Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UMA BREVE ANÁLISE DO INDIVIDUALISMO CONTEMPORÂNEO E SEU REFLEXO NA IASD Adriel Santos de Jesus 1 Daniel da Fonseca Lins Júnior ² RESUMO O individualismo é uma característica marcante no homem contemporâneo, portanto, esse trabalho propõe a análise desse fenômeno. Dividindo o estudo em três seções: A primeira busca encontra brevemente as bases do individualismo, iniciando no cristianismo primitivo, passando pela idade média e enfatizando o período da reforma protestante chegando à Era Moderna; Já a segunda seção, aborda os aspectos do individualismo contemporâneo com ênfase em três características: o consumo e o processo de individualização, o homem contemporâneo narcisista e o paradoxo do homem virtualizado. Por fim, a última seção apresenta o reflexo do individualismo na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) e como isso afeta a vida em comunidade que nunca foi o propósito Divino. Palavras-Chave: Individualismo. Contemporaneidade. IASD. ABSTRACT Individualism is a hallmark of the contemporary man, so this paper proposes the analysis of this phenomenon. The study is divided into three sections: The first one search to find individualism bases, it starts in early Christianity, passing through the middle ages and emphasizing the period of the Reformation until the modern era; The second section deals with aspects of contemporary individualism, emphasizing three characteristics: the consumption and the individualization process, the narcissist contemporary man and also the paradox of virtualised man; Finally, the last section presents the reflection of individualism in the SDA church and how it affects the community life, which was never the Divine purpose. Keywords: Individualism. Contemporaneity. SDA. Mestrando em Missão Urbana pelo Seminário Adventista Latino-americano de Teologia (SALT). 1 ² Doutor em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Ceará (UFCE) ! 2 INTRODUÇÃO Há um aparecimento do individualismo contemporâneo no meio religioso, as regras atuais do comportamento social já não são mais determinadas pela família, pelas instituições, ou até mesmo pela igreja. Com a ascensão e a estabilização do sistema capitalista a lógica que se segue é a do consumo, como bem corrobora o filósofo francês Lipovetsky (2005, 40): “É verdade que as normas sociais não são mais decretadas nem impostas pelo espírito nacional, pelas famílias, ou pelas igrejas e que as referências fornecidas pelas instâncias tradicionais não mais fazem sentido e precisam adaptar-se a lógica com consumo. (LIPOVETSKY, 2005, p. 40).” A igreja é um reflexo da sociedade, por conseguinte, as ações encontradas no mundo contemporâneo são facilmente identificadas nela, afinal, as pessoas que compõe o corpo de Cristo são as mesmas que compõem a sociedade em geral. E é dessa maneira que a lógica do consumo e seu processo de personalização são muitas vezes aplicados à realidade da igreja. Além disso, o indivíduo está pronto para consumir se algo for “sedutor” aos seus olhos ou se aquele bem satisfaz seus desejos. Mas o problema encontrado nessa visão é que com a lógica consumista, a vontade de se aproximar do outro é cada vez menor, pois esta lógica é antônima de dependência, não há espaço no mundo contemporâneo para depender de alguém. As mídias sociais são capazes de prover aquilo que as pessoas necessitam, afinal o ser humano não foi feito para viver isolado, são seres sociais e querem de alguma forma “aproximar-se” de alguém e de preferência que não haja necessidade de contar as questões íntimas; se dividem então entre o querer “aproximar” e ao mesmo tempo “distanciar”, não querem laços eternos, mas também, não querem a sensação de viver só. Este trabalho foi dividido em três grandes partes: na primeira buscar-se-á entender a gênese do individualismo moderno proposto por Louis Dumont (1985) que tem sua base no Cristianismo primitivo, seguindo da Reforma Protestante até a Era Moderna; a segunda parte irá discutir o Individualismo contemporâneo, serão ! 3 mencionadas três características do indivíduo contemporâneo que exacerba o seu individualismo e isolamento; na terceira e última parte do trabalho analisar-se-á se esse individualismo tem influenciado a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), ou se esta se encontra isenta dessa realidade que vem abarcando diversas organizações. 1. A UTILIZAÇÃO DO TERMO “CONTEMPORÂNEO” Existem diferentes empregos do termo que melhor se encaixe no contexto social que hoje se vive, o mais conhecido talvez seja “pós-modernidade”. Em seu livro “Pós Modernismo” Stanley Grenz (2008) faz uma ampla abordagem e propõe apresentar aos leitores um guia para a compreensão da filosofia do nosso tempo e realmente torna-se uma referência indispensável para aqueles que desejam conhecer este assunto tão vasto que é a “pós-modernidade”. Outro autor, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001), evita a utilização do vocábulo “pós-modernidade” e na maior parte dos seus escritos se encontrará o termo “modernidade líquida” sendo esse o título de um dos seus livros lançado em 2001 pela editora Zahar. Bauman (2001, p. 24) explica a razão pela preferência por esta expressão: Fluidez é a qualidade de líquidos e gases. O que distingue dos sólidos, como a Enciclopédia britânica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles “não podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis” e assim “sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão. (BAUMAN, 2001, p. 24). Destarte, parece ficar evidente que a inexistência de solidez permite a modernidade líquida se alterar constantemente. Ela adota várias formas, várias posturas, consegue se adaptar em várias circunstâncias e isso dificulta uma possível definição para esta sociedade. Já Gilles Lipovetsky (2005) faz o uso da palavra “hipermodernidade”, segundo ele, atualmente vivenciam-se as características da modernidade só que de maneira exacerbada “hiper”, o homem é “hiperconsumidor”, “hiperindividualista”, “hiper- hedonista”, para ele o termo “pós-modernidade” dá a ideia de ruptura total com a modernidade, o que parece não ter existido completamente, já que os indivíduos carregam ainda hoje características da hodiernidade. A confirmação disso é que o discurso de liberdade e individualidade já era empregado com a chegada da era das luzes e o espírito hedonista já existia no homem moderno, dentre outras características. ! 4 Analisando a “pós-modernidade” Lipovetsky (2005, p. 58) comenta que “do pós ao hiper: a pós-modernidade não terá sido mais que um estágio de transição, um momento de curta duração. E este já não é mais o nosso”. Desta maneira, vários são os termos utilizados para tratar do mesmo problema, das mesmas questões referentes à mudança da vigente sociedade. Apesar de que entre alguns desses autores como Bauman e Lipovetsky há certa divergência sobre os termos, nos seus escritos percebe-se que estão falando sobre um mesmo período de tempo, é nítido nos escritos deles a relação entre os problemas descritos com os que a sociedade atual enfrenta. Por existir divergência entre os autores e para facilitar a compreensão do leitor foi escolhida fazer a utilização do termo “contemporâneo” que transmite a ideia de algo, corrente, vigente, atual. 2. BREVE ANÁLISE DA GÊNESE DO INDIVIDUALISMO Ao falar sobre individualismo contemporâneo é interessante analisar onde repousam as suas bases e a origem do pensamento individualista. De forma geral, não é fácil conceituar um momento preciso para o surgimento desse movimento, alguns estudiosos o relacionam ao surgimento da Renascença, já outros, com a ascensão da burguesia. Desde o surgimento do homem e com a entrada do pecado no mundo houve a destruição genuína das relações sociais, aumentando no ser humano a busca por sua emancipação e cada vez mais seu reconhecimento enquanto indivíduo, separadodo todo e superior ao grupo do qual pertence. No entanto, o antropólogo Louis Dumont (1985) em seu clássico livro sobre “O Individualismo, uma perspectiva antropológica da ideologia moderna” propõe que a gênese do individualismo e suas raízes estão na herança que se obteve do pensamento judaico-cristão. Contudo, o individualismo vivenciado pelos primeiros cristãos não é o mesmo que vivenciamos, por isso, Dumont (1985, p.36) faz questão de esclarecer que há uma diferença entre a gênese do individualismo e o vivenciado nos nossos dias: Eis a minha tese, em termos aproximados: algo do individualismo moderno está presente nos primeiros cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata do exatamente do individualismo que nos é familiar. Na realidade, a antiga forma e a nova estão separadas por uma transformação tão radical e tão complexa que foram precisos nada menos de dezessete séculos de história cristã para completa-la, e talvez ainda prossiga nos nossos dias. (DUMONT, 1985, p.36). ! 5 Há um afastamento dos primeiros cristãos do mundo em que viviam, não por uma questão ideológica, ou pela busca de emancipação, mas segundo Dumont (1985) era algo necessário fazer para que houvesse uma busca em direção da verdade para se aproximar do sagrado, eles deviam se afastar e renunciar o mundo social dos seus dias, o que seria profano. Por isso, esse indivíduo que vive no mundo, mas o renunciou para uma relação com Deus é considerado “Indivíduo-fora-do-mundo”, já o indivíduo comum que tem seus objetivos em coisas terrenas e profanas ele considera “Indivíduo- no-mundo”. Entretanto, este afastamento do mundo social evidenciado pelos primeiros cristãos, não excluía suas responsabilidades como cidadãos. Isso pode ser observado na interrogação feita a Cristo sobre o pagamento de tributos e a sua ordem de “dar a César o que pertencia à Cesar, e à Deus o que é de Deus” (Mt 22:15-21). Pode ser encontrada essa realidade em várias outras passagens bíblicas como o conselho de Paulo a igreja de Roma para que obedecesse às autoridades políticas (Rm 13: 1-7). Tendo esse pensamento Dumont (1985, p. 44) comenta: “O individualismo extramundano engloba reconhecimento e obediência quanto às potencias deste mundo”. É com esta perspectiva que Dumont (1985, p. 51) observou a igualdade social que havia no cristianismo primitivo através do pensamento Paulino: A igualdade cristã estava, talvez, mais profundamente enraizada, no próprio coração da pessoa, mas era, mesmo assim, uma qualidade extramundana: “Não pode existir nem judeu nem grego... nem escravo nem homem livre... nem macho nem fêmea, pois na verdade sois todos um homem em Jesus Cristo”, diz Paulo. (DUMONT, 1985, p. 51). Havia no seio do cristianismo primitivo o interesse pelas relações sociais e a igualdade entre elas. Deste modo, encontramos uma espécie de individualismo completamente diferente do que se experimenta na sociedade contemporânea, a mudança foi acontecendo de forma gradual. O cristianismo primitivo renunciava o mundo para uma relação íntima com Deus por acreditar que o seu bem supremo estava na vida porvir. Por esta razão, as coisas existentes no mundo eram vistas apenas de duas formas: como meios ou como estorvos para alcançar o reino de Deus, enquanto a sua prioridade estava na relação entre os homens e esses eram vistos como imagem e semelhança de Deus, ao passo que o homem moderno subvertera esse pensamento primário do cristianismo substituindo as ! 6 relações entre os homens-com-homens pela relação entre os homens-e-coisas. (DUMONT, 1985). Essa mudança da relação do homem com o outro para a relação com as coisas promove a perda do senso de vida social e cristianismo comunitário; isso acontece de forma progressiva. Cada vez mais na história humana e principalmente na idade média até a reforma protestante, parece existir certo distanciamento do “indivíduo-fora-do- mundo” para um cristianismo onde cada vez mais o torna em “indivíduo-no-mundo”, foi perdendo-se a noção da relação com Deus, com o sagrado e a renúncia do mundo e passou a existir um cristianismo completamente envolvido com as questões mundanas, profanas. Para Dumont (1985) esse é um processo que se inicia ainda que timidamente na união entre Igreja e Estado, colocando diante da igreja uma relação direta com o mundo, com o profano, o cristão passa a não ter apenas uma relação direta com Deus “extramundana”, mas ele está ligado diretamente as questões seculares, “mundanas”, é como se o Estado estivesse dado um passo para fora do mundo enquanto a Igreja dava um passo em direção ao mundo. E durante esse período questões seculares que até então não eram preocupações cristãs agora passam a ser, dessa maneira o indivíduo cristão passa cada vez mais a se desligar de sua realidade extramundana para a realidade com o mundo, isso se culminará na reforma protestante, principalmente em um dos seus representantes históricos o calvinismo e a partir de então ele progredirá com o surgimento de seitas, através do iluminismo e assim por diante. Antes de prosseguir as explicações, faz-se necessário compreender a causa do deslocamento do indivíduo extramundano para um indivíduo mundano. Dumont (1985, p. 63) afirma que a tese é simples: Com Calvino, a dicotomia hierárquica que caracterizava o nosso campo de estudo chega ao fim: o elemento mundano antagônico, ao qual o individualismo devia até então reservar um lugar, desaparece inteiramente na teocracia calvinista. O campo está completamente unificado. O indivíduo está agora no mundo, e o valor individualista reina sem restrições nem limitações. Temos diante de nós um indivíduo-no-mundo. (DUMONT, 1985, p.63). A partir do pensamento de um Deus como vontade e da predestinação do homem, a ideia que passa a existir é que a inescrutável vontade divina investe alguns homens da graça salvadora da eleição, enquanto alguns outros são condenados à ! 7 reprovação, ou seja, perdição. Desse modo, aquele que foi eleito consiste em trabalhar para que haja a glorificação de Deus no mundo e a sua fidelidade a esta tarefa será a única marca e prova de eleição. Até então, o pensamento que existia era de que o mundo fosse algo antagônico, por isso devia evitar-se o envolvimento com ele, simplesmente uma submissão, agora vivenciar o mundo, trabalhar nele e realizar seus desígnios torna- se uma característica dos eleitos. Esse foi um tema abordado por Marx Weber em seu livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, no qual ele observa o conceito de vocação que se desenvolveu em Lutero na Reforma Protestante, o cristão agora estava diretamente ligado às atividades profissionais seculares como uma forma de reconhecimento da sua vocação. Narrando sobre o efeito da Reforma Weber (1999, p. 55) afirma: “O efeito da Reforma como tal, em contraste com a concepção católica foi aumentar a ênfase moral e o prêmio religiosa para o trabalho secular e profissional”. Antes da Reforma a atividade profissional era encarada de um ponto de vista neutro, Weber (1999, p. 53) afirma que o trabalho secular era visto: “como algo eticamente neutro, da mesma forma que o ato de comer e beber”. Mesmo que esse aspecto da Reforma aconteça de forma ingênua a nova ideia de vocação implantada estava completamente suscetível a diversas interpretações pessoais no sentindo da conduta secular. Pois, apesar do surgimento do conceito de vocação ser estabelecido de maneira que o homem é vocacionado a trabalhar para servir o outro, essa fundamentação logo desaparece, ficando apenas a ideia de que o cumprimento de atividades seculares sobre quaisquer circunstância é o único caminho para agradar a Deus. E o pensar dessa maneira provocou mesmo que de forma indireta no homem moderno um envolvimento direto com as atividades seculares e uma preocupação cada vez maior com essas atividades, esquecendo-se doobjetivo primário do cristianismo. Para Weber, essa qualificação da atividade secular foi sem dúvida umas das elaborações mais cheias de consequências do Protestantismo e do próprio Lutero. (WEBER, 1999). É importante ressaltar que a Reforma acontece dentro de um cenário onde intensas mudanças ocorriam com o período do Renascimento. Sejam elas na literatura, na arquitetura, na pintura, ou na ciência e tecnologia um turbilhão de modificações ascendiam e ganhavam espaço em estabelecer o pensamento humanista, onde o homem ! 8 é visto como centro de tudo, e passou a existir um desencadeamento do espírito hedonista, individualista e diversas outras ideologias. Foi nesse período então que deu o início da passagem da era Teocêntrica para a Antropocêntrica. Para Brown (2007, p. 37) a Reforma não só conviveu com dias renascentistas, como deve muito a ela: “A própria Reforma deve muito ao renascentismo da erudição secular e da busca pelo conhecimento, que floresceu no século XIV, no período conhecido como renascimento”. A partir de então o caminho ficou completamente aberto para o indivíduo, pouco a pouco mais relacionado com as atividades seculares, e os séculos seguintes evidenciaram como o homem se tornou o centro da história, como a tão prometida e sonhada liberdade humana pela era das Luzes tira Deus do cenário, e agora apenas o homem se basta para determinar o certo e o errado, para prover por meio da razão as respostas que são tão importantes. Os outros séculos que perpassam a história do homem não serão analisados neste trabalho, por não se constituírem objetivo da nossa pesquisa, como também pela necessidade de um período de estudo muito maior para concretizar tal abordagem. Contudo, a base inicial foi dada para possibilitar a compreensão de como surge o espírito cada vez mais individualista do homem moderno que é transmitido para o homem contemporâneo. 3. INDIVIDUALISMO CONTEMPORÂNEO No capítulo anterior pode-se perceber que muito do individualismo contemporâneo pode ser observado nas suas bases, e ao longo da era moderna, porém, agora encontramos algo mais intenso, exacerbado, um processo que parece ser contínuo sem controle, o sentimento imperante da nossa sociedade e principalmente nos centros urbanos, pois, a vida nas grandes cidades eleva o espírito individualista, o hedonismo, a busca incessante pelo prazer, algo muito contrário ao que se ver no utilitarismo de Stuart Mill, o desejo de satisfação não é do todo, mas do “eu”. Uma característica marcante e facilmente perceptível é que nunca foi tão fácil consumir, a sedução ataca pessoas de todos os lados, aumenta o processo de personalização, na mídia, no consumo, na política, educação, trabalho, esporte, enfim, ! 9 basta um olhar crítico e torna-se fácil perceber como todo esse processo leva o homem a sua tão sonhada liberdade, sua emancipação. A tecnologia é um dos meios mais eficazes no distanciamento do homem contemporâneo, aquilo que foi criado para facilitar a aproximação e melhorar a comunicação, tornou-se responsável pelo paradoxo atual, afinal, o uso excessivo das mídias sociais é capaz de aproximar pessoas que vivem tão distantes e ao mesmo tempo distanciar pessoas sentadas ao nosso lado no sofá, na mesa ou que vivem debaixo do mesmo teto. 3.1 O CONSUMO E A INDIVIDUALIZAÇÃO Poder-se-ia iniciar a reflexão sobre o individualismo contemporâneo pensando no homem que tem por seu lema “consumo, logo existo”, visto que o consumo em massa é uma característica marcante na atualidade. Há um consenso sobre que a valorização do indivíduo está intimamente relacionada com a sua capacidade de consumir, o ser humano encontra reconhecimento e atinge o topo à medida que aumenta a sua predisposição em adquirir. As pessoas valorizam mais do que nunca as outras por “ter” e não “ser”. Como se não bastasse o processo de personalização em que as coisas são feitas sob medida para cada pessoa gera um aumento ainda maior do consumo. Nas eras passadas, o comércio não possuía a mesma variedade que hoje, era comum ver a predominância de uma marca e com isso o indivíduo ao ir as compras devia substituir seu gosto pessoal pela oferta única oferecida. Breves exemplos disso são diversos filmes que narram à vida no início do século passado, no qual a cor predominante dos carros era preta, as pessoas compartilhavam praticamente os carros da mesma marca e da mesma cor. Além disso, o que se vê hoje é um processo de personalização, o desejo de satisfazer o “ego” do indivíduo a tal ponto que ele possa ter um produtor exclusivamente seu. E sobre a sedução utilizada pelo mercado do consumo e sua estratégia no processo de personalização, Lipovetsky (2005, p. 3), esclarece: A sedução nada ter a ver com a representação falsa e a alienação das consciências; é ela que dirige o nosso mundo e remodela de acordo com um processo sistemático de personalização, cuja a finalidade consiste essencialmente em multiplicar e diversificar a oferta, em oferecer mais para que você possa escolher melhor, em substituir a indução uniforme pela livre escolha, a homogeneidade pela ! 10 pluralidade, a austeridade pela satisfação dos desejos. (LIPOVETSKY, 2005, p.3). Fazer com que as pessoas vivam mergulhadas na possibilidade do acúmulo, esse é o grande desafio do consumismo, substituir as pessoas pelas coisas, é realmente uma possibilidade clara quando as pessoas são rodeadas pela cultura do consumo. Dentro dessa esfera há uma característica marcante, o homem perde a noção da responsabilidade com o outro, a satisfação no acúmulo é pessoal e íntima, pode-se fazer um experimento mental, quando analisa-se quantas pessoas tem centenas de pares de sapato, enquanto outras andam com sandálias remendadas com arames, nos closets abarrotados de roupas para cada ocasião, enquanto outros morrem pelo frio e a andam praticamente nus. Portanto, vários exemplos poderiam ser citados sobre o prazer do acúmulo que é uma característica marcante da nossa contemporaneidade, ter é o grande lema, e no meio dessa onda, o homem perde a essência do ser. Como perde também o sentimento de responsabilidade para com o próximo. Bauman (2008) faz duras críticas a sociedade contemporânea individualizada, para ele, muitos pelo desejo de consumir e de ter, vivem fazendo a mesma pergunta que Caim fez: “Sou eu por acaso guardador do meu irmão?”. (BAUMAN, 2008). O ser humano não consegue mais em meio a essa individualização conceber a ideia de “dependência”, afinal, depender do quê? E de quem? O ato de consumir constantemente o permite ter tudo que anseia e a satisfação dos seus próprios desejos, por qual motivo teria o homem a necessidade de depender? Parece que quando algumas pessoas se conscientizam da dependência do outro, exatamente por ser seres relacionais, isso causa uma revolta, um constrangimento. E é por isso que Bauman (2008, p. 96) no seu livro “A Sociedade Individualizada”, faz a seguinte afirmação sobre o verbo depender: “Dependência tornou-se um palavrão: refere-se a algo que as pessoas decentes deviam se envergonhar.”. A sociedade individualizada não se imagina mais dependendo, o sentimento de dependência que envolvia as relações passadas não existe na contemporaneidade. O consumo pode tudo prover ao indivíduo. Para Lipovetsky (2005, p. 30), essa maneira como o sistema atua empurra o indivíduo ao desejo de cada vez mais viver só, é uma espécie de independência, porém, ao mesmo tempo ele não suporta essa solidão, ou o que ele chama de “deserto”: ! 11 Não satisfeito em produzir o isolamento, o sistema engendra seu desejo, desejo impossível que, no instante em que é alcançado, revela- se intolerável: o indivíduo quer ser só, sempre e cada vez mais só, ao mesmo tempo em que não suporta a si mesmo estando só. A esta altura o deserto já não tem mais princípio ou fim. (LIPOVETSKY, 2005, p.30). 3.2A CONTEMPORANIEDADE E NARCISO Muitos estudiosos comparam o homem contemporâneo à figura da mitologia grega “Narciso”, exatamente pela sua capacidade de viver sem referências passadas e porque os padrões adotados são ditados por si mesmo. Pois, é um indivíduo que não consegue olhar o passado, nem o futuro, mas o seu olhar é voltado para dentro, para o agora, para si. Até mesmo porque a tradição como as instituições de ensino, a família, a igreja, passam a não ter mais valor para o homem narciso, ele já não tem mais um sentimento de pertencimento, ele é sua “auto referência”, tudo ocorre da maneira que melhor lhe agrada. E falando sobre a lógica Narcisista, Lipovetsky (2005, p. 33) afirma: “Hoje em dia vivemos para nós mesmo, sem nos preocuparmos com as nossas tradições e com a nossa posteridade, o sentido histórico foi abandonado da mesma maneira que os valores e as instituições sociais”. Esse é o indivíduo contemporâneo, mas conhecido como Narciso, olhando somente para si nega o passado, não tem sentimento de pertencimento, porém tem medo de olhar para o futuro causando uma total perda do sentido histórico que é exatamente essa erosão do sentimento de pertencimento. No entanto, essa perda do sentido histórico, esse olhar para dentro de si, apenas causa no homem narciso algumas ansiedades e inquietudes, pois a lógica utilizada por ele é o consumo, dando fim às estruturas passadas, como declara Charles e Lipovetsky (2004, p. 29): Se Narciso está tão inquieto, é também porque nenhum discurso teórico consegue mais tranquiliza-lo. Por mais que consuma freneticamente o espiritual isso não parece torna-lo mais sereno. A era do Hiperconsumo [...] assinalou o declínio das grandes estruturas tradicionais de sentido e a recuperação destas pela lógica da moda e do consumo. (LIPOVETSKY, 2005, p. 29). O que desencadeou esse narcisismo foi à perda generalizada dos valores e finalidades sociais que se deu por meio do processo de personalização tornando-o um Narciso sob medida. Porém, anular os sistemas de sentido como a família, religião, e com um hiperinvestimento no EU foi à combinação certa para a funcionalidade do prazer e do bem estar pessoal, onde isso tudo aponta para um individualismo puro. (LIPOVETSKY, 2005). ! 12 A vida cristã é fortalecida em muitos pontos ou se não em todos por suas bases no passado, até aquilo que se acredita ser a voz de Deus a “Bíblia” foi algo produzido no passado, as bases do cristianismo e da vida em comunidade têm suas raízes cerca de dois mil anos. Como falar da necessidade de um cristianismo relacional e comunitário para Narciso se ele não volta para olhar o passado? 3.3 APROXIMAR-SE E AFASTAR-SE Nunca se viu tanto como nos dias contemporâneos a busca por profissionais especializados em relacionamentos. Dos aconselhamentos mais procurados o relacionamento é a centralidade na maior parte dos assuntos atuais, é como o sociólogo polonês Bauman (2004) em seu livro “Amor Líquido” nomeia esse fenômeno como o “Boom”. A procura crescente pelo assunto, por se especializar nesta área, demonstra que o homem contemporâneo vive em busca de relacionar-se. Porém, parece que não sabe muito bem por onde começar. Vivem a ambiguidade de querer aproximar-se, mas, para não se expor e manter a individualidade acabam por afastar-se, esse dilema permeia a atualidade sobre esse assunto. Por isso, Bauman (2004, p. 8) cita: O tema central deste livro é o relacionamento humano. Seus personagens centrais são homens e mulheres, nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonado aos seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com quem possam contar num momento de aflição, desesperados por “relacionar-se”. E no entanto desconfiados da condição de “estar ligado”, em particular de estar ligado “permanentemente”, para não dizer eternamente, pois temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que eles não se consideram aptos nem dispostos a suportar e que podem limitar severamente a liberdade de que necessitam para sim, seu palpite está certo, relacionar- se. Em nosso mundo de furiosa individualização os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo. (BAUMAN, 2004, p.8). O homem não foi criado para viver sozinho e isolado uns dos outros, mas ao mesmo tempo vive hoje numa sociedade que o leva ao medo de relacionar-se, fazendo com que ele prefira muitas vezes a distância e a solidão do que uma companhia e a exposição das suas questões pessoais. Por esse paradoxo de querer estar perto e ao mesmo tempo longe, o advento da internet foi uma opção excelente. É exatamente como apresenta Charles e Lipovetsky (2004, p. 28) vivencia-se hoje “Um desenvolvimento desenfreado das tecnologias de informação” e o fácil acesso a essa tecnologia e as mídias faz com que o indivíduo não se perceba só, mesmo não tendo alguém de ! 13 verdade. Ao mesmo tempo em que até certo ponto ela alivia a dor da solidão, por outro lado empurra o homem para um isolamento intenso. As relações virtuais são capaz de substituir as interações e contatos face a face, o surgimento de Facebook, MySpace, Whatsapp, Instagram, e outras mídias sociais foram a solução exata para pessoas que ansiavam pelas relações com o outro, mas não se sentiam confortáveis ou até mesmo infelizes quando por vezes cercadas de pessoas. Essas redes sociais trazem uma sensação boa de que nunca se está só, se tem companhia durante os sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia, tudo muito simples e fácil apenas em um “click”. Nesse mundo virtual ninguém fica fora ou distante. Outra característica que atrai a sociedade contemporânea para esses relacionamentos é o simples fato de que a qualquer momento eles podem ser desfeitos e isso não gera nenhum trauma, dor ou sofrimento, dar um fim em relacionamentos reais nem sempre é fácil, enquanto os virtuais promove a facilidade de aproximar-se sem envolver-se. (BAUMAN, 2011). Com a virtualização dos relacionamentos Bauman (2004, p. 111) comenta que as relações não são mais estabelecidas no compromisso, essa é uma palavra que parece não existir no vocabulário humano: O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o compromisso incondicional e certamente aquele do tipo “até que a morte nos separe”, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a todo o custo. (BAUMAN, 2004, p.111). Os relacionamentos estão em jogo na vida do indivíduo contemporâneo, apesar do desejo de aproximar-se, há uma força atraente para a repulsão, a falta de confiança gerada nos relacionamentos atuais e a ausência de compromisso, fazem com que o homem se isole mais e mais e viva a solidão do individualismo. 4. REFLEXO DO INDIVIDUALISMO NA IASD Ao olhar para o interior da comunidade cristã, pode-se perceber que aos poucos esta tem sido afetada pela cultura do individualismo contemporâneo. Essa é uma realidade que atinge atualmente todos os níveis, desde as igrejas das pequenas cidades, às congregações das grandes metrópoles, no entanto, tendo uma maior ênfase nas ! 14 últimas, afinal, de acordo com Libánio (2002, p. 72) “a cidade exacerba o subjetivismo e o individualismo”. À medida que o tempo passa as pessoas desconhecem o outro dentro da própria comunidade cristã, ou já não têm tempo e interesse suficientes para se aproximarem. Como foi visto anteriormente, a religião de modo geral está baseada na lógica do consumo, e desse modo Charles e Lipovetsky (2004, p. 31) afirmam: “A religião atualizou-se com o consumo abandonando o ascetismo em favor do hedonismo e do espírito festivo”, a ida aos cultos tem se dado por um desejo de satisfação pessoal apenas, é como se consumisse um culto que foi “pago” para ter e nessa lógica do consumo não há espaço parapreocupar-se com o outro. Os indivíduos vão à igreja como se esta fosse um shopping center, e tudo que querem é sair daquele lugar satisfeitos, afinal, eles precisam seguir o processo de personalização, é importante ser um culto que “seduz”, por isso há de se questionar: “Quais serão as atrações do culto neste final de semana?” “Quem será o pregador?” “Está vindo algum grupo musical de fora?” “- Ah! Não acredito que não terá ninguém importante!” “- Acho que hoje não vou!” Sem que se perceba a igreja é afetada pela mentalidade do consumo com seu processo de personalização. Se o culto não parece ser agradável então não faz sentido ir, se não “seduz” é melhor deixar para uma próxima oportunidade. Desta maneira as pessoas não vão à igreja para estar juntos em comunidade e prestar um culto de adoração a Deus. Afinal, por falar no assunto o que é mesmo comunidade? Essa palavra para muitos tornou-se um paraíso perdido como afirma Bauman (2003, p. 9): “Comunidade” é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido — mas a que esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-nos até lá. Paraíso perdido ou paraíso ainda esperado; de uma maneira ou de outra, não se trata de um paraíso que habitemos e nem de um paraíso que conheçamos a partir de nossa própria experiência. Talvez seja um paraíso precisamente por essa razão. A imaginação, diferente das duras realidades da vida, é produto da liberdade desenfreada. (BAUMAN, 2003, p. 9). Mesmo estando na igreja o homem parece estar rodeado de pessoas desconhecidas e quando alguém o cumprimenta desejando um simples feliz sábado, ele encontra uma “válvula de escape” para conseguir se comunicar, e muitas vezes por não saber o seu nome, utiliza-se a palavrinha mágica que soluciona todos os problemas ! 15 “irmão”, talvez essa seja a maneira mais eficiente de sair de uma situação quando desconhece os nomes das pessoas que fazem parte da mesma comunidade cristã. A palavra irmão é carregada de um significado profundo, pode-se perceber que ao longo do novo testamento as pessoas se conheciam muito bem, mas elas não se satisfaziam em chamar apenas pelo nome, para que houvesse mais uma noção de companheirismo, fraternidade, comunidade e unidade, eles preferiam chamar uns aos outros de irmãos (Atos 9:17). Hoje em dia essa palavra não parece ter o mesmo propósito, mas é muito útil, pois, pela falta de convívio e conhecimento mútuo o homem nem sequer sabe os nomes das pessoas que sempre encontram nos cultos. Medina (2002, p. 57) faz uma análise sobre o Salmo 133 e sobre a experiência e o prazer de viver unidos os “irmãos”, em seu artigo ele faz uma análise da palavra ao longo do texto hebraico no antigo testamento e chega a seguinte conclusão: “[...] uno de los empleos teológicos más relevantes es la fraternidade en la vida diária: la confianza, el afecto y la disponibilidade (cf. Pr 17:17; 18:24; 27:10; Sal 133:1).” Medina (2002, p.57) ainda afirma que a onda do individualismo é absorvida pelo cristianismo e por isso se vive cada vez mais longe do ideal de unidade: Vivimos en una época donde el individualismo está presente en todas las áreas del quehacer humano; la autonomia y la autorrealizacíon son lo más importante. Desafortunadamente, la iglesia o congregación de creyentes influenciada por este pensamiento contemporaneo se encuentra cada vez más lejos de alcanzar el idela de la unidad, que es un principio eterno inherente a Dios. Esta unidad se puede expressar por médio del compañerismo o fraternidade. (MEDINA, 2002, p.57). É importante se analisar o contexto do surgimento da Igreja Adventista do Sétimo Dia. É perceptível que os primeiros adeptos da mensagem do advento eram pessoas completamente dedicadas ao estudo da palavra, porém, isso não os impediam de viver a plenitude da comunidade. Em seu livro “Como Reavivar a Igreja do Século 21” Burril (2005, p. 128) afirma que: “Parece óbvio, pelas evidências examinadas, que os adventistas primitivos estavam tão preocupados com a comunhão quanto com a doutrina”. Eles se utilizavam de algo que era conhecido como “reuniões sociais”, eram encontros que tinham como objetivo a participação mútua dos membros da comunidade, um espaço para que pudessem abrir o coração e compartilhar as lutas e vitórias vivenciadas. Algo de cunho extremamente relacional, esses encontros eram tão importantes para muitos como o próprio culto. É interessante notar que a reunião era ! 16 marcada por um momento em que havia forte confissão de pecados. No entanto, o adventismo primitivo conseguiu produzir uma abertura onde as pessoas fossem levadas a se sentirem livres para compartilhar as suas angústias, seus problemas e até mesmo seus erros. (BURRIL, 2005) Será que hoje muitas congregações teriam coragem de afirmar que confiam plenamente em seus “irmãos” e poderiam a eles abrir o coração? Por isso que Burril (2005, p. 119) afirma que “nosso método moderno criou pessoas que não são fortes nem no estudo da Bíblia nem nos relacionamentos.”. Uma sequência de interrogações feitas por Burril (2005, p. 29) são importantíssimas para trazer uma reflexão, após afirmar que dentro do adventismo passou a existir um forte espírito de independência entre os membros da comunidade; ele então questiona: Pode ter o adventismo inconscientemente aceitado o rude individualismo da América como evangelho? Temos nós, que falamos tanto sobre a criação, falhado em viver o propósito inicial de Deus na criação de nossos primeiros pais o de viver em comunidade uns com os outros e com Deus? Por que nós adventistas lutamos uns contra os outros para obter nosso próprio sucesso, ao invés do sucesso da comunidade? (BURRIL, 2005, p.29). Essas são algumas interrogações que precisam ser respondidas. A escritora Ellen White (2004, p. 457) advertiu algumas pessoas em seus dias, que mesmo com a ênfase nas reuniões sociais ainda preferiam viver de maneira isolada, ela considerava ser ainda muito pouco o desejo dos cristãos pela sociabilidade: A sociabilidade cristã é na verdade bem pouco cultivada pelo povo de Deus. Os que se encerram em si mesmos, que não avessos a se desdobrarem para beneficiar os outros mediante amigável convívio, perdem muitas bênçãos, pois, mediante o contato mútuo os espíritos são polidos e refinados, por meio do intercâmbio social formam-se relações de amizades que dão em resultado certa unidade de coração e uma atmosfera de amor que agradam ao céu. (WHITE, 2004, p.457). Há necessidade de um urgente despertar, a igreja não pode deixar-se levar pela cultura do individualismo contemporâneo mesmo que de maneira inconsciente, é necessário retornar a vida em comunidade, a fraternidade mútua e ao amor não fingido. Quando se lê o Novo Testamento e se percebe tudo que acontece na vida da igreja primitiva, o sonho de uma igreja ideal é despertado. Sabe-se que não se poderá reproduzir a igreja do Novo Testamento perfeitamente como esta foi, afinal, não há como comparar os contextos históricos, são pessoas diferentes, costumes diferentes, momentos da história muito distintos, porém, ! 17 apesar de não se conseguir repeti-la, vários princípios básicos podem ser acatados. Pois, é evidente que um dos mais marcantes é a vida em comunidade, isso fez com que aquela igreja se desprendesse dos seus bens; vendiam tudo que possuíam para repartir com o “irmão”(Atos 4:32, 34, 35). É preciso hoje fazer o mesmo? É necessário vender casas e propriedades para repartir? O que está em evidência nessa narrativa é o princípio que envolvia essa igreja, o amor mútuo e o desejo de viver em comunidade, e a forma que eles tinham de expressar esse sentimento era por meio da repartição dos bens e dos alimentos de casa em casa, como também nas orações (Atos 2:42). Ao se falar em vida em comunidade não há como se esquecer do apóstolo Paulo, à medida que ele passava porvárias cidades ele possuía uma característica especial, promovia os encontros mais íntimos e relacionais que eram feitos dentro das próprias casas. Hoje quantas pessoas abrem as portas para receber estrangeiros ou até mesmo membros da sua própria comunidade cristã? Parece que é necessário manter um limite de proteção porque alguém ir até a sua casa pode ser um sinônimo da ausência de privacidade. Acerca dos cultos nos dias de Paulo, Meeks (2011 p. 173) diz: A adaptação dos grupos cristãos à casa acarretava certas implicações tanto na estrutura interna dos grupos quanto para seu relacionamento com a sociedade mais ampla. O novo grupo era, portanto, inserido em uma rede de relacionamentos já existente ou superposto a ela, esses relacionamentos era de cunho tanto internos, parentescos, clientela e subordinação, quanto externos, amizade e talvez ligações decorrentes de ocupações profissionais. (MEEKS, 2011, p. 173). Ao se deparar com as epístolas paulinas não há como ler profundamente sem perceber que havia nelas o interesse pela vida interna dos grupos de cristãos em cada cidade maior parte da correspondência. Essas mesmas epístolas revelam como cada membro desfrutava de um grau elevado de intimidade com altos níveis de interação entre si. (MEEKS 2011). A unidade dessa comunidade para Paulo fica clara em algumas metáforas que ele utiliza nos seus escritos, e ao falar sobre os dons espirituais dando a ideia de unidade na diversidade. Sobre esse assunto Burril (2005 p. 80-81) afirma: A afirmação mais conclusiva de Paulo sobre comunidade encontra-se nas passagens paralelas de Romanos 12 e I Coríntios 12, nas quais ele discute os dons espirituais no contexto da unidade da comunidade de Cristo. Note um dos versículos chaves dessa passagem: “Porque assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros tem a mesma função, assim também nós conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros”. Aqui Paulo enfaticamente declara que todos os cristãos são membros de um ! 18 corpo, eles existem em comunidade. Todos podem funcionar de forma diferente, de acordo com seus dons, mas são mutuamente dependentes uns dos outros. Não há lugar aqui para cristão isolado. (BURRIL, 2005, p.80-81). A metáfora do corpo humano e a comunidade cristã utilizada por Paulo é importante para ajudar na compreensão de algumas lições. Deus vê cada ser humano como único e ele pode viver a sua individualidade, mas ela não pode ser levada ao extremo a ponto de comprometer a vida em comunidade. Perto de encerrar o assunto da metáfora Paulo cita os seguintes versos: “Desse modo não existe divisão no corpo, mas todas as suas partes tem o mesmo interesse umas pelas outras. Se uma parte do corpo sofre, todas as outras sofrem com ela. Se uma é elogiada, todas as outras se alegram com ela.”(I CORÍNTIOS 12:25-26)” É exatamente esta experiência que a igreja precisa voltar a viver, de compartilhar a dor e a alegria, as lágrimas, mas também os sorrisos. Ela precisa empurrar para distante a cultura do individualismo contemporâneo e experimentar a vida em comunidade. Com o intuito de finalizar o pensamento central trazido por este trabalho, bem como as questões aqui levantadas, será utilizada uma definição poética sobre o que é a comunidade dita por Bauman (2003, p. 7-8): Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar — estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros (com certeza, dificilmente um “canto” aqui é “escuro”). Numa comunidade, todos nós entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. (BAUMAN, 2003, P. 7-8). A vida em comunidade pode representar um teto sobre a qual o homem se abriga da chuva pesada, uma lareira para aquele que lá fora está congelado pelo frio, um lugar seguro para quem corre os perigos do mundo externo. Essa definição parece utópica para muitos, mas poderá ser real ao passo que se decida vivê-la não apenas pela lógica do consumo, do individualismo, do hedonismo, mas sim pela lógica Divina em restaurar o homem a imagem e semelhança de Deus. ! 19 CONCLUSÃO Há uma necessidade de buscar compreender as características do individualismo do homem contemporâneo, afinal, por meio desta compreensão teremos uma clareza maior sobre alguns comportamentos individualistas dentro da comunidade cristã. Neste trabalho analisamos que o surgimento do individualismo contemporâneo tem suas bases numa era distante. Foi proposto o estudo com base no cristianismo primitivo, porém, os primeiros cristãos se desassociavam da vida mundana para viver um relacionamento maior e autêntico com Deus, contudo, essa atitude em desassociar- se do mundo não significava um descompromisso com as questões sociais e civis, sendo assim, não encontramos na vida “extramundana” do cristianismo primitivo as mesmas características do individualismo contemporâneo. O estudo seguiu propondo uma análise na reforma protestante, e a compreensão calvinista de “vocação” foi o que desvendou no homem a intenção de envolver-se com o mundo secular, tendo em mente que seu progresso no trabalho secular era reflexo da sua vocação divina; a partir daí encontraremos um homem mais empenhado nas atividades profanas em busca de um crescimento pessoal como alvo da vocação. Sua característica principal não estará mais numa vida “extramundana”, mas “intramundana”. Nesse momento da história a ideologia da renascença ganhava cada vez mais força, e o homem se tornava o centro da vida. A era das luzes chegou para corroborar com esse pensamento, e assim o homem moderno vai dando as bases para o individualismo contemporâneo, que tem como suas características principais um indivíduo que vive para o consumo. Nessa lógica, as coisas são personificadas e as pessoas transformam-se em objetos, é um homem narcisista que não tem bases no passado, mas ele é seu próprio referencial; a internet contribui para o homem contemporâneo viver a fragilidade das relações e intensificar seu comportamento individualista. Dentro desse contexto social está estabelecida a igreja de Deus que é composta de homens que estão expostos a essas mesmas condições sociais e comportamentos, por isso, a ideologia individualista tem sido notada dentro da igreja; a fé, a vida cristã e os cultos têm se personalizado. Perdemos o compromisso com o outro, somos desconhecidos de nós mesmos dentro da comunidade cristã. Com essas características ! 20 aquilo que fomos chamados a fazer que é exatamente restaurar a imagem de Deus no homem abreviando assim a volta de Jesus, vai se perdendo com o passar do tempo. Precisamos despertar e retornar ao principio da vida em comunidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BAUMAN, Zygmunt. A Sociedade Individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2008. BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. BÍBLIA. N.T. 1 Coríntios. Bíblia de Estudo Nova Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2005. p.1169. BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2007. BURRIL, Russel. Como reavivar a igreja do século 21: o poder transformador dos pequenos grupos. SãoPaulo, Casa Publicadora Brasileira, 2005. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. GRENZ. J. Stanley. Pós-modernismo: Um guia para entender a filosofia de nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 2008. LIBANIO, João. As lógicas da cidade: O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo: Edições Loyola, 2001. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005. LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004. MEDINA, Richard W. La unidad de la iglesia según el Salmo 133. In: KLINGBEI, Gerald A; KLINGBEI, Martin G.; NÚÑEZ, Miguel Ángel (Ed.). Pensar la iglesia hoy: hacia una eclesiologia adventista: estudios teológicos presentados durante el IV ! 21 Simposio Bíblico-Teológico Sudamericano en honor a Raoul Dederen. Entre Rios: Editorial Universidad Adventista del Plata, 2002. MEEKS, Wayne. Os primeiros cristãos urbanos: O mundo social do apóstolo Paulo. Santo André: Academia Cristã/Paulus Editora, 2011. WEBER, Marx. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999. WHITE, Ellen G. O Lar Adventista. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2004.
Compartilhar