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0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO DE ITAPIPOCA CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM QUÍMICA BEATRIZ PRACIANO DE CASTRO MULHERES CIENTISTAS: CONTEXTUALIZANDO A PARTICIPAÇÃO FEMININA NA CIÊNCIA E NA QUÍMICA SOB UMA PERSPECTIVA CRÍTICA FEMINISTA ITAPIPOCA – CEARÁ 2021 1 BEATRIZ PRACIANO DE CASTRO MULHERES CIENTISTAS: CONTEXTUALIZANDO A PARTICIPAÇÃO FEMININA NA CIÊNCIA E NA QUÍMICA SOB UMA PERSPECTIVA CRÍTICA FEMINISTA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura Plena em Química da Faculdade de Educação de Itapipoca da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de licenciada em Química. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cleonilda Claita Carneiro Pinto. ITAPIPOCA – CEARÁ 2021 2 3 BEATRIZ PRACIANO DE CASTRO MULHERES CIENTISTAS: CONTEXTUALIZANDO A PARTICIPAÇÃO FEMININA NA CIÊNCIA E NA QUÍMICA SOB UMA PERSPECTIVA CRÍTICA FEMINISTA 4 À todas as profissionais que estiveram na linha científica do combate ao COVID-19. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela minha existência, da forma que fui moldada e criada, e a Nossa Senhora por sempre me amparar e interceder em minhas orações. Agradeço o apoio dos meus amigos, Cleiton Lino, Bruna Magalhães e Leidiana Lima, por ajudar com bibliografias que engrandeceram ainda mais minha pesquisa, e por compartilhar comigo vivências e diálogos feministas. Agradeço a minha orientadora professora Cleonilda Claita Carneiro Pinto, por corrigir e sugerir alterações no meu trabalho para que a pesquisa tornasse a mais honesta e relevante possível. Agradeço a Sociedade de Promoção e Apoio à Família de Itapipoca – SOPRAFI, por sempre oportunizar experiências que despertaram em mim um interesse por causas e questões sociais na minha comunidade e no mundo. Agradeço o apoio financeiro da bolsa do Programa de Educação Tutorial – PET, coordenado pelo professor Francisco Furtado Tavares Líns, que também sempre apoiou as minhas decisões no subprojeto do Cursinho Popular Facivest. 6 “Nasci menina num lugar onde rifles são disparados em comemoração a um filho, ao passo que as filhas são escondidas atrás de cortinas, sendo seu papel na vida apenas fazer comida e procriar”. (Malala Yousafzai) 7 RESUMO Ao longo da história, as mulheres foram impedidas de atuar na Ciência. Em alguns casos, as que conseguiam atuar tinham suas descobertas atribuídas aos homens. Infelizmente, mesmo com o passar do tempo, ainda existe uma participação desigual de mulheres nessa área, problemática levantada e motivada para o desenvolvimento desta pesquisa. Mediante esta observação, fez-se necessário analisar a participação das mulheres na Ciência no Brasil e no mundo sob uma perspectiva crítica e histórica da corrente filosófica e política do feminismo, dando ênfase na área de Ciências Exatas e suas Tecnologias, com foco principalmente na área de atuação da Química. Para a realização do presente trabalho buscou-se na literatura dados sobre a participação feminina na Ciência e na Química, e os desafios encontrados ao longo da história. Também buscou-se através de um questionário conhecer alguns fatores que refletem esse cenário de invisibilidade, bem como discutir as perspectivas para o futuro dessas mulheres cientistas. Foram feitas alusões históricas em contextos que marcaram a trajetória das mulheres, bem como a alquimia das bruxas, inserção nas escolas e nas universidades, até os dias atuais, sendo maioria na comunidade acadêmica e nos campos de pesquisa. É conhecido que muitas mulheres conseguem adentrar na carreira científica, mas poucas conseguem permanecer, principalmente na área das Ciências Exatas e Engenharias. Na contemporaneidade, é preciso enxergar com mais clareza o papel da mulher na Ciência, nesse sentido, também se trouxe dados estatísticos e personalidades femininas da Química. Melhorar a participação de grupos sub- representados não é apenas mais justo, mas poder agregar mais conhecimento e um maior número de pesquisas. Portanto, o presente estudo, enfatiza a importância e contribuição das mulheres no desenvolvimento da Ciência e da Química ao longo da história, bem como revela a necessidade de debater e esclarecer as barreiras e os significativos avanços da participação das mulheres cientistas na Ciência e na Química. Assim, a escrita dessa pesquisa é uma resposta de sororidade à todas as mulheres cientistas, que fizeram e continuam fazendo ciência em todo o mundo. Palavras-chave: Participação feminina. Carreira científica. Feminismo. 8 ABSTRACT Throughout history, women have been prevented from working in science. In some cases, those who managed to act had their findings attributed to men. Unfortunately, even with the passage of time, there is still an unequal participation of women in this area, a problem raised and motivated for the development of this research. Through this observation, it was necessary to analyze the participation of women in Science in Brazil and in the world from a critical and historical perspective of the philosophical and political current of feminism, emphasizing the area of Exact Sciences and its Technologies, focusing mainly on the area of Chemistry. In order to carry out the present work, data were sought in the literature about female participation in Science and Chemistry, and the challenges encountered throughout history. It was also sought through a questionnaire to know some factors that reflect this invisibility scenario, as well as to discuss the perspectives for the future of these women scientists. Historical allusions were made in contexts that marked the trajectory of women, as well as the alchemy of witches, insertion in schools and universities, to the present day, being the majority in the academic community and in the fields of research. It is known that many women manage to enter the scientific career, but few manage to stay, mainly in the area of Exact Sciences and Engineering. Nowadays, it is necessary to see more clearly the role of women in Science, in this sense, statistical data and female personalities from Chemistry have also been brought up. Improving the participation of underrepresented groups is not only more just, but being able to add more knowledge and a greater number of research. Therefore, the present study emphasizes the importance and contribution of women in the development of Science and Chemistry throughout history, as well as revealing the need to debate and clarify the barriers and the significant advances in the participation of women scientists in Science and Chemistry. Thus, the writing of this research is a response of sorority to all women scientists, who have done and continue to do science around the world. Keywords: Female participation. Scientific career. Feminism. 9 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Gráfico 1 – Você mora em qual região do país? ................................................. 50 Gráfico 2 – Qual a sua cor ou raça? ..................................................................... 51 Gráfico 3 – Qual a sua identidade de gênero? .................................................... 52 Gráfico 4 – Qual a sua orientação sexual? .......................................................... 52 Gráfico 5 – Você tem filhos? Se sim, quantos? ..................................................53 Gráfico 6 – Qual a sua idade? ............................................................................... 54 Gráfico 7 – Possui deficiência? Se sim, qual(is)? ............................................... 55 Gráfico 8 – Qual a sua formação acadêmica? ..................................................... 55 Gráfico 9 – Sobre sua atuação profissional, aplica-se: ...................................... 56 Gráfico 10 – Qual a sua área de conhecimento? ................................................. 57 Gráfico 11 – Quais suas motivações para escolher sua área de atuação? ................................................................................................................................... 58 Gráfico 12 – Durante o seu Ensino Médio você recebeu incentivos para seguir na área das Ciências? ............................................................................................ 59 Gráfico 13 – Durante sua formação acadêmica foi ressaltada a importância do protagonismo feminino na Ciência? .................................................................... 60 Gráfico 14 – Na sua opinião, homens e mulheres que contribuíram para o desenvolvimento da Química são igualmente lembrados? ............................... 61 Gráfico 15 – Você considera importante abordar a contribuição das mulheres para o desenvolvimento da Química nos cursos de licenciatura em Química? .................................................................................................................................. 61 Gráfico 16 – Nos dias atuais, você acredita que homens e mulheres cientistas da área da Química, possuem espaços e oportunidades iguais para desenvolverem suas pesquisas? ......................................................................... 62 Gráfico 17 – Durante a graduação você recebeu incentivos para atuar como cientista/pesquisadora? ........................................................................................ 63 Gráfico 18 – Enquanto mulher cientista, quais são as dificuldades encontradas no seu ambiente de trabalho: ................................................................................ 64 Gráfico 19 – Você concorda que o feminismo impacta e empodera meninas e mulheres na Ciência? ............................................................................................ 65 10 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Número de Matrículas em Cursos de Graduação Presenciais e a Distância .................................................................................................................. 21 Tabela 2 – Número de Concluintes em Cursos de Graduação Presenciais e a Distância .................................................................................................................. 21 Tabela 3 – Número de Docentes (Em Exercício e Afastados) ............................ 21 Tabela 4 – Representação de bolsistas dentre os diferentes níveis de titulação ................................................................................................................................... 39 Tabela 5 – Representação de docentes nas instituições brasileiras em Química ................................................................................................................................... 39 Tabela 6 – Representação de gênero na progressão da carreira em Química ................................................................................................................................... 39 Tabela 7 – Projetos Universal do CNPq aprovados na área de Química .......... 40 Tabela 8 – Representação em cargos de liderança nas Universidades ............ 40 11 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS ABC Academia Brasileira de Ciência C&T Ciência & Tecnologias CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEFET (MG) Centro Federal de Educação de Minas Gerais CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos FACEDI Faculdade de Educação de Itapipoca FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IUPAC International Union of Pure and Applied Chemistry LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ONU Organização das Nações Unidas PQ Produtividade em Pesquisa SBF Sociedade Brasileira de Física SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBQ Sociedade Brasileira de Química SEDUC (CE) Secretária da Educação do Ceará STEM Science, Technology, Engineering and Mathematics TWAS The World Academy of Sciences UECE Universidade Estadual do Ceará UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFBA Universidade Federal da Bahia UFC Universidade Federal do Ceará UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UNIFESSPA Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro USP Universidade de São Paulo 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 13 2 REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................ 16 2.1 A história e a alquimia das mulheres bruxas ................................................ 16 2.2 A educação de mulheres ao longo da história ............................................. 19 2.3 Feminismo e gênero nas Ciências ................................................................. 22 2.4 As barreiras impostas às mulheres na Ciência ao longo dos anos ........... 26 2.5 Dados sobre a produtividade acadêmica de mulheres no Brasil ............... 29 2.6 Incentivos à participação das mulheres na Ciência ..................................... 31 2.7 A maternidade e a produtividade científica .................................................. 32 2.8 As mulheres cientistas na Química ............................................................... 35 2.9 Disparidade de gênero na Química brasileira ............................................... 38 2.10 As cientistas no prêmio Nobel de Química ................................................... 41 2.11 As cientistas negras: uma sub-representação na Ciência .......................... 45 3 OBJETIVOS ...................................................................................................... 47 3.1 Objetivo geral ................................................................................................... 47 3.2 Objetivos específicos ...................................................................................... 47 4 METODOLOGIA ................................................................................................ 48 4.1 Caracterização da pesquisa ........................................................................... 48 4.2 Instrumentos da pesquisa .............................................................................. 48 4.3 Aspectos éticos ............................................................................................... 49 5 RESULTADOS E DISCUSSÕES ...................................................................... 50 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 75 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 76 APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO ............... 83 APÊNDICE B – QUESTIONÁRIO .............................................................................84 13 1 INTRODUÇÃO Ao longo da graduação algumas inquietações foram emergindo na observação, primordialmente, da participação de mulheres no curso de Química ser inferior ao número de alunos e professores homens. Consequentemente, enquanto estudiosa do feminismo, acabara também conduzindo a outras inquietudes do mesmo sentido, bem como a invisibilidade, desafios, avanços e perspectivas dos sujeitos femininos que produziram e continuam produzindo conhecimento científico. Em que momento as meninas tiveram o direito de estudar? Quantas descobertas importantes na Ciência foram feitas por mulheres? Quantas mulheres não se tornaram cientistas por terem que cuidar das atividades domésticas? Será que todas as cientistas trabalham em condições igualitárias? Existem diversidade e igualdade de gênero nas Ciências? A Química também é misógina? Refletir sobre essas indagações motivaram a elaboração do projeto de pesquisa, que por sua vez, resultou no presente trabalho. Assim, ao observar a história da Ciência ao longo do tempo percebe-se que ocorreu um processo de invisibilidade e exclusão de mulheres na carreira científica. A trajetória das mulheres na Ciência é constituída de uma cultura baseada no "modelo masculino de carreira". Muitos fatores restringem a participação das mulheres na Ciência: compromissos de tempo integral para o trabalho, produtividade em pesquisa, relações academicamente competitivas e a valorização de características masculinas (SILVA; RIBEIRO, 2014). Na cultura ocidental, a imagem de cientista é caracterizada por um homem branco de jaleco, com cabelo bagunçado, usando óculos, maluco ou ambicioso realizando experimentos no seu laboratório. Esses arquétipos, muitas vezes, são veiculados em desenhos animados, filmes e séries como por exemplo: Franjinha (Turma da Mônica), Heinz Doofenshimirtz (Phineas & Ferb), o professor Utônio (Meninas Super Poderosas), professor Pardal (Walt Disney), Flint Lockwood (Tá Chovendo Hambúrguer), Rick Sanchez (Rick & Morty), John Frink (Os Simpsons), Walter White (Breaking Bad), e personagens de histórias em quadrinhos. O machismo, fenômeno social enraizado culturalmente, defende a superioridade masculina em relação à feminina, valorizando o comportamento viril, forte e agressivo em homens e estimulando um comportamento dependente, 14 submisso e emocional em mulheres (SOARES, 2001). Assim, o presente estudo não apenas ajuda a preencher uma lacuna importante na literatura, mas também tem implicações críticas para as questões sociais e educacionais urgentes associadas à disparidade de gênero na Ciência (MOSS-RACUSIN et al, 2012). Em grande medida, pode-se afirmar que o processo de distanciamento das mulheres para com a Ciência, enquanto atividade sistematizada começa no processo de socialização. Direcionadas para atividades ditas “femininas”, mesmo a entrada na carreira científica acaba esbarrando em outros constrangimentos como a difícil escolha entre família, maternidade e carreira. Desse modo, não se trata apenas de superar os constrangimentos criados, mas de reinventar a atividade (COSTA, 2006). É notório que oportunidades não foram dadas às mulheres ao longo da história, reproduzindo assim, a exclusão no campo acadêmico e mais marcadamente nas Ciências Exatas. A Química, por exemplo, apresenta personagens emblemáticas que contribuíram significativamente para o seu desenvolvimento, fortalecendo-a enquanto ciência moderna. Portanto, através de uma revisão de literatura, pode-se conhecer a biografia de mulheres químicas que trabalharam, desenvolveram pesquisas e participaram ativamente na divulgação desta ciência (NUNES et al, 2009). Os esteriótipos dados às mulheres, como amáveis, gentis e delicadas, influenciaram significativamente no direcionamento de sua inserção nas áreas de conhecimento relacionadas ao cuidado. Faz-se necessário desmistificar essa corrente retrógrada de pensamento, entendendo a história das mulheres na Ciência enfatizada por esta pesquisa. Portanto, através das informações obtidas durante o levantamento bibliográfico que embasa este estudo, é notório o empoderamento e inclusão das mulheres em quaisquer espaços, antes limitados. Nesse sentido, é preciso dados para fundamentar a luta das mulheres na Ciência. Assim, questionar, pesquisar, escrever e divulgar sobre a temática torna-se um compromisso. A autora Costa (2006) afirma que outras autoras têm se dedicado a entender a invisibilização das mulheres na Ciência nos vários momentos da história. Estudos recentes já estão resgatando sua presença na geração do conhecimento desde a Grécia, Idade Média, através do resgate de memórias. Desvendar o feminino na construção do conhecimento vem de encontro às preocupações de uma área ainda em construção no Brasil, Gênero e Ciência, 15 mas fértil em abordagens e análises sobre a participação de mulheres na Ciência, na geração do conhecimento. A decisão tem sido difícil e os indicadores apontam que a Ciência ainda é masculina, embora nas últimas duas décadas tenha havido um aumento da participação das mulheres na academia (COSTA, 2006). Não obstante sua crescente inserção no mercado de trabalho e as conquistas acumuladas de muitos direitos, com relevante contribuição em vários setores da sociedade, as mulheres ainda enfrentaram dificuldades para ocupar postos de direção, acumulando obrigações nos estudos (formação continuada), no trabalho, nos afazeres domésticos, na maternidade, nos relacionamentos, seguindo exigências dos padrões estéticos, morais e religiosos (BEZERRA; LIMA, 2018). Considerando a temática de extrema importância sob um olhar profundamente crítico sobre as desigualdades dos números, este trabalho será somado a outros estudos na compreensão dos fatores causais desse fenômeno através da investigação científica. Sabendo que é preciso promover a igualdade de gênero, e entendendo que um dos passos para alcançar esse Objetivo de Desenvolvimento Sustentável é debatendo sobre o assunto na sociedade escolar, e primordialmente, na sociedade acadêmica. 16 2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1 A história e a alquimia das mulheres bruxas No fim da Idade Média, durante os séculos XV e XVI, em uma parte da Europa e algumas colônias da América, os tribunais da Santa Inquisição começaram a perseguir, torturar e queimar vivas as pessoas acusadas de se desviar dos dogmas da Igreja Católica. Entre esses grupos estavam as bruxas – mulheres sábias, curandeiras e parteiras. Essas mulheres também se reuniam para compartilhar seus conhecimentos medicinais, o que não agradou os religiosos da época (BURRESON; LE COUTEUR, 2006). A Inquisição, um tribunal da Igreja Católica originalmente estabelecido por volta de 1233 para lidar com hereges — sobretudo no sul da França — expandiu seu mandato para lidar com a bruxaria. Segundo algumas autoridades, depois que os hereges haviam sido praticamente eliminados, os inquisidores, precisando de novas vítimas, voltaram os olhos para a feitiçaria (BURRESON; LE COUTEUR, 2006). A bruxaria era considerada demoníaca, sendo a mulher um agente do demônio, mas, sobretudo, era tratada como um crime feminino. Isto pode ser notado no momento em que a perseguição alcançou seu ponto máximo, no período compreendido entre 1550 e 1650, quando mais de 80% das pessoas julgadas e executadas na Europa pelo crime de bruxaria, foram mulheres, e seus acusadores poderiam ser tanto as mulheres como homens (FEDERICI, 2017). As estimativas variam de 40 mil a milhões. Embora, entre os acusados de bruxaria, houvesse homens, mulheres e crianças, aristocratas, camponeses e clérigos, em geral os dedos eram apontados para as mulheres — sobretudo pobres e idosas. Propuseram-se muitas explicações para o fato de as mulheres terem se tornado as principais vítimas das ondas de histeria e delírio que ameaçaram populaçõesinteiras durante centenas de anos (BURRESON; LE COUTEUR, 2006). Escrito pelos religiosos Heinrich Kraemer e James Sprenger, o livro Malleus Maleficarum (1486), conhecido como o “Martelo das Feiticeiras”, era um guia de “caça às bruxas”, que disseminou a ideia retrógrada da mulher como símbolo do mal. Na obra, existem passagens em que os autores explicam que as mulheres são mentalmente mais fracas que os homens. Encontram-se também 17 descrições sobre como a mulher podia ser fofoqueira, sentimental, vingativa, invejosa e competitiva (FEDERICI, 2017). Mas por que muitas mulheres eram vistas como bruxas ou feiticeiras? O papel de “cuidadora” assumido pelas mulheres, historicamente as levou a praticar a medicina por meio de chás, unguentos, realização de partos e outras práticas (REZENDE; QUIRINO, 2017). Assim, as bruxas tinham conhecimentos de compostos químicos, pesticidas, venenos e estimulantes naturais, já que elas conheciam propriedades terapêuticas e toxicológicas de muitas plantas. Àquelas com maior capacidade de curar podiam ser as primeiras rotuladas de feiticeiras (BURRESON; LE COUTEUR, 2006). Muitas mulheres acusadas de bruxaria eram herboristas competentes no uso de plantas locais para curar doenças e mitigar dores. [...] também forneciam poções do amor, faziam encantamentos e desfaziam bruxarias. O poder de curar que algumas de suas ervas realmente tinham era visto como tão mágico quanto os encantamentos e rituais que cercavam as demais cerimônias que realizavam (BURRESON; LE COUTEUR, 2006). Consequentemente, durante a Idade Moderna, as mulheres também haviam contado com muitos métodos contraceptivos. Basicamente consistiam em ervas transformadas em poções e “pessários” (supositórios vaginais), que se usavam para estimular a menstruação de uma mulher, provocar um aborto ou criar uma condição de esterilidade. Sabe-se que muitas bruxas eram parteiras, mas os autores recomendaram que essa arte não deveria ser permitida a nenhuma mulher, a menos que demonstrasse ser uma “boa católica” (FEDERICI, 2017). Tradicionalmente, as bruxas eram depositárias do conhecimento e do controle reprodutivo das mulheres. Com isso, Malleus Maleficarum dedicou-lhes um capítulo inteiro, no qual afirmava-se que elas eram piores que quaisquer outras mulheres, já que ajudavam as mães a destruir o fruto do seu ventre. A caça às bruxas destruiu os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a procriação, posto que eles eram denunciados como instrumentos diabólicos, e institucionalizou o controle do Estado sobre o corpo feminino, o principal pré-requisito para sua subordinação à reprodução da força de trabalho (FEDERICI, 2017). Parece plausível que a caça às bruxas fosse, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino, o útero, a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho. Essa é uma hipótese; o que podemos afirmar com certeza 18 é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação (FEDERICI, 2017). Na verdade, todas essas técnicas constituem uma parte essencial do saber milenar atribuído às mulheres, mas que fez vítimas no período da caça às bruxas por ser atribuído a um pacto demoníaco (TOSÍ, 1998). Com a perseguição à curandeira popular, as mulheres foram expropriadas desse patrimônio de saber empírico, relativo a ervas e remédios curativos, que haviam acumulado e transmitido de geração a geração (FEDERICI, 2017). Por outro lado, houve resistência: Na Europa medieval, aquelas mesmas mulheres que foram perseguidas mantinham vivo o importante conhecimento das plantas medicinais, como o fizeram povos nativos de outras partes do mundo. Sem essas tradições ligadas às ervas talvez nunca tivéssemos produzido o arsenal de fármacos que temos atualmente (BURRESON; LE COUTEUR, 2006). Em alguns países da América, como em todas as sociedades pré- industriais, muitas mulheres eram “especialistas no conhecimento médico”, estavam familiarizadas com as propriedades de ervas e plantas e também eram adivinhas (FEDERICI, 2017). A Ciência, entretanto, não podia dispensar a contribuição das reconhecidas habilidades femininas para o trabalho experimental e para a observação (TOSÍ, 1998). A questão da bruxaria e da caça às bruxas constitui um tema de reflexão e estudo intimamente relacionado com a problemática da mulher e a ciência, por tratar-se da repressão de um saber, ainda que empírico, praticado pelas mulheres. Com efeito, um contingente importante das acusadas de bruxaria estava formado por mulheres velhas que dominavam um saber ancestral, que consistia no uso de ervas de reconhecida eficácia. Esse saber, transmitido por via oral, era, em princípio, acessível a qualquer um, mas essas mulheres o herdavam através de laços familiares ou de vizinhança e eram, por assim dizer, as principais depositárias (TOSÍ, 1998). Os autores Burreson e Le Couteur (2006), contam que à medida que o Feudalismo batia em retirada, e despontava o Iluminismo (1715-1789) – Século das Luzes, vozes de homens e mulheres corajosos que se arriscavam a ir para a forca ou para a fogueira por se oporem àquela loucura foram se elevando. A mania misógina que assolara a Europa durante séculos foi se reduzindo gradativamente. 19 2.2 A educação de mulheres ao longo da história No Brasil, durante 327 anos, as mulheres foram excluídas dos benefícios de estudar, já que eram vistas como o “imbecilitus sexus” (o sexo imbecil, que não pensa direito). Historicamente, a escolarização feminina, ou seja, o seu lugar como aluna e profissional da educação, passou por diversos desafios que culminaram em significativos avanços sociais. Haviam, portanto, inúmeras restrições para a inclusão das mulheres na escolarização e no exercício da profissão, como no magistério e nas funções de direção escolar em todo o mundo (BEZERRA; LIMA, 2018). O direito à educação se tornou a reivindicação primordial das mulheres no começo do século XV na França. O movimento iniciado pela poetisa e filósofa italiana Christine de Pizan (1364-1430), era conhecido como Querelle des Femmes (Querela das Mulheres), e durou quatro séculos. Pela primeira vez uma mulher ousava fazer a defesa de seu sexo, em franca oposição à misoginia reinante, dando inusitado ímpeto a um longo debate do qual participaram mulheres e homens de vários países da Europa (TOSÍ, 1998). Nos séculos XVIII e XIX passaram a ser educadas, porém como “detentoras da moral” familiar. Portanto, aprendiam letras e artesanato para exercerem melhor o papel de “mães educadoras”. A mulher era preparada para ser uma boa esposa, matriarca, religiosa, dona de casa ou serviçal devotada a serviços domésticos (BEZERRA; LIMA, 2018). No final do século XIX, a mulher foi reconhecida como agente natural das tarefas pedagógicas, e é assim que acaba inserida no contexto educacional brasileiro, por seu “dom de cuidar”. Em 1827, a Lei de Instrução Pública autorizava o ingresso do público feminino nas escolas até o ensino primário. Porém, determinava que a educação para a mulher deveria ser exclusivamente moral (BRASIL, 1827). Desse modo, foram criados conteúdos exclusivos para meninas, até mesmo em escolas separadas, com determinação em lei para que não aprendessem algumas matérias, como por exemplo a “exclusão das noções de geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações” (BRASIL, 1827). Assuntos relacionados a Ciência e a Política continuaram a ser monopólio exclusivo dos homens, porém mesmo com restrições, as mulheres foram tomando espaço na educação. 20 No final do Império e início da República, houve um aumento significativo da participação das mulheresno cenário educacional, quando muitas meninas puderam frequentar escolas, havendo necessidade crescente de profissionais da educação para atender a demanda. As escolas mistas, destinadas a ambos os sexos, foram autorizadas no país a partir de iniciativa de ideais protestantes, metodistas e presbiterianos, apesar de ainda haver a separação por gênero, em horários diferentes, dias alternados, alas e prédios separados (BEZERRA; LIMA, 2018). Para Filgueiras (2004), o Brasil de meados do século XIX era “uma ilha de letrados num mar de analfabetos”. Em 1872, apenas 18,56% da população era alfabetizada, e dessa porcentagem, 23,43% eram homens e 13,43% eram mulheres. Entre os escravos o analfabetismo era praticamente total, chegando a 99,9%. Hoje, o país tem cerca de 11 milhões de analfabetos (6,6%), e a partir desse índice, 6,9% são homens e 6,3% são mulheres, quando 8,9% são pessoas pretas e pardas. O Nordeste é a região com a maior taxa de analfabetismo com 13,9% (IBGE, 2020). A educação feminina em caráter mais universal e amplo só se logrou efetivamente no Brasil a partir do final do século 19, sobretudo após a implantação da República, com a vinda de inúmeras congregações religiosas para o país, com a finalidade específica de criar um grande número de colégios espalhados de norte a sul do imenso território. À falta de um ensino público universal que atendesse eficazmente às necessidades da população, foi principalmente essa rede de instituições de ensino que supriu as deficiências herdadas do regime anterior (FILGUEIRAS, 2004). Com relação ao ensino superior, a inserção das mulheres nas universidades brasileiras começou no início do século XIX. A partir de 19 de abril de 1879, com a Reforma Leôncio de Carvalho ou Reforma do Ensino Livre (BRASIL, 1879), conferiu-se a liberdade e o direito da mulher de participar do ensino superior para obter um título acadêmico (FILGUEIRAS, 2004). Algumas mulheres, com a reforma pombalina, oficialmente, puderam ingressar nos estudos superiores para o magistério e ocupar cargos públicos de professoras. Houve a inserção feminina no magistério público, com posição no mercado de trabalho. Entretanto, a diferença salarial entre homens e mulheres foi documentada desde 1831, com o primeiro decreto que instituía concursos públicos, permitindo-se a diferenciação da remuneração por gênero. O critério de escolha para ocuparem os cargos levava em consideração o mérito, a capacidade, a procedência familiar e a ‘honestidade’, com comprovação de boa índole, fato que não se estendia aos homens (BEZERRA; LIMA, 2018). Tratando da educação superior, nos dias atuais, as mulheres já somam mais da metade dos graduandos e concludentes das instituições acadêmicas 21 brasileiras. Segundo o Censo da Educação Superior (INEP, 2020), do número total em matrículas nos cursos de graduação, presenciais e a distância (bacharelado, licenciatura e tecnólogo), 57,4% são mulheres e 42,6% são homens, como pode ser observado na Tabela 1. Tabela 1 – Número de Matrículas em Cursos de Graduação Presenciais e a Distância TOTAL FEMININO MASCULINO Brasil 8.603.824 4.938.139 3.665.685 Nordeste 1.866.854 1.080.751 786.103 Ceará 316.585 176.486 140.099 Exterior 1.859 1.181 678 Fonte: Inep, 2020. Ainda segundo o Censo da Educação Superior (INEP, 2020), o número de concluintes total em cursos de graduação presenciais e a distância (bacharelado, licenciatura e tecnólogo), aponta que as mulheres são maioria com 60,1% de representatividade em relação aos homens com um percentual de 39,9%, de acordo com a Tabela 2. Tabela 2 – Número de Concluintes em Cursos de Graduação Presenciais e a Distância TOTAL FEMININO MASCULINO Brasil 1.250.076 752.417 497.659 Nordeste 241.114 147.006 94.108 Ceará 41.118 24.383 16.735 Exterior 178 116 62 Fonte: Inep, 2020. O Censo da Educação Superior (INEP, 2020), disponibiliza outros dados, sobre o número total de docentes (em exercício e afastados). O percentual de professoras no ensino superior é de 46,7%, enquanto o de homens é de 53,3%, se sobrepondo ao número de mulheres, como pode ser identificado na Tabela 3. Tabela 3 – Número de Docentes (Em Exercício e Afastados) TOTAL FEMININO MASCULINO Brasil 399.428 186.814 212.614 Nordeste 91.520 45.156 46.364 Ceará 14.067 6.572 7.495 Fonte: Inep, 2020. 22 É importante compreender que a trajetória das mulheres na educação é marcada por muita luta, sendo dever de todos os indivíduos dar seguimento na erradicação das desigualdades entre os sexos. Por isso, em setembro de 2015, líderes mundiais reuniram-se na sede da ONU, em Nova York, e decidiram um plano de ação para erradicar as desigualdades, a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a qual contém um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas (BRASIL, 2020). Nesse sentido, os ODS 4 (Educação de Qualidade) e ODS 5 (Igualdade de Gênero) propostas pela Agenda 2030 da ONU, almeja assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade promovendo oportunidades de aprendizagem para todos, como também alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas em todos os níveis da vida política, econômica e pública até o fim desta década (BRASIL, 2020). 2.3 Feminismo e gênero nas Ciências O feminismo surgiu no século XIX como um movimento filosófico, social e político sob principal influência da Revolução Francesa (1789-1799). A corrente teórica e crítica buscava romper com as barreiras que impediam as mulheres do acesso ao mundo público. Sua principal característica é a luta pela equidade entre gêneros e, por consequência, a participação e respeito às mulheres na vida em sociedade, no sentido de que todos os gêneros tenham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades (CEYLÃO et al, 2020). O feminismo pode ser considerado ao mesmo tempo uma teoria crítica em permanente construção sobre a sociedade e as desigualdades de gênero nela existentes, por meio de diferentes visões e posicionamentos políticos, e um movimento político que, confrontando os sistemas de dominação, exploração e opressão das mulheres, reúne um conjunto de discursos e práticas na luta por direitos e transformações no que se refere à igualdade e à justiça social. Essa linha teórica essencialmente política perpassou pelo longo processo de conscientização das mulheres e de suas lutas através da história pela redefinição de seu papel social, por direitos e pela equidade de gênero, no âmbito da sociedade civil e domínios institucionais (CAMPOS, 2017). 23 A primeira onda do feminismo (1890-1934) é marcada pelo sufragismo, luta pelo direito ao voto feminino. No Brasil, destaca-se a bióloga e ativista Bertha Lutz (1894-1976). O conceito de gênero emerge na segunda onda do feminismo (anos 60, 70 e 80), e traz a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) como principal pensadora. Na terceira onda do feminismo, reforçaram-se as reivindicações do movimento anterior, porém abrangendo mais diálogos sobre os sujeitos sub- representados, negros, indígenas, LGBT+ e outros grupos sociais (CASEIRA, 2016). O feminismo significa também um movimento social. Parte da constatação de que a subordinação da mulher é fato constante na história da humanidade e as manifestações de sua insubordinação também. O feminismo significou que as mulheres passaram a trabalhar na teoria e na prática de forma conjunta em grupos, os mais heterogêneos possíveis, sobre a questão da opressão e submissão da mulher. (...) Defesa de direitos iguais para homens e mulheres aliado ao compromisso político de melhorar a posição das mulheres na sociedade estão envolvidos nas várias correntes feministas, formando movimentos e o conjunto de teorias que se desenvolveram a partir de experiênciasdiversificadas de opressão feminina e uma crença ou visão de mudança social. Nesse sentido, é um movimento plural desde sua origem e essa pluralidade está presente nos sistemas de valores, nas doutrinas e nas ações práticas voltadas para a transformação da condição da mulher (COSTA; SARDENBERG, 2002). O problema da opressão e discriminação contra as mulheres, por ser também uma questão de natureza moral e humanista, é de interesse de todos os seres humanos (SAITOVITCH et al, 2015). Para isso, a Constituição da República Federativa do Brasil garante no artigo 5° que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Da mesma maneira, conforme a Assembleia Geral da ONU ocorrida em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz no artigo primeiro que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (BRASIL, 1988). Segundo as teorias do patriarcado – que descrevem a dominação do homem sobre a mulher –, a tecnologia converte-se em um instrumento para manter as mulheres oprimidas na sociedade e no mercado de trabalho. Essa opressão/dominação é explicada de diversas maneiras pelas atuais disciplinas que fazem uso da teoria do patriarcado. (...) Porém, a opressão também se explica nas perspectivas psicológica, ideológica e cultural, contribuindo para fortalecer a dinâmica emocional da personalidade, profundamente enraizada no subconsciente e no inconsciente (COSTA; SARDENBERG, 2002). Os padrões de identidade entre os gêneros fizeram emergir novos paradigmas de comportamento e as discussões sobre gênero têm se tornado mais 24 presentes nas instituições. Assim, a intensificação de publicações e pesquisas científicas que incorporam as questões de gênero sobre a inserção da mulher no âmbito científico e tecnológico, possui contribuição fundamental para dar visibilidade aos esforços realizados quanto à posição social da mulher (BEZERRA; LIMA, 2018). Para as Ciências Sociais e a Psicologia, o gênero é entendido como aquilo que diferencia socialmente as pessoas, levando em consideração os padrões histórico-culturais atribuídos para os homens e mulheres. Por ser um papel social, o gênero pode ser construído e desconstruído, ou seja, pode ser entendido como algo mutável e não limitado, como define as Ciências Biológicas (BRASIL, 2018). A abordagem e estudo de gênero vêm aumentando em quantidade e complexidade em pesquisas. O assunto tem ganhado espaço na comunidade científica e abre uma oportunidade para a reflexão de como iniciar o diálogo com as crianças sobre questões de gênero e representatividade. Santos e Souza (2010) abordam a percepção sistemática das desigualdades logo na primeira infância: Desde o nascimento meninas e meninos são vítimas de construções sociais que irão determinar suas atitudes, gestos, valores e opiniões de acordo com seu sexo. Se for menina provavelmente vai ser educada para exercer funções domésticas, serão estimulados sentimentos de delicadeza, amor e fragilidade. O menino, por sua vez, para ser o provedor do lar, corajoso e aventureiro. Essa educação só é possível devido a práticas sexistas. Através desse mecanismo são legitimadas as diferenças de gênero de forma natural e imperceptível, a sociedade em si contribui de maneira bastante eficaz nesses estereótipos que acabam distanciando meninas e meninos, a família, a escola, a religião, todas possuem uma parcela de responsabilidade (SANTOS; SOUZA, 2010). Os mesmos autores afirmam que toda a sociedade, inclusive a mulher, participa desse pensamento androcêntrico. A educação através de vários mecanismos reforça esses arquétipos, construídos e baseados em questões biológicas. A experiência escolar é decisiva, ela pode contribuir tanto na reprodução de valores e atitudes que reduzem as oportunidades das meninas quanto na mudança decisiva em suas perspectivas profissionais (OLINTO, 2011). O sexismo, preconceito referente ao sexo se encontra presente na educação e no cotidiano através de algumas ações, seja por meio da linguagem, nos livros, nos gestos, que de maneira muito singular acabam por distanciar meninas e meninos, reforçando as diferenças e desfavorecendo a igualdade de gêneros. Por essa razão que existe tanta dificuldade e resistência quanto a sua superação juntamente com a visão androcêntrica, que está muito presente nos dias atuais, principalmente, no 25 espaço educacional, fazendo com que preconceitos referentes ao gênero obtenham força a cada dia (SANTOS; SOUZA, 2010). Em um contexto geral, muitos evitam a descrição social do problema de gênero, em opção a uma falsa naturalização biológica para justificar a pouca participação de mulheres nas Ciências (SAITOVITCH et al, 2015). Para Bonneti e Souza (2011) os termos “gênero” e “ciência”, de acordo com o que acontece em outros meios acadêmicos no mundo, enquadram-se em três grandes abordagens: 1) a estrutural, que analisa a presença, a colocação e a visibilidade das mulheres nas instituições científicas; 2) a epistemológica, que questiona os modos de produção do conhecimento a partir de uma crítica aos princípios norteadores do pensamento científico hegemônico; 3) a análise dos discursos e das representações sobre mulheres na Ciência, identificando metáforas de gênero como as que associam a mulher à Natureza e o homem à Razão, com repercussões importantes nos conteúdos de diversas disciplinas. O estudo da temática é ainda mais relevante para o avanço da democratização das ciências, pois um dos principais entraves é a ausência de mobilização das cientistas em torno das questões de gênero. Esta ausência da mobilização, em parte, é explicada pela negação de problemas específicos em relação a participação feminina na Ciência e Tecnologia (SAITOVITCH et al, 2015). De acordo com o Relatório Mundial sobre a Desigualdade de Gênero, a desigualdade global entre homens e mulheres nos setores da política, economia, saúde e educação será eliminada em 99,5 anos. A Islândia continua sendo o país com maior igualdade de gênero no mundo (87,7%). Na região da América Latina serão necessários 59 anos para eliminar a desigualdade entre homens e mulheres. Apoiar a paridade de gênero é, portanto, fundamental para garantir sociedades fortes, coesas e resilientes em todo o mundo (CROTTI et al, 2020). Em 2018, o Brasil ocupava a 92ª posição com uma pontuação geral de 69,1% no equilíbrio de gênero. Mesmo apresentando esse percentual, o país tem uma das maiores lacunas de desigualdades de gênero da América Latina, ocupando a 22ª posição entre 25 países da região, e quase 90 lugares atrás da Nicarágua 26 (80,4%, 5º), o melhor desempenho da região. No entanto, há perfeita paridade de gênero na taxa de alfabetização (93%) e educação primária (95%), e uma proporção maior de mulheres do que de homens estão matriculados no ensino médio e superior (CROTTI et al, 2020). 2.4 As barreiras impostas às mulheres na Ciência ao longo dos anos Quando se fala na presença de nomes de mulheres na Ciência, o primeiro nome que surge destacado é o da matemática neoplatônica Hipácia ou Hipátia de Alexandria (370-415), que trabalhava na Biblioteca de Alexandria e foi assassinada por uma turba de monges cristãos instigados por religiosos fanáticos. Além de Hipátia, há muitos nomes de mulheres que tiveram destaque por contribuições muito significativas, mas estes só serão encontrados, nas diferentes áreas, a partir do século XVIII, também como decorrência do Iluminismo (CHASSOT, 2019). A autora Tosí (1998), cita as mulheres dos séculos XVII e XVIII, que participaram de diversas atividades científicas ou técnicas nas quais a tradicional habilidade manual, a destreza, o sentido de observação, a inteligência, a imaginação e a capacidade de trabalho de que sempre fizeram prova, foram amplamente aproveitados. No entanto, salvo contadas exceções, sópuderam penetrar na fortaleza do saber pela porta dos fundos. Algumas dessas mulheres, pertencentes às classes nobres ou burguesas, tiveram a chance de receber uma boa educação, o que permitia transpor barreiras e interdições. No entanto, ficaram relegadas à condição marginal de assistentes ou, no melhor dos casos, de colaboradoras de cientistas conhecidos, ficando frequentemente ignoradas para a posteridade. Mas houve também mulheres que tomaram posições feministas e defenderam seu direito à mesma educação e o acesso às mesmas atividades intelectuais dos homens (TOSÍ, 1998). Sempre existiu um mecanismo social que divulgou as mulheres como menos capazes intelectualmente. As mulheres foram proibidas por lei de exercer a medicina desde o século XIII, e eram proibidas de frequentar lugares de estudo e de divulgar seu trabalho e, quando o faziam, eram utilizando pseudônimos masculinos ou pela assinatura de irmãos, do pai ou do marido (REZENDE; QUIRINO, 2017). As origens para o problema são atribuídas às diferenças biológicas, cognitivas ou de socialização entre os dois sexos. Argumentos misóginos declaram 27 que as mulheres não possuem controle emocional para suportar as pressões frequentes em cargos de comando, que mulheres não tomam decisões objetivas e são socialmente educadas para serem “protegidas” e desta forma não adquirem a “agressividade” necessária para competir (SOARES, 2001). Uma segunda perspectiva propõe que os padrões institucionais determinam as escolhas individuais, que por sua vez mantêm e reforçam ciclicamente estes mesmos padrões. Em outras palavras, a estrutura das organizações não propicia o sucesso profissional do sexo feminino. Sob este ponto perceptivo, a questão das mulheres na Ciência é o resultado de estruturas institucionais inapropriadas e não da inaptidão feminina para as áreas de Ciências e Tecnologias (SOARES, 2001). O fenômeno da representação desigual das mulheres nas carreiras científicas de forma geral, e mais especificamente no campo conhecido como STEM (da sigla em inglês para science, technology, engineering and mathematics), está presente tanto nos países de economias avançadas como nas economias em desenvolvimento (BOLZANI, 2017). Logo, a participação feminina na Ciência tem sido objeto de estudos e discussões mundiais. Embora o número de mulheres supere o de homens em muitas disciplinas científicas nos cursos de graduação, ao começarem suas carreiras como cientistas ou em outra profissão elas se deparam com várias barreiras (BOLZANI, 2017). Entre eles podem ser enumerados (SOARES, 2001): 1) dificuldade em conciliar as demandas da própria profissão e aquelas da profissão do parceiro. Mulheres aceitam mais facilmente uma mudança geográfica relacionada à profissão do parceiro do que os homens em relação à parceira. Este padrão é comum mesmo para casais nos quais ambos indivíduos são cientistas (o chamado two-body problem); 2) a sobrecarga devido ao acúmulo das funções do lar e da profissão acadêmica. A solução encontrada por algumas universidades é a criação de creches no próprio local de trabalho e a implementação de práticas que permitam uma maior flexibilidade no horário de trabalho; 3) o reduzido número de mulheres em cargos de decisão. Isto dificulta a implementação de políticas e medidas que estimulem uma maior participação feminina em Ciência e Tecnologia. 28 4) o escasso reconhecimento dentro da própria comunidade científica. Citando Marie Curie, quando foi necessário a recusa de Pierre Curie em receber o prêmio Nobel sozinho para que a comissão reconhecesse a contribuição de Marie na área de radioatividade. Em qualquer destes cenários, ainda é presente o chamado “Efeito Tesoura” representado por uma relação inversamente proporcional entre o patamar de prestígio acadêmico e o número de mulheres, ou seja, consiste na diminuição do número de mulheres conforme a carreira acadêmica vai avançando (OLINTO, 2011). A sub-representação das mulheres nos estágios avançados da carreira e nas posições de prestígio tem sido também denominada exclusão vertical. Já a sub-representação feminina em algumas áreas do conhecimento, a exemplo das Exatas e Engenharias, e intitulada exclusão horizontal. Os obstáculos em relação a exclusão vertical têm sido representados como “Teto de Vidro”, sob o qual estariam as barreiras a ascensão das mulheres na carreira científica. A transparência do vidro é uma metáfora para a suposta invisibilidade destes obstáculos, uma vez que estes não são de ordem formal, ou seja, não há impedimento legal para a maior participação das mulheres em postos de poder (SAITOVITCH et al, 2015). Dois mecanismos são geralmente identificados para descrever as barreiras enfrentadas pelas mulheres: a segregação horizontal e vertical. Por meio da segregação horizontal as mulheres são levadas a fazer escolhas e seguir caminhos marcadamente diferentes daqueles escolhidos ou seguidos pelos homens. Sobretudo pela atuação da família e da escola, as meninas tendem a se avaliar como mais aptas para o exercício de determinadas atividades e a estabelecer para si mesmas estratégias de vida mais compatíveis com o que consideram ou são levados a considerar como mais adequados para elas. A segregação horizontal inclui mecanismos que fazem com que as escolhas de carreiras sejam marcadamente segmentadas por gênero. Como as profissões femininas tendem a ser menos valorizadas no mercado de trabalho, considera-se que a segregação horizontal das mulheres está relacionada a outro tipo de segregação chamada de vertical. A segregação vertical é um mecanismo social talvez ainda mais sutil, mais invisível, que tende a fazer com que as mulheres se mantenham em posições mais subordinadas ou, em outras palavras, que não progridam nas suas escolhas profissionais. Estudos que abordam a segregação vertical têm se valido de termos como ‘teto de vidro’, indicando os processos que se desenvolvem no ambiente de trabalho que favorecem a ascensão profissional dos homens. O teto de vidro é invisível, mas é um mecanismo que tem sido identificado, inclusive nas carreiras de ciência e tecnologia (OLINTO, 2011). A autora Gilda Olinto (2011), ainda continua a sua argumentação: As dificuldades que se apresentam para as mulheres com relação à ascensão profissional, configurando mencionado ‘teto de vidro’ – o aspecto 29 vertical da segregação das mulheres no ambiente de trabalho –, revelam-se de diversas maneiras no ambiente científico. A paridade de gênero, ou mesmo a supremacia das mulheres, que atualmente se observa ao campo da ciência em alguns países – inclusive o Brasil e outros países da América Latina – tende a diminuir à medida que se avança nos postos acadêmicos. Isto pode ser observado quando se consideram os gêneros dos professores/ pesquisadores em posições específicas – como os cargos que acompanham a escala hierárquica da ciência. Quando mostrada graficamente, esta tendência gera uma imagem em formato de tesoura (OLINTO, 2011). Currículos de homens podem ser melhor avaliados do que das mulheres. Aliás, isso já foi demonstrado na área científica: currículos fictícios identificados com nomes masculinos foram considerados mais competentes e aptos para contratação do que os que estavam identificados com nomes de mulheres, mesmo os currículos sendo absolutamente iguais. Os currículos com nomes masculinos também foram relacionados a um melhor salário inicial (MOSS-RACUSIN et al, 2012). É sempre oportuno evitar o desperdício da força intelectual de toda a humanidade. A ascensão na carreira científica não deve sofrer influência de gênero ou de nenhuma outra particularidade como raça ou nacionalidade. A ascensão na carreira científica deve estar relacionada à dedicação e aos esforços em prol da expansão do conhecimento humano. No Brasil, a representação desigual das mulheresé um fenômeno em movimento e vem se alterando rapidamente na base da pirâmide educacional (BOLZANI, 2017). 2.5 Dados sobre a produtividade acadêmica de mulheres no Brasil Atualmente no Brasil, assim como na educação básica e no ensino superior, as mulheres também são mais da metade dos alunos na pós-graduação, aproximadamente 56% estão no mestrado e cerca de 54% no doutorado, e mais de 55% das pesquisas são direcionadas por mulheres. Além disso, em ambos os níveis, sua presença é mais acentuada nas Ciências Humanas, Ciências Biológicas e nas Ciências da Saúde (com índices acima de 60%), enquanto nas Ciências Exatas, e nas Engenharias, representam menos de 40% (CGEE, 2020). Apesar de serem maioria com doutorado em diversas áreas, as mulheres brasileiras não estão tão bem representadas nos níveis mais altos da carreira. As mulheres representam apenas 24% dos beneficiários do subsídio do governo brasileiro concedido aos cientistas mais produtivos do país (a bolsa produtividade). A 30 sub-representação em posições de liderança ainda persiste, já que as mulheres cientistas são apenas 14% da Academia Brasileira de Ciências (NEGRI, 2020). Analisando as bolsas de produtividade (PQ) do CNPq, considerada uma premiação ao mérito acadêmico, observa-se que, em 2011, havia 62,8% de homens PQ2 e 37,2% de mulheres para o mesmo nível. Bolsas PQ1A, concedidas a pesquisadores seniores de excelência nas áreas de atuação, totalizavam 77,7% para homens e 22,3% para mulheres. Em 2015, as mulheres representavam 24,6% dos bolsistas PQ1A. O pequeno aumento percentual nesse nível altamente competitivo demonstra que o reconhecimento do mérito acadêmico das cientistas brasileiras ainda é consideravelmente tímido (BOLZANI, 2017). Ainda tem a questão da idade na qual as mulheres atingem a bolsa PQ1A na faixa dos 50-54 anos, já os homens entre 45-49 anos. Outro dado interessante é que, das universidades do país, apenas 28,3% possuem mulheres como reitoras. Pode-se observar o predomínio dos homens nos postos de gestão e chefia de financiamento. O reduzido número de mulheres em cargos de decisão dificulta a implementação de políticas e medidas que estimulem uma maior participação feminina nas Ciências Exatas e suas Tecnologias (SOARES, 2001). Embora a falta de diversidade em cargos de chefia seja um fenômeno universal, o reconhecimento do problema e as ações para solucioná-lo são bastante recentes. Em alguns lugares, não existe uma política clara. No Brasil, a ação afirmativa para mulheres na Ciência é considerada desnecessária, pois há uma crença comum de que nenhum procedimento de promoção sofre preconceitos de gênero, raça ou origem geográfica (FERRARI et al, 2018). O relatório da Elsevier traduzido para Gênero no Cenário de Pesquisa Global, salienta algumas conclusões no que tange a participação das mulheres em direção ao equilíbrio de gênero na pesquisa. Dentre as informações reunidas, o Brasil aparece como um dos quatro países com maior participação de mulheres entre autores de artigos científicos, com 49%. Quanto aos artigos acadêmicos produzidos por mulheres, elas são citadas ou lidas em taxas similares às dos homens. Embora as mulheres publiquem menos artigos do que os homens, há um equilíbrio em termos de impacto (ALLAGNAT et al, 2017). Entre 1996-2000 e 2011-2015, a proporção de mulheres entre os pesquisadores aumentou consideravelmente. Essa proporção difere entre os campos de pesquisa: as áreas da Saúde e das Ciências da Vida apresentam a 31 maior representação feminina. A produção acadêmica das mulheres inclui uma proporção ligeiramente maior de pesquisa altamente interdisciplinar do que a dos homens. Entretanto, as mulheres são ligeiramente menos propensas do que os homens a colaborar em artigos nos setores acadêmico e corporativo. Entre os pesquisadores, as mulheres geralmente têm menos mobilidade internacional do que os homens (ALLAGNAT et al, 2017). A presença de mulheres e minorias em posições de liderança resulta em mais diversidade em ideias e estratégias para resolver diferentes tipos de problemas. Embora as mulheres tenham começado a entrar em alguns campos da Ciência em maior número, seu mero aumento de presença não é evidência da ausência de preconceito (MOSS-RACUSIN et al, 2012). Apesar do número restrito e pouco acessível de estudos sobre a atuação feminina em áreas de C&T, é razoável supor, com base na observação do número de mulheres ocupando posições permanentes em departamentos de Engenharia, Matemática, Física e Química brasileiros, que o Brasil não constitui uma exceção à tendência constatada em outros países (SOARES, 2001). 2.6 Incentivos à participação das mulheres na Ciência O sexismo atrapalha as mulheres cientistas, aliás, no desenvolvimento da Ciência nas produções, publicações e citações em revistas científicas. Por isso, as quatro etapas para acabar com o sexismo na Ciência são: promover iniciativas para enfrentar os esteriótipos desafiadores, melhor suporte para os pais, principalmente para as mães, entender que o preconceito contra as mulheres é um problema real, e programas de recompensas financeiras para boas práticas (SUMNER, 2015). Políticas e programas de governo em vários níveis, assim como políticas e programas de instituições de ensino e pesquisa visando à redução da segregação horizontal da mulher, podem se inspirar nos resultados das pesquisas sobre diferenças de gênero para promover mudanças que levem à redução da segregação vertical da mulher, incentivando uma participação mais igualitária dos gêneros na universidade e no exercício da atividade científica (OLINTO, 2011). O Programa L’Oréal-Unesco para mulheres na Ciência (For Women In Science) surgiu de uma parceria entre UNESCO e a L’Oréal em 1998. Todos os anos, o programa identifica, recompensa e incentiva mulheres de todos os 32 continentes, cujas descobertas e pesquisas tenham contribuído para o avanço do conhecimento científico. Além disso, os prêmios financeiros fornecem uma ajuda de ordem prática para essas pesquisadoras, além de inspirar futuras jovens a serem cientistas (CASEIRA, 2016). No Brasil, o prêmio “Para Mulheres na Ciência”, surgiu em 2006, a partir de uma iniciativa da L’Oréal Brasil em parceria com a Academia Brasileira de Ciência e a UNESCO. Segundo o programa, a premiação surge com o objetivo de ceder espaço e apoio à participação das mulheres brasileiras no cenário científico do país, ao premiar, anualmente, 7 pesquisadoras com uma bolsa-auxílio no valor de vinte mil dólares para auxiliar na sua pesquisa (CASEIRA, 2016). Desde que o programa surgiu no Brasil até a edição de 2020, foram realizadas 15 edições e 105 brasileiras, jovens cientistas e doutoras premiadas. O prêmio é dividido por 4 áreas de conhecimento – Ciências Matemáticas; Ciências Físicas; Ciências Químicas; e Ciências Biomédicas, Biológicas ou da Saúde, sendo que o número de bolsas não é o mesmo para todas as áreas contempladas pela premiação (CASEIRA, 2016). As mulheres em grupos científicos também enfrentam os problemas estruturais de trabalhar em sistemas que consolidam a desigualdade na Ciência. Elas estão lutando por creches subsidiadas, garantindo que as instituições cumpram as leis sobre amamentação e estão pressionando por bolsas de estudo para acomodar o tempo retirado pela gravidez. Esses grupos de cientistas também começam a pesquisar sobre o cenário de suas instituições na representação de gênero, publicando estatísticas que rastreiam as taxas de atrito nos cursos. Essas mudanças para ajudar as mulheres a perseguir seus objetivos de carreira levariam a um maior equilíbrio de gênero em todos os níveis (AHMED, 2016). 2.7 A maternidade e a produtividade científica O início da carreira acadêmica é marcado por um período prolongado de precariedade, que coincide com o período reprodutivodas mulheres. O termo parede materna, referindo-se à discriminação e às limitações enfrentadas pelas mães que trabalham, já é usado há mais de uma década. Políticas como licença de trabalho garantida e acomodações para cuidar de familiares podem ser particularmente importantes para as mulheres (MINELLO, 2020). 33 A maternidade compulsória é um regime político em que mulheres são compulsoriamente empurradas para realizar o trabalho reprodutivo. Junto com a heterossexualidade compulsória, sela o destino de fêmea como esposa e mãe, a serviço dos homens, no patriarcado (SOARES, 2001). Em um sistema que premia a produtividade, a maternidade pode implicar uma diminuição da mesma e consequente na perda da bolsa. As relações de gênero na academia são profundamente marcadas pelos impactos da maternidade sobre a produtividade acadêmica da mãe pesquisadora (INFANGER; BALBACHEVSKY, 2020). O trabalho acadêmico no qual a progressão na carreira se baseia no número e na qualidade das publicações científicas de uma pessoa e em sua capacidade de obter financiamento para projetos de pesquisa é basicamente incompatível com outras tarefas que elas assumem, como cuidados domésticos e com os filhos, em maior proporção do que homens. Com o aumento da participação das mulheres nos mais variados campos profissionais, as mulheres têm sido confrontadas com o desafio de reconciliar pessoal e vida profissional, principalmente no que diz respeito a maternidade (MACHADO et al, 2019). Poucos estudos avaliam o impacto imediato da maternidade sobre a vida científica das mulheres, em qualquer fase. Diante desse cenário, é necessário compreender o verdadeiro impacto da maternidade na vida acadêmica e científica dos professores universitários e pesquisadores, visando apoiar novas políticas para aumentar a participação das mulheres na Ciência (MACHADO et al, 2019). Nesse intuito, em 2017, foi fundado o Parent in Science, objetivando principalmente a investigação do impacto da paternidade na carreira de cientistas no Brasil. O projeto surgiu por iniciativa da bióloga e professora Fernanda Staniscuaski (UFRGS), motivado pelas frustrações e dúvidas sobre o conflito entre ser uma boa mãe (hoje com três filhos) e uma boa cientista (ANDRADE, 2018). A maioria das bolsas PQ, por exemplo é concedida a homens com idade entre 45 e 54 anos, enquanto para mulheres a faixa etária é maior. O menor número de bolsistas está entre 50 e 59 anos, sendo que apenas 19% das bolsas concedidas a pesquisadoras são para mulheres entre 30 e 34 anos e 25% para mulheres entre 35 e 39 anos. O mesmo cenário é encontrado nos grupos de pesquisa do CNPq (2016), quando a porcentagem de mulheres líderes de grupo é de 38,3% na idade entre 25 e 29 anos, 41,4% entre 30 e 34 anos, 43,4% entre 35 e 39 anos e 45,5% entre 40 e 44 anos (MACHADO et al, 2019). 34 Ressalta-se que em nenhuma faixa etária o número de lideranças femininas é maior do que o de homens, sendo a menor diferença encontrada na faixa etária de 50 a 54 anos, onde 49% dos líderes são mulheres. É evidente que essas menores representações nas bolsas de produtividade e liderança de grupos de pesquisa coincidem com a idade fértil da mulher (MACHADO et al, 2019). Machado e colaboradores (2019) identificaram o principal provedor de cuidados infantis domiciliares. Para 54% dos entrevistados, a mãe era a única provedora, e apenas 34% dividiram o cuidado igualmente entre os pais, enquanto 7% dos pesquisadores tiveram ajuda externa e 5% responderam apenas que o pai ajudou ocasionalmente. Como consequência, as pesquisadoras enfrentam uma disponibilidade reduzida de tempo para trabalhar em casa: apenas 14% conseguiam trabalhar regularmente em casa. A maioria dos cientistas achou extremamente difícil trabalhar em casa (45%) ou só poderia realizar tarefas simples (20%) ou ainda trabalhar após a hora de dormir das crianças (21%). Para a maioria, o principal obstáculo enfrentado pelas cientistas que se tornaram mães é conseguir financiamento para projetos de pesquisa. A dificuldade parece estar associada à lógica da produtividade que norteia as avaliações de desempenho e a progressão profissional dos cientistas. Enquanto as pesquisadoras sem filhos costumam manter uma taxa regular de publicações por ano, muitas que se tornam mães tem uma queda significativa nesse número, tendência a ser revertida quatro anos após o nascimento dos filhos (MACHADO et al, 2019). Como consequência, é corriqueiro três situações distintas: i) a mulher que abre mão da maternidade por conta da carreira; ii) a que abre mão da carreira por conta da maternidade; e iii) a que resolve conciliar pesquisa e maternidade e, possivelmente, vai encontrar muitas barreiras. Colocar o tema na agenda do debate político e promover uma mudança cultural são as principais formas de enfrentar a questão que, mais uma vez, envolve um entrelaço entre Ciência e gênero (BRANDÃO; MORAES; SOLETTI, 2019). Esses insights podem ser poderosos em pesquisas sobre questões sociais e políticas públicas. Para contornar este problema, medidas compensatórias são extremamente necessárias como licença-maternidade institucionalmente impostas. A licença-maternidade no Brasil tem um período de 120 a 180 dias para as mulheres e de 5 a 20 dias para os homens (MACHADO et al, 2019). 35 Assim, políticas específicas, além da licença-maternidade, para eliminar barreiras devem ser implementadas. Urge realizar um acompanhamento do sistema para melhor identificar estas barreiras. É importante ter em mente que as barreiras podem ser diferentes para as diversas etapas da carreira, e que é necessário identificá-las e propor estratégias com o objetivo de superá-las, contribuindo para uma participação maior e mais qualificada das mulheres (SAITOVITCH et al, 2015). 2.8 As mulheres cientistas na Química A partir do século XVI a Química afirma-se como uma Ciência independente da Alquimia. Em particular, a Química aplicada à Medicina desenvolvida por Paracelso (1493-1541) fundava-se na extração e purificação de substâncias ativas a partir de minerais, animais ou vegetais. No século seguinte generalizaram-se os cursos de Química e um grande número de tratados teórico- práticos sobre a preparação e o uso de medicamentos começaram a ser publicados (TOSÍ, 1998). No final do século XVIII, a Química se ramificou da filosofia natural e foi reconhecida como um componente relevante da educação dos homens e um assunto de interesse para o público em geral. O crescente interesse neste campo deve-se ao reconhecimento geral precoce do conhecimento da Química como um benefício material confortável e também uma base para o desenvolvimento industrial (GONZALEZ; MUÑOZ-CASTRO, 2015). Destaca-se o primeiro livro de Química escrito por uma mulher, a química francesa Marie Meurdrac (1610-1680). La Chymie Charitable et Facile, en Faveur des Dames (A Química Caritativa e Fácil, em Benefício das Mulheres), foi publicado pela primeira vez em 1665-66. A argumentação de Marie Meurdrac é surpreendentemente moderna já que toca na questão crucial dos meios a se empregar para dar às mulheres a mesma educação dada aos homens (TOSÍ, 1998). A escritora britânica Jane Marcet (1769-1858) escreveu em 1805, Conversations on Chemistry (Conversas sobre Química), um livro para mulheres que não tiveram acesso à sua mesma instrução privilegiada, encorajando a compreensão da Química como uma ciência popular. O objetivo da autora, era oferecer ao público, e mais especificamente ao sexo feminino, uma introdução à Química, recomendando a obra como uma fonte útil de informação (GONZALEZ; MUÑOZ-CASTRO, 2015). 36 Jane Marcet é um exemplo significativo da participação feminina na Ciência no início do século XIX e seu papel ativo na comunicação científica. Além disso, seu livro era um rico testemunho do desenvolvimento científicode vastas teorias da Química desenvolvidas por vários cientistas daquela época, nas quais ela pretendia divulgar o conhecimento da Química para um público grande e diverso envolvendo crianças e mulheres (GONZALEZ; MUÑOZ-CASTRO, 2015). As populares palestras e leituras de livros sobre Filosofia Natural, Astronomia, Química e Botânica legitimam aos poucos a inclusão do público feminino nas teorias científicas contemporâneas. O trabalho de Jane Marcet popularizou o conhecimento e compreensão da Química, e contribuiu notavelmente para o ensino da Química por meio de demonstrações experimentais voltadas para iniciantes de todos os tipos, sendo um testemunho histórico do desenvolvimento da Ciência Química e como o conhecimento atual foi gerado (GONZALEZ; MUÑOZ- CASTRO, 2015). Várias mulheres químicas contribuíram com a Ciência ao longo da história. A autora Costa (2006) argumenta sobre a participação feminina na Ciência, afirmando que mesmo sua história sendo negligenciada em papéis, muitas vezes, de coadjuvantes, ajudantes, quase invisíveis, agindo nas “sombras da história” e do conhecimento, historiadoras, entre outras profissionais, as mulheres começaram a aparecer e, nesse resgate, é visto que não foram poucas. Dentre elas estão: Tapputi–Balatekallim A alquimista babilônica Tapputi–Balatekallim, nascida em 1200 a.C, é considerada a primeira química do mundo, mesmo sem comprovação científica. Atuava na produção de fármacos, perfumes e cosméticos para a realeza do Egito Antigo. Esses produtos eram extraídos de plantas, flores, petróleo, bálsamo e mirra. A alquimista Tapputi é mencionada em um tablete de argila com escrita cuneiforme que trazia algumas informações sobre suas técnicas e receitas (NUNES et al, 2009). Marie-Anne Piarrette Paulze A cientista e ilustradora francesa Marie-Anne (1758-1836), participava ativamente do trabalho de laboratório de seu marido, Antoine Lavoisier, contribuindo 37 significativamente para as pesquisas dele. Desempenhava principalmente o papel de assistente de laboratório, fazendo anotações em seus cadernos e esboçando diagramas de seus projetos experimentais (NUNES et al, 2009). Ela também traduzia para o francês, textos sobre Química originalmente escritos em latim, sueco e inglês, línguas nas quais era fluente. Além disso, criticava os textos científicos, acrescentando notas de rodapé com correções e outras afirmações. Em 1803, ela publicou a primeira edição da obra Memoires De Chimie (Memórias de Química), logo após a morte de Lavoisier (NUNES et al, 2009). Alice Augusta Ball A química e farmacêutica afro-estadunidense Alice Ball (1892-1916), foi a primeira mulher, e primeira mulher negra, formada na Universidade do Havaí. Criou, aos 23 anos, o método Ball, um tratamento químico com óleo injetável como método mais eficiente para o tratamento da lepra que ajudou a curar milhares de pessoas. Os estudos de Alice foram fundamentais para a idealização de óleo de uma planta medicinal. Infelizmente, ela morreu jovem aos 24 anos, provavelmente, por ter inalado gás clorídrico no laboratório (PEREIRA; SANTANA; BRANDÃO, 2019). Gertrude Belle Elion A bioquímica e farmacologista estadunidense Gertrude Elion (1918-1999), foi a única mulher a se formar na pós-graduação de Química pela Universidade de Nova York no ano de 1939. Fez importantes pesquisas envolvendo a área da saúde, obtendo em 1988 um Nobel de Medicina junto com George Hitchings, bioquímico estadunidense e James Black, farmacólogo britânico, por seu trabalho envolvendo a concepção de medicamentos para o tratamento de doenças como leucemia, malária, infecções e gota (NOBEL PRIZE, 2020). Joana D’arc Félix De Souza A química, professora e cientista brasileira Joana D’arc (ETEC-SP), também doutora em Ciências pela UNICAMP, incentiva seus alunos em situação de vulnerabilidade a terem uma perspectiva de futuro através da participação em 38 projetos de pesquisa. Em 30 anos de carreira profissional, recebeu mais de 80 prêmios, possuindo 15 patentes registradas a partir de suas pesquisas, entre várias tecnologias desenvolvidas que foram transferidas para a indústria. Seus trabalhos de grande impacto científico e social renderam o prêmio Kurt Politzer de Tecnologia de Pesquisadora do Ano, em 2014 (BRASIL, 2019). Bárbara Carine Soares Pinheiro A química, professora e ativista brasileira Bárbara Carine (UFBA/UEFS), também mestra e doutora em Ensino de Química, desenvolve pesquisas nas linhas de formação de professores na perspectiva crítico-decolonial e diversidade no ensino de Ciências. Além de artigos e capítulos de livros, possui 5 livros de sua autoria, entre eles Descolonizando Saberes: a Lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências (2018) e @descolonizando_saberes: Mulheres Negras na Ciência (2020). A última obra tem como finalidade reunir biografias e difundir produções científicas de mulheres negras, principalmente das Ciências e Tecnologias (SANTANA, 2020). 2.9 Disparidade de gênero na Química brasileira A necessidade de estudos voltados para a problemática de disparidade de gêneros na área científica é de extrema relevância, visto que a discussão de paridade de gênero se tornou uma questão proeminente. Na área de Química existem poucos estudos específicos, à exemplos de outras áreas específicas. Por isso, Naidek e colaboradores (2019), fizeram um levantamento de alguns dados sobre o panorama da mulher na área da Química no Brasil entre 2018 – 2019. No que diz respeito à formação acadêmica e científica em Química, as mulheres representam um número bastante significativo de 53% em todo país. A representação feminina ao progredir na carreira acadêmica, sofre uma leve diminuição; iniciação científica (56%), mestrado (52%) e doutorado (52%), respectivamente, como pode ser observado na Tabela 4. Quando se observa o Prêmio CAPES de Tese na área de Química, 2006 a 2018, apenas 33% dos prêmios foram agraciados por mulheres. 39 Tabela 4 – Representação de bolsistas dentre os diferentes níveis de titulação na área de Química BRASIL NORDESTE MULHERES HOMENS MULHERES HOMENS INICIAÇÃO À DOCÊNCIA 56% 44% 48% 52% MESTRADO 52% 48% 47% 53% DOUTORADO 52% 48% 46% 54% Fonte: Naidek et al, 2019. O percentual de mulheres docentes das universidades federais e estaduais, nos cursos de Química na graduação e pós-graduação revela dados discrepantes sobre essa carreira. No cenário nacional, é verificado uma representatividade correspondente a 42% no quadro de docentes da graduação e 36% na pós-graduação. Na região Nordeste, 45% dos docentes de graduação em Química são mulheres e na pós-graduação, por sua vez, elas são 43% dos docentes (Tabela 5). Tabela 5 – Representação de docentes nas instituições brasileiras em Química BRASIL NORDESTE MULHERES HOMENS MULHERES HOMENS GRADUAÇÃO 42% 58% 45% 55% PÓS- GRADUAÇÃO 36% 64% 43% 57% Fonte: Naidek et al, 2019. As autoras também pesquisaram sobre a distribuição de gênero na progressão da carreira científica de uma pesquisadora desde o nível Pós-Doc (49%), bolsas de produtividade da CNPq – PQ2 (34%), PQ1D (28%), PQ1C (31%), PQ1B (21%) e PQ1A (12%), até a titularidade na Academia Brasileira de Ciências. A carreira das pesquisadoras em Química na região Nordeste, por exemplo, varia consideravelmente em relação ao total de pesquisadoras no contexto brasileiro, de acordo com a Tabela 6. Adendo, na Academia Brasileira de Ciências, 19% são membros mulheres da área da Química, que por sua vez, todas estão no Sudeste. Tabela 6 – Representação de gênero na progressão da carreira em Química BRASIL NORDESTE MULHERES HOMENS MULHERES HOMENS PÓS-DOC 49% 51% 16% 84% PQ2 34% 66% 22% 78% PQ1D 28% 72% 21% 79% 40 Tabela 6 – Representação de gênero na progressão da carreira em Química BRASIL NORDESTE
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