Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
INTRODUÇÃO Quando li pela primeira vez a tese do Prof. Celso Cordeiro Machado, intitulada Limites e conflitos de competência tributária no sistema brasileiro, e observei a preocupação desse jurista com o que denominou, já na introdução de sua obra, de “tipicidade legal dos fatos geradores”,1 impressionou-me o tema de forma profunda. Nessa obra pioneira, denuncia-se o fato de os governantes e seus colaboradores incorrerem frequentemente em “lamentável desco- nhecimento do espaço operacional do poder impositivo do Estado, dentro das perspectivas de nossa ordem jurídica”.2 Desde então, perseguiu-me a ideia de desenvolver estudos sobre o tipo no direito tributário. Em minhas investigações, parti, não obstante, da hipótese usual e indiscutida dentro da literatura nacional e latino-americana de que, na tipicidade, se assentam os princípios básicos da segurança e da estabilidade das relações jurídicas. Esse prejuízo, constantemente reforçado pela leitura das obras de direito penal nacionais, foi sendo pouco a pouco abalado, até des- moronar por completo, à medida que aprofundava meus estudos em campo teórico mais amplo, no direito alemão, berço originário, ejetor da teoria do tipo para as obras latino-americanas. O assunto é tormentoso, riquíssimo, inesgotável e altamente polêmico e não poderia ser apresentado com a cândida simplicidade de quem ignora sua complexidade, geradora daquilo que Leenen chama de “o mal-estar na tipológica”.3 1 Cf. MACHADO, Celso Cordeiro. Limites e conflitos de competência tributária no sistema brasileiro. Tese (Doutorado) – UFMG, Belo Horizonte, 1968. p. 9. 2 Cf. MACHADO, Celso Cordeiro. Limites e conflitos de competência tributária no sistema brasileiro. Tese (Doutorado) – UFMG, Belo Horizonte, 1968. p. 9. 3 V. LEENEN, Detlev. Typus und Rechtsfindung. Berlin: Duncker & Humblot, 1971. p. 17. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 29 07/08/2018 15:04:44 30 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO A consciência da extensão e dificuldade do tema levou-me a tomar a decisão de abandonar a questão relativa à competência das pessoas estatais na Federação brasileira, uma vez que indagações preli minares (como: que são os tipos? a que servem?) deveriam ser cuidadosamente respondidas num contexto mais amplo. É que críticas a noções tão sedimentadas no direito exigem reflexões e demonstrações mais acuradas, num esforço extraordinário. Esta obra apesar de afirmar que o pensamento tipológico não é adequado à ciência do direito tributário e do direito penal, campos onde o espaço reservado aos tipos é muito pequeno, é revolucionária apenas no sentido técnico-formal. Do ponto de vista material, a tese não destrói, mas afirma clássicos princípios jurídicos, os quais, não obstante, são melhor aten- didos por meio dos conceitos determinados do que por meio das estruturas flexíveis e fluidas do pensamento de ordem, que são os tipos. Ela não rompe com a ciência do direito, pois, retificadas as questões terminológicas entre tipo e conceito, reconhece a importância do pensa- mento lógico-sistemático. Como negar o progresso que essa forma de pensamento lógico sistemático tem trazido ao direito tributário, através das obras de Geraldo Ataliba, Alberto Xavier, Celso Cordeiro Machado, Rubens Gomes de Souza, Souto Maior Borges, Barros Carvalho, Sacha Calmon, Ulhoa Canto...? Para Michel Foucault, “se quisermos realmente conhecer o co nhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder”.4 Ao analisar a formação de certos domínios do saber, especial- mente jurídicos, Foucault demonstra que, em sua gênese, encravam-se as relações de força e as relações políticas da sociedade. Refere: com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o que há antinomia entre saber e poder [...]. Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textos já citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.5 4 Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 4. ed. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e outro. Caderno PUC, Rio de Janeiro, n. 16. p. 17. 5 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 4. ed. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e outro. Caderno PUC, Rio de Janeiro, n. 16. p. 40. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 30 07/08/2018 15:04:44 31 INTRODUÇÃO Se o conhecimento pode ou deve ser abordado sob o ângulo de sua politicidade como quer Foucault, deve-se confessar que a ciência jurídica foi tramada nas lutas e relações políticas. Como fruto dessa luta, de forma positiva, contribuiu para a construção de conceitos por via dos quais valores fundamentais puderam ser mantidos na luta do homem pela liberdade frente aos poderes públicos. Nessa tese, princípios como legalidade, determinação e especi- ficidade conceitual (impropriamente denominado “tipicidade”) são pressupostos de que partimos, como marcos de conquista democrática. Não incorremos, porém, no equívoco de divisar no Poder Judiciário função meramente aplicativa e mecânica, erro que, desde O. Bülow, tornou-se patente, sendo cediço afirmar o papel criador do juiz a quem cabe a missão de produzir o direito, distribuindo a justiça no caso concreto. Nessa missão, atualizam-se e desenvolvem-se os conceitos da ciência jurídica, sujeitos que estão às mutações sociais e políticas penetradas na jurisprudência e na lei. Tal historicidade, tão brilhantemente compreendida por Souto Maior Borges,6 não nos parece deva servir para quebrar o princípio da legalidade, especialmente quando ele se alia à legitimidade. Quem pretende alcançar reais mudanças sociais e políticas não deve pregar o mero recuo do formalismo jurídico, identificar a legalidade com o direito liberal burguês, preconizando a progressiva libertação do juiz aos vínculos da lei. É vão e ingênuo supor que reivindicações sociais que não encon- tram resposta no parlamento, órgão sensível às pressões populares, possam ser atendidas pela via judicial, pois, ao contrário, o Poder Judiciário delas está mais distante, captando-as com maior lentidão e independência, pelo menos em nosso modelo jurídico. Se se pretendem obter reformas sociais e políticas profundas, tanto nos países do common law, como naqueles de civil law, transformem-se os fatos e as relações político-sociais, pois apenas minar a crença na obediência à lei e em sua primazia é estratégia que, com mais êxito, poderia manejar a elite dominante. Consciente politicamente, ela é que recorre frequentemente ao Poder Judiciário e tem condições econômico-materiais de resistir ao penoso emperramento da máquina administrativa e judicial do Estado. Nem se suponha que a legalidade, como manifestação política de autodeterminação ou como baluarte da segurança jurídica (quer no 6 Cf. BORGES, Souto Maior. Obrigação tributária. Uma introdução metodológica. São Paulo: Saraiva, 1984. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 31 07/08/2018 15:04:44 32 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO direito penal, quer no direito tributário), responda apenas a interesses de uma minoria, real detentora do poder social. A lei, como antevisão dos fatos incrimináveis, oferece um mínimo de previsibilidade e garantia, no direito penal. Os tributos, como se sabe, em particular os impostos ditos “indiretos”, não são suportados economicamente por aqueles que, de fato, obtêm a mais-valia comercial, industrial ou financeira, mas pelo consumidor final, representando um encargo difuso na sociedade. Somente pelo autoconsentimento (autotributação), que a lei cris taliza, poder-se-á dar o primeiro passo na trilha longa e difícil da realização de umademocracia plena. Afinal, ela começa aí, na forma elementar de autodeterminação política, e caminha na busca de uma igualação material, que extinga as grandes diferenças socioeconômicas, existentes entre os indivíduos e os grupos. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 32 07/08/2018 15:04:44 CAPÍTULO 1 DOS DIVERSOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TIPO 1.1 Origem dos significados da palavra tipo Coube a Erich Heyde1 elaborar a melhor contribuição ao conhe cimento da história dos diversos significados da palavra tipo e, sobretudo, explicar o uso atual do termo na acepção que lhe vem empres tando a metodologia moderna. A forma latina typus adveio da palavra grega τύπος. Origina- riamente, τύπος tem o sentido de impressão de uma forma, forma oca, relevo, impressão, batida, cunhagem. Também passa a significar estátua, imagem, esboço, aparência, forma;2 τύπος tem, inicialmente, dois sentidos próprios e pacíficos: • de cópia, contorno ou molde determinante da forma de uma série de objetos que deles derivam. A cunhagem de moedas ou o selo e sua impressão exprimem a ideia de um tipo em correlação à ideia de seus exemplares ou empregos;3 • de exemplo ou modelo, em acepção mais valorativa, derivando para protótipo ou arquétipo. O termo adquire outras conotações em Platão, Aristóteles ou Theophrast sem que atinja a riqueza de teor atual. Platão emprega 1 V. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. 2 Cf. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. 3 Cf. LALANDE, Andre. Vocabulaire de la philosophie. Paris: PUF, 1951. p. 1.155. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 33 07/08/2018 15:04:44 34 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO a palavra τύπος no sentido de uma representação esquemática ou essência de uma coisa.4 Com sua recepção no vocabulário latino, Cícero e Plinius o uti- lizam como figura ou imagem. Os dicionários franceses do séc. XVIII registram a palavra type com o sentido de modelo, totalidade da forma, modelo para coisas, totalidade da forma básica, natureza, espécie nas coisas etc.5 Também a literatura médico-psicológica dos franceses dos sécs. XVIII e XIX, em Hallé (1797), Cabanis (1802), Thomas de Troisvèvre (1821) e Rostan (1826), usa o termo type no sentido de forma básica (tipo torácico ou respiratório, muscular, abdominal ou digestivo etc.), sentido esse que tem aplicação até hoje, na pesquisa psicológico- caracterológica.6 Não obstante, alerta Heyde, quem quiser encontrar as origens do atual conceito de tipo das ciências humanas, sobretudo na Alemanha, como ordenação do conhecimento que guarda a possibilidade de transições fluidas e ininterruptas, não deve voltar à mesma raiz, mas buscá-las nas ciências naturais, especialmente na zoologia e botânica. Nesse campo do conhecimento, passou-se da rígida distinção entre si das espécies ou gêneros animais ou vegetais (p. ex., em Cuvier, Linné), 4 Cf. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. p. 220. 5 Observa Heyde que, embora a medicina, em aquisição unilateral da língua grega, se utilizasse da palavra typus para designar conjunto de febres e doenças semelhantes, o latim eclesiástico posterior foi importante na fixação do termo como componente da língua latina. Foi decisiva para o desdobramento de sentido da palavra a introdução gradual da forma latina typus nas línguas romanas, especialmente no francês (type ou tipe). Apesar de o primeiro aparecimento, em língua francesa, datar do ano de 1327, apenas no séc. XVII o uso da palavra é registrado com maior frequência, generalizando-se a partir do séc. XVIII. No séc. XVIII, a palavra type ainda significava Uhr (inicial, primeiro) ou forma básica. Nesse sentido, aliás, é a teoria dos tipos orgânicos de Geoffroy Saint-Hilaire e sucessores, segundo a qual os seres vivos são construídos segundo um plano único ou um pequeno número de planos. Afirma ainda Heyde que, com essa mesma conotação, a palavra é introduzida, nesse período, na língua alemã. Kant fala, mesmo ocasionalmente, na “Kritik der praktischen Vernunft”, a propósito da “typik der reinen praktischen Vernunft” (tipologia da razão prática pura), ou do tipo da lei natural ou leis da liberdade e semelhantes, a que Mellin se refere em seus dicionários. Cf. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. p. 222. 6 Sobre o conceito de tipo atual nesse campo, fala Willwoll: “O conceito de tipo desempenha importante papel em quase todos os domínios particulares da psicologia, especialmente na caracterologia, pois permite operar diferenciações melhores e mais próximas da realidade, entre homem e homem, entre grupo e grupo, do que o permitem as noções de gênero e espécie, dotadas de rigor lógico, mas também de rigidez”. V. BRUGGER, Walter. Dicionário de filosofia. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Herder, 1962. p. 523. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 34 07/08/2018 15:04:44 35CAPÍTULO 1DOS DIVERSOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TIPO baseada no pensamento conceitual aristotélico, à questão cada vez mais debatida (p. ex., em Decandolle) sobre a relação das variedades, tipos ou espécies (Abarten), até que se buscou um “sistema natural”, com transições graduais entre os tipos isolados.7 Resultou, então, que os tipos, em comparação com sua forma de transição mais ou menos próxima, mais imperfeita, surgiriam como formas plenas, nas quais a essência da espécie ou do gênero aparece como forma exemplar. No curso desse pensamento comparativo, certos representantes especiais foram considerados formações plenas de um tipo-padrão. P. ex., a tulipa, como representante das monocotiledôneas.8 A admissão de transições contínuas e ininterruptas entre as espécies e a relação com formas comparativas menos “marcantes” penetravam cada vez mais no significado da palavra tipo e, já na metade do séc. XIX, em botânica, torna-se reconhecido esse sentido da palavra. Não obstante, no campo das ciências humanas, não se utilizava o termo, à mesma época, nessa acepção. Foi graças aos estudos de lógica que, posteriormente, foi empregada a palavra tipo como alternativa ao tradicional conceito de classe e espécie, ao qual se opõe. Heyde atribui ao prestígio, que John Stuart Mill desfrutou nos meios intelectuais alemães, a disseminação do uso do termo tipo, nas ciências humanas, no sentido que a lógica moderna lhe confere. É que, em 1893, em seu Sistema de lógica dedutiva e indutiva, Mill criticou o novo conceito de tipo, e, com isso, involuntariamente, impulsionou a dis cussão que, então, se instalou na lógica. A partir daí Sigwart, Lotze, Wundt, B. Erdmann e outros tratam do tipo em seus escritos de lógica; Menger, Jellinek e Max Weber abordam o tema em economia; igual- mente a psicologia se apodera do conceito – de que são exemplo os tipos psicológicos de Jung – e, finalmente, a história passa a discuti-lo. Em resumo, Heyde conclui que, hoje, a palavra tipo é usada no sentido geral de forma básica (Grundform) ou essência, tanto na acepção mais específica de “plano de construção”, como, por outro lado, no significado mais lato de forma plena como padrão.9 Percebe-se, pois, que o sentido originário da palavra τύπος, como forma básica, molde ou modelo, nunca se perdeu. Com a incorporação 7 V. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. 8 V. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. 9 V. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitragzur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. p. 223. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 35 07/08/2018 15:04:44 36 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO da palavra grega no léxico latino e a sedimentação de seu uso pelo latim eclesiástico, se lhe foram acrescentando novas conotações. As concepções teológicas da Idade Média e a importante teoria platônica das ideias como modelos (tipos) das coisas, como existiu no neoplatonismo, reforçaram o uso do termo como modelo ou padrão.10 Não obstante, o tipo, como forma de ordenação lógica do conhe- cimento que admitia, por comparação, as transições fluidas e contínuas, somente se firma no séc. XIX, no campo das ciências naturais e se instala, já no séc. XX, no domínio das ciências sociais. Em última análise, porém, há pontos comuns entre os signi- fi cados da palavra, embora enriquecidos por vertentes diferentes. É que a constatação das transições fluidas e ininterruptas da realidade recrudesceu o sentido de tipo como modelo, padrão ou forma plena, do qual as diferentes variedades entre as espécies são, por comparação, o preenchimento mais ou menos imperfeito de suas características. Nessa linha de raciocínio, tanto o tipo representativo da espécie, como o tipo médio ou frequente, o tipo ideal normativo e o total ou pleno, embora conceitualmente distintos entre si, como veremos a seguir, pressupõem, exatamente, a diversidade entre fatos humanos reais (que se dão no mundo) e a impossibilidade de sua redução, sem mais, ao princípio da identidade. Na ideia de tipo, subjaz a noção daquilo que é comum ou semelhante a vários seres distintos e, por isso, repetitivo. 1.2 Alguns significados fundamentais de tipo nas ciências sociais É enorme a literatura, no campo das ciências sociais, sobre tipo. Na psicologia, na filosofia, na história, na metodologia, no direito, a palavra tipo tornou-se moda, já na primeira metade deste século, podendo-se dizer que pouquíssimos termos técnicos gozaram de tamanha popularidade. E, a partir de então, como todo modismo, cresceu e se expandiu, a ponto de causar incômodo em certos ramos do conhecimento humano. Ambiguidade, polissemia e sentidos 10 De acordo com Heyde, o pensamento teológico, segundo o qual determinadas pessoas, negócios ou acontecimentos do Velho Testamento correspondem, no Novo Testamento, a Cristo e seu destino, desempenhou importante papel. Dicionários dos sécs. XVI a XVIII, especialmente Forcellini, registram o uso da palavra archetypus em Tertuliano, Ambrósio e Irineu (HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941). MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 36 07/08/2018 15:04:44 37CAPÍTULO 1DOS DIVERSOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TIPO contraditórios são fenômenos que Leenen denomina de “o mal-estar na tipológica”.11 Enumerar todos os usos que da palavra são feitos ou os diversos matizes de sentido que lhe vem emprestando a literatura é tarefa, para nós, impossível.12 Tipo e seus derivados – típico, tipificador, tipificante, tipificar, tipológica e tipologia – são empregados em campos distintos e, via de regra, com notável imprecisão de sentido. Assim, para os objetivos desta obra, interessa destacar tão só alguns significados fundamentais que o termo adquiriu dentro das ciências sociais, os quais, em maior ou menor grau, são comuns à ciência ou à metodologia jurídica. No início deste século, George Jellinek observava que o mesmo indivíduo jamais se repete na imensa variedade das individualidades humanas. O tipo se ajustaria às peculiaridades das ciências sociais porque, embora não se pudesse falar em identidade junto aos elementos individuais, existiriam caracteres comuns, semelhanças e analogias. Propunha, então, as modalidades básicas de tipo empírico e de tipo ideal, como instrumento de análise em sua Teoria geral do Estado.13 Pois bem, essas observações de Jellinek são pontos nucleares dos quais partem distintos significados e usos de tipo. A constatação da realidade e o contato com a vida, como quer Karl Engisch,14 confirmando a extrema variedade entre os indivíduos, em diversos graus de intensidade, assim como suas semelhanças analógicas, exigiram a busca de uma forma de pensamento que, em filosofia, representou a libertação das “botas espanholas da confusa lógica escolástica de conceitos de classe”,15 ou seja, a forma de pensamento do tipo. 11 V. LEENEN, Detlev. Typus und Rechtsfindung. Berlin: Duncker & Humblot, 1971. p. 17. 12 De relevância, a leitura da Revista Studium Generale que dedicou dois números ao conceito de tipo (v. cadernos IV e V, anos 1951 e 1952), assim como a obra de Karl Engisch: La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. 542 p. 13 “En los fenómenos de orden natural, el interés que prevalece para el científico es el de los elementos idénticos; pero en los fenómenos sociales no existe lo idéntico, sino lo análogo”. Cf. JELLINEK, George. Teoría general del Estado. Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires: Albatros, 1954. p. 22. Já observamos que a constatação de Jellinek, válida para as ciências sociais, o foi também para a zoologia e botânica, desde o séc. XVIII (v. item anterior). Observou-se que, no mundo da natureza, as espécies são de infinita variedade, formando um sistema natural de transições graduais e fluidas de uma a outra, então designadas por tipo. 14 V. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 422. 15 Cf. HEYDE, Johs Erich. Typus. Ein Beitrag zur Typologik. Studium Generale, v. IV, n. 7, p. 235-246, maio 1952. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 37 07/08/2018 15:04:44 38 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO Maior proximidade à realidade ou concreção, especificidade, mas ainda relativo grau de abstração (pois o único não pode ser típico), e repetitividade são pontos comuns a diversos conceitos de tipo dentro das ciências sociais. O tipo frequente ou empírico de G. Jellinek se obtém por abstração das notas comuns que a maioria dos casos singulares oferece.16 Igualmente, tipo médio ou frequente, de que nos fala Rickert ou Weber, representa uma construção que leva em conta a média das diferenças de grau entre ações qualitativamente semelhantes em seu sentido.17 No tipo médio e no frequente sempre se pressupõe que, realmente, objetos com notas típicas se apresentaram, embora em diferentes graus de intensidade. O tipo representativo designa a espécie mais expressiva dentro da série, ou aquela que contém com especial intensidade as notas típicas,18 permanecendo ligado à concretude, pois não é imaginado, mas obtido a partir da realidade. Como exemplifica Heyde, a tulipa pode ser considerada a representante das monocotiledôneas.19 O tipo é utilizado por outros como protótipo, essência, forma básica, ou construção saturada de realidade. É plano, ou ordenação que serve de base para a edificação do organismo. Para Arthur Kaufmann não é um universal ante ou post rem, mas in re. As relações entre o tipo e a realidade são evidentes, sendo tipológico o pensamento a partir da “natureza da coisa”.20 Pelo fato de o tipo, sendo uma abstração, ser porém mais concreto que o conceito geral indeterminado, ele está, na visão de alguns lógicos, ligado à percepção imediata, ou intuição, ao passo que o conceito geral seria o pensamento abstrato simbólico necessário ao pensamento estritamente científico. O pensamento eidético precede o abstrato que é 16 Cf. JELLINEK, George. Teoría general del Estado. Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires: Albatros, 1954. p. 25. 17 V. WEBER, Max. Economiay sociedad. Esbozo de sociología comprensiva I. Tradução de José Medina Echavarría e outros. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1979. Mas na medida em que o tipo médio contém menos que qualquer de seus exemplares individuais, se alija novamente da realidade, como observa Rickert (Grenzen der naturwissenchaftlichen Begriffsbildung. 4. ed. 1921. p. 247 apud ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 420). 18 V. LOTZE, Rudolf Herman. Logik. 2. ed. Leipzig: Felix Meiner, 1928. p. 131. 19 V. HEYDE, Johs Erich. Ein Beitrag zur Bedeutungsgeschichte der Wortes Typus. Forschungen und Fortschritte, v. 19, n. 20, p. 220-223, jul. 1941. 20 V. KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 94. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 38 07/08/2018 15:04:44 39CAPÍTULO 1DOS DIVERSOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TIPO conceitual e simbólico. O pensamento tipológico precederia o conceitual abstrato classificatório, definindo-o alguns como pré-lógico.21 O tipo total, ou o tipo como imagem total, é um conceito fundamental. Para Leenen, por exemplo, é o que efetiva e definitivamente caracteriza o pensamento tipológico.22 Também Karl Engisch e Larenz realçam o tipo como totalidade, uma conexão de notas, partes ou funções em relação recíproca.23 O tipo como forma ou imagem total vincula-se à intuição, necessariamente, razão pela qual tipo e intuição, tipo e totalidade são conceitos que se complementam. O tipo, pois, vincula-se à realidade, à percepção imediata ou intuição e à totalidade. Algumas observações devem ser feitas com relação ao tipo ideal que mais se afasta da realidade. Jellinek utilizou o tipo ideal, no sentido normativo, como um dever ser e, ao mesmo tempo, como critério valorativo do dado. Peters e Rickert também o mencionam como modelo (p. ex.: o juiz ideal, o comerciante modelo).24 Observe-se que, com relação à validez do tipo ideal propriamente dito, é secundário se já se realizou ou se há de se realizar, acentuando-se, pois, seu caráter fictício.25 Max Weber, entretanto, emprega a expressão tipo ideal em sentido distinto de Jellinek. O tipo ideal weberiano não é normativo, mas lógico. A sociologia emprega, além do tipo médio ou empírico, o ideal que é um instrumento de conhecimento da realidade, uma ordenação conceitual de fenômenos sociológicos e, como tal, uma generalização abstrata, necessariamente mais vazia que a realidade concreta do histórico. Os tipos ideais de Weber são puros, não encontráveis, nesse estado, na realidade. São estruturas que mostram em si a unidade mais 21 Cf. SIGWART. Logik II. 4. ed. p. 471 apud ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 429 e KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 108. 22 Cf. . LEENEN, Detlev. Typus und Rechtsfindung. Berlin: Duncker & Humblot, 1971. p. 24. 23 Cf. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 430. Diz Larenz: “Vom Typus in deesem Sinne kann man mit Kretschmer sagen, er sei ein “komparativ anschauliches Allgemeinbild”. Noch deudicher sagt Heyde, es handle sich un ein Merkmal-Ganzes, das heibt un ein ganzheitlich aufzufassendes Allgemeines”. Cf. LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 4. ed. Berlin: Springer-Verlag, 1979. p. 445. 24 Cf. JELLINEK, George. Teoría general del Estado. Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires: Albatros, 1954. p. 25. 25 V. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 437. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 39 07/08/2018 15:04:44 40 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO consequente de uma total adequação de sentido e, quanto maior a sua abstração, maior a sua utilidade como instrumento científico.26 Como observa Larenz, o tipo ideal weberiano é ideal, no sentido lógico, porque não quer ser uma diretriz ou norma; nele se acentua, artificialmente, a peculiaridade do fenômeno, tornando-se útil ao conhecimento das formas mistas ou menos puras encontráveis na realidade.27 O tipo ideal distingue-se do representativo, pois cada um desem- penha função singular, ficando o segundo mais próximo da realidade. Engisch explica, em resumo, que o tipo ideal é algo abstrato que explica o individual, enquanto o tipo representativo, pelo contrário, é algo mais ou menos individual para a explicação de algo abstrato.28 Finalmente, é de se ressaltar o importante caminho trilhado pelo tipo, como forma de ordenação do conhecimento diversa da lógica aristotélica clássica, conceitual e classificatória. Já no final do século passado, o tipo é apresentado como uma solução mais apropriada às questões humanas, à realidade da vida, a qual não conhece limites rígidos entre os objetos, mas apenas diversos graus e matizes com que se mostram suas notas. Aí, impera a Lex continui, à qual se adequam os tipos, como ordens ajustadas à variabilidade e transição lenta de uma a outra espécie. Parece ter sido Erdmann o primeiro que, explicitamente, usou o termo tipo para designar espécies que estão em relação fluida.29 Segundo Heyde, como já anotamos,30 no séc. XVIII, em zoologia e botânica, o tipo já se tinha firmado com o significado de uma ordem que, por comparação, admitia as formas mistas e as transições de uma 26 “Cuanto con más precisión y univocidad se construyan estos tipos ideales y sean más extranos en este sentido al mundo, su utilidad será también mayor tanto terminológica, classificatória, como heuristicamente”. Cf. WEBER, Max. Economia y sociedad. Esbozo de sociología comprensiva I. Tradução de José Medina Echavarría e outros. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1979. p. 17. 27 Cf. LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 4. ed. Berlin: Springer-Verlag, 1979. p. 446-447. 28 Cf. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 442, nota 77. Engisch equipara ao tipo ideal de Max Weber o conceito geral-concreto de Larenz. A diferença está em que o último é neo-hegeliano e, em consequência, o conceito, com a totalidade de seus momentos, se desenvolve dialeticamente dentro da realidade. V. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 445. 29 V. ERDMANN. Theorie der typeneinteilungen. Philosophie monatshefte, XXX, 1894, p. 15 apud ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 422. 30 Cf. Tópico 1.1, Cap. 1. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 40 07/08/2018 15:04:44 41CAPÍTULO 1DOS DIVERSOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TIPO espécie a outra. A partir do início desse século, igualmente, trabalhos de lógica começam a multiplicar-se, tecendo considerações semelhantes.31 Em geral, aborda-se a oposição entre o conceito tradicional de classe e o moderno, de tipo. Enquanto o conceito classificatório é seletivo e rígido, excluindo ou incluindo o objetivo que, de acordo com suas propriedades, pertença ou não ao conjunto, o tipo é um conjunto não delimitado, fluido, que não trabalha com a relação de exclusão “ou ... ou” mais sim com um “até certo grau” ou “mais ou menos”. Embora abstração, o tipo é mais específico que o conceito. Nunca será algo único, tampouco partilhará da generalidade abstrata do conceito geral, oqual, em contraposição com o tipo real, não pressupõe a existência concreta em si, mas apenas a possibilidade dos objetos que abarca. Mesmo o tipo ideal parte da realidade empírica, não sendo concebido arbitrariamente. Da mesma forma, o tipo ideal não é tão só o genérico, ou a soma de características comuns, mas, ao contrário, faz ressaltar vivamente a peculiaridade de uma manifestação cultural.32 É, pois, muito frequente a observação de que o tipo, embora sendo ainda uma abstração, é mais concreto que o conceito e, assim, aproxima- se mais do específico e do individual do que o próprio conceito. Dentro do campo das ciências sociais, a obra de Jellinek e sobre- tudo a de Max Weber são importantes marcos na história e desen- volvimento do tipo, como instrumento de compreensão e ordenação do conhecimento. Interessante ressaltar a problemática que o tipo tem levantado na história. Nesse campo do conhecimento, tradicionalmente, impera o peculiar, o exclusivo, o particular e nunca o repetitivo, enquanto o tipo pressupõe o constante, o universal, o geral. Muitos historiadores lhe demonstraram aversão, relacionando-o ao método científico classificatório. Bernhard Zittel33 refere ser falso o dilema, pois o objeto histórico é o particular sob o enfoque geral, observando que o tipo se ajusta às 31 V. Engisch, que enumera, além dos autores já citados: E. Husserl (Logische Untersuchungen II, 1 ed., p. 87 e ss.); Höfler (Logik, 2. ed., 1922, p. 135, n. 2); a importante obra de Carl Hempel e Paul Oppenheim (Der typusbegriff im lichte der neuen logik, 1936); E. Seiterich (Die logische struktur des typusbegriffs bei W. Stern, E. Sprenger und M. Weber, Tesis en la Universidad de Friburgo, 1930) (ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 423). 32 V. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 445-452. 33 V. ZITTEL, Bernhard. Der Typus in der Geschichtswissenschaft. Studium Generale, v. V, n. 6, p. 378-384, 1952. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 41 07/08/2018 15:04:44 42 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO características da ciência histórica, pois quer apenas apanhar o similar, o complexo de semelhança e regularidade. Conclui que, para isso, é o instrumento adequado, pois as verdadeiras características históricas, que são determinadas através das coordenadas do tempo e espaço, e, a partir disso, não podem nunca ser idênticas, integram-se apenas do ponto de vista da semelhança e não da igualdade.34 Individuam est ineffabile... repetindo as palavras de Goethe, tão citadas por Friedrich Meinecke, o grande defensor do individualismo na história, Schieder afirma que a pergunta sobre o tipo histórico ou as evoluções típicas do processo histórico toma, hoje, o lugar que, há cem anos, o princípio da individualidade ocupava. Demonstra ainda que mesmo quando o historiador supõe estar trabalhando com individualidade, estará a fixar tipos, em geral, ideais para conseguir a descrição e racionalização da realidade. Muitas vezes, alerta Schieder, o historiador, inconscientemente, fabrica criptotipos perigosos à ciência da história, criando generalizações ingênuas como a de homo oeconomicus ou homo politicus, ou governo ou sociedade, as quais podem ser a causa de muitos enganos.35 Finalmente, é necessário destacar dois pontos: • os diversos planos nos quais esses significados fundamentais de tipo têm sido usados, indiferentemente; • o que há de comum por trás dessa multiplicidade de sentidos e usos da palavra. 1.2.1 Planos e funções distintas A equivocidade do termo tipo melhor se demonstra quando se observa com Engisch e Heyde36 que os vários significados citados 34 “Dafür ist der typus das gegebene Gefäss, da sich die echten geschichtlichen Merkmale, die durch die koordinaten von Raum und Zeit bestimmt sind und daher nie identisch sein Können nur unter dem Gesichtspunkt der Ähnlichkeit, nicht aber der Gleich heit integrieren lassen” (ZITTEL, Bernhard. Der Typus in der Geschichtswissenschaft. Studium Generale, v. V, n. 6, p. 378-384, 1952. p. 379). 35 “Der erkennende und anschauende historiker kann daher gar nicht auf sie verzichten, auch da, wo er sich ganz im Rahmen des Individualitätsgedankens zu bewegen glaubt, ist er stándig dabei, Idealtypen zu fixieren: entweder in der Beschreibung der Wirklichkeit oder im Bemühen, die schwer zu fassende Realitát gedanklich zu rationalisieren” (SCHIEDER, Theodor. Der Typus in der Geschichtswissenschaft. Studium Generale, v. IV, p. 231, maio 1952. p. 231). 36 Cf. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 453-454 e HEYDE, Johs Erich. Typus. Ein Beitrag zur Typologik. Studium Generale, v. IV, n. 7, p. 235-246, maio 1952. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 42 07/08/2018 15:04:44 43CAPÍTULO 1DOS DIVERSOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TIPO (tipo médio ou frequente, empírico, representativo, total, tipo-intuição, protótipo, ideal ou normativo) são empregados cumprindo funções distintas e designando objetos diferentes, a saber: • para nomear o tipo em si, como tipo e, ao mesmo tempo, objeto de uma tipologia; • para representar um conjunto de objetos, assim como a figura lógica ou ordem, que se contrapõe ao conceito geral e individual; • dentro do mesmo conjunto de objetos alcançados pelo tipo, designa-se o conjunto propriamente dito de tipo, assim como cada um de seus elementos ou objetos singulares. Isso se dá especialmente quando o objeto for o mais representativo do conjunto, vale dizer, o típico, característico. Por ex.: o tipo – democracia da Antiguidade – e Grécia – o tipo de democracia AC. Observe-se, nesse passo, que o tipo total é, geralmente, em- pregado no sentido de conjunto de objetos ou intuição do geral, percepção da totalidade. Enquanto o conceito de tipo representativo é, com muita frequência, empregado com essa função: a de designar, dentro da série, o ponto que seja mais característico ou típico. 1.2.2 Os pontos comuns Ainda se deve observar o que há de comum por trás desses distintos significados e usos de tipo que acabamos de citar. É que as apreciações que guardam são mais próximas do concreto, da realidade, sobretudo se comparadas ao conceito geral abstrato. O que há de comum oscila sempre entre aqueles três núcleos de sentido já apontados: cópia ou forma básica de repetição de fenômenos semelhantes, parecidos, que se dão na realidade – daí as aproximações que o tipo guarda com o concreto, em grau maior de intensidade, se comparado ao conceito geral abstrato; modelo ou padrão não reprodutivo da realidade, mas uma valoração dotada de sentido, o que se dá, em especial, no tipo ideal normativo, o qual passa a ser um fim ou uma diretriz, não encontrável, porém, em sua pureza, na realidade; forma total ou íntegra, só compreensível a partir da percepção de sua totalidade. Originário das ciências naturais, o tipo, como visto, tornou-se uma ordem, contraposta ao conceito de classe (e sua alternativa), um conjunto não rígido e delimitado, adequado a apanhar a realidade, em que os objetos estão em relação comparativa, fluida e contínua. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 43 07/08/2018 15:04:44 44 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO Uma generalização, uma abstração, o tipo, entretanto, é concebido como uma ordem mais próxima da individualidade e da especificidade do que o tradicional conceito classificatório. Essa “aproximação” com a realidade, no plano material, leva à ideia de tipo que dá passagem à intuição, à totalização, à percepção imediata. Até mesmo o tipo ideal (que se afasta darealidade na medida em que sublima determinados elementos reais) nasce do contato com a realidade empírica, pois não se concebe arbitrariamente. Deriva ainda para aquele conjunto não finito de objetos e, em lógica, para a ordem contínua e fluida, cujas características não são rígidas ou limitadas e, na qual, não se pode subsumir o objeto corres- pondente, mas apenas ordenar. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 44 07/08/2018 15:04:45 CAPÍTULO 2 DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO 2.1 Antecedentes Se, para o campo das ciências sociais em geral, a palavra tipo assume sentidos equívocos, parece que se acentuam, dentro do direito, a ambiguidade e a polissemia do termo. Passa a ter, então, os mais confusos e mesmo contraditórios significados porque, além de comungar dos matizes e acepções variados já apontados anteriormente e válidos para as demais disciplinas sociais afins, assume conotações, decorrentes de seu uso, em setores jurídicos próprios. Muitos dos autores que estudaram o tipo, após terem dissertado sobre os vários conceitos relevantes para o tema, como fizemos no tópico anterior, passam a investigar quais modalidades de tipo mais se aproximam das peculiaridades do pensamento e da ciência jurídica. À guisa de exemplificação, citemos K. Engisch. Esse jurista afirma que os tipos jurídicos não podem ser reduzidos, singularmente, a tipos empíricos ou frequentes. Podemos encontrar tipos jurídicos estáveis, mas alheios à vida, vale dizer, que raramente se realizam de acordo com o modelo legal. Entretanto, na maioria dos casos, os tipos jurídicos estão em contato com a vida e tendem a ser um tipo da vida real. Conclui Engisch que não se pode falar em tipo da vida real ou em tipo normativo estrito, como alternativa, mas que, graças à tensão existente entre o ser e o dever ser, próprio do direito, ambos são igualmente decisivos.1 1 V. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 457-482. Outros autores não admitem uma norma pura desvinculada de uma situação e desprovida de um tipo. Para Carl Schmidt, a normalidade da situação concreta, regulada pela norma MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 45 07/08/2018 15:04:45 46 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO Larenz refere-se aos tipos empírico, médio ou frequente, ao tipo jurídico total e estrutural. Os tipos médio e frequente se evidenciam nas remissões feitas pela norma jurídica aos bons costumes ou à prática do comércio, que se tornam, então, standards ou medidas móveis do comportamento social típico. Alerta, ainda, para a importância que o tipo médio ou frequente tem no campo da prova e convencimento judicial.2 Ao colocar em evidência o tipo jurídico total, como a caracterização não conceitual de pessoas, que desempenham uma função social, destaca que aí se tem como base um tipo empírico, cujo reconhecimento depende mais da imagem total do fenômeno do que das notas isoladas do conjunto. Nas figuras do empregado-dirigente (leitende Angestellte), empregado-proprietário (Besitzdiener), ajudante de funções (Verrichtungsgehilfe) e representante comercial (Handelsvertreter) temos tipos totais (reais normativos) e não um conceito geral abstrato. Finalmente, Larenz se refere ao tipo estrutural jurídico que, em regra, é colhido, e não inventado pelo legislador, diretamente do tráfego, da vida jurídica. Configura as relações jurídicas e, em especial, os contratos. Os standards, ou tipos totais ou reais-normativos distinguem-se do estrutural, pois, para a sua compreensão, o jurista deve recorrer ao pesquisador social empírico ou à prática do comércio. Já o tipo estrutural jurídico deve ser examinado somente a partir da norma, dentro, exclusivamente, da ciência do direito.3 Segundo Hans Wolff, existem, pelo menos, quatro usos diferentes de tipo na ciência do direito, quais sejam: aqueles tipos da teoria geral do estado, os históricos e os da ciência do direito comparada, com relação aos quais destaca a obra fundamental e estruturadora de Georg Jellinek; os tipos jurídicos em sentido restrito, princípios jurídicos; os tipos penais e os fiscais.4 e do tipo concreto pressuposto por ela, “é uma nota essencial intrínseca de validade da norma”. Segundo Engisch, também pensam como Schmidt: Zittelmann, Sauer, Welzel, Dahm, Jerusalem, Müller – Embach e Coing. V. ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 480. 2 A chamada PrimafacieBeweis baseia-se no acontecimento típico, deduzido de “princípios baseados na experiência”. Em verdade, são as presunções fundadas no ordinário atuar dos homens. Cf. LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 4. ed. Berlin: Springer- Verlag, 1979. p. 447. 3 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José de Sousa Brito e outro. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. p. 450-453. 4 Cf. WOLFF, Hans J. Typen im Recht und in der Rechtswissenschaft. Studium Generale, v. V, n. 4, p. 195-204, maio 1952. p. 196. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 46 07/08/2018 15:04:45 47CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO Não nos parece proveitoso continuar a perseguir essas inume- ráveis colocações, variáveis de autor a autor, frente à natureza dos tipos jurídicos e suas modalidades. O que não se pode perder são os significados básicos que o tipo adquire dentro do direito em diferentes níveis e setores. Assim, pelo menos em três pontos fundamentais, no direito, o tipo assume contornos especiais e questões próprias se levantam, a saber: na metodologia jurídica, na criação legislativa do Tatbestand ou fato gerador e na regulamentação administrativa para execução em massa das leis. Em cada um desses âmbitos citados, o tipo adquire sentido especial, não raro contraditório, sobretudo se levarmos em conta o berço e a fonte teórica básica do tipo: a ciência jurídica alemã. Será, então, sob a perspectiva de cada um desses ângulos men- cionados que levantaremos os principais significados jurídicos de tipo. 2.2 O tipo como nova metodologia jurídica O tipo tem sido sugerido como novo método jurídico em diversos níveis. Tanto como lógica aplicada à ciência jurídica, propriamente dita, como também método de interpretação para investigação em cada caso concreto. Ou seja, tanto como novo instrumento de ordenação científica do conhecimento, como ainda meio de formação do próprio objeto de conhecimento que é o direito vigente, o qual, como se sabe, se atualiza, dia a dia, na dinâmica de suas aplicações concretas. Aponta-se, então, a concepção por tipo como metodologia para a ciência que, através da comparação, se presta à análise dos institutos jurídicos, organizando-os em série tipológica, adequada à caracte rís tica compreensiva dessa ciência. É indicada ainda como meio (ou mais um meio) de investigação jurídica que deverá servir à correta apli cação do direito. A abertura peculiar do tipo ajusta-se como luva à concepção mo- derna do direito, como um sistema aberto (nem acabado, nem rígido). O objeto deste trabalho não é discutir método científico, tam- pouco dissertar sobre interpretação e hermenêutica. Por isso, o tema vem superficialmente abordado nos próximos tópicos. 2.2.1 Os conceitos classificatórios Omnis definitio in iure civili periculosa est. A máxima dos juristas romanos foi também seguida pela cultura anglo-saxônica, pouco afeita às generalizações abstratas. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 47 07/08/2018 15:04:45 48 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO No entanto, a ciência jurídica da Europa continental assim como a latino-americana, por ela influenciada, estiveram dominadas (e ainda não estão?) pela metodologia escolástico-dedutiva.A definição, como afirma Rode, tornou-se a medida de todas as coisas.5 Sob a influência do racionalismo, tanto jusnaturalistas como positivistas continuou a preocupar sempre a ideia de sistema cerrado e perfeito, conhecimentos exatos e adequados. As grandes codificações dos sécs. XVIII e XIX levaram no seu bojo esta pretensão: a de conhecer o ser matematicamente, através do princípio cartesiano more geometrico, clare et distincte, univocamente e mediante subsunção lógica.6 A teoria geral e a ciência do direito foram fortemente influenciadas pelo conceito geral abstrato, classificatório. Segundo a lógica tradicional, a abstração conceitual, desencadeada pela percepção sensível de um objeto concreto (cujas peculiaridades ou determinações múltiplas nele se “uniram”, possibilitando o seu existir concreto), vem a ser o processo pelo qual se dá a separação, a percepção isolada e, ao mesmo tempo, a denominação e a determinação genérica das características do objeto. Será omitido aquilo que não for considerado essencial para a regulamentação jurídica. Para Aristóteles, dois traços caracterizam toda espécie de ciência: a abstração e a dedução. A ciência procede por abstração, seccionando a realidade, despojando as coisas, que sejam objeto de estudo, dos caracteres que não lhe interessam. Da mesma forma, na ciência, os conhecimentos derivam uns dos outros, em rigorosa sequência, obtida de maneira apodítica.7 O conceito secciona, seleciona. Quanto maior, então, for a abstração, tanto mais abrangente será o conceito, porque abrigará um maior número de objetos e, em contrapartida, tanto mais vazio será de conteúdo e significado. Larenz explica que a ciência dos conceitos, como propõe Puchta, é exemplo da ideia de sistema formal e racional, herança da escola do direito natural e do idealismo alemão. O sistema, nesse modelo, 5 V. RODE, Karlheinz. Begriffiche und Typologische Gesetzesinterpretation. Juristische Rundschau – Heft, Berlin, v. 11, p. 401-407, nov. 1968. p. 402. 6 Ver a obra meritória de Arthur Kaufmann: Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 62-63. 7 Cf. LARROYO, Francisco. Aristóteles. Tratados de lógica. 5. ed. México: Porrúa, 1979. p. XLIII. Em Abbagnano, lê-se: “O conceito é para Aristóteles idêntico à substância, que é a estrutura necessária do ser, aquilo pelo qual todo ser não pode ser diferente do que é” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1972. p. 152). MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 48 07/08/2018 15:04:45 49CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO assemelha-se a uma pirâmide, a cuja largura ou base corresponde a compreensão do conceito (conteúdo semântico) e a cuja altura equivale a extensão. À medida que se sobe da base para o vértice, perde o conceito em abundância de matéria e riqueza de conteúdo, o que ganha, proporcionalmente, em altura, isto é, abrangência de indivíduos, de modo que o mais alto abarca os demais inferiores.8 O conceito menos geral pertence ao gênero do mais abrangente. O menos abrangente denomina-se espécie e aquilo que diferencia uma espécie de outras, situadas sob um mesmo gênero, designa-se por “diferença de espécie”. Definir será determinar um gênero a um conceito e acrescentar a diferença de espécie.9 Só um conceito geral abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas “a, b, c”, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características “a, b e c”. Diz-se, então, que há subsunção. Para o conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: “cada X é A ou não A”. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão “ou um, ou outro”. Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não. O conceito pode referir-se a todo tipo de objeto: abstrato, concreto, universal ou individual. Ele não se refere necessariamente a coisas reais, mas pode haver conceito de coisas inexistentes. Além disso, o conceito de classe é a soma de suas partes ou características. Veremos que o tipo, na concepção atual, por encontrar-se mais próximo à realidade, não se refere a objetos inexistentes ou impossíveis; acresce ainda que, nele, suas partes integram-se em uma estrutura. A teoria do conceito é complexa e sofreu longa evolução. Se, por um lado, na concepção platônico-aristotélica e escolástica, prevalecia a tese que o identificava à essência das coisas, outra importante interpretação de sua natureza, que se inicia com os estoicos, identifica-o como signo do objeto. 8 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José de Sousa Brito e outro. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. p. 13-14. 9 Cf. LARROYO, Francisco. Aristóteles. Tratados de lógica. 5. ed. México: Porrúa, 1979. p. 6-18; V. RODE, Karlheinz. Begriffiche und Typologische Gesetzesinterpretation. Juristische Rundschau – Heft, Berlin, v. 11, p. 401-407, nov. 1968. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 49 07/08/2018 15:04:45 50 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO Na concepção conceito-essência, acentua-se a função de revelar a essência das coisas e, na de conceito-signo-símbolo, mais se destaca o papel de instrumentalidade.10 A essa concepção platônico-aristotélica e escolástica do conceito, acima descrita, em que prevalecia a tese que o identificava à essência das coisas, opôs-se uma outra importante interpretação de sua natureza, que se inicia com os estoicos, identificando-o ao signo do objeto. Naquela concepção conceito-essência, acentua-se a função de revelar a essência das coisas e, na de conceito-signo-símbolo, mais se destaca o papel de instrumentalidade. Na concepção realista (platônico-aristotélica), o conceito é cons- titutivo ou essência do real, supondo-se a coincidência entre o conceito e a realidade, o quod quid erat esse de Aristóteles. Assim como na visão de Hegel, o conceito capta o objeto de referência em sua essência, o que faz com que ele não possa ser diferente do que é. Já na concepção nominalista (estoica), o ponto crítico da trans- formação da noção de conceito foi bem resumido por Quine quando disse: “significado é aquilo que a essência se torna quando se divorcia do objeto de referência e se casa com a palavra”.11 Husserl distingue, em conhecido texto,12 o signo ou expressão física, da significação ou conceito (pois palavras podem ser destituídas de sentido, como abracadabra), do objeto transmitido pela significação (uma vez que há significações sem objeto: círculo quadrado) e da intuição sensível. Carlos Cossio, por sua vez, lembra que as formulações de Husserl já foram aplicadas ao direito. Cita García Maynez (o qual, por sua vez, reproduz Fritz Schreier), que encontra no texto legal: 1. o signo que é o texto ou expressão escrita; 2. a significação que vem a ser o expresso no texto; 3. o objeto mentado pela significação, ou seja, a norma. Mas não há intuição sensível que corresponda à significação. No entanto, para a teoria egológica, a significação já é a norma, o objeto da norma é a conduta intersubjetiva, havendo ainda, no direito, uma intuição sensível dessa mesma conduta.13 10 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1972. p. 153-155. 11 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1972. p. 168. 12 HUSSERL, Edmund. Investigações lógicas – t. II. Revista de Ocidente, Madrid, 1929. p. 53. 13 Cf. COSSIO, Carlos. La teoría egologica del derecho y el concepto jurídico de libertad. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964. p. 199 e ss. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 50 07/08/2018 15:04:45 51CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO O legislador se utiliza designos, que significam expressões referenciais (de denotação), ato linguístico, cuja função é denotar, referir. O objeto referente pode ser um instituto jurídico determinado, mas o seu sentido ou descrição definida, o seu significado pleno só é alcançado na norma. O objeto referente vem a ser, em última análise, a própria norma. Em seu Tractatus logicophilosophicus, afirma Wittgenstein: “O nome denota o objeto. O objeto é sua denotação” (Aforisma 3.023). E ainda: “Só a proposição possui sentido; só em conexão com a proposição um nome tem denotação”.14 Isso significa que à pergunta, “qual a relação existente entre uma expressão referencial e seu refe- rente?”, responde Wittgenstein que os nomes não têm sentido; apenas na proposição representam o objeto. Também para Mill, os nomes – como ato de isolar um objeto – não têm sentido, apenas denotam, mas não conotam, não predicam nada a respeito do objeto, enfim, não o descrevem de algum modo. Coube a Searle esclarecer que o pensamento dos filósofos citados é possível a partir da distinção metafísica fundamental entre objetos e propriedades (ou aspectos dos objetos), de que deriva a cisão entre nomes (que são o objeto mesmo) e as descrições definidas (que são propriedades do objeto). Soube Searle extrair daí a distinção entre denotar (referir o objeto), e conotar (dar ou extrair o sentido completo, as propriedades essenciais do objeto).15 Assim, a linguística e a filosofia da linguagem ensinam que os signos gráficos são entidades físicas, às quais associamos significações. Essas significações, que vão possibilitar mentar o objeto, a norma, se extraem não apenas do texto legal em sua estrutura interna, mas ainda do contexto maior em que se insere a proposição jurídica, inclusive as circunstâncias históricas e sociológicas em que o texto foi produzido e no qual ele é colhido pelo intérprete. Sem se alterarem os signos e suas significações tópicas, presentes em um único enunciado linguístico da lei, altera-se profundamente o sentido, a norma, uma vez feitas as associações no contexto normativo e no meio histórico em que se insere. O objeto jurídico – a norma – é construído hic et nunc. Trabalhando, desde seus primeiros escritos, na mesma direção de Cossio, ensina Paulo de Barros Carvalho, com rigor científico, que é redundante falarmos em normas implícitas, “posto que essas entidades 14 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logicophilosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1968. p. 63-65. 15 SEARLE, J. Actes de langage. Tradução de Hélène Pouchard. Paris: Hermann, 1972. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 51 07/08/2018 15:04:45 52 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO estão necessariamente na implicitude dos textos, não podendo haver, por conseguinte, ‘normas explícitas’”.16 Como não é este um trabalho filosófico, nem de lógica jurídica, importa destacar somente que, em uma ou outra dessas vertentes, o conceito se presta a organizar os dados por meio de conexões lógicas, derivadas umas das outras dedutivamente, com rigor axiomatizante. É que tanto na concepção realista (platônico-aristotélica), em que o conceito se identifica à essência das coisas, como na nominalista (estoica) mais funcional, para a metodologia, em que fica ressaltada a função de organização dos dados da experiência de modo que entre eles se estabeleçam conexões lógicas, o conceito será sempre operacionalmente fechado, tenderá à classificação e à axiomatização, ainda que cognitivamente suporte mutação. 2.2.2 O tipo como conceito de ordem A prevalência dos elementos lógico-sistemáticos sobre os orgânico-compreensivos no direito suscitou a reação de Ihering, da escola livre do direito, da jurisprudência de interesses, da natureza da coisa, da tópica de Viehweg,17 provocando a busca de uma nova metodologia para a ciência do direito. Contra o pensamento limitador do conceito classificatório, o tipo surgiu como nova proposta, uma ordem mais adequada para captar as fluidas transições da vida. Multiplicaram-se os estudos metódicos sobre tipo,18 destacando- se, sobretudo, a obra de Carl Hempel e Paul Oppenheim que mereceu o tão lembrado artigo de Radbruch, em 1936.19 16 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos jurídicos da incidência tributária. São Paulo: Editora USP, 1966. Inédito. p. 27. 17 V. IHERING, Rudolf von. El fin en el derecho. Buenos Aires: Bibliográfica Omeba 1960; ESSER, Joseh. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Tradução de Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961; GÉNY, François. Método de interpretación y fuentes en derecho privado positivo. 2. ed. Madrid: Reus, 1925; RECASÉNS SICHES, Luiz. Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y lógica “razonable”. México: Fondo de Cultura Económica, 1971; VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Ministério da Justiça; Ed. Universidade de Brasília, 1979. 18 V. LOTZE, Rudolf Herman. Logik. 2. ed. Leipzig: Felix Meiner, 1928; SIGWART. Logik II. 4. ed. p. 471 apud ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 429; HEMPEL, Carl; OPPENHEIM, Paul. Der typusbegriff im lichte der neuen Logik apud ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 422; e outros. 19 RADBRUCH, Gustav. Klassenbegriffe und Ordnungsbegriffe im Rechtsdenken. Internationale Zeitschrift für Theorie des Rechts, n. XII, p. 166-175, 1936. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 52 07/08/2018 15:04:45 53CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO À luz dessas concepções, um conceito de ordem distingue- se de um conceito de classe. Caracteriza-se no fato de que as suas propriedades são graduáveis, estando em diferente intensidade, em maior ou menor grau, nos casos isolados. De suas características fala-se no comparativo: “o quartzo é mais duro que o calcário”. Em uma série assim ordenada, por comparação, escolhem-se certos fenômenos, especialmente pronunciados, que sejam formas repre sentativas ou médias para servir de medida a outros fenômenos. São os tipos, os quais não dão, por si, o conhecimento da realidade, mas são instrumento para o reconhecimento dos fenômenos isolados e sua ordenação. Ao contrário dos conceitos de classe, os tipos se inter- penetram em ordenação gradativa, sem limites rigorosos; “os conceitos de classe dividem, os de tipo unem”.20 O conceito de classe é definido em um número limitado e neces sário de características. Entretanto, o tipo não é definido, apenas descrito, suas características não são indispensáveis, sendo que algumas delas podem faltar. Ele está na imagem geral, na visão ou intuição do total. A comparação entre o tipo construído ou imaginado e o fato “típico” sucedido deve procurar compreender a “totalidade” da realidade. Com isto, o tipo é mais concreto e rico de conteúdo que o conceito, e a investigação jurídica consuma-se por meio da ordenação (e não da subsunção), da comparação e da analogia.21 Ou, como diz Larenz: “O tipo está igualmente no meio, entre o individual, intuitivo e concreto de um lado e o conceito abstrato, de outro; ele é mais concreto que o conceito”.22 Explica Khulen: “Conceitos de tipo são abertos por definição”.23 Suas características não são irrenunciáveis e se deixam apenas des- crever, não definir. 20 “Klassenbegriffe sind durch scharfe grenzen voneinander geschieden, Typenbegriffe gehen durch verschwimmende Grenzen ineinander über wie die Farben im Farbenkreis: Klassenbegriffe trennen, Typenbegriffe verbinden” (RADBRUCH, Gustav. Klassenbegriffe und Ordnungsbegriffe im Rechtsdenken. Internationale Zeitschrift für Theorie des Rechts, n. XII, p. 166-175,1936. p. 168). 21 Cf. STRECK, Michael. Gewerbebetrieb, Mitanternehmerschaft, Bilanzbündeltheorie. Finanz – Rundschau, Köln, n. 13-14, p. 297-301, jul. 1974. 22 “Der Typus stehe gleichsam in der Mitte zwischen dem Individuellem, Anschaulichen und Konkreten auf der einen und dera abstrakten Begriff auf der anderen Seite; er sei Korkreter ala der Begriff” (LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 4. ed. Berlin: Springer-Verlag, 1979. p. 445). 23 “Typusbegriffe sind per definitionem offen”. Cf. KHULEN, Lothar. Typuskonzeptionem im der Rechtstheorie. Berlin: Duncker & Humblot, 1977. p. 122. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 53 07/08/2018 15:04:45 54 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO Essa abertura do tipo às flutuações da realidade propicia um evoluir mais contínuo do tipo do que do conceito classificatório. O chamado círculo hermenêutico, segundo o qual os fatos, aos quais se aplica o direito, reagem sobre a própria norma, é mais intenso no tipo. São, pois, notas próprias da concepção por tipo: certa tempora- riedade ou fluidez em seus contornos, a indefinibilidade, a totalidade da imagem decisiva para seu reconhecimento, a abertura ao real, o que a faz mais concreta e próxima da realidade do que o conceito classificatório, e a aptidão para ordenar os fenômenos através da comparação, sem rígidos cortes de secção. Há quem fale em tipos abertos e tipos fechados. O tipo fechado não se distingue do conceito classificatório, pois seus limites são definidos e suas notas rigidamente assentadas.24 No entanto, como nova metodologia jurídica, em sentido próprio, os tipos são abertos, necessariamente abertos, com as características que apontamos. Quando o direito “fecha” o tipo, o que se dá é a sua cristalização em um conceito de classe. Neste contexto, a expressão tipo fechado será uma contradição e uma impropriedade. 2.2.3 Tipo na investigação jurídica – Interpretação e aplicação do direito Perelman aponta a existência de três fases político-sociais, dignas de nota,25 as quais interferiram no raciocínio judicial e na investigação jurídica. Na primeira, a busca da solução jurídica justa, pelo juiz, era comum à moral e à religião. Os poderes, em regra centralizados em mãos do soberano, eram eventualmente delegados a juízes e administradores, cujas decisões deveriam parecer justificadas pelos costumes e pelos precedentes. 24 No direito penal, p. ex., são conhecidos os tipos fechados e abertos de Welzel. O próprio Larenz, até a segunda edição de sua obra, Methodenlehre der Rechtswissenschalt, da qual há tradução para o português, admitia os tipos fechados. A partir da terceira edição, refez o seu ponto de vista, aliás mantido na quarta, de 1979, afirmando que os tipos, por definição, são sempre abertos (LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 4. ed. Berlin: Springer-Verlag, 1979). Ver também, no último sentido, além dos demais autores já citados, LEENEN, Detlev. Typus und Rechtsfindung. Berlin: Duncker & Humblot, 1971; e RADBRUCH, Gustav. Klassenbegriffe und Ordnungsbegriffe im Rechtsdenken. Internationale Zeitschrift für Theorie des Rechts, n. XII, p. 166-175, 1936. 25 Cf. PERELMAN, Chaim. La lógica jurídica y la nueva retórica. Tradução de Luiz Diez-Picazo. Madrid: Civitas, 1979. p. 177-233. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 54 07/08/2018 15:04:45 55CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO Depois da separação dos poderes, que ganhou foros de univer- salidade com a Revolução Francesa, inicia-se a supremacia absoluta da lei e a crença na legalidade, como único suporte de segurança e justiça. É o domínio do positivismo legal, da escola exegética francesa e do pandectismo alemão. Então, um decreto bávaro, de 19.10.1813, proibia os servidores públicos e doutores de fazer qualquer comentário a respeito do Código Penal de 1813, documento hoje considerado “um monumento da ingenuidade legislativa”.26 A atividade judicial devia ser mera repetição e aplicação auto- mática da lei. Nesse contexto, não era cabido considerar criativo o papel do juiz, prevalecendo, então, a concepção mecânica da função judicial como silogismo. Recaséns Siches anota que, a par do processo revolucionário estar influenciado pelas ideias jusnaturalistas dos sécs. XVII e XVIII, o culto fetichista à razão pura de caráter matemático, em parte herdado da Grécia antiga, foi apoteoticamente proclamado na obra legislativa do séc. XIX. A lei escrita (o Código de Napoleão, p. ex.) vinha a ser o direito, completo, perfeito, acabado. O juiz seria, como descreve Siches, uma espécie de: máquina automática com três ranhuras e um botão: introduzia-se em uma delas a constatação dos fatos, a qual se acreditava coincidir exatamente com a figura de um dos fatos previstos pela lei; e se introduziam em outra ranhura as normas legislativas pertinentes: então se apertava um botão ou se dava volta a uma manivela e a máquina soltava a sentença.27 Segundo Perelman, o processo de Nuremberg, pondo a desco- berto uma legislação nazista iníqua, abalou a fé na lei como suporte único do direito, da segurança, da justiça. Deu alento a um movimento antipositivista. Buscou-se, então, a partir daí, uma interpretação equitativa, razoável, justa, mas conciliável com o direito em vigor.28 26 Cf. KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 37; ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Universidad de Navarra, 1968. p. 249. 27 Cf. RECASÉNS SICHES, Luiz. Nueva filosofía de la interpretación del derecho. 2. ed. México: Porrúa, 1973. p. 202. 28 Cf. PERELMAN, Chaim. La lógica jurídica y la nueva retórica. Tradução de Luiz Diez-Picazo. Madrid: Civitas, 1979. p. 178. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 55 07/08/2018 15:04:45 56 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO Antes disso, entretanto, a partir das críticas escarnecedoras de Ihering ou do realce da função social do direito, em Gény,29 p. ex., aqui e ali, já se havia manifestado reações a um dogmatismo legalista e nacionalista. Entretanto, Perelman, com toda razão, aponta em Nuremberg a experiência humana que desencadeou mudanças na ideologia judicial. De fato, é hoje cediço afirmar o papel criador do juiz. O abandono da caduca concepção de uma aplicação da lei, como um silogismo lógico dedutivo, em favor de uma compreensão jurídica, parece uma aquisição definitiva. A evolução da hermenêutica jurídica, desencadeada pelo impulso notável que lhe deu Betti,30 ao inseri-la numa teoria geral da interpretação e, sobretudo, pela obra não menos fundamental de Hans Georg Gadamer, reforçou as tendências já apontadas. Se a interpretação do direito, em fase inaugural, se centrava na busca da intencionalidade primária do legislador, em uma segunda etapa desloca-se para o exame objetivo da obra jurídica (desligada das subjetividades de seu autor), como totalidade e sistema integrado de normas. Finalmente, a partir da década de sessenta, coube a Gadamer acrescentar-lhe a perspectiva histórica do intérprete. Toda interpretação, inclusive a jurídica, é uma “intermediação entre a nossa visão linguística do mundo e a linguagem do texto”.31 O intérprete, em que pesem todas as pretensões à objetividade, não pode abolir o seu pertencer ao mundo, de modo que sempre se dá uma tensão entre o sentido original do texto e o atual. O aqui e agora ou a historicidade do direito, através do caso, do problema proposto, atua continuamente no sentido da norma, no evoluir jurídico do texto. A natureza da coisa, a razoabilidade jurídica, a nova retórica assen tada na argumentação, a busca dos valores e princípios, a tópica, o sistema jurídico aberto e a noção da historicidade do direito32 formam 29 Cf. IHERING, Rudolf von. El fin en el derecho. Buenos Aires: BibliográficaOmeba 1960; e GÉNY, François. Método de interpretación y fuentes en derecho privado positivo. 2. ed. Madrid: Reus, 1925 30 V. BETTI, Emilio. Interpretazioni della legge e degli atti giuridici. Milano: Giuffrè, 1949; e BETTI, Emilio. Teoria generale della interpretazione. Milano: Giuffrè, 1955. 31 “Que c’est toujours une intermédiation entre notre vue linguistique du monde et la langue du texte”. Cf. GADAMER, Hans Georg. Le probleme hermeneutique. Archives de Philosophie, Paris, v. 33, p. 3-27, 1970. p. 24. 32 Exige-se do juiz, para solução de cada conflito em particular, uma solução equitativa e razoável, desde que permitida pelo sistema jurídico. “Para realizar la síntesis entre la MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 56 07/08/2018 15:04:45 57CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO um quadro favorável dentro do qual pode prosperar o pensamento tipológico como nova, ou mais uma metodologia para investigação jurídica. Ora, nesse processo, o de investigação jurídica, é necessário pôr em correspondência recíproca a norma e o caso, o ser da situação concreta e o dever ser da norma. É a identidade de sentido, também chamada de natureza da coisa,33 que permitirá a convergência entre o ser e o dever ser. O pensamento do ponto de vista da natureza da coisa, segundo Kaufmann, é tipológico porque a norma legal, em sua vinculação ao ser, no “suposto de fato, aparece como uma situação vital tipificada”.34 O tipo, sendo uma ordem cujas notas características não são rígidas e limitadas, podendo faltar em certos casos algumas delas, é dotado de certa temporariedade ou permeabilidade mais adequada a um sistema jurídico aberto, histórico, no qual as situações vitais problematizadas atuam constantemente no evoluir do próprio direito. O que significa modo de pensar tipológico na interpretação, como método de investigação jurídica? Nesse passo, dissentem os estudiosos do tipo. Para alguns, a interpretação a partir do tipo configura a essência de toda e qualquer interpretação e aplicação do direito. É o pensamento de Kaufmann ou de Hassemer.35 Para Kaufmann, por exemplo, o tipo é a causa e está posto antes da formação do direito. O legislador só faz descobrir tipos, descrevendo- equidad y la ley, se le permite flexibilizar esta última, merced a la intervención cresciente de reglas de derecho no escritas, representadas por los principios generales del derecho y por la toma en consideración de tópicos jurídicos. Esta nueva concepción acrecienta la importancia del derecho pretorio y hace del juiz el auxiliar y el complemento indispensable del legislador e, inevitablemente, aproxima la concepción continental del derecho a la concepción anglosajona regida por la tradición de la Comomn Law”. Cf. PERELMAN, Chaim. La lógica jurídica y la nueva retórica. Tradução de Luiz Diez-Picazo. Madrid: Civitas, 1979. p. 179. Sem dúvida, a tópica de Viehweg representa a aproximação mais extremada entre um e outro sistema jurídico (VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Ministério da Justiça; Ed. Universidade de Brasília, 1979). 33 V. KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 90-91. 34 Cf. KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 93. Acrescenta o autor: “Uno de los problemas más actuales de la filosofía del derecho, la naturaleza de la cosa, deriva en uno de los problemas más actuales de la teoría del derecho, el tipo” (p. 94). 35 Cf. KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 99; e HASSEMER, Winfried. Tatbestand und typus. Berlin: C. Heymanns Verlag Kg, 1968. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 57 07/08/2018 15:04:45 58 MISABEL ABREU MACHADO DERZIDIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PENAL E TIPO os (sem exaurir sua riqueza de conteúdo, que é inesgotável), através de conceitos abstratos que objetivam possibilitar a segurança jurí dica. Não obstante, como o direito não é a lei e nela não se esgota, a essência da interpretação consiste “não em trabalhar com conceitos legais abs- tratamente definidos, mas com os tipos que se colocam por trás deles. Ela se atualiza a partir da natureza da coisa”.36 Há, não obstante, quem se socorra do pensamento tipológico para preencher os claros que as técnicas usuais de interpretação foram incapazes de satisfazer. Veem-no como método supletivo ou tão só adequado à compreensão de certas expressões jurídicas ou conceitos, especialmente difíceis por sua indeterminação, amplitude ou obscuridade. Assim, Rode sugere a compreensão tipológica do direito para a interpretação e aplicação de normas constitucionais que se utilizam de expressões como “Estado de direito social” (art. 28 da Constituição da República Federal da Alemanha), cujo conteúdo não é nem pode ser rigidamente delimitado, mas tão só guiado pela realidade. O intérprete pode aproximá-lo de forma mais ou menos correspondente.37 No mesmo sentido se expressa Streck, no direito fiscal. Aí, ao examinar a imprecisão conceitual e a polissemia dos termos empresa e empreendimento social, sugere que sejam descritos como tipos, pois, nos tipos, estará inerente algo temporário, no qual nenhuma característica pode decidir, isoladamente, de sua existência ou não e em que será relevante a compreensão da imagem total do fenômeno.38 É claro que essas distinções – de quem acredita ser o pensamento tipológico próprio de toda interpretação jurídica ou de quem lhe confere caráter apenas supletivo e acidental – têm suas raízes firmadas na própria concepção que se tenha do direito e da hermenêutica jurídica. O tema enseja, então, uma discussão bem mais aprofundada do que permitiriam os objetivos deste trabalho. Cabe, entretanto, desde logo, realçar que identificar os verda- deiros tipos jurídicos, impostos ao legislador na realidade social, nem sempre é possível e não será feito da mesma forma em todos os ramos do direito. 36 Cf. KAUFMANN, Arthur. Analogía y naturaleza de la cosa. Santiago: Jurídica de Chile, 1976. p. 98-99. 37 Cf. RODE, Karlheinz. Begriffiche und Typologische Gesetzesinterpretation. Juristische Rundschau – Heft, Berlin, v. 11, p. 401-407, nov. 1968. 38 Cf. STRECK, Michael. Gewerbebetrieb, Mitanternehmerschaft, Bilanzbündeltheorie. Finanz – Rundschau, Köln, n. 13-14, p. 297-301, jul. 1974. p. 230. MizabelAbreuDerzi_DireitoTributario_MIOLO.indd 58 07/08/2018 15:04:45 59CAPÍTULO 2DOS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE TIPO NO DIREITO Como anotou Carnelutti,39 o direito tem caráter transforma- cional. Certos campos podem colher relações jurídicas, que nascem, espontaneamente, de forma direta, do tráfego social, graças à autonomia da vontade. É o caso do direito comercial ou civil. Novos contratos surgem, no dia a dia, atípicos ou de forma mista, que acabam por se impor à tipologia legal (shopping center, leasing etc.). Outros ramos, como o direito penal e o direito tributário, transformam ou têm como base outras relações jurídicas. Muitos dos delitos existentes (furto, roubo, bigamia) pressupõem vínculos regrados pelo direito civil. Também o direito tributário atua, em muitos casos, sobre fatos já juridicizados. No entanto, na formação de seus tipos, o direito penal difere radicalmente do direito tributário, pois os delitos e suas espécies, pelo que têm de fundo ético-social, repousam em valores fundamentais primeiro formados na realidade social. Espécies de delito podem “impor-se” ao legislador, como dele “exigir” a desincriminação. Já no direito tributário, o artificialismo é evidente. Em muitos dos tributos criados (não em todos, é verdade), dá-se o fenômeno oposto: a lei é que imporá, criativamente, um novo tributo, o qual, repetitivamente, terá como base as fontes de riqueza já conhecidas: ou a circulação, ou a produção ou o consumo ou o capital. Tributos podem surgir em função das necessidades de caixa do tesouro
Compartilhar