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RBEPRBEPRBEPRBEPRBEP ISSN 0034-7183 R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 1-219, jan./abr. 2007. COMITÊ EDITORIAL Oroslinda Maria Taranto Goulart – Inep – Coordenadora Cecília Irene Osowski – Unisinos Leila de Alvarenga Mafra – PUC-MG Maria Cecília Sanchez Teixeira – USP Maria Laura Barbosa Franco – FCC Moacir Gadotti – USP Tarso Bonilha Mazzotti – UFRJ CONSELHO EDITORIAL Nacional: Acácia Zeneida Kuenzer – UFPR Alceu Ferraro – UFPel Ana Maria Saul – PUC-SP Celso de Rui Beisiegel – USP Cipriano Luckesi – UFBA Creso Franco – PUC-RJ Delcele Mascarenhas Queiroz – Uneb Dermeval Saviani – USP Guacira Lopes Louro – UFRGS Heraldo Marelim Vianna – FCC Jader de Medeiros Brito – UFRJ Janete Lins de Azevedo – UFPE José Carlos Melchior – USP Leda Scheibe – UFSC Lisete Regina Gomes Arelaro – USP Magda Becker Soares – UFMG Maria Beatriz Luce – UFRGS Maria Clara di Pierro – AE Marta Kohl de Oliveira – USP Miguel Arroyo – UFMG Nilda Alves – UERJ Osmar Fávero – UFF Petronilha Beatriz Gonçalves Silva – UFSCar Rosa Helena Dias da Silva – Ufam Silke Weber – UFPE Waldemar Sguissardi – Unimep Internacional: Almerindo Janela Afonso – Univ. do Minho, Portugal Juan Carlos Tedesco – IIPE/Unesco, Buenos Aires Martin Carnoy – Stanford University, EUA Michael Apple – Wisconsin University, EUA Nelly Stromquist – Univ. of Southern California, EUA IS SN 0 03 4- 71 83 RBEPRBEPRBEPRBEPRBEPvolume número jan./abr.88 218 2007 © Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira(Inep) É permitida a reprodução total ou parcial desta publicação, desde que citada a fonte. COORDENADORA-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAÇÕES (CGLP) Lia Scholze Lia Scholze Lia Scholze Lia Scholze Lia Scholze lia.scholze@inep.gov.br COORDENADORA DE PRODUÇÃO EDITORIAL RRRRRosa dos Anjos Oliveira osa dos Anjos Oliveira osa dos Anjos Oliveira osa dos Anjos Oliveira osa dos Anjos Oliveira rosa@inep.gov.br COORDENADORA DE PROGRAMAÇÃO VISUAL Márcia TMárcia TMárcia TMárcia TMárcia Terezinha dos Rerezinha dos Rerezinha dos Rerezinha dos Rerezinha dos Reiseiseiseiseis marcia@inep.gov.br EDITOR EXECUTIVO Jair Santana MoraesJair Santana MoraesJair Santana MoraesJair Santana MoraesJair Santana Moraes jair@inep.gov.br REVISÃO Português: Antonio BezerAntonio BezerAntonio BezerAntonio BezerAntonio Bezerra Fra Fra Fra Fra Filhoilhoilhoilhoilho bezerra@inep.gov.br Marluce Moreira SalgadoMarluce Moreira SalgadoMarluce Moreira SalgadoMarluce Moreira SalgadoMarluce Moreira Salgado marluce@inep.gov.br RRRRRosa dos Anjos Oliveiraosa dos Anjos Oliveiraosa dos Anjos Oliveiraosa dos Anjos Oliveiraosa dos Anjos Oliveira rosa@inep.gov.br Inglês: ÉrikÉrikÉrikÉrikÉrika Márcia Baptista Caramoria Márcia Baptista Caramoria Márcia Baptista Caramoria Márcia Baptista Caramoria Márcia Baptista Caramori erika.caramori@inep.gov.br NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA RRRRRegina Helena Azevedo de Mello egina Helena Azevedo de Mello egina Helena Azevedo de Mello egina Helena Azevedo de Mello egina Helena Azevedo de Mello regina@inep.gov.br PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E ARTE-FINAL Marcos Hartwich Marcos Hartwich Marcos Hartwich Marcos Hartwich Marcos Hartwich hartwich@inep.gov.br CAPA Marcos HartwichMarcos HartwichMarcos HartwichMarcos HartwichMarcos Hartwich Sobre o trabalho de Roberto Micoli, Pintura com bandas coloridas nº 2, acrílico sobre tela, 155 cm x 175 cm, 2002. TIRAGEM 3.500 exemplares EDITORIA Inep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e PInep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e PInep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e PInep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e PInep/MEC – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Teixeixeixeixeixeiraeiraeiraeiraeira Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo I, 4º Andar, Sala 418, CEP 70047-900 – Brasília-DF – Brasil Fones: (61)2104-8438, (61)2104-8042, Fax: (61)2104-9812 editoria@inep.gov.br rbep@inep.gov.br DISTRIBUIÇÃO Inep – Instituto Nacional de Estudos e PInep – Instituto Nacional de Estudos e PInep – Instituto Nacional de Estudos e PInep – Instituto Nacional de Estudos e PInep – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Tesquisas Educacionais Anísio Teixeixeixeixeixeiraeiraeiraeiraeira Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo II, 4º Andar, Sala 414, CEP 70047-900 – Brasília-DF – Brasil Fone: (61)2104-9509 publicacoes@inep.gov.br http://www.inep.gov.br/pesquisa/publicacoes Indexada na Bibliografia Brasileira de Educação (BBE)/Inep Avaliada pelo Qualis/Capes 2003 – Nacional A A exatidão das informações e os conceitos e opiniões emitidos são de exclusiva responsabilidade dos autores. ESTA PUBLICAÇÃO NÃO PODE SER VENDIDA. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PUBLICADA EM ABRIL DE 2007 Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. v. 1, n. 1, (jul. 1944 - ). – Brasília : O Instituto, 1944 -. Quadrimestral. Mensal 1944 a 1946. Bimestral 1946 e 1947. Trimestral 1948 a 1976. Suspensa de abr. 1980 a abr. 1983. Publicada pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, até o v. 61, n. 140, set. 1976. Índices de autores e assuntos: 1944-1951, 1944-1958, 1958-1965, 1966-1973, 1944- 1984. ISSN 0034-7183 1. Educação-Brasil. I. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Apresentação | Presentation .......................................................... 7 Estudos | Studies Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos ................. 11 A study on the teaching of shodo from manuscripts Rodrigo Moura Lima de Aragão Epistemologia da Biologia: para se pensar a iniciação ao ensino das Ciências Biológicas ................. 30 Epistemology of Biology: thinking on the Biological Sciences teaching Marta Bellini Gestão municipal e formação: a educação infantil no Estado do Rio de Janeiro .................................. 48 Municipal management and formation: childhood education in the State of Rio de Janeiro Sonia Kramer Maria Fernanda Nunes Formação continuada de professores a distância: o desvelamento de focos de estudo expressos em produções acadêmicas ..................... 73 Continued formation of teachers in distance learning: study focus expressed in academic productions Marta Lyrio da Cunha Lúcia Regina Goulart Vilarinho SUMÁRIO RBEPRBEPRBEPRBEPRBEP R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 5-6, jan./abr. 2007. 6 A dimensão ambiental na cultura educacional brasileira ...................... 107 The environmental dimension in the Brazilian educational culture Marta Teixeira do Amaral Projeto histórico e construção curricular: a experiência social do Fórum do Maciço do Morro da Cruz ........................................... 122 Historical project and curricular construction: the social experience of Maciço Morro da Cruz Forum Jéferson Dantas Explicadoras do Rio de Janeiro: encontros e desencontros em trajetórias profissionais singulares ............................................... 140 "Explicators" of Rio de Janeiro: encounters and disencounters in singular professional trajectories Luiz Otavio Neves Mattos Imagem feminina e maternidade: o concurso de robustez infantil em São Paulo (1928) ....................................................................... 157 Feminine image and maternity: the child robustness contest in São Paulo (1928) Jane Soares de Almeida Filosofia, psicanálise e educação: o "mestre possível" de adolescentes .................................................. 171 Philosophy, psychoanalysis and education: the "possible master" of adolescents Valeska Zanello Teses e Dissertações Recebidas ....................................................... 179 Theses and Dissertations Received Resenhas | Reviews ......................................................................211 Instruções aos Colaboradores .......................................................... 215 Instructions for the Collaborators R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 5-6, jan./abr. 2007. 7 Este número da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) é o pri- meiro de 2007, quando o Inep inicia as comemorações de seus 70 anos. Criado pela Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, com a missão de "realizar pesquisas sobre os problemas do ensino, nos seus diferentes aspectos", as atividades só tiveram início em 30 de junho de 1938. Em muitas circunstâncias, a história do Inep se confunde com a história da educação brasileira no século passado. Por ele passaram alguns dos mais brilhantes pensadores e formuladores de política educacional de nosso País. Durante sua trajetória, ainda que intercalada por fases de grande projeção – quando se colocou no centro de debates fundamentais para definir os rumos da política educacional – e de declínio e quase extinção, o Inep consolidou-se como uma referência na área de estudos, pesquisas, levantamentos, estatísti- cas, indicadores e avaliação. Uma análise retrospectiva revela notável corres- pondência entre os períodos de proeminência e decadência e os ciclos demo- cráticos e autoritários que se alternaram desde a sua fundação. Claramente, o Inep prosperou na democracia e definhou durante a ditadura, chegando a uma situação de quase irrelevância ao final do regime militar instalado em 1964. Surgido sob a inspiração do movimento que gerou o Manifesto dos Pio- neiros da Educação Nova, de 1932, que advogava entre outras medidas a implantação de uma nova política educacional, "com sentido unitário e de bases científicas", é possível perceber, conforme ressalta o professor Jader de Medeiros Brito, um dos mais antigos colaboradores do Inep, quatro grandes eixos norteadores de suas atividades: APRESENTAÇÃO* RBEPRBEPRBEPRBEPRBEP R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 7-10, jan./abr. 2007. * Esta apresentação valeu-se das idéias contidas no texto de José Carlos Rothen "O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos: uma lei- tura da RBEP", publicado no núme- ro 212 da RBEP, edição especial 60 anos, bem como de notas não publicadas de Jader de Medeiros Britto e Paulino Motter. 8 R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 7-10, jan./abr. 2007. • a definição de políticas públicas para a educação brasileira; • a assistência técnica às unidades da Federação; • a estruturação de um sistema de documentação e intercâmbio educa- cional capaz de veicular a disseminação de informações, mediante um programa editorial; • o desenvolvimento de uma política de estudos e pesquisas apta a embasar as políticas públicas adotadas. Esses eixos, que predominaram segundo a orientação de seus vários dirigentes, se refletiram na linha editorial da RBEP, permitindo traçar um paralelo bastante nítido entre a instituição e seu principal veículo. Lourenço Filho, um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros, fun- dador e primeiro diretor-geral do Inep (de 1938 a 1946), enfatizou a orga- nização do sistema de documentação como base de um conhecimento mais científico do estado da educação e para a realização e disseminação de estudos e pesquisas. Em sua gestão, em 1944, surge a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, que se constituiu, já em seu primeiro número, em publicação oficial do Inep, com uma linha editorial independente das diretri- zes do Ministério da Educação, assumindo o ideário que inspirou a criação da instituição e privilegiando temas práticos. Murilo Braga, que sucedeu a Lourenço Filho (de 1946 a 1952), deu maior destaque à assistência técnica aos Estados, construiu escolas e de- senvolveu programas de aperfeiçoamento do magistério. Em sua gestão, acompanhando as prioridades assumidas pelo Inep, a RBEP reduziu o nú- mero de artigos e trabalhos dedicados a temas práticos, enfatizando os dedicados à psicologia aplicada, na maioria das vezes elaborados sob enco- menda dos editores. O notável crescimento da instituição nas décadas de cinqüenta e sessen- ta deve-se em grande medida à liderança de Anísio Teixeira, um dos próceres do Manifesto dos Pioneiros, que assumiu a direção-geral do Inep em junho de 1952, nele permanecendo até abril de 1964. Durante "os anos de Anísio Teixeira", como muitos se referem a esse período, o Inep privilegiou o desen- volvimento da pesquisa educacional e o conhecimento da realidade socioeducativa e cultural de cada região do País. Com esse objetivo, e para disseminar nacionalmente informações sobre a educação brasileira, Anísio criou o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), sediado no Rio de Janeiro, com ramificações em cinco Centros Regionais, instalados em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre. Ao mesmo tempo, fortaleceu a RBEP, que assumiu o papel de disseminadora das informações processadas pela instituição, o pensamento de seu dirigente e do círculo de pensadores com os quais ele convivia e dialogava. Nas páginas da Revista, ganharam destaque nacional os debates sobre temas cruciais para a educação brasileira, como a campanha em defesa da escola pública, que reivindicava a implantação de uma política educacional de democratização do ensino e o acesso garantido a crianças e jovens de todas as classes sociais. Afastado da direção do Inep pelo golpe militar de 1964, sua influência permaneceria ainda por alguns anos, já que os dirigentes que o sucederam Apresentação 9R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 7-10, jan./abr. 2007. mantiveram praticamente inalteradas a equipe técnica e os programas prioritários. Digno de registro foi o empenho de Carlos Pasquale (1964-66) e Carlos Mascaro (1966-69), em dar continuidade à linha de trabalho de Anísio Teixeira. Esses esforços, no entanto, foram frustrados pelo crescen- te cerco e isolamento imposto pelo regime, que via o Inep como uma insti- tuição "esquerdista e subversiva". A linha editorial da RBEP manteve-se fiel ao ideal da escola nova, refletindo a influência do pensamento de Anísio até finais da década de sessenta. O recrudescimento do regime militar, a partir de 1968, e a conseqüente censura ao debate crítico em torno de idéias e conceitos que não seguiam o modelo oficial retiraram do Inep a importância que ele exercera até então no processo de formulação das políticas educacionais e levou-o à perda de prestígio e influência. O desmantelamento prosseguiu com a redução do seu escopo de atividades, transformando-o em órgão de fomento à pesqui- sa educacional e mero apêndice atrelado ao Ministério da Educação. A trans- ferência para Brasília, em 1976, provocou uma drástica redução de sua equipe e de seu patrimônio. Durante a fase de declínio e desmonte, a RBEP tem dois números censurados e perde a periodicidade, sendo publicada irregularmente a partir de então. A democratização do País encontra um Inep enfraquecido, que pouco tinha em comum com a vigorosa instituição de seus primeiros trinta anos. Esse período, no entanto, havia sido tão marcante, que persistia entre os educadores brasileiros o reconhecimento do relevante papel que ele desem- penhara e a convicção de que esse status poderia ser recuperado nos novos tempos. Foi a mobilização da comunidade educacional que pressionou o Congresso para revogar o item da reforma administrativa do Governo Collor que extinguia o Inep em março de 1990. A aprovação da nova LDB (Lei nº 9.424, de 20 de dezembro de 1996) favoreceu a descentralização da gestão educacional, ao mesmo tempo em que fortaleceu o Ministério da Educação como formulador e coordenador das políticas nacionais. A LDB estabeleceu, também, a exigência de que a União, em colaboração com os sistemas de ensino, realizasse avaliações nacionais do rendimento escolar e dos estabelecimentos de ensino. O MEC delegou ao Inep a responsabilidade de desenvolver e coordenar os sistemas e projetos de avaliação, o que, somado à ênfase dada à organização e manu- tenção do sistema de informação e estatísticas educacionais,lhe permitiu recuperar posição de destaque no cenário nacional. No entanto, da época em que foi criado até os tempos atuais, muitas transformações ocorreram no contexto educacional brasileiro. As universi- dades e centros de pesquisa capacitaram-se como geradores de conheci- mento, desenvolvendo um sem-número de estudos e pesquisas. Elas têm formado pesquisadores de alto nível, com profícua produção na área educa- cional. Como conseqüência natural, novos periódicos especializados surgi- ram e se firmaram como importantes instrumentos de veiculação de idéias, teses e indagações. Refletindo esse cenário, reorientamos a RBEP, evitando-lhe o papel de veículo dos projetos e programas do Inep e do Ministério da Educação. Apresentação 10 Embora amparada pelo prestígio e credibilidade dessas instituições e pelo fato de estar na categoria A de publicações nacionais pelo programa Qualis da Capes, entendemos que a revista deva ser um veículo de disseminação da produção científica e acadêmica sobre questões educacionais significati- vas, apartidária e desvinculada dos interesses e orientações dos dirigentes da instituição. Nesse sentido, esforços foram feitos para recuperar sua periodicidade, o que conquistamos no ano passado, e está em curso o projeto de edição on-line da RBEP, o que ampliará sua disseminação e reconhecimento. Ino- vações na política editorial devem ocorrer ainda este ano, dentro do proces- so de sua revitalização. Com este número e os anteriores recentes, efetuamos algumas mudan- ças que tornaram seu conteúdo mais específico e restringiram o foco às pesquisas e aos "Estudos", principal seção da revista. Dessa forma, foram retiradas as seções "Avaliação", "Estatística", "Segunda Edição" e "Publicações Recebidas", a cargo do Inep. Por outro lado, foram retomadas as seções "Resenhas" e "Notas de Pesquisa", sem caráter fixo, abertas aos colaborado- res. Quanto à forma, houve o retorno da revista ao formato livro, ao texto corrido em vez de colunas e à apresentação visual despojada e funcional. Enfim, em tempos de Inep 70 anos, seu principal veículo dirigido à comunidade acadêmica, a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, tam- bém se renova, para manter o espaço conquistado aos longo dos 63 anos em que vem sendo publicada. Oroslinda Maria Taranto Goulart Diretora de Tratamento e Disseminação de Informações Educacionais do Inep Coordenadora-Geral do Comitê Editorial da RBEP R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 7-10, jan./abr. 2007. Apresentação 11 Resumo Propôs-se apreender aspectos do ensino da arte da caligrafia japonesa (shodô), a partir da análise de um conjunto de manuscritos feitos por um aprendiz nas aulas de shodô da Esperança Fujinkai (São Paulo), entre feverei- ro de 2004 e julho de 2005. Estabeleceram-se, para a análise, dois escopos: conteúdo e seu desenvolvimento; aspectos observados na correção. A partir do primeiro, observaram-se quais grafias e estilos foram desenvolvidos ao longo das aulas de shodô, assim como de que forma se deu esse desenvol- vimento, isto é, quando foram apresentados novos estilos e caracteres, com que ritmo isso ocorreu, em que formato foi feito o trabalho nos manuscritos, etc. Já por meio do segundo escopo, verificou-se que as correções e obser- vações da professora de shodô voltaram-se a aspectos de três níveis da produção do aluno: traço; caractere; caractere e sua relação com o conjunto. Palavras-chave: ensino do shodô; caligrafia japonesa; ensino de arte. Rodrigo Moura Lima de Aragão Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos* ESTUDOS RBEPRBEPRBEPRBEPRBEP Abstract A study on the teaching of shodo from manuscripts One proposed to apprehend aspects of the teaching of the Japanese calligraphy (shodo), from the analysis of a set of manuscripts made by an * Agradeço, em especial, à professo- ra Madalena Hashimoto Cordaro, pela leitura atenta que fez deste tra- balho e pelas preciosas sugestões que deu para sua composição, e, ainda, à professora Shoka Kodera, pelo es- mero que tem tido no ensino da bela arte da caligrafia japonesa. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. 12 Introdução O ensino da caligrafia japonesa no município de São Paulo se dá em escolas tradicionais japonesas (nihonjingakkô) e em espaços outros, como associações desportivas e culturais, associações de província (kenjikai), as- sociações de senhoras (fujinkai) e de anciãos (rôjinkai). No primeiro caso transmite-se o shûji, exercício no qual se busca compor apenas uma cali- grafia correta e bem escrita, "recebendo ênfase os caracteres legíveis e caprichados" (Sato, 1999, p. 9).1 Já nos demais ensina-se o shodô, arte da caligrafia japonesa na qual os praticantes visam tanto aquilo que se preten- de no shûji quanto a constituição de, como coloca Sato (1999), linhas vivas, com força e energia. Este trabalho volta-se ao ensino desta última. Shodô é, fundamentalmente, uma arte de linhas (Mikami, Tanahashi, 1961) e possui dois elementos formais: a linha preta e o espaço branco (Sato, 1999). A linha resulta do contato do pincel fude, umedecido pela tinta sumi, com o papel washi; o espaço é o próprio papel, chinês, japonês ou coreano (Sato, 1999). A apreensão dessa arte efetiva-se, pois, conforme o praticante adquire domínio desses dois elementos, ou seja, à medida que se torna proficiente, por exemplo, na confecção de linhas retilíneas, curvas, pontiagudas e arredondadas, e explora o espaço branco com equilíbrio. A atuação do professor (ou sensei) de shodô no aprendizado dos alu- nos dirige-se, então, sobretudo, a uma execução bem-sucedida dos traços de que se constituem os inúmeros caracteres chineses e japoneses e a um uso adequado do espaço. Dá ele, geralmente, orientações aos alunos antes do início da prática artística, apresentando-lhes particularidades dos caracteres a serem executados e aspectos do conjunto que por estes é formado, e norteia os aprendizes ainda ao longo e no término dessa prática. Nos esclarecimentos que profere antes do exercício do shodô, o sensei emprega como ferramentas, comumente, modelos impressos e aqueles que ele próprio fez, chamados de tehon, nos quais se encontram os caracteres 1 "In the Japanese practice of shuji, or handwriting, the emphasis is on neat, legible characters" (Sato, 1999, p. 9). apprentice in the classes of shodo of the Esperança Fujinkai (São Paulo), between February, 2004 and July, 2005. For the analysis, two approaches were established: content and its development; aspects observed in the correction. From the first approach, one observed which graphics and styles were developed during the lessons of shodo, as well as how this development happened, i.e., when new styles and characters were presented, how often this occurred, in which format the work in the manuscripts was made, etc. From the second, one verified that the corrections and comments of the shodo teacher concerned the aspects of three levels of student production: trace; character; character and its relation to the set. Keywords: shodo teaching; Japanese calligraphy; art teaching. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 13 escolhidos para uma aula específica ou uma seqüência de aulas. Já na orien- tação que se dá durante e após a elaboração dos manuscritos o professor utiliza, freqüentemente, um pincel fude e uma tinta laranja, shuboku, com os quais, em geral, remenda os traços dos alunos, apresenta formas corre- tas na realização das linhas e circula os componentes bem executados. Figura 1 – Modelo de caligrafia (tehon), de Shoka Kodera (cortesia da professora) de shodô R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 14 Figura 2 – Manuscrito com correções e observações do professor (acervo do autor) No decorrer das aulas, assim, é possível aos alunos constituir acervos de manuscritos, nos quais constarão: escolhas feitaspelo professor quanto ao conteúdo (os caracteres praticados, por exemplo); estratégias empregadas pelo sensei para o desenvolvimento desse conteúdo (como quantos caracteres foram feitos por manuscrito e sua variedade); erros, acertos e inúmeras cor- reções e observações feitas pelo professor quanto ao trabalho do aprendiz. Assumindo-se, então, que metodologia do ensino de arte refere-se às orientações educativas cujo objetivo é contribuir para a apreensão de no- ções e habilidades em arte por parte dos alunos (Ferraz, Fusari, 1991),2 entende-se que, nesses manuscritos, há o registro de parte desses encami- nhamentos educativos, particularmente de uma porção daqueles próprios à arte da caligrafia japonesa. Caso se pretenda estudar o ensino do shodô, então, a análise desses manuscritos é um trajeto a ser considerado, pelos retratos que pode fornecer desse processo ensino-aprendizagem. 2 Embora o trabalho das autoras trate, principalmente, do ensino de arte no ambiente escolar, o conceito de metodologia do ensino de arte apresentado por elas, em especial, cabe aos cursos de arte como um todo, não sendo inapropriada, pois, sua transposição ao ensino da arte da caligrafia japonesa, que se dá fora das escolas. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p.11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 15 No projeto do qual este trabalho faz parte,3 tenciona-se compor um pa- norama das metodologias empregadas no ensino do shodô no município de São Paulo. Neste estudo, espera-se apreender fragmentos desse todo, especi- almente por meio da análise de um conjunto de manuscritos4 elaborados ao longo das aulas de shodô da Esperança Fujinkai5 (bairro da Liberdade, São Paulo), entre fevereiro de 2004 e julho de 2005. Trata-se de um primeiro esforço voltado para o registro e compreensão de como se processa o ensino da arte da caligrafia japonesa, em São Paulo, e afasta-se dos estudos feitos até o momento acerca do shodô nesse município – a única pesquisa realizada (e publicada) foi a de Saito (2004), situada sob o campo da Semiótica. Materiais e métodos A análise efetuada neste trabalho abrangeu um total de 171 manuscri- tos produzidos nas aulas de shodô da Esperança Fujinkai, entre fevereiro de 2004 e julho de 2005. Investigou-se, em particular, a produção de um aluno sem ascendência japonesa, a qual – pressupôs-se – apresenta aspectos de como esse aprendiz foi conduzido, pela professora dessa associação, ao longo de seu desenvolvimento inicial na arte da caligrafia japonesa. Asseme- lha-se o percurso deste estudo, pois, àquilo que Ginzburg (1990) chamou de "paradigma indiciário": partiu-se de indícios mínimos, os quais, acredita- se, possibilitaram compreender fenômenos mais gerais de uma realidade opaca – e "opaca", aqui, se deve ao fato de que não havia registros no que diz respeito ao ensino do shodô em São Paulo. A realização dessa análise exigiu, primeiramente, o estabelecimento de dois pontos fundamentais: escopo; método. 3 O nome do referido projeto é Pa- norama das metodologias de ensi- no da arte da caligrafia japonesa, shodô, no município de São Paulo. Trata-se de uma pesquisa de inici- ação científica, que vem sendo rea- lizada no Centro de Estudos Japo- neses da Universidade de São Pau- lo, sob orientação da professora Dra. Madalena Hashimoto Cordaro e com financiamento do governo da província de Toyama, Japão. 4 A produção analisada neste estu- do é resultado do trabalho do autor nas aulas de shodô da Esperança Fujinkai. Para a exposição da pes- quisa neste artigo, entretanto, op- tou-se por não fazer referência aos manuscritos ou ao aprendiz em primeira pessoa e escolheu-se, ain- da, referir-se à professora de shodô como "professora" ou "sensei", e não pelo seu nome (a não ser nos modelos de sua autoria). Ambas as escolhas visaram evitar uma apro- ximação com os objetos de estu- do, a qual, acredita-se, seria preju- dicial ao trabalho. 5 A Esperança Fujinkai (ou Associ- ação Beneficente Feminina Espe- rança) é uma associação de senho- ras que promove cursos e ativida- des artísticas e culturais diversas e localiza-se no prédio da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa (Bunkyo), na Liberdade, em São Paulo. Figura 3 – Exemplos de kanji (caligrafia do autor) R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p.11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 16 Para se definir o que seria visado no exame da produção artística, partiu-se do contraste entre aquilo que envolve metodologia do ensino de arte e os próprios manuscritos. Opôs-se, especificamente, o que havia nes- sa produção à idéia de que metodologia do ensino, no caso da arte, inclui escolhas do professor quanto aos tópicos em arte e refere-se às trajetórias pedagógicas dirigidas à elaboração, apreciação e análise de arte (Ferraz, Fusari, 1991) e estabeleceram-se, a partir daí, dois escopos para a investi- gação: conteúdo e seu desenvolvimento; aspectos observados na correção. "Conteúdo e seu desenvolvimento" diz respeito tanto aos caracteres e estilos desenvolvidos no decorrer das aulas de shodô quanto à maneira como esse conteúdo foi trabalhado. Procurou-se identificar quais das grafias utilizadas na língua japonesa foram praticadas no curso da Esperança Fujinkai, entre as seguintes, deta- lhadas por Suzuki (1985): Kanji: grafia ideográfica de origem chinesa, usada para grafar termos conceituais. Katakana: grafia silábica desenvolvida a partir de secção parcial do kanji, empregada contemporaneamente em nomes estrangeiros. Hiragana: grafia silábica originada a partir de uma escrita cursiva do kanji (sôshotai), utilizada essencialmente para os termos gramaticais da língua japonesa. Figura 4 – Os quarenta e oito caracteres do katakana e suas respectivas leituras, em papel quadriculado tradicional japonês (escrita do autor) R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 17 Figura 5 – Os quarenta e oito caracteres do hiragana e suas respectivas leituras, em papel quadriculado tradicional japonês (escrita do autor) Buscou-se verificar, também, quais estilos foram desenvolvidos nas aulas desse curso, entre os seguintes:6 Kaisho: estilo que consiste na escrita padrão ou de fôrma (Nakata, 1983) e que, baseado em poucos movimentos, é rígido e estável (Wakamatsu, 2004). Gyôsho: estilo semicursivo, que não preserva com rigor a forma de cada traço e em cuja prática é empregada uma técnica suave, arredon- dada (Nakata, 1983) – é um estilo intermediário entre o kaisho e o sôsho (Wakamatsu, 2004). Sôsho: estilo cursivo que possui flexibilidade em sua forma (Nakata, 1983) e que tem como ponto fundamental o ritmo na escrita (Wakamatsu, 2004). 6 Nakata (1983) apresenta ainda outros estilos (como o reisho e o tensho, por exemplo). Entretanto, como a produção analisada neste trabalho resulta dos estágios inici- ais de aprendizado do shodô, res- tringiu-se a exposição a esses três estilos principais. Figura 6 – Ideogramas sho (escrita) e dô (caminho), escritos, da esquerda para a direita, nos estilos kaisho, gyôsho e sôsho (caligrafia do autor) R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 18 Além disso, nesse primeiro escopo, foram observados aspectos relaci- onados com o desenvolvimento desse conteúdo, quais sejam: quantos caracteres foram feitos por manuscrito; em quais momentos houve maior ou menor variedade de caracteres; quando o aprendiz foi orientado a execu- tar novos caracteres; em que momento se deu início à prática de um novo tipo de grafia ou estilo; outros pontos que porventura se vinculassem à maneira pela qual o conteúdo foi trabalhado no decorrer das aulas. Já o segundo escopo da análise, "aspectos observados na correção", refere-se àquilo que a professora sinalizou nos manuscritos. Procurou-se verificar, nas correções e observações feitas pela sensei no trabalho do aprendiz, a que elementos da produção de alunos se atémo olhar de um professor de shodô, isto é, a quais características das linhas e do uso do espaço dirige-se sua atenção. À espessura dos traços? À curvatura das linhas?... Definido o escopo da pesquisa, delineou-se o meio pelo qual os aspec- tos visados seriam apreendidos, isto é, determinou-se o método de análise. Observou-se que o estudo de como se deu o trabalho com as grafias ao longo do tempo e de quais momentos foram feitas escolhas X ou Y para o exercício de um estilo, por exemplo, requer uma visão de conjunto, e não de um manuscrito isolado. Notou-se que são visados, em "conteúdo e seu desenvolvimento", padrões perceptíveis, principalmente em seqüências de manuscritos, e não por meio de uma análise isolada. Por outro lado, verificou-se que a apreensão de aspectos relacionados com a correção dos manuscritos exigiria uma investigação direcionada, sobretudo, ao particular. Cada manuscrito apresenta diferentes observa- ções e correções, e, então, há a necessidade de se examinar cada um deles isoladamente, a fim de se depreender o que foi observado pela professora, de uma forma geral. A partir dessas considerações, estabeleceu-se como procedimento de análise um percurso de três etapas: 1) análise conjunta de manuscritos; 2) análise isolada de um manuscrito; 3) análise conjunta de manuscritos. A primeira etapa volta-se ao escopo "conteúdo e seu desenvolvimento"; a segunda, a "aspectos observados na correção"; já a última etapa dirige-se a aspectos que dizem respeito tanto ao conteúdo quanto ao seu desenvolvi- mento e à correção dos manuscritos. Pretendeu-se, nessa última etapa, captar detalhes do todo que, acredita-se, só poderiam ser vistos após a análise do particular e, ainda, assimilar especificidades das partes que pode- riam ser notadas no conjunto de manuscritos, crê-se, apenas depois de uma análise isolada. Concluído o planejamento da investigação, levou-se a efeito sua execu- ção. Do acervo de manuscritos disponíveis, foram considerados válidos para esta pesquisa somente os produzidos entre fevereiro de 2004 e julho de 2005, com data, o que correspondeu a um total de 171 peças. Esses R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 19 manuscritos foram ordenados cronologicamente e, em seguida, analisados em grupos de 12 manuscritos. Procedeu-se, pois, da seguinte forma: analisou-se um conjunto de 12 manuscritos, a um só tempo; estudou-se o primeiro desse conjunto de 12 manuscritos, isoladamente; estudaram-se os demais manuscritos, um a um, isoladamente; realizou-se uma segunda análise conjunta dos 12 manuscritos; passou-se para o próximo grupo de 12 manuscritos, e assim se seguiu até que todos os 171 manuscritos fossem analisados. Os aspectos observados ao longo da análise foram anotados em folhas à parte, a fim de facilitar sua síntese ulterior. No decorrer da investigação, ainda, contrastaram-se os manuscritos com os modelos (tehon) fornecidos pela professora, com o objetivo de extrair, dessa comparação, outros as- pectos que pudessem ser relevantes ao foco de análise deste estudo. Resultados – conteúdo e seu desenvolvimento Entre fevereiro de 2004 e julho de 2005, a professora de shodô da Esperança Fujinkai trabalhou com o aprendiz os três tipos de grafia da lín- gua japonesa, isto é, kanji, katakana e hiragana, dois estilos de caligrafia, kaisho e gyôsho, além daquilo que se considerou uma aproximação do sôsho (o hiragana, da forma como foi praticado) e uma aproximação do kaisho (o katakana).7 Observou-se, ainda, que foi trabalhado um outro tipo de conteú- do, que não havia sido previsto na etapa de planejamento deste estudo: os traços básicos. 7 Detalhando-se: optou-se por considerar a prática do hiragana e do katakana não como o exercício de estilos, mas de "aproximações" de estilos (sôsho e kaisho, respec- tivamente), pois (1) seria inapropriado considerar o hiragana praticado pelo aprendiz, compos- to por caracteres padrão, kana, um outro estilo, uma vez que este exi- ge traços muito mais soltos e com- plexos do que os realizados e (2) o katakana não se configura nem como kaisho, nem como kana, con- tudo tem traços rígidos e, portan- to, não deixa de ser uma aproxi- mação do kaisho. Figura 7 – Exemplo de fragmento de manuscrito com traços básicos – linha de cima – (acervo do autor) R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 20 A caligrafia japonesa possui, de fato, sob uma perspectiva mais ampla, dois trajetos possíveis no que diz respeito à escolha do conteúdo: trabalha- se ou com caracteres inteiros, ou com elementos recorrentes nesses caracteres, os traços básicos. Nos manuscritos analisados, identificou-se a presença de alguns desses traços, cuja execução se deu juntamente com a de caracteres inteiros, em seqüências dos modelos de caligrafia. Cabe res- saltar, no entanto, que, embora nessa produção não tenha havido manus- critos exclusivamente com traços básicos, isso pode ser realizado. No que se segue, há uma amostra de como foram trabalhados com o aprendiz os traços básicos nas aulas da Esperança Fujinkai (Figura 7) e um exemplo de tehon feito para a prática exclusiva desses traços (Figura 8). Figura 8 – Exemplo de um modelo (tehon) voltado para a prática exclusiva de traços básicos, de Shoka Kodera (cortesia da professora) de shodô Já no que se refere à organização do conteúdo pela professora, obser- vou-se, nos manuscritos, que, no período em questão, foram constituídos dois estágios da prática do shodô: um introdutório, outro intermediário. No primeiro estágio, foram desenvolvidas grafias simples e básicas, isto é, o hiragana e o katakana (nessa ordem): simples, pois seus caracteres são compostos por poucos traços e partes, diferentemente do kanji; básicas, porque os traços que contêm essas grafias compõem ainda os ideogramas e, então, sua prática, além de um fim por si só, constitui também um meio para a assimilação da grafia ideográfica. Nesse estágio, além disso, foram desen- volvidos não estilos propriamente, mas o que se chamou de "aproximações" de estilos. Trata-se de formas das grafias silábicas, hiragana e katakana, que, R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 21 apesar de situadas próximas ao sôsho e ao kaisho, respectivamente, não se configuram estritamente como tal – sua prática parece ter sido, na realidade, uma preparação para o exercício desses estilos. No segundo estágio da prática do shodô, por sua vez, foi transmitida a grafia mais complexa, ou seja, a ideográfica, e isso foi feito a partir de dois estilos, o kaisho e o gyôsho, nessa ordem – tendo sido efetuada, portanto, uma condução do aprendiz do rígido ao (levemente) flexível. Verificou-se, nesse estágio intermediário, ainda, que a apresentação de novos caracteres (ideogramas) compôs um percurso que foi do simples ao complexo e do complexo ao simples, progressivamente. A seqüência apresentada na Figura 9 exemplifica isso. Figura 9 – Seqüência de manuscritos em gyôsho. Da esquerda para a direita, manuscritos produzidos em setembro de 2004, fevereiro de 2005, maio de 2005 e julho de 2005 (acervo do autor) No primeiro manuscrito, registro da introdução do aprendiz no gyôsho, são observados dois caracteres simples: ichi (número um, em japonês) e ni (número dois) – respectivamente, os quatro caracteres de cima e os quatro de baixo. Mais à frente, o aluno foi orientado a executar caracteres um pouco mais complexos, mas, ainda assim, simples, como ki (árvore) e hi (sol) – respectivamente, os ideogramas localizados nos cantos superiores esquerdo e direito. Adiante, a professora apresentou ao aluno outro tehon, no qual havia ideogramas constituídos já por duas partes, como jô (idéia de lugar) e okiru (acordar), com complexidade superior à dos anteriores – os dois ideogramas de cima e os dois de baixo, respectivamente. Por fim, voltou-se ao simples: no manuscrito seguinte,o aprendiz foi instruído à execução do caractere hana (flor), menos complexo do que os ideogramas precedentes. Note-se en- tretanto que, nesse último manuscrito, há tanto o gyôsho (à esquerda) quanto o kaisho (à direita); assim, nesse momento, a professora visou, possivelmente, a compreensão, pelo aluno, das diferenças entre os dois estilos, o que está um passo na frente da execução de ambos. Outro aspecto observado nos manuscritos e que se relaciona ao traba- lho com o conteúdo foi o ritmo do desenvolvimento de grafias, estilos e caracteres. Nos primeiros dois meses, manteve-se um ritmo moderado, sendo apresentados ao aluno apenas cerca de nove caracteres do hiragana (na R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 22 forma de uma aproximação do sôsho), por aula, até sua conclusão. Em se- guida, deu-se início ao desenvolvimento do katakana (como aproximação do kaisho). Dessa vez, entretanto, foram apresentados 27 caracteres ao aluno em uma única aula – tendo sido essa grafia e estilo (aproximação) finalizados em um mês somente. A princípio, pensou-se que pudesse haver um aumento contínuo na velocidade de transmissão do shodô. Contudo, o que se encon- trou aí foi uma exceção. A opção pela apresentação de um maior ou menor número de caracteres novos e pela inserção do aprendiz em outros estilos parece ter levado em consideração, sobretudo, a complexidade que têm esses caracteres e estilos e o repertório do aluno. Embora haja, entre o hiragana e o katakana praticados, uma diferença significativa na condução do traço (o pri- meiro exigiu flexibilidade; o segundo, rigidez), há entre eles também homogenia no que diz respeito à complexidade – caracteres de um e de outro são com- postos por poucos traços e partes. Acredita-se que justamente essa homogeneidade tenha sido responsável pelo trabalho rápido que se fez com o katakana. Nos manuscritos, verificou-se que, em geral, a inserção de novos elementos na prática do shodô foi compassada e, ainda, que a introdução do aluno em novos estilos se deu somente quando este apresentou um domínio razoável daquilo que vinha sendo praticado até então. Observou-se que o desenvolvimento do shodô não visou, pois, uma grande variedade de caracteres e um exercício rápido dos estilos; voltou-se, antes, a um número reduzido daqueles e a uma prática detida destes. Isso significa também que o trabalho com o conteúdo do shodô se deu, em grande parte, pela repetição de um mesmo conjunto de elementos. Entre- tanto, essa repetição não se limitou a um ato mecânico; teve por objetivo tanto o domínio da técnica quanto a impressão de vida (ou expressão indi- vidual do autor) aos caracteres. Nos manuscritos, pôde-se verificar, ainda, que a repetição dos elemen- tos, no período em questão, se deu em dois momentos: logo após sua apre- sentação pela professora e depois da análise da produção do aprendiz pela sensei. No último caso, não necessariamente foram reproduzidos todos os caracteres praticados; muitas vezes, foram feitos novamente somente aque- les nos quais foram detectadas dificuldades maiores. A seqüência constante da Figura 10 exemplifica isso. Figura 10 – Seqüência de manuscritos que retrata o exercício da repetição, na prática do shodô (acervo do autor) R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 23 Os caracteres a, i, u, e, o, ka, ki, ku e ke (de cima para baixo) foram reproduzidos no primeiro, segundo e terceiro manuscritos da seqüência. Já no quarto essa reprodução restringiu-se a u, e e ke. Aparentemente, as deficiências do aluno concentravam-se nesses caracteres e, então, no últi- mo manuscrito, a reprodução limitou-se a u, e e ke. Por último, observou-se, nos manuscritos, flexibilidade no que diz res- peito ao trabalho com o conteúdo, não rigidez. Detectou-se sua presença, especificamente, a partir da variação notada com relação ao número de caracteres executados por manuscrito e, conseqüentemente, no que se re- fere ao tamanho desses caracteres. A seqüência apresentada na Figura 11 mostra isso. Figura 11 – Manuscritos produzidos, da esquerda para a direita, em maio de 2004, em setembro de 2004, em setembro de 2004 e em fevereiro de 2005 No primeiro manuscrito, à esquerda, seguiu-se o padrão do curso de shodô da Esperança Fujinkai, isto é, foram produzidos nove caracteres por coluna e seis colunas por manuscrito. Já na peça seguinte o espaço branco foi ocupado por caracteres e traços tanto no formato anterior quanto em um for- mato maior: um terço do papel foi utilizado para a prática de traços e caracteres pequenos; dois terços, para traços e caracteres grandes. Logo adiante, nos dois outros manuscritos, observa-se que se manteve apenas a prática do formato maior de caracteres. Essa transição de formatos sinaliza a flexibilidade aponta- da, porque em vez de ser mantido, com rigor, o formato inicial, procedeu-se a adaptações, dirigidas, possivelmente, às particularidades do aluno. Resultados – aspectos observados na correção Observou-se, nos manuscritos, que o olhar da professora de shodô se ateve a aspectos de três níveis da produção do aprendiz: traço; caractere; caractere e sua relação com o conjunto. Primeiramente, no que diz respeito ao nível do traço, verificou-se que as correções e observações da sensei dirigiram-se à execução do início e término dos traços (respectivamente, hajime e owari), às trajetórias inter- mediárias dos traços e, ainda, às conexões entre as diferentes partes que podem compor um mesmo traço. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 24 Sobretudo quando se trata do kaisho, os traços compostos por uma única parte são realizados em três turnos: coloca-se o pincel em contato com o papel, preparando-se para a execução da trajetória intermediária do traço; executa-se a trajetória intermediária do traço; finaliza-se o traço, afastando-se o pincel da superfície do papel. O primeiro e terceiro turnos exigem do praticante conhecimento dos efeitos que dão as diferentes for- mas de se manipular os pêlos do pincel no espaço branco. Já a execução do trajeto intermediário do traço requer do aluno a percepção da direção, com- primento, curvatura, força e espessura de cada traço, além de um domínio suficiente do pincel para a composição de um percurso fiel a essa percep- ção. Na produção do aprendiz, a professora de shodô fez correções e ob- servações referentes a esses aspectos, como nos exemplos a seguir. Figuras 12, 13 e 14 – Exemplos de correções no nível do traço No primeiro exemplo, à esquerda, o traço vertical do ideograma tsuchi (terra) exige em seu início não a condução do pincel da esquerda para a direita, como realizado, mas a inclinação do pincel para a diagonal inferior direita, e isso foi observado pela professora. No exemplo seguinte, há o apontamento da direção correta do traço no kanji ko (criança): levemente descendente, e não ascendente, como executado. No último exemplo, o modo adequado de finalizar o quarto traço do ideograma ô (rei) foi enfatizada pela sensei. O pincel, aí, deve fazer um leve movimento retroativo, diferente da finalização feita, sem retroação. No caso de traços compostos por mais de uma parte, as correções feitas pela professora dirigiram-se aos mesmos aspectos citados acima. Somou-se a eles, entretanto, a ênfase dada à maneira pela qual as diferentes partes de um mesmo traço são conectadas. A seguir, há dois exemplos disso. No primeiro, chamou-se a atenção para a conexão das partes que constituem o segundo traço do ideograma naka (centro) – é necessário que haja reta e pontas bem definidas no canto desse ideograma. No segundo exemplo, as conexões entre a segunda e a terceira e a terceira e a quarta partes do caractere so (hiragana) foram alvo das correções. Após os traços de ida, é preciso voltar (modoru, em japonês, como está escrito em cinza) para darcontinuidade à composição desse caractere. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 25 No que se refere ao nível do caractere, as observações e correções da professora voltaram-se, inicialmente, à proporção das partes do caractere com relação ao seu todo e ao posicionamento de traços ou partes do caractere com relação ao seu conjunto. Abaixo, têm-se exemplos de correções volta- das a esses dois aspectos. Figuras 15 e 16 – Exemplos de correções dirigidas à conexão entre as diferentes partes de um mesmo traço Figuras 17 e 18 – Exemplos de correções feitas no nível do caractere No primeiro exemplo (à esquerda), o tamanho e o posicionamento da parte direita do ideograma foram remendados, a fim de que fosse constitu- ído, aí, de fato, um único kanji – da maneira como tinha sido feito, não havia uma relação bem estabelecida entre as partes, em decorrência da distância e da diferença de tamanho existente entre elas. No segundo exemplo, a parte superior direita do kanji situava-se distante das demais partes, e isso foi observado pela professora. Nesse ideograma, para que se componha um todo, não deve haver espaço entre as duas partes superiores do kanji. Além disso, no nível do caractere foram observadas ainda a ordem dos traços dos caracteres e a conexão existente entre as diferentes partes de um mesmo caractere, tratando-se do gyôsho (estilo no qual essa conexão é feita); os exemplos a seguir contêm correções e observações voltadas a esses aspectos. No primeiro, à esquerda, o resultado da execução do ideograma hito (sozinho) denunciou falhas na composição do kanji quanto à ordem dos traços. A professora, então, enumerou a ordem correta dos traços da parte esquerda do ideograma. No outro exemplo é sinalizada a conexão existente entre o terceiro e quarto traços do ideograma ki (árvore), R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 26 que não havia sido efetuada pelo praticante. No gyôsho, estilo flexível, esse tipo de conexão é comum e consiste em característica que o distingue do kaisho, rígido. Figuras 19 e 20 – Exemplos de correções dirigidas à ordem dos traços (esquerda) e à conexão entre os diferentes traços de um mesmo ideograma no estilo gyôsho (direita) Por último, quanto ao nível do caractere e sua relação com o conjunto, verificou-se que as observações e correções da professora dirigiram-se ao espaço que deve existir entre os caracteres realizados e ao espaço que deve haver entre os caracteres e as bordas do papel. Os exemplos abaixo são uma amostra disso. Figuras 21 e 22 – Exemplos de observações no nível do conjunto de caracteres À esquerda, em cinza, é sinalizado com pequenos círculos o espaço que deve existir entre os caracteres de uma mesma coluna. Essa observa- ção dirigiu-se, especificamente, à segunda coluna, na qual, entre o primeiro e segundo elementos do hiragana (su e so), houve uma aproximação exces- siva – apesar de minimamente excessiva. Já no outro exemplo trata-se de um ideograma realizado no canto inferior direito do papel, cuja execução R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 27 não respeitou o espaço que precisa existir entre os ideogramas e as bordas do washi. Apesar de, nos traços do shodô, linhas simétricas ou paralelas não serem, geralmente, visadas, quando se trata do conjunto de um manus- crito, um uso do espaço com iguais proporções na peça é valorizado. Discussão A partir da análise dos manuscritos, pôde-se apreender diferentes as- pectos relacionados com o ensino do shodô. Por meio do primeiro escopo, foi possível verificar qual conteúdo foi traba- lhado nos estágios introdutório e intermediário de um aluno dessa arte, tam- bém como foi organizado o desenvolvimento desse conteúdo, o ritmo em que se deu esse desenvolvimento e o formato estabelecido para o trabalho em ques- tão. Esses aspectos tocam, certamente, em grande parte do que se pode explo- rar, caso se tenha em foco o ensino, qualquer que seja a natureza da disciplina. Cabe assinalar, com relação ao conteúdo, entretanto, que, por ter sido examinada a produção de um aluno sem ascendência japonesa, o trabalho com o katakana foi identificado. A prática dessa grafia no shodô é, em geral, deixada de lado, e isso deve ser observado. Por se tratar de um aprendiz sem ascendência japonesa – e, portanto, sem nome japonês –, o katakana seria necessário, sobretudo, para assinar os seus trabalhos, e, por isso, foi desenvolvido. Entre os japoneses, porém, apesar de sua aplicação ter tam- bém fins práticos, ela é, como aponta Nakata (1983), limitada. Já a partir do segundo escopo, pôde-se identificar a quais aspectos da produção de um aprendiz se dirige a atenção de um professor de shodô. Por um lado, trata-se de pontos que, sob a perspectiva da educação, se situam próximos aos conceitos de avaliação e acompanhamento (contínuo, no caso) dos alunos. Por outro lado, consiste também em uma trajetória que pode ser empregada para a análise de qualquer trabalho de caligrafia japonesa (ou chinesa): parte-se do traço; segue-se para o nível do caractere; observa-se, ao final, a relação de cada um dos caracteres com o conjunto constituído. Deve-se apontar, contudo, ainda, a existência de um quarto nível na análise da produção, que, no exame dos manuscritos, não pôde ser obser- vado: o nível dos materiais. Existem diferentes tipos de papel, tinta e pincel, e isso é analisado também no trabalho dos alunos pelo professor – assim como a utilização dessas ferramentas. O papel é adequado aos caracteres e estilos praticados (caracteres maiores exigem papéis mais grossos; estilos suaves, muitas vezes, papéis finos, etc.)? A tinta está bem misturada? E a quantidade de água é suficiente? Nesse outro nível de análise, por fim, as- pectos como esses são visados. Considerações finais Cabem aqui, por último, breves considerações (ou questionamentos) sobre o ensino do shodô, sob uma perspectiva mais ampla. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos 28 No Brasil, talvez, a teoria mais difundida no ensino de arte seja a abor- dagem triangular. Sob sua perspectiva, esse ensino integra "o fazer artísti- co, a leitura desse fazer individual dos fazeres dos outros e sua contextualização no tempo" (Barbosa, 1990, p. 8). Neste trabalho investiga- ram-se, sobretudo, resultados do fazer artístico; "sobretudo", e não "exclu- sivamente", pois, como pode ser a leitura do ensino do shodô pela lente da abordagem triangular, se os caracteres e estilos praticados são os mesmos que aqueles de séculos ou milênios atrás e se a análise mistura-se, muitas vezes, com o fazer arte? Trata-se de uma questão interessante para o ensi- no do shodô e que, neste trabalho, deixar-se-á aberta. Por fim, outras indagações que surgiram ao longo deste trabalho e que, espera-se, sejam melhor compreendidas, ainda que minimamente, ao longo da pesquisa que este estudo integra, referem-se à existência de uma tradição na transmissão do shodô e à possível influência da compreensão (ou não-compreensão) do idioma japonês no aprendizado dessa arte. Por consistir a arte da caligrafia japonesa numa arte tradicional, a primeira questão tomou forma. E, por constituírem o conteúdo do shodô as escritas chinesa e japonesa, a segunda questão é relevante, sobretudo caso se pense na difusão dessa arte para brasileiros sem conhecimento do japonês, com ou sem ascendência japonesa. Referências bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. Introdução. In: BARBOSA, Ana Mae; SALES, Heloisa Margarido (Org.). Simpósio internacional sobre o ensino da arte e sua história. São Paulo: MAC/USP, 1990. p. 6-9. FERRAZ, Maria Heloísa Corrêa de Toledo; FUSARI, Maria Felisminda de Rezende. Metodologia do ensino de arte. São Paulo: Cortez, 1991. 135 p. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigmaindiciário. In: ______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e sua história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 143-179. MIKAMI, Takahiko; TANAHASHI, Kazuaki. You and Japanese brush- writing. Tokyo: Hozansha, Publishing Company, 1961. 109 p. NAKATA, Yujiro. The art of Japanese calligraphy (The Heibonsha Survey of Japanese Art – Volume 27). Tradução de Alan Woodhull e Armins Nikovskis. Tokyo: Heibonsha, 1983. 172 p. SAITO, Cecília Noriko Ito. O shodô, o corpo e os novos processos de significação. São Paulo: Annablume, 2004. 78 p. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Rodrigo Moura Lima de Aragão 29 Rodrigo Moura Lima de Aragão, bacharel em Propaganda pela Univer- sidade Presbiteriana Mackenzie, é especialista em Administração pela Fun- dação Getúlio Vargas (FGV), pesquisador do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo e bolsista do Programa de Iniciação Científica da província de Toyama (Japão). aragao_rodrigo@yahoo.com.br Recebido em 19 de outubro de 2006. Aprovado em 22 de novembro de 2006. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 11-29, jan./abr. 2007. Um estudo sobre o ensino do shodô a partir de manuscritos SATO, Christine Flint. Japanese calligraphy: the art of line and space. Osaka: Mitsuru Sakui, 1999. p. 103. SUZUKI, Tae. A escrita japonesa. Estudos Japoneses, São Paulo, v. 5, p. 53-61, 1985. WAKAMATSU, Joku. Shodo: caligrafia. In: OTA, J. et al. Dô – A essência da cultura japonesa. São Paulo: Chado Urasenke do Brasil, 2004. p. 68-83. 30 Resumo Analisa as proposições de Piaget para se pensar a epistemologia da Biologia e as diferenças epistemológicas dessa ciência em relação à Mate- mática e à Física. Retomando o debate de Piaget acerca das epistemologias das ciências, a autora apresenta aspectos da psicogênese e sociogênese da Biologia realçando as diferenças epistemológicas que devem ser conside- radas para a iniciação ao ensino dessa ciência. Palavras-chave: epistemologia da biologia; epistemologia genética; ensino de ciências e biologia. Marta Bellini Epistemologia da Biologia: para se pensar a iniciação ao ensino das Ciências Biológicas ESTUDOS RBEPRBEPRBEPRBEPRBEP Abstract Epistemology of Biology: thinking on the Biological Sciences teaching The paper analyzes the proposals of Piaget concerning the epistemology of Biology and the epistemological differences of this science in relation to Mathematics and Physics. Resuming the debate of Piaget about the epistemologies of sciences, the author presents aspects of psychogenesis and psychogenesis of Biology enhancing the epistemological differences that must be considered for the teaching of this science. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. 31 Introdução Este texto apresenta o pensamento de Piaget quanto à constituição da Biologia como ciência, faz relações desta com a Física e a Matemática e expõe algumas reflexões sobre a iniciação às ciências biológicas na situação de ensino. Há um consenso metodológico entre vários pesquisadores para que, no ensino de ciências, os professores aliem as exposições de temas cientí- ficos às aulas práticas com experimentações e/ou outros recursos didáticos que aproximem os alunos aos objetos das ciências em debate (Delizoicov, Angotti, Pernambuco, 2002; Carvalho, Gil-Perez, 2003). Todavia, a escola opta por um ensino apenas verbal; professores em sala de aula, impulsiona- dos pela prática dos livros didáticos, recorrem a estes textos como recursos apenas expositivos das lições de ciências, deixando, em segundo plano, metas de observação e experimentação, que também são fundamentais para a aprendizagem em ciências. É importante dizer que, na escola, não reproduzimos as condições ex- perimentais nem os métodos, os critérios ou as hierarquias das ciências em sala de aula. Os conhecimentos escolares não são sinônimos de conheci- mentos científicos; "a lógica científica no contexto escolar é sempre uma lógica recontextualizada, engendrada por interesses sociais mais amplos" (Lopes, 2000, p. 155). Mas, embora os contextos dos cientistas e o da escola sejam diferentes, podemos aproximar as bases epistemológicas da Biologia às do ensino desta ciência na escola. Por biologia entendemos, neste texto, os conhecimentos fundamentais da área, como a classificação e a anatomia comparada, campos cujos marcos foram importantes para o nascimento das ciências biológicas. As pesquisas sobre aprendizagem em Física mostram um percurso de ensino diferente do usualmente praticado nas escolas brasileiras, isto é, a repetição dos temas e lições do velho recurso pedagógico, os livros didáti- cos. Carvalho e Gil-Perez (2003), Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002) enfatizam os processos de experimentação em sala de aula e observação de fenômenos para compor aulas não somente com mais recursos didáticos, mas aulas com enfoque no processo de descoberta e exploração dos mode- los conceituais em Física. Esta compreensão de ensino vem do entendimen- to de que aprender significa também recorrer à ação dos alunos sobre seus objetos escolares de conhecimento – em outras palavras, levar aos alunos métodos de observação e experimentação. Na Matemática, as pesquisas sobre ensino também apontam um cami- nho diferente ao do hegemonicamente realizado pelas escolas. Os estudos sobre aprendizagem em Matemática convergem à idéia de que ensinar ma- temática significa entender que os processos de aprendizagem das crianças R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. Epistemologia da Biologia: para se pensar a iniciação ao ensino das Ciências Biológicas Keywords: epistemology of biology; genetic epistemology; teaching of sciences and biology. 32 e jovens estão ligados à clareza dos enunciados, às relações de relações seja dos números, espaço ou outro tema da Matemática (Ruiz, Bellini, 2001; Nogueira, 2002; Lerner, 1995). Essas diferenças de ensino nas duas áreas não surgiram apenas de debates sobre metodologias de ensino, mas provêm de estudos sobre as epistemologias da Matemática e da Física. Ou seja, advêm da compreensão de que, na ciência Física, os cientistas recorrem às duas atividades operató- rias – a experimental e a matemática – e na Matemática, os matemáticos recorrem, sobretudo, às atividades dedutivas – não precisam da experi- mentação e ou observação, como na Física e na Biologia. Essas diferenças epistemológicas foram estudadas por Piaget nas déca- das de 60 e 70 do século 20. As reflexões sobre a epistemologia da Matemá- tica datam de 1961; as da Física e da Biologia, de 1967 a 1974 (Montangero, Maurice-Naville, 1998). Estas obras constituem o marco para se estabelecer a sociogênese e a psicogênese destes três grandes campos da ciência. Em relação às diferenças epistemológicas, Piaget disse que o pensa- mento biológico é tratado com menor atenção que o físico e, sobretudo, que o matemático. Atribuiu esse fato a que o pensamento biológico é, antes de tudo, realista, ou seja, não pode prescindir dos seres naturais – homens, animais, plantas. Por isso, baseia-se fundamentalmente na experiência físi- ca e recorre pouco à atividade mental do sujeito, isto é, à criação teórica ou à dedução. O sujeito biólogo não pode prescindir dos objetos da natureza ao elaborar suas teorias; ele não pode, como o matemático, alçar vôos dedutivos, pois faria uma "metabiologia", uma ciência sem relação com a realidade dos animais e plantas. A Biologia nasceu como ciência classificando plantas e animais; são seus "objetos" de conhecimento. Elucida as relações desses "objetos" ex- plicando de modo causal as classificações, para estabelecer as leis entre estes objetos. Este modo de compor a área, ou seja, enfatizando a estru- tura de classes, leis e explicações, não alcançou em todas as áreas da ciência Biologia um nível matemático. Na classificação e comparação de formas de seus objetos, conservou o caráter qualitativo ou lógico, sem uma dedução propriamente dita, como ocorreu na Matemáticae na Física. Caráter qualitativo ou lógico para Piaget significa um patamar básico da Matemática, como as medições, as comparações, sem recorrer ao nível mais complexo da Matemática, às relações que nos levam às estruturas algébricas, estruturas de ordem e de rede ou topológicas, que são as três estruturas fundamentais sobre as quais repousa o edifício da Matemática, como diz Piaget (Nogueira, 2002). As características do conhecimento biológico fizeram-no muito dife- rente do físico e do matemático; as ciências biológicas não podem constituir seu campo de conhecimento sem a primazia de seus objetos. Já para a elaboração dos conhecimentos matemáticos, podemos dizer que a primazia é do sujeito. Na Física, sujeito e objeto equivalem-se. Por isso, a compara- ção da atividade mental do sujeito cognoscente, sob seus diversos aspec- tos, diante desses conhecimentos, é uma questão relevante para a reflexão epistemológica tanto no âmbito científico como no escolar. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. Marta Bellini 33 A Biologia no círculo das ciências Sujeito e objeto de conhecimento são, para Piaget, indissociavelmente de- pendentes em todas as formas de conhecimento, seja o matemático, o biológi- co, o físico ou o social, entre outros. Porém, os modos desta dependência variam segundo as disciplinas em jogo. Quanto aos conhecimentos científicos, podemos afirmar que a epistemologia de uma ciência difere da epistemologia de outra; não é possível reduzir o conhecimento científico a um esquema epistemológico único. Em termos de ensino, este é um importante marco para se pensar a aprendizagem. Não é possível também ensinar todas as disciplinas científicas em um mesmo padrão metodológico. Ensinar Ciências para crianças e jovens requer pensar também um caminho de observação e experimentação, enquanto na Matemática isso não é necessário. Ao apresentar o lugar epistêmico da Biologia em relação às outras ciências – ou, como denominou, no círculo das ciências –, Piaget comparou a natureza da relação sujeito/objeto na Biologia com as relações presentes na Física e na Matemática, estabelecendo que: – na matemática, a atividade operatória do sujeito parece ser a única em jogo, independentemente de todo elemento experimental tomado do objeto. Isso se deve a que o espaço, o número, a lógica das classes ou de relações, o sujeito recorre somente à coordenação das ações ou opera- ções efetuadas sobre objetos, isto é, aos aspectos mais gerais da ação. Os conhecimentos matemáticos não se originam de uma abstração a partir dos objetos, mas de uma abstração a partir da coordenação das ações. O sujeito elabora o seu pensamento (isto implica dizer coordenação de suas ações) por meio da formulação das leis mais gerais do universo, graças à aplicação de suas operações aos objetos. Desse modo, a matemática é produto da atividade do sujeito. O matemático não recorre à experiência como critério de verdade: uma proposição matemática é verdadeira quan- do pode ser demonstrada racionalmente, independentemente de sua concordância atual com a realidade externa (Piaget, 1979a). – o conhecimento físico marca a interdependência entre o sujeito e o objeto. A construção dos conhecimentos físicos estabelece a existência de dados exteriores que o sujeito só descobre mediante a experiência em laboratório ou similar. Quando esses conhecimentos alcançam certo grau de generalidade, a experiência e a atividade operatória do sujeito físico se confundem com os esquemas matemáticos necessários para sua formalização. Assim, mesmo sendo mais realista que a matemática, a física alcança, em graus diversos, uma assimilação da realidade experi- mental aos esquemas lógico-matemáticos construídos através da ativi- dade do sujeito (Piaget, 1979b). – o conhecimento biológico é mais realista que a própria física, ou seja, trabalhamos com "objetos" plantas, animais, e outros seres todos mais próximos a nós, em escala de tempo e espaço, e destes objetos não podemos fugir. Não podemos descrever uma planta sem a presença da planta. Dela extraímos os dados. Nesse sentido, a dedução desempenha em biologia um papel muito menor que na física. Os dados "exteriores" são mais independentes do sujeito que no campo elaborado pelo mate- mático. Temos que nos prender aos objetos para pensá-los. Por ser uma forma de conhecimento que abarca a história de desenvolvimentos, a dedução sofre severas limitações para o desenvolvimento da biologia (Piaget, 1979c). R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. Epistemologia da Biologia: para se pensar a iniciação ao ensino das Ciências Biológicas 34 Nesse sentido, Piaget afirma que a forma de abstração do conhecimen- to matemático, a abstração reflexionante, é elaborada pelas ações que se pode exercer sobre os objetos e, essencialmente, das coordenações mais gerais das ações: disso decorre a generalidade e a fecundidade de suas aplicações. Isto significa que, para a Matemática, a atividade operatória (de pensamento) do sujeito é imprescindível à formulação do campo teórico. O matemático não precisa recorrer a outro critério de verdade, como a expe- rimentação em laboratório ou a observação, senão às relações lógico-mate- máticas que estabelece por seu próprio pensamento. No ensino de Matemática isto deve ser um dos critérios para se estabe- lecer o trabalho pedagógico. Ao ensino do número, da geometria e de ou- tros conhecimentos matemáticos, o professor precisa realizar atividades heurísticas, ou seja, de descobertas dos enunciados, atividades hermenêuticas, isto é, interpretar textos aliado às atividades pedagógicas que dizem respeito à arte de o professor compor e encadear uma coerência e cuidado no estilo de argumentação (Reboul, 2004). O conhecimento físico, por outro lado, marca uma interdependência entre o sujeito e o objeto, que consiste na acomodação das ações do sujeito aos dados da experiência e na assimilação do objeto aos esquemas lógico- matemáticos do sujeito. Tomemos como exemplo o relato de Inhelder e Piaget (1972), no livro De la lógica del niño a la lógica del adolescente, acerca de soluções que crianças e adolescentes apresentam para o proble- ma da queda de corpos no plano inclinado. O dispositivo elaborado por Inhelder e Piaget, como prova cognitiva, consiste em um plano regulável, com diversas inclinações. Sobre ele roda uma bola que, na parte inferior do plano, salta de um trampolim. O problema proposto é encontrar a corres- pondência entre as alturas da queda e do salto. A criança, ao tentar solucionar este problema, mesmo sem calcular a forma parabólica da curva descrita no salto, poderá descobrir que o salto só depende da altura da queda, excluindo os fatores massa, inclinação e dis- tância. Essa situação vai exigir do sujeito a construção de um quadro de referência que explore, de forma exaustiva, todas as combinações que alte- ram uma das variáveis e conservam as demais. Desse modo, o sujeito muda seu pensamento, isto é, assimila o objeto (Inhelder, Piaget, 1972). Piaget observou que a abstração, neste caso, procede do objeto, porém a partir de ações especializadas do sujeito, e assume uma forma lógico-matemática. Assim, a causalidade física é uma coordenação operatória, da mesma natu- reza da que o sujeito utiliza para agrupar as próprias operações, porém atribuída ao objeto por assimilação das transformações do objeto às trans- formações operatórias. Por isso, disse Piaget que a objetividade "extrínseca" do conhecimento físico corresponde, de forma muito próxima, à "objetivi- dade intrínseca" da Matemática. No ensino de Física, o professor deve aliar a arte de interpretar textos e de descoberta dos enunciados à observação e experimentação. Ele estará, dessa maneira, mantendo uma atividade básica para a construção de conhe- cimentos da ciência física: a experimentação e observação. Enquanto temos essas formas de conhecimento do sujeito nas situações da Matemática e da Física, a Biologia formula muitas de suas explicaçõespor R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. Marta Bellini 35 meio da observação dos seres vivos. Assim, as descobertas nessa área ocor- rem a partir de seus objetos, dos seres vivos e suas relações. Piaget alerta que, quando uma propriedade é extraída a partir dos próprios objetos, ela esclarece tão-somente acerca deles: uma propriedade dessa natureza, caso seja muito geral, arrisca-se a ser pobre e pouco utilizável, pois se aplica a tudo. O conhecimento biológico comporta, assim, um terceiro tipo de rela- ção entre a atividade do sujeito e o objeto. A atividade de pensamento do sujeito se reduz a um mínimo. O biólogo não pode prescindir dos objetos e dos "dados" fornecidos pela natureza. Quando surgiu a classificação siste- mática das espécies, a forma mais elementar de conhecimento biológico, esta consistiu em agrupamentos aditivos de classes ou de relações, ou ativi- dade operatória que chamamos de lógica de encaixes. Se analisarmos a anatomia comparada, vemos também sua constitui- ção em agrupamentos multiplicativos de caráter qualitativo ou lógico. O mesmo sucede no caso das teorias da evolução e da herança, que comple- tam sua estruturação lógica mediante uma combinatória probabilística rela- cionada com as variações e as transmissões. Na história da Biologia, as atividades dedutivas iniciam-se quando esta ciência teve de recorrer ao co- nhecimento da química da vida e das relações físico-químicas para explicar os fenômenos fisiológicos. Apenas a observação dos seus objetos não era mais suficiente. Tratava-se de pensar, agora, as funções de partículas orgâ- nicas. Tornou-se, então, indispensável o uso da dedução, ou seja, a assimi- lação matemática dos dados. Essa forma de ser do conhecimento biológico é radicalmente oposta ao do conhecimento matemático. Piaget aponta uma inversão total das posi- ções: o matemático intervém como construtor dos conceitos de sua ciência e, no outro pólo, o biólogo aparece como o próprio objeto de sua ciência (Piaget, 1979c). Quando nossas atenções se voltam para a comparação entre o conhe- cimento físico e o biológico, uma diferença importante a ser notada é que o físico estuda "funcionamentos" sincrônicos e atuais, enquanto os "funciona- mentos" estudados pelo biólogo são predominantemente de natureza diacrônica, ou seja, estuda-se evolução de uma planta, um animal, paleontologia em comparação com as formas atuais. Em decorrência disso, os fenômenos físicos são sempre suscetíveis à matematização, enquanto os biológicos são muito resistentes a ela. Outra diferença importante que existe na relação sujeito/objeto, perce- bida quando procuramos comparar o pensamento físico com o biológico, refere-se à "autonomia" do sujeito diante dos sistemas estudados. O físico trabalha com sistemas relativamente fechados, enquanto o biólogo defron- ta-se com sistemas abertos – no sentido de trocas com o meio. O pensamento biológico e seu instrumental lógico-matemático A expressão "a biologia é uma ciência realista" que encontramos em Piaget significa que aquilo que constatamos por meio de observações – por R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. Epistemologia da Biologia: para se pensar a iniciação ao ensino das Ciências Biológicas 36 exemplo, acerca das características diferenciais de duas espécies animais –, permite tão-somente generalizações de caráter indutivo; não significa, de maneira alguma, acomodação passiva do sujeito à realidade. Nesse terreno, mesmo que marcado por uma sensível submissão da mente à realidade, há implicações entre ações e significados, isto é, há um proces- so ativo de assimilação. Por isso, pensar a epistemologia da Biologia a partir dos estudos de Jean Piaget requer de nós a tomada de consciência do papel do pensamento matemático em nossa ação de conhecer o mundo biológico. Piaget conce- beu as estruturas lógico-matemáticas desempenhando o papel de interface entre o sujeito e o mundo a ser conhecido. E, para ele, o edifício teórico construído pelos matemáticos é algo que se situa em continuidade às estru- turas lógico-matemáticas espontâneas da criança. Nesse sentido, o pensa- mento matemático desempenha, em todos os níveis de desenvolvimento, um papel fundamental nos intercâmbios entre o espírito humano e o univer- so a ser conhecido. Ao falar dos marcos lógico-matemáticos, de natureza operatória, que permitem o ato de conhecer nos intercâmbios sujeito/universo, Piaget iden- tificou estruturas operatórias de duas naturezas distintas: os "agrupamen- tos" e os grupos matemáticos. Os "agrupamentos" constituem o referencial característico da fase ini- cial do pensamento operatório. Esse marco permite ao sujeito a construção de classes ou de relações simétricas e a elaboração de relações assimétricas em termos de mais ou menos, sem unidades e sem estabelecer relações entre as partes: sempre na presença de uma qualidade. Tratando-se de semelhanças ou de diferenças, estabelece distinções dicotômicas, que ex- pressam simples comparações quantitativas de parte a todo e não de parte a parte (Piaget, 1979c). As reuniões, de classes ou de relações, efetuam-se de maneira pro- gressiva ou em forma contígua: cada classe ou cada relação se constitui seguindo uma determinada seqüência de encaixes. Essas composições ope- ratórias são dicotômicas, quer dizer, se todos os A são B sem que seja verdadeira a recíproca, então os B são A ou não A (A'). Os encaixes de classes A + A' = B, B + B' = ... procedem de uma sucessão de distinções; esse é o referencial usado, por exemplo, na construção de um quadro sinóptico para se determinar o lugar de uma planta em uma classificação botânica (Piaget, 1979c). O "agrupamento" constitui o conjunto de relações "intensivas" de parte a todo, e os encaixes de parte a todo formam as composições do sistema das complementaridades progressivas. As limitações próprias da dicotomia e da contigüidade asseguram ao agrupamento uma total reversibilidade, que traduz as operações lógicas fundamentais: A + A' = B e B - A' = A (ou p v p' = q e q.p' = p) (Piaget, 1979c). Os grupos, por outro lado, constituem o referencial característico de um pensamento operacional mais elaborado. Um grupo é um conjunto de elementos (por exemplo, os números inteiros) reunidos por uma operação de composição em que existem as possibilidades de: combinar duas ações R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 88, n. 218, p. 30-47, jan./abr. 2007. Marta Bellini 37 ou dois movimentos em um só; poder regressar ao ponto de partida (retor- no); não atuar, o que equivale a um deslocamento com sua inversa; poder escolher entre vários itinerários sem que o ponto de chegada seja modifica- do; distinguir ações com efeito cumulativo daquelas em que a repetição não modifica em nada a ação inicial. Assim, a estrutura de grupo constitui um instrumento intelectual de coerência, que comporta a própria lógica e que é auto-regulada, sendo um instrumento de transformações racionais (Piaget, 1979c). Nessa discussão, Piaget apresenta como questão epistemológica rele- vante o fato de a classificação sistemática em Biologia, como se apresenta em botânica e em zoologia ter se conservado como uma lógica de encaixes (ou qualitativa) até pelo menos a década de 90 do século 20. Na leitura piagetiana, o primordial do conhecimento científico, no campo das classifi- cações construídas até a década em que ele formulou seus estudos na área, a de 70, é o caráter essencialmente lógico, ou seja, a utilização exclusiva dos "agrupamentos" de operações qualitativas, em oposição às operações ex- tensivas e métricas. Em outras palavras, é o pensamento de encaixes, em oposição ao que estabelece outras relações matemáticas para além das rela- ções de semelhança e de diferença que expressem, por exemplo, para os parentescos e filiações reais que identifiquem semelhanças por proposições numéricas ou quantitativas (Piaget, 1979c). Recorda Piaget o fato histórico, muito significativo, representado pelo nascimento simultâneo
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