. Quando os hunos invadiram a Gália, em 451, foram duramente repelidos pela liga formada por alanos, burgúndios, francos, saxões, visigodos e romanos. Ainda que, em 452, os hunos tenham conseguido adentrar a Itália e quase invadido a cidade de Roma, tendo recuado só depois das negociações conduzidas pelo papa Leão I (440-461), os hérulos e os godos foram os responsáveis por tomar a capital do Império Romano do Ocidente. Em 476, um grupo constituído por hérulos, também chamados de citas (antigos habitantes do sudeste da Europa e do sudoeste da Ásia, região entre o Mar Negro e o Mar do Aral), e por godos (que atuavam como mercenários em Roma) investiu contra o poder do imperador Rômulo Augústulo. Tal decisão foi tomada por Odoacro, chefe dos hérulos, depois de o imperador Rômulo ter negado ao grupo um pedido. Hérulos e godos ansiavam por serem elevados à condição de povos federados. O estatuto de povo federado daria aos hérulos e aos godos o direito de obterem terras e, aos seus chefes, o poder de receber os tributos que eram recolhidos nessas terras. Diante da negativa do imperador romano, Odoacro tomou a Itália e depôs Rômulo, dissolvendo, com isso, o Império Romano do Ocidente. Invasões bárbaras: uma dupla crítica Como salienta Jêrome Baschet, embora a expressão “invasões bárbaras” tenha sido utilizada largamente pela historiografia para explicar o fim do Império Romano do Ocidente, ela merece uma dupla crítica. Ao analisarmos a palavra “bárbaro”, primeiramente segundo as reflexões de Baschet, podemos observar que ela designava aqueles que não eram gregos e, depois, os que não eram romanos. Ou seja, há nessa palavra um julgamento de valor que, inicialmente, fez da Grécia e, em seguida, de Roma o padrão de civilização, e daqueles que não eram gregos e romanos elementos de declínio. Por isso, a expressão mais adequada para se referir aos povos que se instalaram paulatinamente no território do Império Romano Ocidental, segundo Baschet, é “povos germânicos”. De acordo com o historiador, apesar de esses povos apresentarem particularidades, tinham em comum o desconhecimento da prática da escritura, a cultura ligada ao campo, o aglutinamento em torno da figura dos seus chefes, a habilidade no trabalho com metais e na feitura de artesanatos. Para Baschet, também é válida a crítica ao termo “invasões”. Mesmo que a ocupação dos povos germânicos tenha sido descrita por alguns estudiosos como combates bélicos e incursões regadas a sangue e violência, Baschet defende que ela deve ser vista a partir de um prisma mais amplo. Além de terem ocorrido progressivamente e, muitas vezes, de maneira pacífica, as migrações dos povos recém-chegados ao império auxiliaram a compor a força da armada romana. Por vezes, como vimos, alguns desses povos lograram o estatuto de “povo federado”. Nas palavras de Baschet: “O Império soube, então, em um primeiro momento, absorver essa imigração ou compor com ela, antes de desaparecer sob o efeito de suas próprias contradições, exacerbadas à medida que a infiltração estrangeira se ampliava” (2006, p. 50). Nesse sentido, inicialmente, as fronteiras do Império Romano atuaram menos como elemento de separação e mais como local de troca e interpenetração entre esses povos e os romanos. As primeiras levas de germânicos que se instalaram nos limites do império eram constituídas por pastores e agricultores que, frequentemente, realizavam trocas e se comunicavam com os romanos. Somente entre os séculos V e VI a unidade imperial foi dando lugar aos reinos germânicos. Os reinos germânicos Como nos lembra o medievalista Pierre Riché, em As invasões bárbaras, não obstante a assimilação tenha sido lenta entre romanos e germânicos, algumas oposições entre eles são inegáveis, especialmente aquelas relacionadas à língua, religião, vestuário e, sobretudo, à ausência do Estado, instituição muito cara aos ocidentais. Algumas práticas dos germânicos, tais como a compra de esposas e a compensação financeira pelos crimes, chegavam a serem vistas como retrocesso pelos romanos. Para esse historiador, o Ocidente se forma a partir de uma síntese imperfeita entre elementos romanos e germânicos. https://www.google.com.br/search?q=reinos+germ%C3%A2nicos&source=lnms&tbm=isch&sa=X &ved=0ahUKEwj-pqvZnITfAhWFfpAKHYWrDfkQ_AUIDigB&biw=1311&bih=640#imgrc=ql- 5zYDMTSHffM: Tratando especificamente sobre cada reino germânico, Riché destaca que, enquanto alguns tiveram uma existência efêmera, outros se estabeleceram por mais tempo e constituíram, até mesmo, potências. Os Vândalos (477-533), segundo o historiador, embora mais resistentes aos romanos e cartagineses, não mudaram a organização administrativa romana na região da atual Tunísia e leste da Argélia. A pedido de Justiniano (527-565), imperador bizantino, as tropas de Belisário invadiram o território dos vândalos e o dominou em 533. Riché ainda nos lembra da efemeridade do reino dos Ostrogodos (godos do Ocidente). Seu principal governante, Teodorico (493-526), articulou a ocupação ostrogoda na Itália a partir de sua figura pessoal. Educado em Bizâncio e admirador da cultura antiga, Teodorico intitulou-se romano e construiu igrejas,mas sua morte acabou enfraquecendo essa ocupação. Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (480-525), cujas obras tiveram grande impacto na filosofia cristã medieval, atuou como cônsul e chefe de governo do rei ostrogodo Teodorico. Acusado de traição, foi preso e condenado pelo rei. Na prisão, escreveu A Consolação da Filosofia. Segundo um estudo que analisa o contexto de produção dessa obra: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bo%C3%A9cio#/media /File:Boethius.jpeg “O reinado pacífico de Teodorico, que morreu em 30 de agosto de 526, terminou portanto em terror. A ruptura entre o rei godo e seus súditos italianos não pôde ser reparada por seus herdeiros, a filha Amalasonta e o neto Atalarico. O terreno, portanto, estava propício para Constantinopla, que, sob o imperador Justiniano, conseguiu conquistar a Itália vencendo os godos” (FUMAROLI, 2016, p. 11). Quanto aos Visigodos, Riché salienta que, além de terem se fundido mais facilmente aos romanos, constituíram um estado forte que sobreviveu até o século VIII. Com o empenho de Leovigildo (o 17º rei visigodo) para estender o poder visigodo, a Espanha, ainda que dividida religiosamente em virtude dos arianos, teve seu território unificado. No entanto, de acordo com Riché, com o passar do tempo, essa falta de unidade moral e religiosa foi um dos fatores que levou ao enfraquecimento da monarquia visigoda. Sobre os reinos Anglo-saxões, Riché salienta que a ocupação dos germânicos na Inglaterra foi diferente, pois nessa região a civilização romana e a língua latina não conseguiram se impor de maneira total. Ademais, os celtas se conservaram nas regiões montanhosas. Por intermédio de textos históricos e lendários, Riché consegue mapear dois momentos da conquista: numa primeira fase, os jutos, anglos, saxões e bretões teriam dividido o território; já em uma segunda, os germanos teriam repelido os bretões. Em relação aos Francos, o historiador destaca o ano de 536, momento em que o reino franco alcança o lugar de potência mediterrânea ao tomar as cidades de Arles e Marselha. Depois disso, de acordo com Riché, os francos continuaram o processo de expansão na direção leste com o apoio dos condes francos e romanos alocados nas cidades para defender a manutenção do poder. A Gália se torna, assim, o refúgio da tradição católica. Conciliando conquistas bélicas e defesa da fé, bem como retomando a tradição do Império Romano, os francos constroem um novo império no Ocidente. Reflexões Finais O Ocidente alto-medieval foi marcado, de acordo com Baschet, por uma contínua instabilidade ocasionada por invasões sucessivas. Após a chegada dos germânicos, novas investidas foram realizadas por muçulmanos, húngaros e vikings. Nas palavras de Baschet: “O conjunto desses movimentos contribui para o deslocamento do centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para o Noroeste da Europa. [...] Desde então, o papel principal na Europa cristã transfere- se para o Norte. Outra consequência da desagregação do Império do Ocidente é o desaparecimento de todo o verdadeiro Estado. Uma vez quebrada a unidade de Roma, seu sistema fiscal desaba com ela” (BASCHET, 2006, p. 52). Referências Bibliográficas BANNIARD, Michel. A Alta Idade Média Ocidental. Lisboa: Europa- América, 1985. BASCHET, Jérome. A civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. RICHÉ, Pierre. As invasões Bárbaras. Lisboa: Europa-América, s/p. Quer saber mais? Nesta parte, você poderá estudar um pouco mais sobre as referências usadas em nossa aula. • Teodorico https://brasilescola.uol.com.br/biografia/teodorico-i.htm - • Boécio https://educacao.uol.com.br/biografias/boecio.htm • Consolação da Filosofia http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/arti cle/view/20531 https://brasilescola.uol.com.br/biografia/teodorico-i.htm https://educacao.uol.com.br/biografias/boecio.htm http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/20531 Conhecendo alguns termos Gália Termo que faz referência a uma região da atual França que foi habitada pelos gauleses e serviu como província do Império Romano. As Guerras Gálicas, iniciadas em 58 a.C., são muito conhecidas, pois marcam o momento em que Júlio César aprisionou líderes gauleses para estabelecer o domínio romano sobre a Gália. Sugestão de Vídeo • Das invasões germânicas aos refugiados de hoje. https://www.youtube.com/watch?v=xlHKYtHmZMQ https://www.youtube.com/watch?v=xlHKYtHmZMQ
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