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DISCIPLINA DE MICROBIOLOGIA MÉDICA CURSO DE MEDICINA - TURMA B ALICIA TUON, ANDRESSA GODINHO, ANDRESSA RIBEIRO E ELIÉZER CUNHA AGENTE INFECCIOSO: Staphylococcus aureus Porto Alegre Outubro de 2020 2 1. Caso clínico Identificação: M.L; 51 anos; sexo feminino; mulher; casada; natural, residente e procedente de Canoas (RS); doceira e católica não praticante. Paciente fonte de alta confiabilidade. Queixa principal: Febre contínua. História da doença atual: Paciente relata febre persistente há 7 dias. Concomitante a isso, refere fadiga intensa, calafrios, sudorese noturna e “um aperto muito forte no peito”. Como fator de melhora, relatou o uso de medicamento Ibuprofeno. Fatores de piora não foram referidos. História médica pregressa: Paciente soropositiva para o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), refere vacinação em dia, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e cardiopatia adquirida. Nega diabetes, transfusões sanguíneas e alergias a alimentos e a medicamentos. Há 45 dias, foi submetida a uma hepatectomia parcial para retirada de formação tumoral investigada para a presença de outras metástases pelo histórico familiar e exames complementares. Ficou internada em Unidade de Tratamento Intensivo por 10 dias, devido a complicações da cirurgia. Nesse período, foi-lhe administrada medicamentos e nutrientes via dispositivo de acesso venoso central (CVC). Medicamento de uso concomitante: Besilato de Anlodipino 10 mg (1 CP pela manhã); Maleato de Enalapril 20 mg e Propranolol 40mg (1 CP pela manhã e outro à noite) para controle da HAS; coquetel para tratamento do HIV (Tenofovir, Lamivudina, Darunavir, Raltegravir, Ritonavir e Enfuvirtida). Histórico familiar: Pai hipertenso e mãe diabética, irmão hígido. Avô paterno foi a óbito em decorrência de tumor hepático. Perfil psicossocial: Nega etilismo, tabagismo e uso de outras drogas ilícitas. Afirma manter uma ‘boa alimentação’ (sic) e diz não praticar exercícios físicos. Mora com o marido, com quem afirma bom relacionamento. Tem dois filhos que moram em Viamão - RS. Exame Físico: Sinais vitais: FC: 110bpm FR: 25 irpm Temperatura axilar: 38,7 °C PA: 135 mmHg X 90 mmHg Dermatológicos: Petéquias na pele e no branco dos olhos. Aparelho cardiovascular: Aparecimento de um sopro cardíaco novo. Hipótese: Infecção ocasionada pelo manejo hospitalar do CVC. Considerando-se que a paciente se enquadra no grupo de imunodeprimidos e apresenta, ainda, uma cardiopatia congênita, vê-se risco aumentado para o desenvolvimento de bacteremia com evolução para endocardite infecciosa. A endocardite consiste na infecção do revestimento interno do coração (endocárdio) que geralmente afeta também as válvulas cardíacas. Testes diagnósticos: A suspeita de endocardite infecciosa foi confirmada por meio do exame de ECOcardiograma transtorácico. Em seguida, realizou-se testes de hemocultura para a confirmação do agente etiológico e início do tratamento. Foram coletadas 03 amostras de 20ml de diferentes locais com um intervalo de 30 minutos cada, cujo resultado deu positivo para Staphylococcus aureus após 24h de incubação. 3 1. Aspectos gerais do patógeno O gênero de bactérias Staphylococcus se constitui de 37 espécies de microrganismos gram-positivos aeróbios. Em indivíduos saudáveis, a microbiota normal da pele é composta por cerca de 8 a 10 espécies de estafilococos, sendo a bactéria Staphylococcus aureus uma importante integrante desse grupo. Dentre as regiões colonizadas por essa espécie, podemos citar: a orofaringe, os tratos gastrointestinal e urogenital e, por fim, a cavidade nasal - que é a região onde mais comumente se averigua a sua presença (em indivíduos adultos, a prevalência verificada para esse sítio do corpo é de aproximadamente 40%). Considerada a mais patogênica do grupo, a S. aureus pode ser facilmente disseminada entre indivíduos por meio do contato direto ou de objetos contaminados (como chaves, maçanetas e botões de uso comum, por exemplo). Ainda, o contágio pode decorrer da inalação de gotículas infectadas dispersas no ambiente pelo espirro ou pela tosse, sendo também comuns o contágio por meio as infecções cutâneas. Todavia, para que se tenha uma infecção ativa, é necessário que haja uma ruptura da barreira cutânea ou uma significativa redução da imunidade. Quando isso acontece, tem-se como possibilidade de agravo da infecção primária o espalhamento das bactérias na corrente sanguínea e a infecção subsequente de órgãos distantes, como o coração. Em síntese, quando fora de seu hábitat a Staphylococcus aureus pode ser altamente patogênica. Embora seja suscetível a altas temperaturas, a desinfetantes e a agentes sépticos, a bactéria pode permanecer em superfícies por longos períodos em função da sua espessa camada de peptidoglicanos. Além disso, apresenta um grau elevado de adaptação a antibióticos, como é o caso das Staphylococcus aureus Resistentes à Meticilina (MRSA, detalhadas adiante). Esses fatores de virulência fazem com que a S. aureus seja um patógeno importante em infecções hospitalares, em razão da sua alta capacidade de adaptação e de resistência. Nessa conjuntura, cabe dizer que uma das formas mais comuns e preocupantes de transmissão do patógeno em questão se estabelece pelo que chamamos de Infecção Relacionada à Assistência à Saúde (IRAS). Conforme estudo realizado no Brasil pelo 4 Ministério da Saúde a partir da avaliação de 99 hospitais terciários, a prevalência de IRAS entre os pacientes hospitalizados é de 13%. Ainda, essa problemática é inflacionada pela quebra dos protocolos de higiene por parte dos funcionários hospitalares e pela seleção e disseminação de microrganismos multirresistentes em função do uso excessivo e sem critério de antimicrobianos. Nesse contexto, a infecção por S. aureus contribui para complicações graves em relação aos níveis de saúde de muitos pacientes, como endocardite e meningite, além de ser uma das principais causas de morbimortalidade. 2. Panorama geral do caso clínico: como se deu a infecção? Por que esta não regrediu mediante o uso da Penicilina? Apesar da usual dificuldade que se tem de traçar o seu foco primário, a infecção por S. aureus é uma causa extremamente comum de bacteremia. No caso clínico relatado, é provável que a contaminação do sangue circulante tenha acontecido como consequência do manejo do cateter venoso central, que foi utilizado na administração de medicamentos e de nutrientes à paciente, no período em que essa ficou internada. Nesse contexto, é possível que o processo infeccioso tenha origem endógena ou exógena. No primeiro caso, hipotetiza-se que a bacteremia decorra da entrada da bactéria no organismo por meio do rompimento da barreira da pele aparentemente inócua. Em seguida, ela atinge a circulação, a qual potencializa a sua posterior disseminação e colonização para outros tecidos do corpo, inclusive o do coração. No segundo cenário - em que o agente patogênico advém do ambiente - supõe-se que o instrumento utilizado pela equipe de saúde, manipulado várias vezes ao dia, tenha facilitado o acesso do microrganismo para o interior do corpo humano. Um exemplo disso seria a entrada pela luz de cateteres, em que a bactéria provém de um outro paciente (uma vez que, como supracitado, esse microrganismo pode permanecer vivo em superfícies por longos períodos). O fato é que bacteremias originadas pelo uso de CVC ocorreram em 4,34% dos cateteres totalmente implantáveis, sendo a S.aureus prevalente em 50% dos casos1. Os 1 (BIFFI et al, 1998) 5 episódios prolongados, particularmente, estão associadas à disseminação para outros sítios do corpo (incluindo o coração, como é o caso de M.L.). Sobre o mecanismo de infecção, tem-se que a bactéria em questão produz fatores de virulência, toxinas e moléculas de evasão do sistema imune que propiciam a adesão bacteriana aos componentes da matriz extracelular dos tecidos-alvo, danificando essas células e protegendo o patógeno do sistema imunológico2. Desse modo, o início da infecçãose dá pela adesão da S. aureus às proteínas da matriz extracelular do hospedeiro, mediada por proteínas associadas à estrutura da parede celular. Em seguida, a secreção de toxinas hemolíticas, nucleases, proteases (dentre outras) promove a conversão dos tecidos do hospedeiro nos nutrientes necessários para que se dê o crescimento bacteriano. Por fim, a capacidade da S. aureus de resistir à fagocitose possibilita a progressão e a disseminação da infecção no organismo invadido. De maneira geral, o sistema imunológico de pessoas previamente hígidas é capaz de combater o patógeno e de impedir que a infecção se estabeleça; indivíduos imunocomprometidos e imunodeprimidos, contudo, apresentam uma resposta imune mais ineficiente e, com isso, o S. aureus consegue passar pelas barreiras naturais do sistema imunológico, se alojar no tecido e provocar a infecção. Para que se entenda por que a infecção não regrediu mediante a medicação previamente administrada à M.L., é importante ter em mente o mecanismo de ação da amoxicilina e da classe de fármacos em que esta se enquadra, os betalactâmicos. De uma maneira geral, esses compostos possuem em sua estrutura o anel β-lactâmico que, dependendo do tipo do medicamento, estará ligado a um segundo anel (penicilina, cefalosporinas, carbapenêmicos e monobactâmicos). O efeito da medicação se dá pela inibição das enzimas transpeptidases PBP - que impede a formação das cadeias de peptidoglicanos fundamentais para a parede celular das bactérias gram-positivas, danificando a sua composição estrutural. A partir da descoberta de que as bactérias do gênero Staphylococcus eram capazes de clivar o anel β-lactama por 2 (Foster 2005; Zecconi e Scali 2013) 6 ação da enzima penicilinase/β-lactamase (codificada por um gene plasmidial), adotou-se a utilização de penicilinas semissintéticas (exemplos: oxacilina, ampicilina, amoxicilina, meticilina). Contudo, as bactérias Staphylococcus aureus desenvolveram resistência à meticilina e, de um modo geral, à toda a classe dos β-lactâmicos a partir da expressão do gene mecA e da produção concomitante da proteína de ação enzimática PBP2a (insensível aos medicamentos descritos). Desse modo, o microrganismo encontrou um mecanismo secundário de ligação dos tetrapeptídeos e de manutenção, portanto, da estrutura da parede celular. Vê-se, com isso, que a administração do antibiótico à paciente foi ineficiente no controle da infecção - o que não se pode desconsiderar, também é parte do problema, à medida em que explicita a criticidade do manejo de antimicrobianos que, em muito, colabora para o surgimento de bactérias multirresistentes. 3. Epidemiologia a. Distribuição geográfica e áreas de interesse: No que concerne à epidemiologia, as infecções hospitalares são uma importante forma de transmissão de bactérias Staphylococcus aureus, uma vez que são responsáveis por cerca de 50% a 87% das infecções associadas à assistência à saúde e que, desse percentual, 6% a 43% dos casos evolui para óbito3. De uma maneira geral, tem-se como fatores determinantes da prevalência das IRAS o constante desenvolvimento (por parte das bactérias) de resistência aos medicamentos e a realização cada vez mais presente de técnicas cirúrgicas invasivas. Na figura 1 abaixo, o gráfico ilustra a frequência relativa dos tipos de infecções hospitalares mais comuns, discriminando em azul aquelas que dizem respeito ao patógeno aqui em discussão. Verifica-se, pois, que, a Staphylococcus aureus é muito importante em infecções das feridas cirúrgicas e em bacteremias; sendo menos importante nas ITUs. 3 (BASTOS et al., 2013; MASUNARI; TAVARES, 2007) 7 Figura 1- Livro Mims microbiologia médica 5th edição Richard V Goering Entre janeiro de 2006 e outubro de 2007, foram registradas mais de 28.000 infecções nosocomiais na US National Health Safety Network, abrangendo ao todo mais de 600 hospitais estadunidenses. Entres os patógenos envolvidos, 87% eram bactérias, sendo a S. aureus contribuinte primordial para os números registrados. É evidente, portanto, a importância de políticas públicas de saúde que objetivem a diminuição desses índices. Em países com rígidas medidas de controle de infecções, como os países escandinavos, os índices de infecções por S. aureus (MRSA) vem se apresentado cada vez mais baixos. A América Latina, por outro lado, possui dificuldades no controle desses quadros, principalmente no que se refere à resistência antimicrobiana. No Estudo de Avaliação e Vigilância de Tigeciclina (Tigecycline Evaluation and Surveillance Trial - T.E.S.T.), realizado em 11 países latino-americanos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Porto Rico e Venezuela), foram coletados dados entre os anos de 2004 e de 2007. Como resultado desse estudo, a prevalência geral de MRSA entre isolados de S. aureus foi de 48,3%. Além disso, o Programa SENTRY de Vigilância Antimicrobiana na América Latina observou o aumento da prevalência de infecções estafilocócicas em centros clínicos entre 1997 e 2006, destacando-se ainda que 41% das cepas coletadas foram advindas do Brasil. No Brasil, a Staphylococcus aureus está presente em todas as regiões do país. Todavia, a coleta de dados sobre esse tipo de infecção não é realizada de forma equivalente em todo território nacional, o que determina dificuldades para que se componham dados de confiança a respeito da sua distribuição geográfica. Isso acontece, 8 pois, ainda que os dados sejam coletados em hospitais de grande porte, nos locais com condições precárias de saúde esse levantamento não é feito. b. Fatores de risco para aquisição da infecção e morbidade decorrente Os fatores de risco para a aquisição de Staphylococcus aureus estão associados à presença de corpos estranhos em contato com a pele (como espinhos e cateteres intravasculares) cujo local de inserção pode ser um caminho para que a bactéria chegue à circulação sanguínea e para que desenvolva o quadro de infecção. Nesse sentido, são fatores de risco: a realização de procedimento cirúrgico prévio, internação em hospitais e o uso de antimicrobianos que suprimam a microbiota normal. Frente a isso, indivíduos com doenças eczematosas da pele, indivíduos que fazem diálise, queimados, diabéticos e HIV-positivos (ou seja, pacientes imunodeprimidos ou imunocomprometidos) são pacientes de risco. Ademais, neonatos ou crianças com pouca higiene pessoal, pacientes com comprometimento da função pulmonar ou que já tenham apresentado infecção respiratória viral anterior e usuários de drogas intravenosas também têm sido alvos de infecções por S.aureus. A figura 2 abaixo ilustra como a infecção por S. aureus se dá a partir de um cateter intravenoso de um paciente. Figura 2 - Mims microbiologia médica 5th edição Richard V Goering Nesse sentido, infecções por Staphylococcus aureus são extremamente graves, visto que podem resultar em infecções cutâneas crônicas ou, até mesmo, em infecções 9 sistêmicas que podem ser fatais. Não obstante, a bacteremia pode causar infecções em regiões distintas, como endocardites e pioartrites, bem como implicar o desenvolvimento de abscessos metastáticos na pele, nos pulmões, no fígado e no cérebro. É necessário ressaltar que as toxinas dessa bactéria são fatores agravantes, pois provocam necrose epidérmica tóxica e síndrome de choque séptico, além de serem capazes de produzir exotoxinas quando colonizam certos alimentos, resultando em infecções alimentares preocupantes. Em relação às infecções alimentares, um surto de doenças transmitidas por alimento (DTA) ou toxina alimentar tem como definição, de acordo com o Center for Disease Control and Prevention (CDC) nos EUA, ser um evento o qual duas ou mais pessoas apresentam sintomas semelhantes de alguma doença associada à ingestão de um alimento contaminado4. Dessa forma, a Staphylococcus aureus é considerada uma das espécies mais conhecidas por ser encontrada em alimentos envolvidos em surtosde intoxicação alimentar. No Brasil, ainda que casos subnotificados existam, entre os anos de 2010 e 2017, foram notificados 5.252 casos de surtos de DTA. Os principais agentes identificados nesses casos foram Staphylococcus aureus, Salmonella spp. e Escherichia coli. Há algumas condições que propiciam a multiplicação estafilocócica e o desenvolvimento de enterotoxinas em alimentos compostos por: água, concentração de NaCl entre 10% e 20%, pH entre 4 e 9,8, bem como temperatura entre 7 e 47,8°C. Sob essa perspectiva, os principais alimentos que apresentam maior incidência de Staphylococcus, sobretudo S.aureus, são: leite, queijos, embutidos crus curados, carnes de aves, suínos e vermelhas, pescados, além de refeições prontas5. Desse modo, a intoxicação alimentar por S.aureus está associada a ingestão de enterotoxinas produzidas por essa bactéria localizadas em alimentos. Além disso, esse tipo de infecção decorre, principalmente, da falta de higiene pessoal e do manuseio incorreto desses alimentos. 5 (FRANCO; LANDGRAF, 2002) 4 (MULTISTATE, 2015) 10 4. Apresentação clínica As infecções causadas por S. aureus - que ocorrem pela invasão direta do tecido ou, em alguns casos, pela produção de exotoxina - podem levar a quadros consideravelmente distintos, cuja gravidade varia de leve a potencialmente fatal. As mencionadas exotoxinas podem agir localmente ou desencadear a liberação de citocinas por células T. As infecções mais simples se apresentam como furúnculos, celulites e espinhas. Já as infecções mais sérias podem acarretar pneumonia, endocardite, meningite e septicemia. As infecções cutâneas são as formas mais comuns da doença estafilocócica, haja vista que uma picada de mosquito, por exemplo, já seria suficiente para que ocorresse uma infecção. Quando superficial, podem ser difusas, com pústulas vesiculares ou com abscessos nodulares; quando profundas, podem evoluir para graves infecções cutâneas necrosantes (principalmente nos casos de lesões da pele, de queimaduras e de infecções advindas de incisões cirúrgicas, por exemplo). Ao entrar no hospedeiro, o microorganismo não fica mais restrito a pele. Assim, a infecção pode acabar invadindo o sangue e, por meio desse, atingir outros órgãos do corpo humano. Esses quadros, em algumas situações, podem evoluir para o óbito do paciente. A endocardite infecciosa, apresentada pela M.L do caso clínico, é um quadro grave que consiste na inflamação da membrana que reveste a parede interna do coração e/ou das válvulas cardíacas. Nesse caso, a infecção ocorre por meio da formação de colônias em aglomerados de plaquetas e de fibrinas alojadas em sítios cardíacos. Esse tipo de infecção é incomum em pessoas com o coração saudável, mas apresenta risco aumentado para indivíduos que apresentam cardiopatias congênitas/adquiridas e para pacientes portadores de próteses valvares ou marca-passos. Em síntese, o quadro levantado pelo caso clínico discrimina uma bacteremia, isto é, a disseminação a partir do foco de infecção para a circulação sanguínea, não identificada pelo sistema imunológico e que, consequentemente, atingiu o tecido cardíaco. 11 Doenças graves (como a endocardite da paciente), se não tratadas, podem levar ao surgimento de êmbolos sépticos que, eventualmente, podem se soltar. Em seguida, são levados pela corrente sanguínea e podem alcançar órgãos como o cérebro e os pulmões, aumentando o risco de AVC e de embolia pulmonar - complicações muitas vezes fatais. 5. Diagnóstico a. Clínico O diagnóstico deve ser feito de maneira cuidadosa e deve considerar aspectos clínicos, microbiológicos e ecocardiográficos. Uma maior probabilidade para essa doença é determinada por alguns aspectos, como paciente febril que tem predisposição para endocardite, manifestações cardíacas e não cardíacas características da doença ou hemoculturas com crescimento do microrganismo causador (nesse caso, a bactéria S. aureus). O quadro clínico sugestivo de endocardite envolve febre, aparecimento de sopro cardíaco inexistente ou alteração de sopro pré-existente, anemia, esplenomegalia, petéquias na pele, conjuntiva, mucosas e vasculite. Os pacientes com possível endocardite devem ser tratados como se estivessem com a doença, a menos que existam circunstâncias que justifiquem o contrário (Harrison). O diagnóstico de certeza de endocardite só é feito com análise de exames histológicos e microbiológicos. Entretanto, existe um esquema altamente sensível e específico para diagnóstico: os critérios de Duke modificados. Com base nestes, o diagnóstico definitivo de endocardite pode ser feito com a comprovação de dois critérios maiores; de um critério maior e três menores; ou de cinco critérios menores. (Harrison) Os quadros que não podem ser classificados como endocardite definitiva são considerados casos possíveis de endocardite infecciosa se: preenchem um critério maior e um menor; ou três critérios menores. (Harrison) Os critérios maiores usados para essa classificação são: 1. Hemocultura positiva: definida pelo isolamento da S. aureus a partir de hemoculturas coletadas > 12 h de intervalo ou; todas de 3, ou a maior parte de ≥ 4 hemoculturas separadas, sendo a primeira e a última coletadas com pelo menos 1 h de intervalo. 12 2. Evidência de envolvimento endocárdico (ecocardiograma positivo, massa intracardíaca oscilante, abscesso, nova deiscência parcial em uma valva protética, nova regurgitação valvar). Os critérios menores usados para essa classificação são: 1. Predisposição (condição cardíaca predisponente ou uso de drogas injetáveis). 2. Febre (≥ 38°C) 3. Fenômenos vasculares (grandes êmbolos arteriais, infartos sépticos pulmonares, aneurisma micótico, hemorragia intracraniana, hemorragias conjuntivais, lesões de Janeway). 4. Fenômenos imunológicos (glomerulonefrites, nódulos de Osler, manchas de Roth, fator reumatoide). 5. Evidência microbiológica (hemocultura positiva, mas que não satisfaz um dos critérios maiores ou evidências sorológicas de infecção ativa pelo microrganismo). b. Comprovação laboratorial Pelo fato de se tratar de endocardite, devem ser solicitados hemograma, hemocultura (2 amostras com intervalo de 30 minutos ou coleta de 10 ml de sangue, em locais diferentes; caso não haja crescimento bacteriano, nova amostra deverá ser coletada após 24 horas), VHS, proteína C reativa, ECG e ecocardiograma transtorácico. (Mylonakis) A maior parte das amostras de sangue é inoculada diretamente em frascos com caldos enriquecidos. No laboratório, os frascos devem ser incubados a 37ºC e inspecionados a intervalos regulares para identificar crescimento microbiano. Quando o crescimento é detectado, os caldos são subcultivados, de maneira a possibilitar o isolamento do microrganismo para que esse seja identificado e testado em relação à sensibilidade aos antimicrobianos. (Murray) Existem também testes bioquímicos (p. ex., reações positivas para coagulase) que podem ser usados para identificar S. aureus e diferenciá-la de outras espécies de estafilococos. Geralmente, as colônias suspeitas de S. aureus são identificadas misturando-se uma suspensão bacteriana com uma gota de plasma, para a observação da formação de grumos bacterianos (teste positivo da coagulase). 13 6. Controle e prevenção da doença, problemas persistentes e perspectivas futuras: Ainda que políticas hospitalares tenham intensificado suas recomendações de higiene, como a aprimoração de protocolos de lavagem de mãos e o gerenciamento de resíduos hospitalares, a transmissão hospitalar da bactéria Staphylococcus aureus (principalmente das que apresentam resistência à Meticilina) é, atualmente, motivadora de grande preocupação para a comunidade científica. Isso porque, à medida em que os microrganismos desenvolvem resistência às drogas disponíveis, torna-se cada vez mais difícil o contingenciamento deste tipo de infecção, e a bacteremia decorrente desta apresenta altos níveis de morbimortalidade (podendo provocar um espectroamplo de condições, como a infecção da pele, dos ossos, e das articulações, a formação de metástases, o desenvolvimento de infecções sistêmicas - como a endocardite - e sepse). Segundo o estudo Brazilian SCOPE (Surveillance and Control of Pathogens of Epidemiological Importance), a taxa de mortalidade para brasileiros com infecções da corrente sanguínea é de 40%. Felizmente, estima-se que de 65-70% das infecções relacionadas a cuidados em saúde poderiam ser prevenidas pela adoção dos ‘protocolos de bundle’ nas unidades de terapia intensiva - um conjunto de estratégias e de medidas que devem ser amplamente aplicado e supervisionado de forma sistemática por toda a equipe de saúde, por meio de vigilância de processo e intensas ações educativas. As medidas recomendadas variam de acordo com a situação: BUNDLE de ICS (Infecção da Corrente Sanguínea) relacionada ao uso de cateter venoso central BUNDLE de ITU para o uso de sonda vesical de demora BUNDLE de Pneumonia associada à ventilação mecânica Higienização das mãos; Precauções máximas de barreira para inserção de CVC; Antissepsia com clorexidina Evitar uso desnecessário de cateter urinário; Técnica asséptica para inserção do cateter urinário; Manter o cateter urinário Elevação da cabeceira da cama entre 30 e 45º; Interrupção diária da sedação e avaliação da possibilidade de extubação; 14 alcoólica; Escolha do sítio de inserção adequado; Reavaliação diária da necessidade da utilização do CVC e da possibilidade de sua remoção precoce. conforme as recomendações científicas; Rever a necessidade diária do uso do cateter urinário e removê-lo precocemente. Profilaxia de úlcera péptica; Profilaxia de trombose venosa profunda (TVP). O tempo prolongado de internação hospitalar é um fator de risco solidamente associado às IRAS - sendo uma diferença importante entre os serviços de saúde de países desenvolvidos e de nações emergentes/em desenvolvimento. No Brasil, por exemplo, o cenário comum da falta de leitos determinam uma maior permanência do paciente no hospital (à espera do atendimento adequado) - potencializando o risco de infecção. Dessa maneira, entende-se como profilática a otimização e investimento do Sistema Único de Saúde, de modo que haja maior número de leitos disponíveis, reduzindo a permanência do paciente no hospital. No Brasil, a conjuntura decorrente da COVID-19 determinou o aumento da disponibilidade de leitos de UTI. Todavia, não se sabe se, uma vez acabada a pandemia, estes serão mantidos e fomentados ou encerrados por corte de gastos. O que se tem por certo é que a expansão do atendimento hospitalar é essencial para que, proporcionado maior e mais rápida resolutividade, se diminua o tempo de internação do paciente e, com isso, o risco de desenvolvimento de infecções associadas aos cuidados de saúde. Com o rastreamento contínuo e ativo das infecções hospitalares por S. aureus, objetiva-se diminuir o número de IRAS (principalmente as que competem à bactérias MRSA) e o consequente uso da vancomicina para tratamento, bem como reduzir a resistência antimicrobiana, o custo de tratamento e o tempo de internação do paciente. 7. Questões sobre o agente A respeito dos fatores de virulência da Staphylococcus aureus, assinale a alternativa incorreta: a) Esse agente possui uma camada espessa de peptidoglicano, o que lhe confere maior permanência às superfícies por longos períodos. 15 b) A bactéria S. aureus é incapaz de resistir à fagocitose da célula hospedeira. c) O processo de infecção tem seu início a partir da adesão do S. aureus às proteínas da matriz extracelular do hospedeiro. d) Essa bactéria apresenta elevada adaptação a antibióticos, como o Staphylococcus Aureus resistente à meticilina (MRSA). e) As bactérias S.aureus são suscetíveis a temperatura alta, desinfetantes e agentes sépticos. Explicação: alternativa B. Uma das capacidades da S. aureus consiste na resistência à fagocitose da célula invadida, possibilitando a progressão da infecção no hospedeiro. Assinale a alternativa incorreta sobre a Staphylococcus aureus: a) O epíteto aureus, que significa “ouro” do latim, é usado por ser a cor de muitas colônias dessa bactéria. b) Pode causar a síndrome do choque tóxico, devido à liberação de uma toxina no sistema circulatório e, nesses casos, a hemocultura quase sempre será positiva. c) Faz parte da microbiota cutânea de cerca de 30% da população humana. d) É uma importante causa de infecções hospitalares. e) Possui exotoxina que causa a separação e a descamação das camadas da pele. Explicação: alternativa B. A S. aureus realmente pode causar a síndrome do choque tóxico devido à liberação de uma toxina no sistema circulatório, mas nesses casos a hemocultura é quase sempre negativa. Porém, a cultura do local onde o organismo está crescendo irá detectar a sua presença. (Murray) Todas essas doenças podem ser causadas por Staphylococcus aureus, exceto: a) Pneumonia b) Osteomielite c) Celulite d) Faringite e) Meningite Explicação: alternativa D. A Staphylococcus aureus faz parte da microbiota normal do nariz e da garganta. Embora alguns membros da microbiota normal sejam potenciais patógenos, sua habilidade para causar doenças é reduzida pelo antagonismo microbiano. (Tortora) Referências bibliográficas Acosta AC, Costa MM, Pinheiro Junior JW, Mota RA. Fatores de virulência de Staphylococcus aureus. Medicina Veterinária UFRPE, Recife, 2017. Long, D. L. et al. Medicina Interna de Harrison. AMGH, 20ª ed., 2020. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Epidemiologia para o controle de infecção hospitalar. Caderno A [Internet]. Brasília (DF): ANVISA; 2000[cited 2020 Jan 20]. Available from: http://www.cvs.saude.sp.gov.br/pdf/CIHCadernoA.pdf Murray, P. R.; Rosenthal, K. S.; Pfaller, M. A. Microbiologia médica. 7ª ed. Elsevier, 2014. Mylonakis, E.; Calderwood, S. B. Infective endocarditis in adults. The New England Journal of Medicine, v. 345, n. 18, p.1318-30, 2001. Umscheid CA, Mitchell MD, Doshi, TA, et al. Estimating the proportion of healthcare-associated infections that are reasonably preventable and the associated mortality and costs. Infect Control Hosp Epidemiol 2011; Feb;32(2):101-114 Tortora, G.J.; Funke, B.R.; Case, C.L. Microbiologia, 12ª Ed. Artmed, 2017. 16 Santos André Luis dos, Santos Dilvani Oliveira, Freitas Cícero Carlos de, Ferreira Bruno Leal Alves, Afonso Ilídio F., Rodrigues Carlos Rangel et al. Staphylococcus aureus: visitando uma cepa de importância hospitalar. J. Bras. Patol. Med. Lab. 2007 Dez. Mejía Carlos, Zurita Jeannete, Guzmán-Blanco Manuel. Epidemiology and surveillance of methicillin-resistant staphylococcus aureus in Latin America. Braz J Infect Dis. 2010 Dec.. Goering V.R, Dockrell M.H, Zuckerman M, Chiodini L.P, Roitt M.I. Mims microbiologia médica. 5ª ed. Elsevier, 2014.
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