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N'ó . ANO 19 . RS 13,50 www. rêüstaculLcom. br ffircffi OUEER;xt=+ff=s.,=, r- c-u ó- - r-€ r:o q-€é:ú --€=-ó r COLABORADORES DESTA EDIÇÃO ESPECIAL BERENICE BENTO e PIo:ers. : : ..- '.: : departamento de Ciênclas Scc a s :- - =tr pesquisado'adoCN"o:ó--- : :: - .'.- -:. do corpo (EDUFRN,2014) CARLA RODRIGUES é proíesscre.- .)=.="-.- ---. de Fliosoíia da UFRJ e vlce-coorclenec.'. i - laborator o Khôra de Fi osofia das Alter c.:=. GUACIRA LOPES LOURO é professora t tu a' aposentada do departannento de Educação o: lll-R(r5 e artora d. Ua ca'ao esl'anho-ensô:os sobre sexua/ldade e teoria queer (Autêntica, 2O'15) KARLA BESSA é pesquisadora do Núc eo de Estudos de Gênero Pagu da UNICAIVIP LEANDRo COLLING e pro{essor adjunto do lnst tuto de luman daces, Artes e Ciênc as da UFBA, coordenador do grupo de pesqu sa Cultura e Sexualidade e autor de Oue os outros sejam o normal(EDUFBA, 2015) MARCIA TIBURI é professora da pós-graduação em Educação, Arte e H storia da Cu tura da Universidade Presb teriana Mackenzie e autcra de Mulheres, filosofra ou coisas do género (EDUNrsc,2008) RICHARD MISKOLCI é proíessor associacio do departamento de Ciâncias Soc a s da UFSCar, coordenador do núc ec de pesquisa Ouereres e autor de Teoria q,teer: um aprendizado pelas dtferenças (Autênt ca, 201 2) RoGÉRto DlNlz JUNoUEIRA é pesqu sador do INEP e autor de Diversidade sexuai e edr-rcação: problematizações sobre a homofobia nas esco/as (Edições MEC/Unesco, 2009) U ã' E ffi{ffi !ê5êffiffi ú E ': ::::-:epçãodacap: . .-: . =. Andrela Frel.e a , .,a - uma lnter{erêr: : : -' ::cendência ou n-: :: := ' .:-J Amérlco, i Bt! : :- ^-:3em de Judlt' 3-:: -::::-:Íada por Donr..: -- A POLíTICA DO DESEJO " i.-l :,: :; :: :='- l-J i.r :j:: a j !;il .j a - ;'l': a I n a: .l': tl* :'-i : : t: ,i.ir,ai-r:, r' ;-::,r caria Rodriques UMA OUTRA HISTORIA DA REPÚBLICA ;:r Êi*-=:* L€isk*lei O OUE PERDEMOS COM OS PRECONCEITOS? i :,.. : i;t, : :-.. o ;rAi1r .t,l y 1,,1 5,1,1 g,-1.-, 1:). r., . - ;...,1 .: r: ,13 r-riiiS t::il.i:,*:,- ;; ,.' -1i,'-ri.:rr: i- - re ê=d:+ {*il!ng PEDAGOGIA DO ARMÁRIO ' I . . . rrli.:t r,.i;l ai: :-. -.-l ri.l :'i:rxii'i], Pôre rc Díniz Jurr"iueira JUDITH BUTLER: FEMINISMO coMo PRovocAçAo ,,,:": sei-ul LlcltJr: p'r' Marcia Titruri OUEERIFICANDO ANTIGONA í.;rn l: I+ -.rtt: ü.1j 'jij'-:l-: r.iç: §i:l':' ::s .lltlier a*-:lr,:-:ã i ia:í: l-5raeni ,i -:E :iaaia: a; :-:r,a=,. ;:l :liien -:r''la: ':: : ::.:.i;r ac ::;'lla:=.':l :e Iclrc r,..,r Susan* de Castr* C.UEER O OUÊ? ATIVISMO E ESTUDOS TRANSVIADOS ,]r -t -r. r: :::i, il l:r,iii'"'l!11"1r() i.rruÊer '-:l:l ji,' :il a a ai:lf :l'atíã a ":-telial a :lr:a.t =,. -.: -:--:+ .- lla::: i,*:, ,la-:i::, --,:r *ere-ics *eni* A TEORIA AUEER E OS DESAFIOS Às ruolouRAs Do oLHAR '.'i."rr,, j.r _ " a I ' : r t.. . , , ,r irirre - i:r-,r Karia Bes*a ó g§ EDIÇÃO ESPEC AL JUDITH BUTLÊR: FEMINISMO COMO PERFORMATIVIDADE DO GÊNERO Para sustentar sua crítica, Butler precisa, por- tanto, desmontar algumas ideias, e a princiPal delas será a de gênero. Quando, nos anos 1960, se começou a falar em gênerq,o termo era usa- do para se referir ao "papel" social e cultural que se dispunha sobre o sexo, como que para explicáJo. O sexo era ainda tomado como na- tural no sentido de ser um destino que acabaria por fundar o gênero. O sexo era a verdade da natureza, como muitos ainda pensam no âm- bito do senso comum. A ideia de gênero veio dar conta do caráter produzido da sexualidade. O essencialismo com que se costumâva ver o sexo já havia sido posto em questão quando Beauvoir disse, em O segundo sexo, que nin- guém nasce mulher, mas se torna mulher. Éoucault, igualmente importante para )udith Butler, mostrou, em sua Hlsúó ria da sexualidade, que até mesmo o sexo - assim como a sexuali- dade - foi produzido por um tipo de discurso. Nem sexualidade, nem sexo seriam verdades ããããis;ffi@ Tratar o histórico como natural sempre é estra- te,etê-de.ppaer.-O esforço da teoria de Butler neste contexto, foi o da desnaturalização como uma desmistificação do sexo e do gênero, que seriam, em momentos diferentes, tratados co- mo destino. A partir de então, eles seriam cons- truçôes discursivas entre as quais não haveria diferença. A ideia fundamental da pensadora é a de que o discurso habita o corPo e que, de certo modo, faz esse corpo, confunde-se com ele. Por isso, a diferença entre sexo e gênero náo seria mais o caminho para a luta feminista. Mas o respeito aos corpos cuja liberdade depende, em última instância, de serem livres do discur- so que os constitui. Ou de simplesmente pode- rem existir em um mundo que os nega, e que os nega pelo discurso que náo é, de modo al- gum, apenas uma fala qualquer. O que ela chama de performatividade do gênero, partindo de aspectos da teoria da lin- guagem de |. L. Austin, famoso autor da teoria dos atos de fala, diz respeito ao caráter ativo da relação entre o sujeito e a sociedade, en- quanto esta última é otganizada dentro de normas e de leis que funcionam pelo discurso. É impossível, neste sentido, ser "generificado", ro @ EDIÇÃO ESPECIAL ou seja, sofrer os efeitos do gênero fora do discurso' Pois não há gênero sem discurso, e o discurso é, justamente, o que infunde, como um dispositivo, aquilo que é o gênero. se antes os corPos eram vítimas cla ciência da anatomia que legislava sobre eles, agora passaram a ser ví- timas da generifrcação como uma espécie de segunda natureza que se diz como verdade quanto ao "gênero". Por meio das análises de Butler, podemos empreender a reflexão sobre o que é ser homem e ser mulher, hétero ou homossexual' desde que se toine possível questionar náo apenas as identidades "homem" e- "mulher", ou outras, mas também o próprio sentido do verbo "ser" quando se diz que alguém "é" isso ou aquilo' No momento em que lg,.rem se identifica ou se deixa hétero-identificar, esse alguém está se inicrevendo apenas em um cenário ontológico, que é promovido pelo discurso e todã a sua materialidade no âmbito da açáo e da vida. Mas isso quer dizer também que tudo poderia ser diferente em um cenário democrático, em que as pessoas concretas pudessem se expressar li- vremente, também por meio de seus corpos, para além dos discursos que os controlam sot a produção daquilo que Butler úama de'!te:[gs ,retOg§rp= Nesse sentido, em sua prática teórica, ela agirá fazendo;rt"t* ontológicos contra o status quo. A filosofia é, em sua visão' a chance de produzir um contraimaginário ao privilégio ontológico de uns _ como se um modo de existir fosse o único correto - contra o simplesmente ser dos outros, que, na contramão da "norma" ontológica' sãolratados como aberração ou anomalia. A prática de enviar crianças e jovens ao psiquiatra ou ao padre pata corceçâo, por exemPlo, é um mecanismo de ãxclusão. Ao mesmo tempo, aquele que simplesmente assume uma identidade contra a exclusão corre o risco de flcar preso a ela. um dos problemas que a fllosofia de Butler nos lega refere-se justamente a essa identidade quando sabemos que ela serve, em certos momentos, para libertar, como, por exemplo, no momento em que alguém se afirma mulher, no âmbito do feminismo, na luta por direitos, más também para excluir esse mesmo sujeito, colocando-o de volta num lugar de opressão e escravidão onde o próprio feminismo prometia .*.n.i!", seuiujeito. Neste sentido, Podemos dizer que o feminismo da filósofa é negativo e, ainda assim, dialético' O CORPO ABJETO Portanto, uma das preocupaçoes centrais do pensamento teórico-prático de Butler se refere ao corpo sexuado enquanto esse corpo é tor- nado "abieto".  categoria do abjeto vem refe- rir-se à existência corporal daqueles que não são encalxárris na estrutura binária "homem- -mulher". Neste sentido, a teoria de Butler é, ao mesmo tempo, como deve ser qualquer teoria feminista, uma teoria engajada na defesa de um sujeito oprimido, A propósito, na con- tramão de Derrida, um dos pensadores que mais a influenciou, Butleracredita que é ne- cessário continuar usando o conceito de "su- jeito", vendo nesta criticável categoria huma- nista a chance de colocar as categorias do humanismo contra ele mesmo. A crítica ao sujeito, promovida por muitos filósofos con- temporâneos, diz respeito à ideia de filosofia da consciência de que existe uma consciência autônoma e livre chamada de sujeito. "Sujeito" é certamente uma categoria insuficiente, mas é justamente ela que é negada pelo humanismo aos corpos a§etos, aqueles que seriam, no con- texto das definiçôes, menos que humanos. A crítica de Butler ao humanismo refere-se a essa classificaçâo por exclusão. Nesse caso, a diferença de Butler com o feminismo que defende, sobretudo, as "muihe- res" é que ela defende, além das mulheres, to- dos aqueles que não se enquadram nos discur- sos que invocam a"naturezi'fixa do corpo. Neste sentido, ela defende as potencialidades dos corpos fora das teorias ontológicas clássi- cas que sempre se pautam por uma ideia de natureza teminina ou masculina. E até mesmo de uma natureza homossexual. Mas a teoria da pensadora vai alem da questão da sexuali- dade e bem pode ajudar a pensar o lugar de todos aqueles que não se encaixam no padrão do homem branco e europeu" AIém dos tran- sexuais, os iudeus, os negros, os árabes e até mesmo os pobres entram no campo de suas preocupações como corpos que são conside- rados, pelo "poder", como desimportantes, vidas que deveriam ser corrigidas ou que não mereceriarn serem vividas. Aquele que ataca física ou simbolicamente um homossexual, uma travesti, um negro, uma prostituta, uma SE ANTES OS CORPOS ERAM VíTIMAS DA CIÊNCIA DA ANATOMIA OUE LEGISLAVA SOBRE ELES, AGORA PASSARAM A SER VíTIMAS DA GEhirRrricÂÇÃo c*Mo utvtA E§PECIE DE SECUNDA NATUREZA OUE SE DIZ CÜMO VERDADE OUANTO AO "GÊNERO" mulher sob uma burca, ou, ainda, uma mulher que não é feminina ou sensual (como se as pessoas estivessem obrigadas ao estereótipo) cer- tamente tem em sua base um modo de pensar assegurado por essa visão de mundo compartilhada pelo patriarcado, pelo capitalismo, pelo poder em geral. A cultura, em todas as formas de discurso, do jurídico ao científico, e dos meios de comunicação, ajuda na produção do "abjeto" como um tipo de diferenciação na qual se confina o excluído-,O_ excluído é produzidá no discurso: seu lugai é o silêncio que, em terããJilããIs .muito concretos, realiza-se na iniustiça de não poder e*istir. Essa di- ferenciação precisa ser analisada e desmontada. Somente aí é que algo como q_-lrbsldgdsjs-exist1rsomo se é entrarâ em cena. Não apenas porque existem muitas pessoas fora das classificações, mas porque é preciso desmontar as classificações para dar lugar à expressão singular contra todo um campo da experiência silenciada e, assim, proibida de existir ou condenada à morte. El TEXTO PUBLICADO NA CULT 185 - NOVEMBRO 2013 OU EER @tt UMA SEOUÊNCIA de atos GUACIRA LOPES LOURO " d.rob"d...r às ordens, o diretor da escola advertiu seus pais que ela poderia vir a ser uma delinquente' Havia que desviá-la do mau cami- nho, e o corretivo encontrado foi obrigáJa a ter aulas particulares com o rabino. No entanto, contrariando o que pensavam, o castigo pareceu- -th. "r-u coisa formidável". Ela adorava ouvir o rabino' fazia-Ihe as mais incríveis perguntas e, acolhida por ele' discutia temas improváveis para quem estaYa apenas entrando na adolescência' O caráter inquieto, um toque de rebeldia' a constante desconfiança em relação uo qr. é posto como estabelecido e definitivo parecem ter se tornado seus traços mais marcantes' Se a menina gostava de fazet per guntas,amulhercontinuousemostrandoumaquestionadoraincorrigível; ã mt t".tout passou a pôr em xeque "verdades" consagradas; e a escritora"' Bem, seus textos tornaram-se mais famosos pelas indagações que propõem do que pelas soluçoes ou respostas que eventualmente fornecem' - - L.rru a palavras d. oàe*, eisa mulher, dita feminista, também náo se absteve de pôr em questão algumas das consagradas proclama- çóes do feminismo. gm tô90, ela lançou Problemas de gênero - femi- nismo e subyersão da identidade, um livro pleno de questionamentos . frouo*çO.s que até hoje é, provavelmente' sua obra mais conhecida' Nu .upu áa ediçao origínal, da Routledge' uma foto antiga de duas .riurrçàt trajando vestidos. Um menino e uma menina? Ou náo? Dizem oscréditosquesetratadoretratodeduasirmãs,umadelascom..jeito,'de garoto e a outra com aparência mais "feminina"' A foto perturba o olhar' ierturba a noção de gênero' Sugere gender trouble' o q,r. é gà.r..o ãfinalt É utgo io* que nascemos? Algo que nos é designàdo dãfinitivamente, de uma vez por todas? Algo que aparenta- mos, por ações, gestos, comportamentos' moda? Como se faz um gê- ,r.ro? Co-o alguém se torna um sujeito de gênero? E quando isso acontece? O que sexo tem aver com gênero? Para Judith Butler, o gênero "é a contínua estilização do Çorpo, um cCInjunta de atos repÊtido§ nc interior ie 'Jrn q.raf ie regulatório aitamente rígido e que se cristaliza aa longo do temPo" ma garota indisciplinada que nâo seguia regras e costumava .orí"rr", os professores. Uma garota-problema'.ainda que reconhecida como inteligente. Assim Judith Butler se lem- bra de ter sido caracter iiada na infância' Por matar aulas rz @ EDIÇÃo ESPECIAL |udith Butler mergulhou nessas questões e em muitas outras. Ensaiou respostas, mas lon- ge de se mostrar satisfeita, continuou, ao longo de vários livros e incontáveis artigos, entrevis- tas e palestras, refazendo as perguntas, com- plicando o jogo, invertendo a lógica. Claro que ela leu Simone de Beauyoir e, como tantas outras pensadoras, também se remete à clássica afirmação de que "ninguém nasce mulher: torna-se mulher". Contudo, sen- do uma atravessadora de disciplinas e de áreas, passou a combinar leituras feministas com as de teóricos e teóricas dos mais diversos matizes e é com o aporte desse conjunto heterogêneo que produz suas reflexões, muitas vezes na con- tracorrente ou até a contrapelo daquilo que leu. É para o "tornar-se mulher", para o devir que Beauvoir anunciara, que ela volta seu interesse. Entende que esse é um processo contínuo do qual não se pode precisar o fim. Talvez nem mesmo a origem. Mais do que isso, acredita que é um processo do qual nunca se atingiria a meta. E se isso é pensado sobre a mulher, também pode ser pensado sobre o homem. "O gênero", diz Butler, "é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no inte- rior de um quadro regulatório altamente rígi- do, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância, a apa- rência de uma maneira natural de ser". Tornar-se um sujeito feminino ou mascu- lino não é uma coisa que aconteça num só golpe, de uma vez por todas, mas que implica uma construção que, efetivamente, nunca se completa. Butler complica a noção de "identi dade de gênero". Afirma que gênero não é algo que somos, mas algo que fazemos. Não é algo que se "deduz" de um corpo. Não é natural. Em vez disso, é a própria nomeação de um corpo, sua designaçáo como macho ou como frmea, como masculino ou feminino, que"fai' esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero é performativo. É com apoio em Austin e Derrida que Butler desenvolve a noção de performatividade de gê- nero. Em Austin, ela vai buscar inspiração na teoria dos atos de fala (que distingue entre os enunciados constatativos, aqueles que descre- vem um fato, uma situação, e os performativos, aqueles que, ao serem proclamados, produzem, isto é, fazem acontecer aquilo que proclamam). De Derrida (que desconstruíra em parte a teoria de Austin), ela toma emprestadas noções como citacionalidade e reiteração. Relê essas teorias de um modo próprio e explora sua potenciali- dade para pensar o gênero e o sexo. ..f tJIúA SEOUÊNClA DE ATOS I " ! irTÊ RFtr L;iÇ.áÜ FU ru ftÂiu?Ê" O anúncio "é uma menina" ou "é um menino", feito por um proflssional diante da tela de um aparelho de ultassonografia morfoiógica, põe emmarcha o Processo de fazer deste ser um corpo feminino ou masculino, acredita Butler' Esse ato, de caráter performativo, inaugura uma sequência de atos que vai constituir al- guém como um sujeito de sexo e de gênero' Para ela, mais do que a descrição de um corpo, tal declaraçáo designa e define o corpo' O anúncio pode ser compreendido como uma espécie de "interpelação fundante", mas, adver- te ela, nada está resolvido de forma absoluta neste momento; a interpelação precisa ser "rei- terada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado". Um grande investimento vai ser empreendido para conf,r- mar tal nomeação. Ela náo está absolutamente garantida. Precisará ser repetida, citada e recitada incontáveis vezes, nas mais distintas circunstâncias' E poderá, igualmente, ser negada e subvertida' O devir pode tomar muitas direçoes' ó ,.....to do gêneio é escorregadio e cheio de ambivalências' E interessãnte pensar qo. o .orpo vem a existir através de um dis- curso - generificaào - que se faz sobre ele' Admitindo esse argumento' parece iaroai"lsupor que não há corpo que não seja' desde sempre' generificado, isto é, marcado por, ou feito no, gênero' E é por vias como ãrru qr.r. Butler acaba perturbando a distinção sexo/gênero' O sexo' assim como o gênero, é efeito de discursos' Ela entende que a nomeaçáo de um corpo implica' ao mesmo tem- po, o estabeleciÁento de fronteiras e a repetição de normas de gênero' impossível esquecer que essa nomeação é feita "no interior de um qua- drá regulatóri,o altamente rígido", o da heterossexualidade' Tudo isso' contuão, parece sugerir um determinismo ou uma estabilidade que náo combinam com a pensadora dita inquieta e desobediente' Quais as possibllldades de desvio? Como se perturbariam as normas? Onde se ãncontraria espaço para a subversão? Como ou quando ocorreriam rupturas, rePúdios? Butler discor.. sobre esses temas em muitos de seus textos e pales- tras. Mas talvez seja particularmente expressiva quando conta' num depoimento gravado para a televisão francesa' o quanto e como §ua fuàiliu judia=buscava integrar-se à sociedade norte-americana' Na tentativa de incorporar u, ná,-u' de gênero daqueia sociedade' lembra que sua mãe, seu pai e também seus avós buscavam se aproximar mais e mais das referências de masculinidade e de feminilidade entáo pre- dominantes, aquelas que representaYam, na sua percepçáo ou na per- cepção da época, o que seria desejável' Hollywood era sua referência' Os astros e ai estrelas hollywoodianos pareciam expor ou representar as formas mais acabadas dos dois gêneros. Butler recorda, então, aS tenta- tivas e as falhas dos homens e das mulheres de sua família' E' ao narrar esse episódio, ela aflrma, com veemência' que o fracasso é sempre pos- sível; na verdade, acentua, "o fracasso talvez seja mais interessante"' Performativos de gênero são repetidos constantemente' Citados e recitadosemcontextosecircunstânciasdistintas;noâmbitodafamí- lia,daescola,damedicina;namídia,emsuasmaisdiversasexpressões; nas regulamentações da justiça ou da religião' Não obterão' contudo' exatamente os mesmos resultados' Os efeitos dos performativos são sempre imprevisíveis' A possibilidade de insucesso' que Derrida já demonstraia ao analisar a teoria de Austin' é explorada por Butler em sua reflexáo sobre o gênero. A falha, que é intrínseca aos performati- vos, pode ser produiiva. É na possibilidade do fracasso que reside o ..puio para a iessignificação e para a subversão no terreno dos gêneros e da sexuaiidade' Cena do longa Laurence anyways\2012), de Xavier Dolan' em.que o ator Melvit Poupzud vive Laurence, um homem que nào se ident tlca com seu gônero e deseja se tornar mulher o o r+ EIE EDIÇÃo ESPECIAL A atr z Ju ie Andrews em Vlctor ou Victaria, arqa do cineasta norte americano B ake Edwards, de T 982 N{as tudo isso acontece por acaso ou por escolha dos sujeitos? Em outras palavras. alquem se empenha deliberadamente em fracassar? Ou tenta ser bent sucedido e fracassa? Serão os tiacassos sempre sub\-ersi- vos? Aqui um dos pontos escorregadios e complexos do pensamento de Butler: a possibilidade de agência dos sujeitos. Ela afirma, em r,ários de seus textos, que o gênero e uma escolha, mas observa que essa nâo e uma escoiha absolutamente livre. É impossível imaginar alguém que, colocado em algum lugar fora do gênero (onde?), seja capaz de escolher o que deseja "ser". Uma vez que "alguém já e seu gênero, a escolha do 'estilo de gênero'é sempre limitada, desde o início", como diz Sara Salih em seu livro sobre Butler. A possibilidade de agência é, portanto, sempre restringida. O sujeito pode, sim, interpretar as normas existentes; pode ressignificá-1as, dotá-1as de um significado distinto; pode, eventualmen- te. organizá-las de um jeito novo, ainda que isso seja feito de modo ctrnstrangido e limitado. Efetivamente, estamos sempre fazendo isso. To j.rrs rrs suieitos interpretam, de seu jeito, continuamente, as normas regu-a:c,:ias de sua cultura, de sua sociedade. \1,.-. : a.rdversativa é importante) aqueles e aquelas que não "fa- zern !:,- r.:.:ô "cot'retamente" são, muitas vezes, punidos. Os desvios, a dep.-::.: j:. circunstâncias em que acontecem, a depender de sua construído. E o que faz,por exemplo, uma drag queen. A drag se aproxima do objeto que imita e, ao mesmo tempo, o expõe e o critica. Pelo excesso e pelo exagero, escancara as normas de gênero e demonstra seu caráter artificial. Ela pode ser r.ista como um eremplo de subversão e também de possibilidade de agência. Mas (e de novo a adversativa) a flgura da drag nao será sempre, necessariamente, subversiva. Por ve- zes, as tbrmas paródicas de gênero acabam por provocar, tão somente, o riso inconsequente. De algum modo domesticadas ou colonizadas no interior da maÍriz heterossexual, elas po- dem, mais uma vez, por vias outras, reforçar as diferenças e as hierarquias. As normas de gênero acabam por se impor sempre, inexoravelmente? E possível driblá-las de algum modo? Quais as possibilidades e os limites para a agência? Quando uma recons- trução é eletivamente subversiva? Quando se constitui em renovada dissimulação das nor- mas? A inquietude de Butler contagia. E il:{aC i':-::ra:la,r \;i CULT 1§5 - ?!+V§1,{SR0 ?ü'!3 C.\ L CI.: J ftsi.c,s.::- collsir: _ !-: ..ltdu (. - * :--.:.::.i.lade. costumam Ímpiicar em danos simbólicos e -::.! . .:,;:::s. -{s tãlhas e desvios podem, por outro lado, se : ::-- :: --:: ti-;ade lara reconstrucões subversivas da identi- ;.:-, :,; t-.;:u-,-. l:Üsta Butler, se prestar a uma política de riii -'- r-: fl a.:::;: i L- ir::-... -.:litr: Li.lIJ ItL)nteal quem se desrria das n(ri]:i:i ;í ií:-;:r :,--ie--- :a: :e-. í:::J.,:,s, -1. destqr1acão ofensiva pOde ser ressLg::---;;ja, -it::c: a-'.; Lrs .. cS::gitrs de un discurso de ódio não seiam ;on-iple,antenia apagâüLrs. e.es podent ser reconhqurados. -\ no- neação iniuririsa po,ie ser reapropriada de Iorma anrmatir-a. Normas de qenero podem tantbem ser cttadas en1 conte\tos distin- tos, eribidas de n.rodo a expor. de tbrrra radical, seu caráter tàbricado e OU EER ilB§ ís OUEERIFICANDO antígona Com a leitura das peças de Sofocles, Butler desmonta a tese psicanalítica acerca da origem da ordem sir=bólice a parilr cio ccmpiexc de Edip+ SUSANA DE CASTRO feminista norte-americana Judith Butler afirma' em Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade' de 1990, que não apenas os gêneros masculino e feminino são identidades socialmente construídas, mas o sexo tam- úé-. Pu.u que um indivíduo seja identificado enquanto macho ou fê- mea, náo basta que seja constatada a presença de uma ou outra geni- tália. O reducionismo biologista e naturalista da sexualidade humana a um binarismo essenciai deiconsidera o papel que a repetição reiterada áe gestos, práticas e falas possui na configuração da sexualidade' As iaeãtlaaaes sexuais e de gêne.o sáo construídas a partirde uma hete- rossexualidade normatú, imposta através de dispositivos culturais e políticos hegemônicos. Butler aisocia o feminismo à teoria queer' Osteóricos queer consi- deram que o entendimento de, virtualmente' qualquer aspecto da cul- tura ocfoental perpassa uma análise crítica da definição moderna de homo/heterott.roi. Apontam para as formas mediante as quais a ação excludente e estimagmatizante da matriz sexual normativa produz contrarreação nos corpos excluídos' Em Problemas de gênero'Bttllet aponta para as limitaçOes do emprego não crítico da categor\alsujeito "mulhei'nas lutas feministas pelo reconhecimento moral e político de suas identidades. Na medida .- q" é constituída dentro do modelo dicotômico excludente da matrizheteronormativa, essa categoria é forjada pelos dispositivos discursivos normativos de dominação pa- triárcal. O sistemà binário sexual não é moralmente neutro, ele privi- legia, ainda que de maneira escamoteada, o homem heterossexual mãnogamico. Os homens heterossexuais são' na realidade' os que ro @ EDIÇÃo ESPECIAL Frederic Lelghton, Antígona, 1882 IDENTIDADE DE GÊNERO Butler apresentâ sua leitura de Antígona e de Édipo em Colono no capítulo 3, "Promiscuous Obedience" ["Obediência promíscua"]. Ao longo desse capítulo, a pensadora mostra co- mo não podemos desconsiderar o efeito que a equivocidade das palavras "pai" e "irmão" possuem, quando empregadas por Antígona, se quisermos entender o que está em jogo. Ao enterrar seu irmão Polinice, Antígona atende ao pedido que este havia feito a suas irmãs, o de lhe dar um enterro decente (w. 1665-1667,deÉdtpo em Colono,em traduçáo de Mário da Gama Kury, Zahar,2006). Ofendido por nenhum de seus filhos homens lhe ter apoiado ou defendido quando foi expulso de Tebas, Édipo os "maldiçoa, dizendo que en- trariam em combate mortal e seriam recebidos na morada de Hades (Edipo em Colono, vv. 1615-1620). Seguirdo a interpretação de Hôlderlin, Budermostra como, nas tragédias, as palavras pronuaciadas como maldição se agarram, de tal modo, àqueles aos quais são dirigidas que acabam determinando o curso de suas ações- Pouco antes de morrer, ao des- pedir-se de suas frlhas, Édipo afirma: "de nin- guém tivestes maior*mor que o deste homem sem o qual ireis virer pelo resto de suas vidasl" (w, 1919-1921). Para Iudith Butler, essas pala- vras possuem nma força oo tempo que excede a temporalidade de sua enunciação. Ao afir- mar que nenhum homem o excederá no amor que lhes dedica" Édipo está, ao mesmo tempo, obrigando-as a lhe ser eternamente fiel, mes- mo depois de mofio. Age como se estivesse rogando-lhes uma praga. Implícita à sua fala estaria a ameaça de que as fi.lhas poderiam ser punidas se ousassem amar outro homem (Butler omite aqui a presença de Ismene, visto que seu interesse está em retratar as ações de Antígona). Ao substituir o amor paterno pelo amor dirigido ao irmão, Antígona estaria tan- to honrando quanto desobedecendo à exigên- cia de fldelidade eterna imposta pelo pai. Por um lado, ao aârmar que não ousaria desafiar a ordem de Creonte por nenhum outro paren- te, a não ser por Polinice (w. 908-911), ela é infiel ao pai. Por outro lado, ela obedece à exi- gência de amar eternamente um homem O COMPLEXO DE ÉOIPO, T TODAS AS TNTERDTçÕES OUE REPRESENTA, É TAruTO O MCDELC UNIVERSAL DE ESTRUTURAÇÃO D F§IQUE HUMAN A PÂRTIR D LIilIGUAGEM GUÂI!íO  cüNDrÇÃo §tMBÓLtcA PÂRA A oRGANTZAÇÃO SOCTAL morto, porém o faz promiscuamente, já que são dois mortos que amâ. Finalmente, podemos ficar em dúvida sobre quem é o "irmão querido" ao qual ela se refere no verso 915. Estaria ela se referindo a Polinice, a Édipo ou aos dois? Sentindo a proximidade da morte, Édipo havia ficado desconsolado ao saber que, por causa do crime de parricídio, não poderia ser enter- rado em solo tebano (Zdipo em Colono,vv 440). Levando em conside- ração esse desconsolo, o ato de Antígona de enterrar duas vezes seu irmão - na primeira vez, o crime é descoberto pelo sentinela; na se- gunda, o sentinela volta a desenterrar o corpo e Ílagra a repetição do ato - poderia ser interpretado como uma açâo que visaria a enterrar os dois, o pai e o irmão. Uma açáo que, segundo Butler, reflete e institui a equivocidade entre irmão e pai. O seu ato mostraria como, para ela, ambos seriam intercambiáveis. Um outro aspecto relevante para a análise de Butler é o da identidade de gênero. Antígona é condenada a não amar nenhum homem, além do que morreu, mas o pai, ao elogiar a sua lealdade e a da irmã, a chama de homem: "Devo-lhes a yida e a minha núrição, pois elas se comportam como se fossem homens em vez de mulheres para ajudar-me em minha existência penosa". (w. 1611-1612). Navisáo de Édipo, os seus fllhos se efeminaram ao entrar em disputa doméstica pelo poder, enquanto as suas filhas passaram a exercer a função masculina de cuidar da segurança e da alimentação de seus entes queridos. Antígona, inclusive, é a responsável por guiar o pai cego em seu exílio e errância pelas estradas que ligam Tebas a Atenas. Normalmente, a mulher segue os passos dos homens, e não o contrário. Para Édipo, suas fiIhas tomaram o lugar de seus filhos. A obediência promíscua e a inversão da identidade de gênero são dois elementos essenciais para entender por que, desde uma perspectiva pós-edipiana, a história de Antígona poderia ser lida como uma des- construção da família mononuclear, formada por mãe, pai e filhos. A equivocidade dos termos "pai" e "irmão", o fato de seus referentes serem intercambiáveis, mostra-nos que o núcleo familiar é performativo, isto é, que a legitimidade da função de autoridade e respeito entre gerações depende mais das ações desenvolvidas pelos indivíduos do que de uma estrutura simbólica determinante e universal. E TEXTO PUBLlCADO NA CULT 185 - NOVEMEftO 2013 OUEER ffi 19 f ry: * n' Ativismo e estudos transviados zo ffi ED cÀo ESPEC Ar O que os estudos/ativismo queer inauguram é olhar para o "senhor" e dizer: "eu não desejo mais teu desejo. C que você me oferece á pouco Foto da série Feminine identiiies, da íotógrafa canadense Laurence Philomàne. O trabalho consiste em fotografias de meninos ou pessoas não-binárias contextualizadas no universo dito feminino BERENICE BENTO convite da revista CULT levou-me a relembrar a força que textos de algumas teóricas queer tiveram em minha trajetória. Revi os dile- mas provocados pela falta de um suporte teó- rico para as angústias durante a produçáo de minha tese de doutorado. Naquele momento, nos início do anos 2000, pouquíssima biblio- grafia tinha sido traduzida para o português. Fosse pelo tema da pesquisa (transexualidade) ou pelo recorte teórico que elegi para interpre- táJa (estudos queer), sentiaum frio nabarriga quando pensaya que teria que enfrentar uma banca no Programa de Pós-gradução em Sociologia. Quando me perguntavam sobre o tema da pesquisa e eu dizia do que se tratava, eu escutava geralmente, um "hummm... mas você não está fazendo uma tese de Psicologia?". A mesma estranheza era notável quando eu tentava explicar os meus aportes teóricos: "Queer?! O que é isto?". Talvez um dos maiores dramas dos trabalhos considerados pioneiros seja a falta de espaços mais consolidados para o diálogo, dimensão fundamental para a pro- dução científica. Em 1999, comecei afazer meu trabalho de campo em um hospital que realizava cirurgias de transgenitalizaçáo (também conhecida como "mudança de sexo" ou "cirurgia de redesignifi- cação sexual"). A literatura que dispunha em português hegemonicamente considerava as experiências trans (transexuais, travestis, trans- gêneros, cro s sdre ssing, drag queen, drag king) como expressões de subjetividades transtorna- das. Eu vivi durante meses uma profunda dis- sintonia entre o que eu lia e o que via. Náo en- caixava. As pessoas trans descritas pela literatura oficial (principalmente a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria) eram deprimidas, suicidas, demandavam as cirurgias para se tor- narem pessoas "quase normais", ou seja, hete- rossexuais.Por essas análises e descrições, havia uma profunda diferença entre as pessoas trans e as pessoas não trans. Do outro lado, eu via uma força e um desejo dionisíaco de felicidade entre as pessoas trans que frequentavam esse hospital e que esperavam um parecer que as diagnosticassem como "transtornadas de gêne- ro" e as autorizassem afazer as cirurgias. A minha convivência não se limitava ao mundo do hospital. Foram horas, dias, meses de convivência com pessoas que tinham uma agência e jogos de cintura para lidar com si- tuações limite de humilhação que poucas vezes encontrei nas pessoas não trans. Afinal, se não tivessem essa capacidade não sobrevi- veriam, pois, geralmente são expulsas de casa e de todas as instituições sociais normatiza- das ainda muito jovens. Não demorou muito para eu concluir que o problema da literatura ensinada nas universidades padecia de um problema: os seus formuladores não sabiam nada, absolutamente nada, dos sujeitos que diziam interpretar. Eram pequenos fragmen- tos pinçados das yisitas das pessoas trans aos consultórios e que eram lidos por uma deter- minada concepção de normalidade de sexua- ..f ourrn §E zr lidade e de gênero. iiiirl iil.' :. .'..,.):i Federico Garcia Lcrca, a beijo,1927 O poeta íci morto pe as trcpas ce Franco em 1 93ó não só pcr sua posiÇão po ít ca corrc rambém por sua homcssexualldade Foi com uma alegria quase infàntil que eu li os textos de fudith Butler e outras teóricas queer. Apartir daquele momento, o dispositivo transe- xual (como eu nomeei os saberes produzidos pelo saber/poder médico voltados para o controle e patologização das experiências trans) passaram a ser lidos como uma poderosa engrenagem que objeti\rava dar suporte à concepçáo segundo a qual nossas identidades sexuals e de gênero se- riam um rei'lexo de estruturas natllrais (hormônios, cromossomos, nell- rais). A patologização das experiências ou expressões de gênero fora da norma começou a se configurar como um mecanismo que assegura a própria existência da naturalização das identidades. Logo depois, eu fiz parte de minha pesquisa em coietivos trans es- panhóis. Era comum escutar as pessoas nas reuniÕes contando os ab- surdos que os psicólogos tinham thes perguntado: "\'rocê é muito emo- cional?", "\rocê gosta de cozinhar?". Para produção cle um parecer que iria autorizar as pessoas trans a fazer a cirurgia, os especialistas aciona \ram os mapas socialmente construídos para definir o que é ser um ho- mem e ser uma mulher e que pretende coincidir masculinidades = ho- mens e feminilidades = mulheres. A autorização para fazer a cirurgia demora, no mínimo, dois anos. Durante esse período o/a candidato/a (assim é como identificam as pessoas trans que esperam a cirurgia) tem 22 mtDC^OtSDtCr^L uma rotina semanal de idas ao 1-rospital. O prc,' tocolo é organizado em torno de três questÕe, 1) a exigência do teste de vida (os/as candidatos as passam a usar as roupas apropriadas para , gênero com o qual se identifica); 2) a terapi; hormonal; 3) os testes de personalidade (HIP. À.{MPI, Haven e o Rorscharch). A1ém das ses soes de terapia e dos exames clínicos. EnÍin: uma parafernália cliscursiva voltada à perma- r.rente patologizaçâo das experiências tt ans. Sáo os operadores da saúrde mental (princi- palmente os psicólogos) que têm o poder dt autorizar oLl não uma cirurgia de transgenita- ção. Como diagnosticar se uma pessoa é transr Por um conjunto de práticas (a forma de vestir. como demonstram praticamente seus sentt- l'nentos, quais brinquedos gostavam quandc eram crianças). E como definir qlre uma pessoi r.rào e trans? Pela prática. São os meus atos di arros que ler.,am o outro a me reconhecer so- cialmente como homem ou mulher. Poucas iaessoas têm acesso visual ao meu corpo nu. rras so.iàlmente eu sou reconhecida como mu- lher :.r.rque repito atos socialmente estabeleci- dos con.irr frroprlos ao de uma mulher. \àtr erisie Llm Lrrocesso especíhco para .:, .onstitLlicáo das rdentrdades de gênero parir as pessr)as tr ans. O gênero só existe na prátlca. na experiància, e sua lealização se dá median- te reiteraçôes cujos conteúdos são interpreta- cÕes sobre o masculino e o feminino em un.l iogo. muitas r.ezes contraditório e escorrega- dio. estabelecido com as normas de gênero. O ato de pol uma roupa, escolher uma cor, aces- sórios, o corte de cabelo, a forma de anclar. enhr.r.r, a estética e a estilistica corporal sàc, atos que fazem o gênero, que visibiiizam e es- tabilizam os corpos na ordem dicotomizadi'- dos gêneros. Os/as homens/muiheres nãc, trans se fazem na repetição de atos que se su- põe sejam os mais naturais. Atrar.és da cita cionalidade de uma suposta origerr-r, trans . nào trans se igtralanr. Nossos corpos sào trr- blicados por tecnologias precisas e sofisticada, que têm como um dos mais poderosos resul tados, nas subjetir.idades, a crença de que . determinação das identidades está j.nscrita en: alguma parte dos corpos. z a a a : a""*"É*\ :: ._, . {l I ! I i I I I I Os textos queer me ajudaram a compreen- der que: 1) não existe diferença entre os pro- cessos de formação entre os ditos "normais" e os "anormais";2) a naturalização dos gêneros é um dos mais poderosos recursos acionados pelo Estado (e sustentado pelo poder/saber médico e pelos saberespsl) na manutenção de estruturas hierárquicas e assimétricas dos gê- neros; 3) a demanda das pessoas trans não é para se tornarem "heterossexuais conserta- dos", mas funda-se no reconhecimento de uma identidade de gênero diferente da imposta socialmente a partir da presença de uma de- terminada genitália; 4) anatureza das identi- dades de gênero é não serem naturais. MEUS DESENCONTROS COM 05 ESTUDOS/ATIVISMO OUEERS: os DTLEMAS DA TRADUçÃO Nos últimos meses tenho vivido em Nova York e assistido a palestras sobre diversas dimen- sões da teoria e atirismo queer.Nos centros de estudos que eram dedicados às questões de gays, lésbicas e transgêneros (identidade local para "abrigar" a multiplicidade de expressões de gênero) também passaram a adotar o Q (queer) em suas siglas. No movimento social também é comum escutarmos LGBTQ (lésbi- cas, gays, bissexuais, transgêneros e queer). A primeira conclusão: os estudos/ativismo queer conseguem um níyel de adesão pulsante se comparada ao contexto brasiieiro. Reivindicar uma não-identidade, lutar contra as identida- des essencializadas, afirmar-se queer no ali- vismo, construir teorias com esta nomeação, faz sentido no contexto local. Mas como tra- duzir o queerparao contexto brasileiro? Qual a disseminação desse campo de estudos no Brasil? Se eu perguntar para qualquer pessoa no Brasil "você é queer?", provavelmente escutarei "o que é queer?". Os estudos/ativismo queer se organizam em torno de alguns eixos: l) desnaturalização das bioidentidades (coletivas e individuais); 2) ênfase nas relações de poder para interpretar as estruturas subjetivas e objetivas da vida social; 3) a permanente problematizaçáo das binariedades, 4) prioridade à dimensão da agência humana, 5) crítica ao binarismo de gênero (masculino versus feminíno) e sexual (heterossexual versus ho- mossexual). Estes pontos não podem ser tributados originalmente aos estudos queer. A questâo daprâtrcacomo modalidade explicativa da vida social, por exemplo, e que nos estudos/ativismo queer assumirá o nome de teoria da performance, marca um debate nas Ciências Sociais conhecido como a clássica tensão entre indivídvo yersus sociedade. O que me parece original nessa perspectiva teórica e política é a relaçáo que passa a estabelecer com os insultos que funcionaram historicamente como dispositivos discursivos que calaram, produziram vergonha e medo entre os gays) as lésbicas e as pessoas trans. O desejo de ser amado, respeitado, incluído, faz com que os sujeitos "anormais" passem a desejar o desejo daquele que admiramos, mesmo que isso signifique uma profunda violência subjetiva. O reconhecido, nestes termos, não acontece mediante a afirmação da diferença, mas pela submissão ao desejo dooutro, que passa a me constituir como sujeito no mundo. Muitas vezes escutamos uma criança insultando outra de "bicha" ou de "sapatão". Ela provavelmente não sabe nada sobre o que significa estes termos, mas entende que é uma coisa feia, e chega a esta conclusáo pelas fisionomias de nojo e ódio dos seus pais ao proferirem estas palavras. A bicha, o sapatão, a trava, o traveco, a coisa esquisita, a mulher- -macho, devem ser eliminados. Isso faz com que haja um horror, um medo profundo de ser reconhecido como aquilo que retiraria de si qual- quer possibilidade de ser amado/a. Conforme apontei em outro momento, nossas subjetividades são organizadas a partir de um heteroterrorismo reiterado. A formação de nossas identidades sexuais e de gênero náo tem nada de natural, neural, hormonal, tampouco idílica. E assim, o desejo de amor, pertencimento e acolhimento faz com que, na perspectiva do inclusão via assimilação, o silêncio e a invisi- bilidade sejam as respostas possíveis ao heteroterrorismo. O que o queer propõe? Que se interrompa a reprodução das normas sociais através da incorporação política do outro-abjeto. Acredito que "o pulo do gato" que os estudos/ativismo queer inau- guram é olhar para o "senhor" e dizer: "eu não desejo mais teu desejo. O que você me oferece é pouco. Isso mesmo, eu sou bicha, eu sou sapatão, eu sou traveco. E o que você fará comigo? Eu estou aqui e náo vou mais viver uma vida miserável e precária. Quero uma vida onde eu possa dar pinta, transar com quem eu tenhayontade, ser dona/dono do meu corpo, escarrar no casamento como instituição apropriada e única para viver o amor e o afeto, vomitar todo o lixo que você me fez engolir calada/o". ..f OUEER rm 23 a I i:! i- ) i:) l) Neste momento, a dialética (binária) do senhor e escravo tem que acertar suas contas com um terceiro termo: o abjeto. No entanto, o outro-abjeto sempre esteve presente, como ente fantasmagórlco fazendo seu trabalho incessante de produção da vergonha e garantindo, assim, por sua presente-ausência, a reprodução das normas de gênero. "Queer" só tem sentido se assumido como lugar no nrundo aquilo que serviria para me excluir. Portanto, se eu digo qLteer no contexto norte-americano é inteligível, seja como ferramenta de luta política ou como agressào. Qual a disputa que se pode fazer com o nome "queer" no contexto brasileiro? Nenhuma. Em alguns textos eu tenho trabalhado com a expressáo "estudos transviados". À minha língua tem qre fazer rnuita ginásti ca para dizer queer e nào sei se quem está me escutando compartilha os mesmos ser.rtidos. Ser ur-r.r transr.iado no Brasil pode ser "urna bicha louca", "un.r r.iado", "Lrm travesti", "um traveco", "um sapatão". Talvez r.rão tivésse- mos que entl-entar o debate da traduçáo cultural se reduzíssemos os estudos transviados ao âmbito (muitas vezes) bolorento da academla, transformando-o em um debate para iniciados, mas aí seria a própria negação deste campo de estudos qrle nasce com o ativismo, tensiona os limites do considerado normal e abre espaço para uma práxis epis- temológica que pensa novas concepçoes de hurnanidade. Ao mesmo tenlpo, eu me questiono: se entrássemos em ufir con- senso acadêmico/ativista sobre a importância c1e ruminar antropofa- gicamente os estudos/ativismo queer e decidíssemos que iríamos no- meá-io de "estudos/ativismo transr.iados", ainda assim, esbarraríamos em outra tensão: a l-regemonia de uma concepção essencializada das identidades. Um dos pilares deste campo de estudos/ativismo é a za ffi$ffi tD L^o E5DECT^t Crossdressers em um c -:: de Pittsburgh, na Pensi r; (EUA), 1955, fotograÍadc: :: Charl-.s "Teenle" Harris desnaturahzação das identidades sexual e c. género e tem como pressuposto para entenJ.: os arranjos identitários a noção de diferenc , Os movimentos sociais (mr.riheres, gays, lesb. cas e, podenlos incluir, os negros) hegemon.' camente alimentam a máquina do biopod; do Estado ao demandar políticas especíÍic;- para corpos específicos, retroalimentando - noção de identldades essenciais. E a Iegitlm,- dade da demanda só existe se são corpos e.' sencializados que a proferem. Ainda soa como uma esquisitice homer:, que se afirman.r ien.rinistas, mulheres trans qu, se contl-ontam com um têminisrno conservaLl' que negam a possibilidade de se viver o gêner' fora dos marcos das identidades genitalizadc , (onde mulher/vagina e homem/pênis seriam ;, expressões legítimas e normais das fêminilida- des e masculinldades). Contraditoriamente. r, movimentos sociais que demandam mais pi' 1íticas públicas referendadas nas supostas ditr' renças naturais estâo refbrçando o poder c Estado no controle e seleção clas vidas. Seja pelos dilemas da tradução ou pçl;. "idiossincrasias" que marcam a academia e ,- . biomovimentos sociais brasileiros, devemc, reconhecer a dificuldade que os estudos/at,' vismo transviados têm encontrado para s: consolidar no contexto nacional e parece Ç*: há um buraco entre a academia brasileira te.' paço de recepção dos estudos rlueer) e os Dl, ' r,imentos sociais. Depols de quase quinze an, . do meu encontro com estes estudos, aii-rc- escuto com frequência: "Queer o quê?". Et r::,.--.,- nli!l: r :rlr-- '... i:t:r; 1?: "-,s+a=:-a:,= :+:+ ll ir i.* 'ry6 tü *" t- ê E=#ryEê *.à Er==.=E: ULF-e=H EÜ5 DESAFIOS A§ MOLDURAS DO OLHAR Sel{-Portrait, projeto de retratos de Andy Warhol trêvestido de muLher. Ensaio em polaróide de Christopher Makos, em 1981 OUEER ffi 25 A TIORIA ÜUEER E OS DESAFIOS AS MOLDURAS DO OLHAR üs primeiras estudos datam dos anos 1970 íeministas na área da crítica cinematográfica e abalaram o modo de pensar o filme KARLA BESSA e é preciso ainda hoje, apesar das pon- derações e críticas, destacar a força original da abordagem queer, é porque consta em suas potencialidades propor algo além da inclusão da diversidade sexual, ou seja, propor estudos direcionados para no- vas identidades de gênero, formas de conjuga- lidade, gestões, afetos, ou práticas eróticas singulares. Ir além da visibilidade de evidên- clas de que existem outros modos de lidar com o corpo e os prazeres e tentar des-exotizar nossa compreensáo sobre essas práticas. Trata- se de expandir o caráter de atuação do gênero para além dos palcos, questionando a existên- cia de um gênero primeiro, a partir do qual se baseariam as manufaturas exageradas ou im- perfeitas (o gênero fabricado nos camarins ou nas salas de cirurgia). Questionam-se assim os padrões de perfei çáo e originalidade que constituem o pretenso gênero verdadeiro e a respectiva sexualidade nele presumida. É por isso que, na perspectiva queer,:umamulher trans não é menos mulher do que uma que tenha sido assim designada desde o nascimento. A diferença é política e não da ordem da natureza humana, o que nos leva a outro importante raciocínio queer: afi- nal, o que é o humano em um mundo de bus- cas e transformações que fazem da tecnologia subjetiva e corporal um diálogo com outras tecnologias criadas a partir das intervenções humanas, no tempo/espaço de sua condição? A constituição de uma análise fílmica in- teressada na perspectiva queer correu paralela e em mútua sintonia com outros grandes temas e áreas dos estudc feministas e de gênero. A crescente importância dos estudos de culture visual no interior da ampla área dos estudos culturais e o desenvohl mento de algumas ferramentas conceituais para lidar com represent* çÕes visuais gerou um promissor impulso no interior de outras árear de conhecimento para pensarem a gestão das imagens de um ponto de vista ideológico (num primeiro momento) e, posteriormente, coms discursos, ou seja, não mais inversão/distorção de uma realidade ex- terior, mas o jogo de poder entre representações em disputa' Os primeiros estudos feministas na área da crítica cinematográâca datam dos anos 1970 e abalaram o modo de pensar o filme, antes en- trincheirado em teorias sobre realismo, autores, gêneros, marxismo e formalismo. Levantaram perguntas sobre quem produz, para quai audiência e comoutilizam os recursos técnicos e culturais para corl{- truir uma imagética e narrativa fílmica. Questionaram a presunção de valores e as atribuiçôes de relação causal direta entre atividade/passi- vidade e masculinidades e feminilidades de modo estereotipado. Esset estudos analisaram estruturas narrativas que mascaram, infantilizas e/ou idealizam mulheres e homens e suas respectivas sexualidader Pautaram-se por leituras psicanalíticas, para problematizarem a cons- trução subjetiva das personagens e dos enredos. Penso aqui nos traba- lhos de Mary Ann Doane, Dana Polan, Teresa de Lauretis, Laura Mulvey, apenas para citar as que conseguiram maior divulgação rcr meio acadêmico, tanto pelo impacto de suas pesquisas, quanto pelo modo como o mercado das citaçôes opera na produção acadêmica. No entanto, a ótica dessas primeiras incursões pressupunha um focs praticamente universalizado: a maneira clássica de pensar gênero como uma relaçâo entre homens/mulheres, ainda que pluralizando a categoria mulher, mantendo pressupostos básicos da divisão entre sexo/gênerct Os efeitos dessa perspectiva no interior da análise cinematográfica foram questionados, por exemplo, em pesquisas que mostravam o limite de categorias como male gaze (olhar masculino), formulada por Laure Mulvey, que náo previa a possibilidade de haver na audiência desejor considerados masculinos por parte de mulheres Iésbicas. O prazer & olhar e a fascinação com o corPo feminino em seus possíveis contornos poéticos e eróticos não era uma prerrogativa apenas de homens, mui-,c menos seguia a mesma lógica voyeurística. No final dos anos 1980, |aq* Ganes escreveu uma importante crítica, sugerindo que pensar as oPre§- sões relativas a preferências sexuqis extrapola as críticas marxistas aor mecanismos fetichistas do capitalismo, em especial, ao modo de anaiisa: a indústria cultural. Seu interesse, naquele momento, era construir "{ za @ EDIÇÃo ESPECIAL c lu ,) í=3 s; CEq -+ 4€ Acima e à esquerda, frequentadores da Casa Susanna I ourrR ffi zz A ÍEORTA OUEER E OS DESAFIOS AS MOLDURAS DO OLHAR I uma visáo que possibilitasse perceber onde e como a racialização de corpos (negros, latinos, asiáticos) interceptava e produzia reiteradas co- nexões relativas às hierarquizações da organízaçâo da sexualidade, para além da desigualdade de gênero. O tema do corpo racializado e sexualizado volta em outro grande tema dos estudos fílmicos - o debate sobre as estrelas de cinema- Se por um lado muitos estudos dessa época estavam preocupados com as suas estratégias de produção e circulação, Richard Dyer e Mandy Merck interessaram-se sobretudo pelo fato de que certas personagens e seus respectivos atores/atrizes passaram afazer parte do imaginário de "subculturas", como os jogos de identificaçôes de gays e lésbicas com afiizes como ]udy Garland, Marilyn Monroe, foan Crawford, Marlene Dietrich e Paul Robeson. Ambiguidade, tensão erótica e o jogo de re- vela-esconde desejos apresentam, nessas primeiras análises, a impor- tância que tinha o ato de "se produzir", visto como imitação, base da noção performativa de gênero. Ao mesmo tempo, o Prazer visual ad- quirido através dessas e outras tantas estrelas hollywoodianas vinha de uma certa compreensão partilhada de que entrelinhas de gestos e falas abriam oportunidades de leituras queer dos dramas e sensibili- dades encenados em primeiro plano em termos convencionais (solidão, vínculo amoroso, paixão, desejo, fidelidade), deixando os desvios e perversões apenas como possíveis insinuaçôes. No Brasil, temos o que eu chamaria de tríade de filmes queer avant lalettre. Não que tenham sido produzidos inspirados pelos novos ventos dos festivais de diversidade sexual, o que seria uma anacronia. Eu os considero queer por problematizarem cinematicamente a sexualidade para além dos modelos do amor romântico, dos prazeres convencionais e do modo de tratar desejo como algo restrito à noção de conjugalidade baseada na monogamia e nas atrações e prazeres direcionados para parceiros de sexo oposto. Além disso, por deslocarem o lugar comum do jogo masculino/feminino e por problematizarem a relação entre sexualidade, política e formas de dominação que se exercem conjugando políticas racializantes e instituiçáo da família como instituição hetero- normativa, enfim, por não fazerem concessões, docilizando corpos e desejos para o conforto da audiência. A insaciável evorazÂngela Carne e Osso (Helena Ignez), do filme de A mulher de todos (Rogério Sganzerla, 1969), é uma personagem ímpar no nosso cinema brasileiro. Representa ao meu ver um chamado importante para o debate sobre o quanto a sexualidade pesa na cons- tituição de valores morais prescritos na noção de ordem e progresso. A estratégia cênica, simples e sem grandes torções metafóricas, con- sistiu no uso do charuto como objeto fálico, que dimensiona o apetite sexual desenfreado de Ângela na ordem de sua virilidade. Sua mascu- linidade libidinal a torna um ser andrógino, perigosa Porque indomável e, ao mesmo tempo, uma travesti sem que essa travestilidade ganhe visibilidade em termos de gênero ou de orientação do desejo. A fanta- siosa ilha dos prazeres permite o jogo entre gênero e sexualidade. No entanto, para meu desgosto, a única cena (rápida) lésbica do filme veio marcada por um óbvio travestimento, enqua- drada em tom de orgia. Alegoria política ou não, as aventuras sexuais de Àngela carne e osso, além de provocarem os limites de idea- Lizações de feminiiidades e masculinidades, tanto corpóreas quanto simbólicas, abrem-se para luna apreciação sobre fetiche (a primeira cena é um selo nesta direção) e voyeurismo. Às tomadas e sua respectiva edição surpreen- dem, quando, por exemplo, a personagem encara a câmera/espectador, como quem diz 'eu sei que estou sendo vista", quebrando o clímax, ilsistindo na performatividade de su- as experiências. Destitui assim a onisciência do narrador em o;fque conduz o sentido do que se dá a ver de Angela. Sua força vibrante repousa exatamente nesse complemento: car- nal, sem sentimentalismos, essencialismos, sem se aprisionar a categorizações. Além de Ângela, tivemos também aRainha Diaba (Antonio Carios da Fontoura,1974). Nossa rainha (Milton Gonçalves) desdramatiza sua condiçáo marginal de negra, gay, drag e se- nhor do tráfico. A atuação de Milton Gonçalves evidencia o jogo de ambiguidades entre mascu- linidades e feminilidades que gera, deliberada- mente ou não, instabilidade de gênero. As osci- laçóes entre docilidade e rudeza, meiguice e excentricidade (sem medo de ser carnavalesca enquanto administra duramente seus aliados e subordinados) criam o estranhamento. Não es- tamos diante de algo (alguém) comum. Uma festa de travestis colore a tela de plumas e paetês. É uma das cenas mais belas do f,lrne, tanto por za EE EDIÇAO ESPECIAL trazei', ,,- : ,..rf nr ao sóbrio mundo do crime - desvirilizando a imagem do trrL-:,,:' . ..'.:rtiirlo, n.rarginal, cuja masculinidade é inscrita na ordem do irrS . . .<:rci,t qera poder" - quanto por revelar uma outra esfêra de sociai-..:.,-i. .:'nandade, criando camadas de submundo dentro do sub- r.nurii- - *.::- sào os pares da Rainha? A narrativa não aprofunda, mas dá a.: . .-.r'..Ltc'os 1aços que sustentam e estabiiizam as relações nào pass.r:r. :: -:. "'(r Lle instituiçoes cotro a iàmília; nem mesmo I parceria ilmor., --. :- .. ,,..i.'1.1 a prarcerias serttais. O rearranjo da noção de pertenci- meiii, - .',...,-r;: e solidariedade passa pela condição limite de exposlção à fi-a!,,-:--. : ---::;ariedade da trarestilidade. O filme nào é nenhum libelo poh:.- r : ,;i e condição travesti, não tem intenção de representar denr..:' * .- --. -, : r:trtç-ão. Expõe corn despudol a ambigr.riclade e ambiva- Iêr'icr., --. r: - '-rrrr isso r.rão vitimiza or-r culpabiliza o jogo de violênciais qlle r: .: . . - .., -i ' rlorro. Desmoraliza tanto a sexualidade quanto a von- tadc :. --- *:. : . . a situaçào ao ertremo, à margem da margem. F.:- .,:' . .. ..-ros Bauer, ou melhor, a luta de Vera (1986) para viver llaue :' ' . -i. >ergio Toledo talvez seja o mals reconhecido inter- nilcrr r ., : : - ::ro parte dir rara filn-rografia até a dectrda de 1980 tl alror';,.. : ...- .r.:r'Lsextialidade. A personagem instiga pelo grau de seriei-,-,. : -: -,:-.: quanto ao modo colno quer viver sua sexualidade e ser-. - :'- ::.rrncerta justamente aí, onde pensamos que pudesse haler' -. : . - - :rodo na busca por um conforto afirmativo de gênero. C) qLic ".. ' ,--.:'rrpresenta etr pormenores é o cotidiano, o dettrlhe cla cr:,.:-.. ,. ...---.,,dade de gênero. Ser fen.rinina na busca da harmonia cor.n ,' - . r - :::,-. sendo o biológico o detenninante da conduta, cia veslir:. -.- - .:: rr. requer um trabalho contínuo de educação, auto- percc'-'-' . -. : . :,: -.ncias da instltulçáo FEBEM para eYitar a mascu- lrr.iiz;;., -. :. .': r-r.iS internas, tornamvisír'eis tanto as estratégias de cliscip. .- ,,-- jLLe nrarcanr ir cottstituição do corpo generlficado (dehi:.: : O prLr: l- - dore . :,-. ' . le gêr.rero) quanto insinuam o desprezo para com : r -:rino, passír,e1 das violências inr.isír'eis dos servi- 'r::1" e, supostamente, protegem. De clma para baixo: Milton Gonça ves em A Rainha Diaba 11974), de Anton o Carlos da Fcntoura; Ana Beatriz Nogueira em Vera (1 98ó), de Sérgio Toledo; e He ena gnez em A mulher de todos (1 9ó9), de Rogérlo Sganzer al :.i r-.-rEem com as marcas sexuais, escamoteadâs com ,-: - r.i'..ur rlos olhos dos outros uma mulher (seios, , ' -. , :':,ias quando, no contato erótico-amoroso, sua - '- --:)io tatil e visual ao seu corpo. Dar-se ao toque \restltl-: . - - vaqLn- - -, pâICi-:: ., - naqu-, ,- -: - ' :r-- iàLnlente constitui o feminino, ainda que por prazer' - .,, ' : .. - :.:liido por Bauer como uma violação. A materia- Iidacle -.,.. .: -' '-.-.--i il oprime. Ela percebe saída na intervenção e transi,,::: -,--, ,, :.:.,.:gtit, Algo inacessír'el, dada a sua condiçào cle ex-c1et.:-.. ; .''r:.i---rr..Sada. À carne é o limite quando o simbólico desnro:-. :-: .- . .:-:', -r:. rrriundos das personagens que lhe acolhem nesstr.r-a-1:. : -.: ,:','--.i:si.1. sào insuficientes porque o drama, vivido por Br-r-:.: :-,, :-. . -, -,r :...tuer corldições sociais completamente ausen- tes de :,..,' i : ):. - ..,, :-...c uej.- lllolrento. Se Bauer não tem espaço para vir,.er ei:'. -' ;r; ; '.'rr'. :-.-'-,t :,ibe r t\.er sem Bauer, encurtar o sofiimento parece s-r'l *:r-.r r- r,,:i.-.li'ii à L.ersonagem. No entanto, anarrativa conduz .: ..::r -.. - ::r iln toque cle misterlo. ..f OUEER ElE 29 A TEORIA OUEER E OS DESAFIOS AS MOLDURAS DÕ ÜLI.IAR I Vera/Bauer tentou nos sensibilizar paraalgo que, no final dos anos 1980, estava formulando um novo vocabulário' Quase duas décadas depois, a presença de transexuais e transgêneros em filmes mudou -oito. Hoje há mais de 256 festivais dedicados à cuitura e fi.lmografra GLBTQ. Destes, pelo menos uns treze estão em funcionamento na América do Sul (Argentina, Venezuela, Colômbia, Peru, Chile, Bolívia, Uruguai, Brasil). Na década de 1990, o Mix Brasil da Diversidade foi o grande pioneiro; na última década, vimos pipocar' em diferentes estados, festivais e mostras (algumas competitivas, outras não) que promovem direta ou indiretamente exibições e debates em torno de gênero, sexualidade e diversidade sexual. Dentre as várias iniciativas eu citaria o For Rqinbow e o Curta o Gênero de Fortaleza, o DIV.A (dedicado à animaçáo), Mostra Possíveis Sexualidades de Salvador, Festival CIOSE (Porto Alegre), Rio Festival Gay de Cinema (R.l). Alguns são iniciativas de grupos GLBTQ outros de estudantes/pesqui- sadores (Cinepagu - Unicamp); ou de ONGs e institutos de arte e cul- tura (Dragão do Mar, Fábrica de Imagens). Um dos focos principais dos festivais criados no Brasil, mas náo só aqui, é a relação entre política sexual e direitos humanos. Talvez seja por isso que filmes como o encantador curta metragem O olho e o zarolho (J. Vicente & R. Guerra, 2013), o surpreendenle O amor que não ousa dizer seu nome (Barbara Roma, 2013), bem como o experi- mental e irreverente Vestido de Laerte (Cláudia Priscilla e Pedro Marques, 2012) tenham sensibiiizado uma plateia ampla de frequen- tadores desses festivais. Nessa direção, falta maior investimento em arquivos que tragam para esses novos espaços de projeção a história das produções audiovisuais independentes, como por exemplo, o im- portante trabalho produzido por Rita Moreira. Há uma estéti ca queer? Esta pergunta já fora formulada logo no início da criação dos festivais (estética gay) e reformulada a partir do debate iniciado nos anos 1990 com B. Ruby Rich, sobre o New Queer Cinema. Ainda hoje se pergunta o que foi/é novo no cinema queer.Náovejo con- senso entre os diversos autores que se dispuseram a qualifrcar a estética ou a proposta política para um cinema queer; defrnit o que é seria cir- cunscrever um potencial que pode nos surpreender. Afinal, trata-se de um campo de invenções, mais do que da indústria cinematográfica em si ou das grandes corporações midiáticas. A qualidade primordial fllmes que problematizem nossas convenções e verdades acerca da sexualidade e do gênero, rompendo binarismos ("homem versus mulher", "heteros- sexualidade versas homossexualidade" etc). Uma das razôes para o crescimento do cinema queer emvários países nos últimos anos foi o barateamento da produção fílmica com o uso de câmeras digitais e softwares de edição. A ideia na cabeça e a câmera na mào continuam sendo um potencial transgressor que libera a criatividade para fora dos esquemas narrativos e cinemáticos dos filmes de alto custo, produzidos nos grandes estúdios de cinema. Outro fator que impulsionou a produção foi o contexto da AIDS nos anos 1980 e a tentativa de dar novos significados e formular outras so M EDIÇÃO ESPECIAL 'iilli Fotografia de Alair Gomes, crítico de arte carioca conhecido principalmente pelos rêtratos de nu masculino tirados entre os anos 1970 e 1980 representações para os estigmas que marca- ram a correlação entre homossexualidade e doença. Em termos de Brasil, eu agregaria a estes fatores levantados por Rich o fato de que temos vivido nos últimos ânos uma terrível contradição. A presença midiática, em espe- cial através da TV de programas como Big Brother, novelas, séries dos canais fechados, que fazem uma espetacularizaçâo da imagem de personagens, gestos (toda a mídia em torno do "beijo gay'lésbico da novela das oito") que, se por um lado ajudam na promoção da visi- bilidade dos que questionam a normatização l § .i Í cÍ i:1z $: ? r: E:r'Í a i:" =ir da heterossexualidade, por outro desencadeam reaçoes'iolentas, como perseguiçoes políticas e ataques verbais por parte de religiosos orto_ doxos que consideram qualquer sexualidade/afetividade fora da norma uma afronta e instigam seus fiéis à prática do assédio moral e da vigi- lância coercitiva. DiversiÍicam-se os meios de produção/divulgação de imagens, narra- tivas da cultura audiovisual e do cinema digital. crescem as formas de compartilhamento de toda essa produção através de redes sociais em di- ferentes formatos de telas, das menores, como as de celulares, às maiores, os cinemas. Por isso mesmo, cresce a disputa e acirram-se as lutas no cam- po das representaçoes. o apelo da crítica queer é jrsÍamente o de sensibi- lizar nosso olhar para enfrentar esses novos campos de batalha. ts l a r'f.) I'illrt[-/:,i_]!.) i.tl CLiLT'1tl - rt6SS]C 2ô14 *Ê'clá§irioÊü coríc d+âÀ Dc §rA§ t6stElLtEÀDEs, À l6Jrar 3§É:"j ã r .- :,€<{\ÊÊrÊ==4er B< =rc6ê€a E aÊãr:rÊt ^SEr.â-. ->-' -'+ /(- --=.r:\v \̂\-,v v Y-v 'z'-§-2.t \--_--l +rl' le -:-l\r-f-_____, lz __--lI l\........,ryi /--- / ia tdli d5R!- : \i:ÊÉEe€-sS ffiiHtr t(.{ a-' ,'EQçBÉêQ - E t€l.{ I 1....*r5>'EarÀqÉ8,ÔEi l-:s<J>; Àt ',:4\5 %BR€ //t -SÉ(".6éÀE-Êo, | -IãEDAE... 14 *I'1 (ilJTRÊÉ EA}.EÀR À FEANCéTA E EXÍRT,E .aADo B qEtuÊrtrA ür'rm Éqri{i rlcio qE ffi!\q Murrc ESia m /T*) s> Í<Rm .*TAaÁNba C-r( 1'l - E6si,,€L € gJPERÂp Es1E 8rrO"ED. b s.cffirià.m A ÀEÊRt]RAÍÉ di D5R)m6- - PAÊÀ Àr,^ÉrÊ- uF tqp BqMQ DeÀre.trÍEAo É Effi JUDIT'I BIJTLER É A rÉoRlÀ QLEEI qutoro,SouSolih edrbm' outênticc 232wgra §i n*:see3i *E L.EÊ -' :.-a :::-:: : ^-::s: a cade de cassiíicaros seres humanos :: : -:-::::t: -: .---:-:: rascu inos ou íeminlnos ousrR m gr ..) A POLITICA DO DESEJO Estamos de volta ao pênis de borracha e sua simbolizaçáo de suple- mento, daquilo que interroga a propriedade do masculino como lugar de posse e propriedade, e automaticamente, nas formas opositivas, Ian- çaria o feminino como lugar de ausência e impropriedade. Se, como bem observa Marie-Hélêne Bourcier no prefácio do manifesto, é a partir de deslocamentos que o pensamento de Preciado se escreve, esses pares cuja integridade parecia se manter ainda intacta são o alvo de seus desloca- mentos. Geográficos, linguísticos, temáticos. Seja como ativista, seja como artista, seja como acadêmica, interessa a Preciado interrogar a produção de identidades sexuais e a normalização da heterossexualidade, projeto que a teoria queer na qual e1a se inclui pretende confrontar. Voltamos ao pênis de borracha, agora na aproximação da noçâo de mais-valia no pensamento marxista. Que náo se enganem os críticos de Preciado ou da teoria queer - e são muitos -, porque não há inge- nuidade nessa analogia. Ao contrário, de fato a crítica ao capitalismo e a sua força normalizadora de corpos, comportamentos e discursos será o motor do pensamento da autora. Capitalismo aqui entendido como estrutura de subordinação a um projeto heterossexual, norma- tivo, de corpos a serviço da produçáo e da reprodução, projeto funda- mentado em um ideal de natureza questionado pelo pênis de borracha como noção política mobilizadora. Contrassexualidade passa a ser, assim, uma forma de repensar a naturalidade dos corpos, e por isso apresentada em forma de um manifesto - a exemplo dos manifestos das vanguardas artísticas do início do século 20 -, que postula a inau- tenticidade da origem, a impropriedade do próprio. Chega aqui o momento de indicar uma das singularidades da obra de Preciado. Irreverente e transgressora, ela encarnou o questiona- mento sobre identidade de gênero numa experiência em que se fez cobaia. Durante 236 dias, se autoaplicou testosterona, o hormônio produzido pelos testículos, sem seguir nenhum tipo de protocolo médico prévio. "Com esta intoxicação voluntária, quis mostrar que meu gênero não pertence nem à minha família, nem ao estado, nem à indústria farmacêutica. É uma experiência política", escreve ela no Iivro em que narra o que chamou de droga sexual. Os efeitos também foram políticos. Com a testosterona, sentiu-se mais lúcida, enérgica, desperta, e passou a se perguntar por que esses efeitos devem ser considerados "masculinos". "Tomei a testosterona náo para me tornar homem, mas para acres- centar uma prótese molecular à minha identidade transgênero", relata emViciadq em testosterona: sexo, droga e biopolítica na era dafarmaco- pornografia,tradução livre para Testo lunkie: Sex, Drugs and Biopolitics in the Pharmacopornographic Era, prtblicado em 2008 na França e am- pliado na edição americana, em que Preciado desenvolve a noção de farmacopornografia. Trata-se de um mecanismo ampliado dos disposi- tivos disciplinares identif,cados por Foucault. Para vigiar o corpo, ob- serva ela, já não há mais necessi:dade de hospital, quartel ou prisão, por- que, com os hormônios sintéticos, as técnicas de controle se instalam no corpo, ferramenta definitiva da vigilância. sa §E EDtÇÃo ESPECTAL uut_-- h t\t, \ ir;5i'',i ÂC trl tr lr,ri i, FARi\4AC:-- :- "O corpo tem um esEa.,J ;. ;r::.=e den- sidade política, e o unirt:s:- :: :.::llular. Trata-se de resistir à nori::a-:;:;i: i: :tascu- linidade e da feminili.laüe .* r-- !i.-: i'1:ros, e de inventar outras l-orr::as :e ::aze: e de convivência", argumenta ?:e;:.j,:- ::-:s iina- gens do rosto com certo at a: j:,:g:::i. :rercâ- do por um fino bigode.;\r:::=..:. : -;e:a.le uma politica encorpa.la. Herdeira muito próriira ;. t-: i.:r l--rdith Butler - apenas quatorzc e:Lr: ::::i, ',;.:.. que Preciado -, um ponto as sepe:.:. ?:::t:;,:, :'ebe numa fonte anarquista espan:c'-: ;-:: ::i,irlda de maneira diferente sua entraú: :,: i;bate sobre gênero. Nesse ponto" sÊ it-c= -.',- -::.: rela ú[tima vez ao pênis de borra;i-.". . -::-.;.' ::..nÍ- rador do Manifesto contrtis:;:::..:. Q:ando Preciado nasceu, em 1970, o der::= :t =i-;nda onda feminista jâ ra avancanic .= :,::::o da necessidade de distinção enii. >i--i-- =;riero, instrumento teórico estratesl;. :r: ::ontar a fabricação de uma ditere:;: -=-'' r-c :un- damentava o ontológico nc.}:c^-'i.:: \,:'s anos 1990, quando Preciado a:ni, ..--' ::=e;ando seus estudos em torno .l; J-í:---. 3-:-e: pu- blica o seu hoie consaqraji -:---l'-.'-;-;5 j.:.q'e- nero, marco da ne;essica;a ;= --í):-.. :-jj:cnto da distinção sero géner.' ;; =.: :::.j: .:.:ua ao modelo heteronormatir,'..- 5-.ta itaitc\to, Preciado chega para pro:La: r=::a:-,:a:sesu- alidade que atirma o ,ie!e:o :t:;' ::;:-. lt=itado ao ptazeÍ sexual ProPLarclo:têü!r êc,s Lrrgãos reprodutores - que tundan:.:::i::::: a iiieren- ça sexual -. mas uma pol:ti;.: cc ,ie-eio capaz de sexualizar toôo o corpo, lugar ôe resistência a toda normatividade. E :i!-C r.r3-:l:la i:; CULT 19: - ÀGüsTO 2014 i§TÇ,:i l: ! -;'trJ-, -, - iVl'J-\ "r-- GÊNE;.. . UMA OUTRA HISTÓRIA da República À"nor, ordem e progresso o o ô o Q 2 Z = o 9 o o oÍ z az o = il Í z : :_,:.RD MISKOLCI uinze de novembro de 1889 oficia- lizou um movimento histórico que não se consolidara: a constru- ção de uma república brasileira. I;naginada por nossas elites políticas, econô- m.icas e intelectuais que - a despeito das diver- gências - tinham em comum o sonho de criar ,,ma civilizaÇão nos trópicos, a República era menos conquista do que projeto a impor. Daí :rào ser mero acaso que tenha sido proclamada ror militares, homens que escolheram a divisa positivista que figuraria em nossa bandeira: amor, ordem e progresso. Claro que - como riris representantes da ordem - começaram por suprimir o amor do mote de Auguste Comte. Supressão até hoje desconhecida da maioria dos brasileiros, mas reveladora do in- tuito de apagff qualquer traço do desejo no noro regime político. oUEER EM 35 # +€=# tr# I i.,l,iÀ O-Til.A i-.liS-lORi. l-i:A RE:--e rií-,( ] O desejo era temido como incontrolár,el e ameaçador para o almejado progresso. Mas, afinal, o que seria o progresso até hoje impresso em nossa bandeira? De acordo com as fontes da época, seria o caminho trilhado por medidas que dirigiriam o Brasii para o modelo da civilização que nossas elites projetar..am na Europa e nos Estados Unidos. Era um ideal baseado em uma fantasia das classes superiores, as quais nào apenas se lmaginavam brancas como consideravam a branquitude um atributo de superioridade morai que as colocava em claro contraste com o povo, no qual projetavam o atraso e a negritude. \riarn o povo como uma massa heterogênea sob ameaça degenerativa a esperar pelo branqueameuto para poder se tornar digna de ser reconhecida conro naçào. Ordem e progresso era um mote que afirmava o papel assumido pelas elites de guiar o Brasil ern direçào ao branqueantento. A imigra- ção europeia acelerada se dar.a em meio a revoltas que ameaça\ram o novo regime poiítico. A ordem nào era apenas mantida pelas forças policiais já militarizadas desde o império e que Iidavam com o PoYo como inimigo, herança até hoje não superada. Ela estava também em algo menos óbvio, ainda que não menos importante: uma ordenação do desejo. O agenciamento da sexuaiidade para a reprodução branque- adora mostra que a "ideologia" do branqueamento não Permaneceu no campo das ideias, também permeou práticas sociais. A maior parte de nosso pensamento social presumiu o desejo como heterossexual e reprodutivo assim como deixou de problematizar as incertezas de nossas elites, seus fantasmas. SegundoBenedict Anderson, as fronteiras da naçáo são delimitadas pela imaginação das elites. Explorar as fàntasias de branquitude das classes superiores bra- sileiras exige lidar tambem com seus fantasmas, dentre os quais se destaca o temor de que o desejo escape ao seu controle. Seu próprio desejo, mas ainda mais o desejo da populaçáo vista como "primitiva" ou carente de autocontrole. O projeto branqueador demandar.a a imigração de europeus, mas tinha na miscigenação, portanto na reprodução sob o controle dos ho- rnens brancos, seu principal vetor. Nação e reprodução tornaram-se sinônimos e raramente pesquisadores se ln- terrogaram sobre os lir.nites de tal simpliÍrca- ção: seriam todos os desejtrs reprodutivos? Dirigir-se-iam os deseios necessarramente a pessoas do sexo oposto? Tornar-se-iam mães todas as mulheres? Af,nal, por que a nação não foi completamente desnaturalizada e encatada como um construto histórico e politlco? Há uma outra história da naçào a ser contada. Se a história oÍicial tendeu a apagar as resis- tências aos intuitos da República Velha, as alter- nativas tenderam a ignoráJas porque ambas, apesar de tudo o que as distingue, foram pouco afeitas aos vestígios das experiências que não costumam ter registro em documentos oliciais. Onde estariam, então, as pistas desse passado que sobreviveu mais pela memória do que pela história? Nas lacunas dos arquivos, nos docu- mentos que Íbram considerados irrelevantes ou secundários e na literatura da época. A literatura, em fins do 19, a1ém de ser um discurso muito mais poderoso do que em nos- sos dias, era meio de expressão da vida da época fora dos enquadramentos estrltos da ciência, religião ou política institucionalizadas. Segundo a socióloga Avery Gordorr, a lite- ratura é um meio privilegiado para acessar os fantasmas de uma época. A experiência de ser assombrado é reveladora tambem sobre as fan- tasias que guiam as açôes de certos estratos sociais. Em O desejo da nação: ntasculittidade e branquitude no Brasil de .fins do -\1-\ (1011), selecionei três narrativas escritas entre 1888 e 1900 para compreender a passagenr da Monarquia à República não pelrr ia conhecida ênfase r.ra passagem do trabalho escra\-o ao lir-re tampouco nas disputas poiiticas intraellte, an- tes pela emergência de um nor-o 1dea1 de nação que congregou forças em um proieto autorltário de transfbrmar nosso poyo em uma nação à imagem das classes superiores brancas. Os ro- mances selecionados tbram O ateneu (1888) de Raul Pompeia, Bont crioulo (1895) de Adolfo Caniinha e Dom Casmtu'ro (1900) de Machado de Assis, relatos sobre o passado, memórias a assombrar o presente republicano em seu con- turbado e sangrento período de consolidação. 1ç ,§" k". Et- Í { +/Y r ...==:::::' :::-.9 §€  ArmtroÕcriD Eikã obrigatório em 1916 dp*uo& o topo do ima- ginrírb lxi-l r-Lr mddares aqueles que prod-ll4ftz Também criou um pÉ & qil 4lÍi!Éryio lnra todos osisÊͧ' - - {rrrmdiae. PmCIsÉaCtfu c rapaze, no ano em qEilÉÉ-Ia-rrrrxi passaram a se alistar ?.dFr cElrrrc admissional que in&i eqÊrt- s dcseio, sobretudo sehomod. Muio.Êt-Grto militar ter se tor- nado úri--ch3r-todo o território nacionel b e f-n do Paraguai um ,n{dico pftr rem:l que propunha guiar a rLf Lrcrrc Seu priocipal con- selho eno&tf!Íft-.r+€sas os de "virili- dade asszriftf arEEEíar «x;'efeminados". A selço-r-triçcm que recusava os clararnt* É' o qI- firnca equivaleu a criar n oEDgE'ierr*nte heterossexual. O amtie*dr5qs amadas risava criar uma ma«rrtdliL dirirlineda, uma forma culturalizrded. küçaitude a ser estendida aos hmôprcqq.rh6s€m negros, po- bresoulrrctar O fu ó ço sril r*ilitar gerava um de- sejo pdapipiemr.EiLde qte buscava criar. A UstinriçtqtAo dc proclamadores da RepriülbuÉnlrrsr r.n dos vetores de disseminat'o do dEÍqo que da mais temia. DiferenfensE de @f:çoes intelectualistas 5sfoÍesírUtE fanteà Lrrnssrruali.lade em tsxt06, r.iã6.Ím. o ffiires diagnósticos e pútlas dc irorqrlr. ÉFriá[.icô, revela-se facffi a lrirÊ-ft fr 6 rliqsâÍrrento militar foi prática rid a rfrrrrrrirar a informaçáo sobre a sxistibrà dÊ Err ffio deio r§m corno a de uma itprÍl{rda}rrrme-ral O ít€scib lnrrrryErEl masculino passaria a ser perscruttdo mr efis:rnerrto mill161 3ssis1 como a nunmerçao do feminino sob o con- trole dos Ims comria com a criminaliza- ção do aborto- [Irmrers e mulheres direciona- dos à reprodução pessarem a construir a nação dentro do pcsid, s€ não branca, ao menos miscigeÍmde" mae maotendo o desejo sob a ordem politila branca e heterossexual. EXPLORAR AS FANTASIAS DE BRANQL.' ITUDE DAS CLASSES SUP[RiCRES BR,4SILEIRA§ EXIG= LiDAR TAMBÉM COM STUS FANTASMAS, DENTRE OS OUAIS SE DESTACA O TEMOR DE OUE O DESEJO ESCAPE ÂC SEIJ CÕNTãOL= Percebe-se, portanto, como a República do projeto branqueador pôde ser reformada pela do discurso da democracia racial, o qual permearia a fantasia de um a sociedade sem conflitos e divergências durante o último regime militar (1964-1985). Tal sociedade se assen- tou na cidadania plena reseryada aos brancos e heterossexuais, resul- tado de práticas sociais que a racializaraÍn e heterossexrtalizaram relegando à subcidadania os não brancos e não heterossexuais. Somos descendentes desse processo histórico autoritário e injusto que começou a ser contestado com o retorno à democracia na década de 1980. Conquistas democráticas recentes como as ações afirmativas, ao contrário do que afirmam seus pálidos críticos, configuram demanda meritória pela destacializaçáo da cidadania assim como as demandas LGBT clamam por sua des-heterossexualização. O desejo da naçáo tem se libertado de sua amarra secular que o vinculava ao projeto hegemônico de uma elite que se fantasiava como branca e heterossexual. O desejo homossexual ainda causa temores entre alguns setores de nossa sociedade, como os religiosos fundamentalistas, nâo por razões puramente racionalizáveis tampouco puramente emocionais. O medo dos conserva- dores em relação ao desejo homossexual é herdeiro de uma concepção de sociedade baseada na hegemonia hétero e sua aura de respeitabilidade mo- ral. No fundo, um temor engendrado historicamente por práticas sociais instituídas no alvorecer da Primeira República. Náo deixa de ser revelador o que leva os conservadores a desviarem o foco do autoritarismo do qual ainda somos herdeiros para projetar nos homossexuais uma suposta ameaça: o monopólio heterossexual da cidadania denunciado neste texto foi aceito em parte das classes popu- lares como ordem natural (ou religiosa) das coisas. Salvo engano, atualmente o desejo homossexual parece ser um fan- tasma maior entre os mais pobres enquanto o reconhecimento da ne- gritude continua a ser negado pelas elites apegadas a um díscurso de mérito que mal encobre seu privilégio racial e de classe. A visibilidade recente dos conflitos entre demandas de reconheci- mento e resistência à transformação social e política é um sinal de avan- ço democrático. No Brasil contemporâneo, a novidade é que velhos fantasmas começam a dissipar algumas das fantasias que guiaram nossa história política. Quiçá estejamos assistindo à (re)invenção da República, dessa vez feita a partir dos desejos ignorados ou esquecidos nas narra- tivas ainda hegemônicas sobre a nação brasileira. E TEXIC PUBLICADC I..!A 'ULT ,i§6 * NCVSM§ÊÚ 2ç14 i OUEER @ 37 O OUE PERDEMOS com os preconceitos? Tomada como padrão na sociedade, a heterossexualidade promove não apenas a violência física, mâs tambóm a violência sinnbolica contra os que se desviam dessa normô LEANDRO COLLING omofobia é um conceito criado para pensar a repulsa geral às pes- soas homossexuais, ou fobia aos homossexuais. Daniel Borrillo, no livro Homofobia, diz que o termo parece per- tencer a K. T. Smith, que, em um artigo publi- cado em 1971, tentou analisar as características de uma personalidade homofóbica. Um ano depois, G. Weinberg teria definido a homofobia como "o temor de estar com um homossexual em um espaço fechado e, no que concerne aos homossexuais, o ódio até a si mesmos".
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