Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ANÁLISE DO DISCURSO Fedra Osmara Rodrigues Hinojosa E d u ca çã o A N Á L IS E D O D IS C U R S O Fe d ra O sm ar a R od rig ue s H in oj os a Curitiba 2017 Análise do Discurso Fedra Osmara Rodrigues Hinojosa Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária – Cassiana Souza CRB9/1501 H663a Hinojosa, Fedra Osmara Rodrigues Análise do discurso / Fedra Osmara Rodrigues Hinojosa. – Curitiba: Fael, 2017. 288 p.: il. ISBN 978-85-60531-73-8 1. Língua e linguagem 2. Discurso I. Título CDD 401.41 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/dizain/MSSA Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Introdução à Análise do Discurso | 7 2. O Discurso | 29 3. Interdiscurso e Intradiscurso | 57 4. Paráfrase e Polissemia | 83 5. Relações de força e sentido | 107 6. Metáforas e Efeitos de Sentido | 131 7. Ideologia, Sujeito e Linguagem | 157 8. O Dito e o Não Dito | 183 9. Enunciação, Argumentação, Pragmática e Discurso | 207 10. Dispositivos de análise e práticas em AD | 233 Conclusão | 257 Gabarito | 259 Referências | 275 Prezado(a) aluno(a), Cada página deste livro foi pensada e elaborada para que você possa descobrir e começar a trabalhar com alguns conceitos básicos de um campo de conhecimentos que recebeu influência de várias áreas das Ciências Humanas e Sociais, como a Linguística, a Psicanálise e a Sociologia, mas que tomou seu próprio caminho e reformulou teorias para cheguemos à compreensão sobre o modo como cada coisa que lemos, dizemos, ouvimos ou escrevemos traz na bagagem as marcas do passado e de ideias consolidadas ao longo do tempo e que estas ecoam no agora e até no futuro. Esse campo do saber chamado Análise do Discurso propõe que reconsideremos a proposta a ver a língua e a linguagem como sistemas simples que desempenham o papel de via de comunicação entre interlocutores, e que passemos a ver a troca realizada entre estes atores como uma reprodução de ideias e princípios que foge ao controle sem que se possa perceber. Carta ao Aluno – 6 – Análise do Discurso Contudo, o profissional de AD não é um mero curioso dos dizeres, que passa horas debruçado procurando os mínimos detalhes que o levem a iden- tificar se este ou aquele discurso desconstrói ou fomenta valores vigentes, ou ainda mais longe, que o leve a bater o martelo e a afirmar categoricamente “este discurso prega tal ideologia”. O analista tem uma tarefa delicada e que exige atenção, sem dúvida, mas ele não precisa ir às profundezas das especula- ções e das suposições. Necessita, apenas, deixar que o discurso que se propõe a analisar indique por si mesmo os vestígios históricos, sociais, políticos e ideológicos que arrasta consigo. Mas por que desenvolver um trabalho dessa natureza? Bem, o propósito de um estudo no campo da AD não é realizar e concluir definitivamente um exame dos dizeres. Sua meta é estender sua análise e reverberar para que a sociedade possa compreender e questionar os jogos de poder e as diferenças hierárquicas, bem como permitir que através dessa ponderação construções injustas e iniquidades, legitimadas em textos escritos e falas, sejam suprimidas. Mais ainda, os esforços do especialista em AD se dirigem para que esvaziemos nossas pretensões de que a linguagem é transparente, que somos capazes de mantê-la sob nosso domínio e que, portanto, o que é dito não tem qualquer marca senão a da nossa vontade. A AD quer que percebamos que através do que se escreve ou diz podemos transmitir muito mais que uma mensagem. Exatamente por isso que essa disciplina é tão importante para a for- mação do profissional de Letras, que deve manter sempre um olhar atento, acurado, em relação às diferentes formas de discurso com a qual se depara ao longo carreira. Igualmente, deve passar a seus alunos, se exercer a docência, a percepção do que existe além de uma troca de palavras. Além disso, deve saber e propagar que esse estudo do discurso não se limita ao campo das Letras, mas atinge todas as áreas profissionais e até mesmo os atos mais simples do nosso cotidiano, como ler um panfleto ou ouvir uma música. É com essa proposta que convido vocês a desvendar uma outra face dos Estudos da Linguagem, que vai além das palavras e reflete a história, a socie- dade, e principalmente nós mesmos. A autora. 1 Introdução à Análise do Discurso “Minha opinião é que não há uma relação exterior entre lin- guagem e sociedade, mas uma relação interna e dialética.” Norman Fairclough Ao longo deste curso serão apresentadas as bases do campo de conhecimentos Análise do Discurso, sua relação com a Linguís- tica, a Psicanálise e a Sociologia, além de sua importância para os profissionais de Letras e também de outras áreas. Para chegarmos à compreensão de todos esses aspectos, tomaremos como ponto de partida o processo de formação enquanto ciência voltada para um objeto em particular: o discurso. No entanto, esse alvo de inte- resse não se restringe ao mero ato comunicativo de emitir uma mensagem, mas abrange em seu interior uma série de fenômenos sociais, políticos, históricos e ideológicos que frequentemente pas- sam despercebidos, salvo para aqueles que estão aptos a identificar e ponderar essas marcas. No conjunto inacabado de ensaios agrupados sob o título de A Prosa do Mundo (1964), Maurice Merleau-Ponty nos recorda que no mundo já se fala há muito tempo, e que grande parte do que se diz passa despercebido. Assim, ao sair pela manhã cedo, por exem- plo, encontramos algum conhecido e um “bom dia” é imediatamente Análise do Discurso – 8 – proferido por ambos, num mero ato de expressão corriqueira. Não diferente- mente, quando escrevemos uma mensagem ou damos uma palestra, temos a impressão de que estamos simplesmente substituindo um pensamento, con- ceito ou opinião por meio de um conjunto de signos convencionados e com- preensíveis para o interlocutor. Mais ainda, acreditamos que essa substituição se dá por um processo formado por emissor, receptor, mensagem e código comum compartilhado entre os dois atores centrais do fenômeno em questão. De fato, essa é a noção central de comunicação. No entanto, o que aqui devemos questionar e debater é a suposta linearidade desse processo, isto é, a ideia que temos de que alguém produz uma fala ou escreve um texto e outro imediatamente recebe, ignorando as intersecções e interferências, sejam cul- turais, sociais ou de outras naturezas, a simultaneidade de ações e reações, a sobreposição de atos e papéis realizados pelos envolvidos. Figura 1.1 − A comunicação não-linear Fonte: Shutterstock.com/Ellagrin. Durante muito tempo os estudos da Linguagem estiveram presos às ideias formuladas por Saussure em seu Curso de Linguística Geral (1916) e, consequentemente, a esse princípio de linearidade que mencionamos há pouco. Para ele (2006, p. 92), “a língua é para nós a linguagem menos a fala. É o conjunto dos hábitos linguísticos que permitem a uma pessoa compre- ender e fazer-se compreender”. Essa asseveração revela a noção saussureana de língua, a qual dirige sua atenção somente para a comunicação em que os interlocutores conseguem se entender mutuamente, desconsiderando contex- tos, experiências e demais influências externas. – 9 – Introdução à Análise do Discurso Mais ainda, para Saussure (2006, p. 80), a língua está composta de sig- nos linguísticos que unem “não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”. Seguindo essa ideia, o signo representaria uma enti- dade formada por duas faces: o conceito e a imagem acústica. A primeira refere-se à imagem mental, ao referente que temos para designar o signo, e a segundarefere-se à sequência fônica que utilizamos para designar o signo. O conceito e a imagem acústica são também chamados de significado e signifi- cante, respectivamente. Figura 1.2 − O conceito saussureano de signo, composto por significado e significante SIGNIFICADO SIGNIFICANTE C-A-S-A Fonte: Shutterstock.com/alexmillos/Design Seed Assim, segundo Saussure, a linearidade faz com que os signos produzi- dos venham dispostos em sequência, um após o outro, de acordo com uma sucessão espaço-temporal, de maneira que seria inviável dois elementos lin- guísticos serem produzidos simultaneamente. Figura 1.3 − Circuito da fala para Saussure Fonte: SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1916. Análise do Discurso – 10 – Se as contribuições dessas noções saussureanas para a Linguística são indiscutíveis, por outro lado, essas ideias acabaram sendo questionadas e des- construídas em estudos posteriores. A linearidade proposta e defendida por Saussure como elemento formador da cadeia de significantes pode ser neces- sária, mas não é suficiente. Para o pensamento saussureano, essa linearidade representa uma exten- são mensurável numa só dimensão e direção, uma linha reta, de maneira que significantes teriam uma duração e, por conseguinte, seriam delimitados por um princípio e um fim. Nesse sentido, o discurso também estaria demarcado pelo tempo e espaço, de modo que não nos restaria outra opção senão apa- gar as outras variáveis que interfeririam em sua constituição e desconsiderar fatores externos que provocariam a quebra dessa linha reta, demonstrando que não há muito além de um encadeamento serial de significantes na base de um discurso. É exatamente nesse cenário de interpelações e de mudança de olhar em direção à língua, linguagem e exterioridade que a Análise do Discurso (dora- vante AD) se consolida. Esse campo de conhecimentos que dialoga com a Linguística – mas também a questiona – parte do interesse de relacionar a língua com o sujeito e o mundo exterior, deixando de lado a ideia da “língua fechada em si mesma” e abstrata, e observando o modo como essas relações influenciam e participam da produção da linguagem. De acordo com Orlandi (2009, p. 28), o analista do discurso segue as pistas das conexões que unem a linguagem à sua exterioridade. Seguindo esse raciocínio, fica claro que a AD não apenas estabeleceria contato com a Linguística para interrogá-la e para incentivar a reavaliação dos princípios lançados por esta, mas também o faria com outras áreas de estudo, incluindo a Psicanálise e as Ciências Sociais. Por que estudar Análise do Discurso? A Análise do Discurso constitui-se em disciplina teórica e metodológica que busca, relacionando-se com outros campos das Ciências Humanas e Sociais – Sociologia, Psicologia, Ciências Políticas, História, Linguística e Filosofia, entre – 11 – Introdução à Análise do Discurso outros – esmiuçar e debater as particularidades linguísticas do discurso e a influência que este recebe do contexto histó- rico, político e social em que se insere. A AD torna possível desenvolver um olhar agudo sobre os eventos do cotidiano e sua representação na linguagem, para assim descobrirmos os significados implícitos e explícitos de cada um desses eventos, percebendo que há muito mais além das palavras. Para entendermos um pouco melhor a formação dessa disciplina e sua importância não apenas para o estudante de Letras, mas também para os pro- fissionais das mais variadas áreas, apresentaremos rapidamente a seguir um histórico e buscaremos definir, em meio a esse traçado, seu principal objeto de estudo: o discurso. 1.1 A AD como campo de saber: um breve histórico Considera-se a década de 1960 como o momento em que a AD surge como campo do saber. Entretanto, Orlandi (2009) afirma que os estudos voltados para a avaliação de unidades além da frase, isto é, o texto, não são uma novidade do século XX, mas já haviam sido levados a cabo em épocas anteriores. Como destacam Nerlich e Clarke (1996, p. 98), Edmund Burke, em Uma investigação filosófica acerca da origem das nossas ideias do Sublime e do Belo, em 1757, já afirmava que “certas palavras são sons que adquirem seu significado não porque representam algo, mas porque são habitualmente utilizadas em cer- tos contextos e absorvem seus significados a partir do contexto em que são usa- das” (NERLICH; CLARKE, 1996, p. 98). Ecos dessa concepção de Burke se fariam presentes nas noções publicadas por Michel Bréal em sua obra Ensaios de Semântica (1904), as quais retomaram o estudo do significado na França. Mais ainda, Bréal enfatizava em seu texto “o elemento subjetivo como constitutivo da linguagem, a inscrição do sujeito na linguagem e sua relação com a história na construção do sentido” (apud ELICHIRIGOITY, 2009). Análise do Discurso – 12 – Nerlich & Clarke (1996, p. 98), com base em Wittgenstein (1958), listaram pontos importantes da proposta de Bréal que mais tarde seriam revis- tos direta ou indiretamente em outras disciplinas, como por exemplo, a AD. Dentre esses aspectos que são descritos como insights pragmáticos: a) a ênfase posta em descrever o processo pelo qual uma língua é entendida e a defesa de que a constituição do sentido se faz pela atuação da mente e da linguagem; b) a defesa de que a produção e a compreensão do sentido ocorrem durante a interlocução, mediante ações situadas e contextualizadas como resultado do esforço do falante para ser compreendido e o esforço do ouvinte por descobrir a intenção do falante, atitudes que ajustam a palavra àquilo que se pretende dizer por meio dela. c) a defesa do caráter humanitário, utilitarista e pragmático da lingua- gem, que parte do homem e a ele se endereça, e não um organismo cuja vida seria independente dos seres humanos que a utilizam; d) a concepção de que é o uso, e não a etimologia, que caracteriza o significado das palavras, de modo que seu significado não está con- tido no seu uso primeiro, original, etimológico, mas sim no último, como muito mais tarde defenderia Seide (2012, p. 103). 1.1.1 Do Formalismo Russo a Benveniste: contribuições para a formação da AD Se as teorias propostas por Bréal representaram um aporte real para a futura consolidação da disciplina em questão, o chamado “formalismo russo”, escola que surgiu e ganhou força entre as décadas de 1910 e 1930, também teve participação relevante, como ressalta Orlandi (2009, p. 17). Ainda que o foco central da crítica formalista fosse a descrição do funcionamento do sistema literário, a ideia de descrever um poema de maneira minuciosa, ava- liando todas as esferas que engloba – métrica, sintática, morfológica, léxica, simbólica – e sua interdependência já revelava a vontade de esmiuçar um texto extrapolando os limites de análise que até então eram considerados. Yuri Tynianov, um dos nomes mais destacados do Formalismo, se debru- çou sobre a análise da forma de cada obra literária e sua relação com as outras. Para o teórico, a forma recobre todos os aspectos, todas as partes constitutivas – 13 – Introdução à Análise do Discurso do texto literário, e existe somente como relação dos elementos entre si, dos elementos com a obra inteira, da obra com a literatura nacional, e assim sucessivamente, alcançando a realidade exterior (TODOROV, 2008, p. 33). Mesmo com essas contribuições oriundas de estudos de diferentes áreas e épocas, foi apenas em 1950 que a AD começou a ser gestada para então sur- gir definitivamente como disciplina, consolidando-se por fim nos anos 1960, como já dissemos aqui. Frequentemente, considera-se seu marco inicial o trabalho de Zellig Harris, Discourse Analysis, de 1952, que também cunhou o nome da área de estudos. No entanto, como salienta Brandão (2006, p. 43), o ensaio de Harris coloca a AD ainda como uma simples extensão da linguística imanente, visto que transfere e aplica procedimentos de análise de unidades da línguaaos enunciados e se afasta das reflexões sobre a significação e sobre as considerações sócio-históricas de produção, temas cruciais que vão nortear os trabalhos deste campo de conhecimento. Efetivamente, entre os anos 1950 e 1960, um importante téorico fran- cês, Émile Benveniste, tomou um rumo diferente daquele de Harris: ele passa a destacar a figura do sujeito falante no processo de enunciação e tenta mos- trar a posição desse mesmo indivíduo nos enunciados que ele emite. Como afirma Brandão (2006, p. 54), ao tratar da posição e perspectiva do locutor, Benveniste traz à tona a relação que se forma entre o locutor, o enunciado que transmite e o mundo exterior; a interação entre esses três elementos acabará aparecendo no meio das considerações feitas pela disciplina que aqui estuda- mos, isto é, a AD enfocará especialmente a relação entre os sujeitos falantes e os aspectos sociais, históricos e políticos em que se inserem. Portanto, para Benveniste, o que torna possível a comunicação humana é, em primeiro lugar, a condição da linguagem de dar lugar à subjetividade. Em outras palavras, a comunicação só é possível porque o locutor pode se posicio- nar como sujeito na chamada instância do discurso. Mas o que seria “instância do discurso” para este teórico? Consiste em “colocar a língua em funciona- mento por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 2008, p. 82). Como destaca Dezerto (2010, p. 67), Benveniste aponta para o fato de que a consciência de si se faz dependente de uma segunda pessoa, ou seja, para que o “eu” se pronuncie é necessário que exista um outro, um “tu” que se põe no outro extremo da interlocução, viabilizando o processo dialógico. Essa propriedade, a de dizer “eu” e consequentemente requerer a presença Análise do Discurso – 14 – de um “tu”, é um dos pilares centrais da linguagem dentro da perspectiva de Benveniste. Por meio dessas ideias podemos compreender de maneira mais clara como a subjetividade organiza a linguagem. Ademais, percebemos que é na instância do discurso que o sujeito se declara como tal, ou seja, ao colocar a língua em funcionamento, o indivíduo atribui a si próprio o papel de sujeito, bem como sujeito do seu discurso, ou, de acordo com Dezerto (2010, p. 67): “é pondo a língua em funcionamento que ‘ego’ pode dizer ‘ego’”. Se cada uma dessas teorias ao longo das épocas contribuiu para a forma- ção da AD e reconhecemos cada um desses subsídios, não devemos tampouco desconsiderar o momento histórico em que a disciplina finalmente se firmou. Afinal, a própria AD deseja considerar os processos externos, tanto políticos como sócio-históricos, portanto, nada mais lógico que analisemos o período em que surge a proposta de Michel Pêcheux, considerado o fundador defini- tivo da AD. 1.1.2 A consolidação definitiva da AD Os anos 1960, chamados popularmente de “anos rebeldes”, representaram um ponto de virada na história contemporânea, tanto pelos avanços científicos e tecnológicos como pela contestação dos valores sociais e culturais vigentes até então. Essa revolução de costumes aparece como uma resposta de supe- ração e a necessidade de mudança após as duas Grandes Guerras. Agendas e correntes culturais e ideológicas alternativas se multiplicaram, o movimento da contracultura emergiu com força, assim como os questionamentos à sociedade conservadora, e as manifestações estudantis e pacifistas proliferaram mundo afora. Igualmente, a ciência avançou a passos largos, e a Robótica, a Física e a Medicina obrigaram a humanidade a repensar diversas noções. O reflexo de todas essas transformações recai sobre as relações sociais, os conceitos de liberdade, democracia, igualdade, e compele a ver com outros olhos as minorias, o feminismo e, consequentemente, as ideologias da socie- dade contemporânea. Na França, país que consolidou e estruturou uma das mais importantes correntes da AD, movimentos históricos como o de maio de 1968 foram cruciais para a quebra de paradigmas, posicionando o sujeito no centro dessa – 15 – Introdução à Análise do Discurso nova realidade. Como ressalta Ferreira (2003, p. 40), pode-se dizer que, do ponto de vista histórico e político, a AD nasce, sob a efervescência de uma intervenção, de uma ação transformadora, que se coloca no lado oposto ao excessivo formalismo linguístico vigente na época, o qual era também consi- derado uma faceta da sociedade burguesa. De mãos dadas com essa tendên- cia modificadora, a AD “busca desautomatizar a relação com a linguagem, donde sua relação crítica com a Linguística” (FERREIRA, 2003, p. 40). Na verdade, o lado mais subversivo da AD e sua emergência consiste na abertura de um campo de questões no interior da própria Linguística, resultando em um sensível deslocamento de terreno na área, particularmente nos conceitos de língua, historicidade e sujeito, que eram colocados de lado pelas correntes em voga naquele período (FERREIRA, 2003, p. 40). Figura 1.3 − Conceitos que foram reavaliados na segunda metade do século XX e que serviram de substrato para a fundação definitiva da AD Fonte: Elaborada pela autora. 1.1.3 O substrato da AD: Pêcheux, Foucault e Althusser Evidentemente, as Ciências Humanas recebem essa torrente de contesta- ções e passam a desconstruir e/ou reconstruir diversas noções. Assim, se todos os conceitos e teorias que mencionamos até aqui, advindos em grande parte dos estudos Línguísticos, adubaram direta ou indiretamente o terreno onde Análise do Discurso – 16 – cresceria a AD, outras correntes de pensamento e áreas de estudo como o Marxismo e a Psicanálise somaram-se a estas e ajudaram a finalmente delinear a área de atuação da AD. Mas de que forma? E com que objetivo? Ora, como dissemos há pouco, o momento histórico dos anos rebeldes exigia não apenas uma reestruturação dos valores políticos, morais e sociais em vigor, mas também do substrato que alimentava esses valores. Em outras palavras, deu-se início ao questionamento sobre os modos e meios pelos quais os pilares de princípios como justiça, direitos humanos, liberdade de expressão e preconceito racial eram construídos e, principalmente, onde eles se aninhavam. Um dos nichos dos valores políticos, sociais e culturais é, sem dúvida, o discurso. Destaca-se nesse período e sob essa perspectiva, então, o nome de Michel Pêcheux, pesquisador da École Normale Supérieure de Paris, que propõe a teoria da análise de discurso ao publicar suas considerações na obra Análise Automática do Discurso, de 1969, bem como na edição n. 13 da revista Langages. Sob a influência das agendas da revolução estudantil de maio de 1968 na França, Michel Pêcheux começa a desenvolver estudos analíticos orientados para o debate sobre as relações entre os partidos políticos envolvidos nessa moção de 1968. Esse foi o caminho encontrado pelo teórico para aplicar e aproximar a prática acadêmica do contexto social e político real da época e assim dar uma contribuição relevante sobre ideologia, sujeitos e sociedade (MELO, 2009). A teoria de Pêcheux, naturalmente fermentada pelo processo histórico daquele momento, baseava-se no conceito de que era inadequado, e con- sequentemente inaceitável, separar a prática linguística, i.e., a tentativa de produção apolítica de estudos e pesquisas sobre a linguagem por parte da Linguística, da prática política, sendo esta o conjunto de atividades que pres- supunham e reforçavam o mito da linguagem transparente (BRASIL, 2011). A AD se constrói, portanto, a partir das discussões de questões relativas à linguagem, rebatendo particularmente aquelas que negam o papel da exterio- ridade e sua intervenção. A linguagem deixa de ser considerada como um simples sistema de regras formais estabelecidas. A partir de então, a linguagem é pensada na prá- tica, e a esse olhar da práxis acrescenta-se o simbólico, além da divisão política – 17 – Introdução à Análise do Discurso dos sentidos. Aliás, o sentido também passa a ser reconhecido como elementovolúvel, inconstante e, particularmente, sujeito a alterações decorrentes dos movimentos externos. Igualmente, como destaca Brasil (2011), o objeto de apreciação de estudo deixa de ser a frase e passa a ser o discurso, impregnado de elementos provindos da exterioridade, da realidade do mundo. Mas a AD não dirige seus esforços a uma explicação limitada ou óbvia de um discurso, muito menos a uma aplicação engessada da proposta pechêuxtiana, mas a considerar o discurso como um fio condutor e também, simultaneamente, o lugar onde se abrigam os processos históricos, o sujeito, as ideologias, a idiossincrasia de cada comunidade, e muitas outras variáveis que ali convergem. Segundo Brandão (2006), a partir desse quadro teórico em que Pêcheux assenta a pedra angular da AD, forma-se uma aliança entre o lin- guístico, o sócio-histórico e o político e, sob essa orientação, esta disciplina passa a tecer suas considerações ao redor de dois conceitos nucleares: o de ideologia e o de discurso. No entanto, antes de ponderarmos cada um desses pontos, cabe apre- sentar, ainda que de forma sucinta e com vistas a completar o quadro histó- rico da AD, as duas vertentes que se somariam a todas as outras afluências para compor as teorias pechêuxtianas: a) a noção de ideologia sob o nome de Louis Althusser; b) a definição de discurso em consonância com as proposições de Michel Foucault. Em suas obras, o filósofo Althusser trabalhou o conceito de ideologia tanto do ponto de vista epistemológico quanto do ponto de vista prático, mas, sob as duas perspectivas, Althusser definiu a ideologia como um sistema de representações, sejam imagens ou ideias, que se impõem aos homens sem passar para e pela consciência destes. Seguindo essa lógica, a ideologia refere-se à relação entre mundo exterior e indivíduo, sendo que este não é o construtor dessa relação, pois a mesma não é conscientemente elaborada. Mais ainda, na ideologia, os homens expressam, com efeito, não as suas relações, percepções e valores em condições (reais) de existência, mas as estruturas construídas por outrem. Deste modo, a ideologia teria como função prioritária garantir a uni- Análise do Discurso – 18 – dade social e regrar os valores sociais e atividades dos indivíduos, e os meios que utiliza para tanto são as instituições sociais. Em síntese, o conceito althusseriano central que serviu de base para Pêcheux é o de que a ideologia é essencial para a constituição do sujeito, e de que as pessoas são, por conseguinte, sujeitos interpelados pela ideologia de forma inconsciente. Assim, diante da rede de sentidos existentes, os sujeitos filiam-se e são afetados especificamente pela construção ideológica embutida “sem filtro consciente”, por certos sentidos (em vez de outros), e graças a isso, as pessoas adotam determinadas posturas, ideias e as expressam em seus discursos. Como salienta Chagas (2013, p. 5), por lógica, passamos a compreender a mais famosa frase de Pêcheux, que bebeu na fonte de Althusser: “não existe discurso (e ideologia) sem sujeito e nem sujeito sem ideologia”, pois se um indivíduo possui crenças e ideais advindos da construção externa, estes serão refletidos em seus atos e na expressão dos mesmos, os quais, por sua vez, ali- mentam o próprio indivíduo, inserido em um determinado contexto social, político, cultural e histórico. Pêcheux, a partir de Althusser e das demais vertentes já expostas aqui, inclusive de uma ressignificação do Marxismo e os aportes de Haroche e Henry, reafirma que o funcionamento da ideologia em geral, como interpela- ção dos indivíduos em sujeitos, realiza-se por meio das formações ideológicas, caracterizadas como “[...] um elemento suscetível de intervir – como uma força confrontada a outras forças – na conjuntura ideológica de uma forma- ção social” em um determinado momento e contexto histórico (HAROCHE et al, 1971, p. 102). Sendo assim, “[...] cada formação ideológica constitui [...] um complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘indivi- duais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras [...]”, fornecendo “a cada sujeito” sua “realidade”, enquanto sistema de evidências e de significa- ções percebidas, aceitas, vivenciadas (FERREIRA-ROSA et al, 2011, p. 260). Claro que ao longo deste curso retomaremos e esmiuçaremos ainda mais a relação entre sujeito e ideologia até chegarmos ao cerne da perspectiva deste assunto em AD, já que trata-se do tópico central e recorrente da matéria. No entanto, para utilizarmos exemplos práticos e realizarmos a função de analis- tas do discurso (mesmo que de forma incipiente e sem maiores pretensões), é – 19 – Introdução à Análise do Discurso necessário compreender o modo como a disciplina se constituiu e o que deseja que observemos, como analistas, num dado discurso que aparentemente não traz “nada demais”. Em outras palavras (e somando todos os aportes teóricos apresentados até aqui), a AD pretende que analisemos o discurso não apenas como uma mera mensagem que transmite uma informação de forma linear (emissor que envia mensagem ao receptor), mas como uma expressão dos sujeitos inseridos em uma situação real em que história, cultura, ideologia, sociedade e valores participam ativamente e se sobrepõem, se misturam, e passam a constituir o sujeito em si. Não há uma simples troca serial de informações, mas um calei- doscópio formado por sujeitos, ideologias, história e linguagem, elementos que se emaranham constantemente e que não podemos precisar onde come- çam e onde terminam. Aliás, este é outro aspecto importante trazido à tona pela AD: ao con- trário dos antigos conceitos linguísticos (como vimos no início deste capítulo com Saussure) que postulavam que a mensagem transmitida pelo emissor “terminava” no momento em que era recebida e assimilada pelo receptor, a AD demons- tra que os discursos não têm princípio ou fim exato, já que estão permeados de ideologias, processos históricos e sujeitos. Explicando melhor, o discurso não se restringe ao momento em que é “lançado”, mas traz consigo conceitos embutidos, recortes e referências históricas, menções a outros sujeitos e situ- ações, de modo que ele “começa muito antes de ser produzido”, e se perpetua para além da recepção por parte do interlocu- tor. Por quê? Porque o próprio interlocutor, ao apreender o Figura 1.4 − A tríade que envolve o discurso Fonte: Adaptado de FAIRCLOUGH, N. Discourse and social change. 11. ed. Cambridge (UK): Polity Press, 2006. Análise do Discurso – 20 – conteúdo desse discurso também estará ativando suas próprias concepções, princípios e valores, os quais (se retomarmos Pêcheux inspirado em Althus- ser) lhe foram incutidos sem que sua consciência filtrasse, foram inscritos ali, no sujeito, a partir da realidade externa, formada pela trajetória da história, contexto social, entre outros fatores. O esquema a seguir nos ajuda a compre- ender melhor este ponto. O discurso, como está impregnado e envolvido pelos componentes externos que vemos no diagrama anterior, existe antes do sujeito emiti-lo e depois que o interlocutor desse sujeito assimila o discurso. Revela-se ali a “intransparência” da linguagem, a constituição do sujeito a partir das ideolo- gias e valores sociais e, especialmente, a descoberta de que os sentidos não se encontram unicamente nas palavras, nos textos, mas na relação com a reali- dade externa, nas condições em que estes se produzem, independentemente da intenção dos sujeitos. Tomemos, além do desenho esquemático acima, um exemplo prático para compreendermos este aspecto de forma plena: observe a imagem a seguir por alguns minutos e tente captar além da mensagem imediata que transmite. Figura 1.5 − Propaganda de restaurante de frutos do mar Fo nt e: E la bo ra da p el a au to ra . – 21 – Introdução à Análise do Discurso Aparentemente uma propaganda de um restaurantede frutos do mar e nada mais. Mas para um analista do discurso ou estudante dessa matéria, há muito mais do que um anúncio: as cores, imagens, a forma como as palavras (em maior ou menor destaque) estão colocadas, tudo remete a uma série de detalhes que envolvem memória, construtos sociais e até econômicos, ativa- ção de sentidos e associações. Temos ali muito além do “dito”, há o implícito, o não exposto, o subentendido, mas que é igualmente captado pelo receptor do comercial. Vejamos juntos: o nome do restaurante Maison do Mar traz uma palavra francesa (maison, “casa” em português), dando a conhecer ao possível cliente que os pratos e o estilo gastronômico estão em consonância com a culiná- ria da França, país famoso pela qualidade dos restaurantes, a gastronomia requintada e as escolas de alto nível neste campo. Automaticamente, perce- bemos que a Maison do Mar quer demonstrar que requinte e excelência estão em sua linha de frente. Em segundo lugar (e seguindo a ideia do nome do local), a imagem que está em evidência é a da lagosta. Será que essa escolha foi aleatória ou inten- cional? E por quê? Bem, como sabemos, a lagosta é considerada um alimento de luxo e esse status do crustáceo não é algo novo: o prato de “Lagosta à Ther- midor” era famoso nos restaurantes parisienses do fim do século XIX e início do século XX, e, mesmo que nunca tenhamos ouvido falar desse pormenor histórico, a lagosta nos traz a ideia de sofisticação e paladar apurado. Sendo assim, a escolha do publicitário não poderia ser o peixe ou a ostra (ainda que estes também estejam no menu), mas a opção mais requintada, mobilizando a memória do possível futuro cliente, ativando significados e até mesmo defi- nindo a clientela do Maison do Mar: sendo a lagosta o “carro-chefe” do esta- belecimento, podemos supor que os preços não devem ser acessíveis a todos os bolsos. Aliás, o selo no canto inferior esquerdo também reforça essa supo- sição: produtos de qualidade premium, isto é, produtos selecionados, os quais, geralmente, envolvem maior custo de produção e comercialização. Assim, agora podemos compreender melhor as ideias de Orlandi (2009, p.29-30), que assevera que os dizeres não devem ser considerados apenas mensagens com possibilidade de decodificação imediata e limitada àquele momento, mas efeitos de sentido que se produzem em determinadas circuns- tâncias e com objetivos específicos. Esses efeitos revelam ainda aspectos refe- Análise do Discurso – 22 – rentes às condições de produção, e, particularmente, estão conectados com o que é dito ali, naquele instante, e antes e depois, mobilizando memórias, conceitos e valores atávicos. Em síntese: o discurso vai muito além dos dize- res, “das margens de um texto” (ORLANDI, 2009, p. 30). Mas voltemos às bases teóricas de Pêcheux para além da questão da ide- ologia e do sujeito. Dissemos aqui que o estudioso francês se apoiou também nas ideias de outro filósofo, Michel Foucault, para desenvolver os conceitos referentes a discurso. Mas de que maneira Foucault fomenta e fundamenta a AD de Pêcheux? Comecemos analisando o modo como Foucault concebe os discursos, a história e suas tessituras. Primeiramente, este filósofo se afasta da “ordem clássica que via a his- tória como um discurso do contínuo, do desenrolar previsível do Mesmo”, e acaba instaurando “uma nova visão da história como ruptura e descon- tinuidade, construindo-se uma série de mutações inaugurais onde não há lugar para um projeto divino ou humano” (BRANDÃO, 2006, p. 34). Gar- cia (2003, p. 124) afirma que podemos, portanto, perceber que a abordagem foucaultiana vem para quebrar com os princípios de causalidade (relações entre origem-causa e consequência-efeito) e de temporalidade submetida a uma ordem cronológica, progressiva e evolutiva. O fato histórico, sob a ótica foucaultiana, ganha status de discurso historiográfico por meio da noção de acontecimento discursivo, ou seja, da descrição de funcionamentos de práticas e de relações histórica, política e socialmente construídas, e não mais de obje- tos ou estados estanques, como se estes não tivessem correlação com o agora (GARCIA, 2003, p. 124). E é exatamente por esse motivo que, para Foucault, o discurso não pode ser coeso, pelo contrário, ele é formado por elementos que não estão conecta- dos por qualquer preceito ou causa primária de efeito unificador. Como recorda Brandão (2006, p. 32), o princípio foucaultiano afirma que é mister da AD descrever essa falta de coesão, com vistas a estabelecer nor- mas, as chamadas de “regras de formação”, que possam orientar justamente a composição dos discursos. Essas normas tornariam possível a determinação dos componentes de um discurso, como por exemplo: os objetos inseridos e que se sobrepõem constantemente, compartilhando um “espaço comum” dis- cursivo; as diversas formas de enunciado que perpassam o discurso; os conceitos – 23 – Introdução à Análise do Discurso da forma que surgem e em sua capacidade de transformação em campo dis- cursivo; os processos históricos, os temas e teorias subjacentes, entre outros. A partir de todas essas propostas, Pêcheux desenvolveu os eixos centrais da AD, conceitos que norteiam os trabalhos em AD e que nos levam a per- ceber que: a) a transparência da linguagem é uma quimera, já que esta se encontra carregada de memórias, valores, história, cultura e demais variáveis; b) o sujeito não tem qualquer controle sobre os discursos que produz ou recebe; c) o sujeito está submetido à ideologia; d) cada um dos elementos que compõem um discurso se relacionam entre si e com a exterioridade, além de trazer consigo as variáveis que citamos no item “a”; e) o discurso não começa nem termina no momento de sua produção, já que é fruto de diversas interferências, repercutindo passado, pre- sente e futuro simultaneamente (e não de forma serial); f ) não podemos precisar com exatidão o momento em que essas construções temporais, sociais e de diversas naturezas se uniram para dar sentido a um determinado discurso que elaboramos ou que chega até nós, apenas as (re)conhecemos (como no exemplo do restaurante, associamos a lagosta ao luxo, mas não saberíamos dizer de forma exata onde e quando o crustáceo ganhou esse sta- tus, sendo referência até no imaginário popular de “prato mais caro do menu”). Ao longo do percurso histórico aqui apresentado, travamos contato com diversas teorias e noções que levaram à elaboração e fundamentação da AD. No entanto, devemos mencionar que todos esses conceitos estarão constante- mente presentes neste livro. Sem entender a forma como a AD trabalha com cada um deles não poderemos desenvolver o olhar holístico de um analista do discurso, objetivo principal deste curso. Portanto, não apenas as figuras dos teóricos da AD nos acompanharão nesta jornada, mas também todas as noções e perspectivas desenvolvidas por eles. Análise do Discurso – 24 – Aliás, durante a apresentação das bases teóricas da matéria em questão, abordamos alguns temas-chave da disciplina, como discurso, texto, enunciado, ideologia, sujeito e história, mas não nos aprofundamos em cada um deles, pois assim o faremos nos próximos capítulos separadamente. Não obstante, para que possamos mergulhar no oceano de possibilidades de estudar um discurso que virá pela frente, propõe-se a busca pela definição elementar dessas noções- -chave, entrelaçando cada uma com as teorias que vimos até agora. 1.2 Conceitos essenciais em AD Com base em Caregnato & Mutti (2006), Sarfati (2011), Orlandi (2009), Charadeau & Maingueneau (2008) e Ferreira (2003), apresentare- mos abaixo de forma sintética e sob a forma de minidicionário/miniglossário – visando completar a construção teórica da disciplina de AD – algumas definições, as quais serão analisadas detalhadamente no decorrer dos demais capítulos, sempre retomando os aspectos discutidos nesta primeira parte. Figura 1.6 − Entrada em glossário Fonte: Shutterstock.com/Stefanie Mohr Photography.2 Linguagem: para a AD, a linguagem vai muito além dos signos utilizados para uma comunicação direta, já que está carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. Por isso, ela é intransparente, nunca neutra. Com sólido conteúdo simbó- lico, é por meio dela que lidamos constantemente com o ambiente externo, com outros sujeitos, processos históricos, ideologias, entre Luiz Pencil – 25 – Introdução à Análise do Discurso muitos mais elementos, apreendendo-os com o nosso pensamento e atitudes, para assim replicá-los, transformá-los e até mesmo per- petuá-los. “Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a trans- formação do homem e da realidade em que ele vive” (ORLANDI, 2009, p. 15). 2 Língua: a língua na AD é tomada em sua forma material enquanto ordem significante capaz de falhas ou, nas palavras de Pêcheux (2002, p. 53), “a língua é voltada ao equívoco”. Explicando melhor, a língua, enquanto sistema sintático que está sujeita aos jogos de poder, abriga os efeitos linguísticos materiais na história para pro- duzir sentidos. A análise de uma forma linguística tal como até então era considerada pelos estudos Linguísticos passa a se diri- gir a uma forma material em que a dicotomia forma/conteúdo é completamente diluída, fato que traz consequências, como por exemplo, a ideia de que a língua é um mero código compartilhado entre indivíduos é superada, assim como a ilusão de que ela é um instrumento de comunicação ideologicamente neutro; a língua não é mais tida como um sistema completamente autônomo, mas rela- tivamente autônomo; o sistema linguístico não é algo abstrato e fechado, mas sim um sistema passível de perturbações, rupturas e mal-entendidos; recordemos aqui a desconstrução das propostas saussureanas que culminaram com as teorias de Pêcheux, alimen- tadas por Althusser, Foucault e demais influências esquadrinhadas anterioremente; a língua é o espaço material de realização dos pro- cessos e atos discursivos, onde os sentidos se manifestam (FER- REIRA, 2003, p. 42). 2 Fala: para Pêcheux, a língua é a forma de materialização da fala que inclui principalmente o plano simbólico; mais ainda, o discurso produzido pela fala sempre estará em consonância com o contexto social, político, histórico e cultural. Caregnato & Mutti (2006, p. 681) recordam que, ao exemplificar com o discurso de um polí- tico/candidato a político que baseia suas propostas em determinada vertente político-ideológica e, portanto, atuará como porta-voz de seus correligionários, Pêcheux (2002, p. 77) afirma, Análise do Discurso – 26 – [...] em outras palavras, um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal inte- resse [...]. Isto supõe que é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma, mas que é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção. 2 Enunciado: resultado de um ato de enunciação pelo qual, segundo Benveniste, o locutor “se apropria da língua” e, desse modo, se coloca como “sujeito”. Já para Foucault, todo enunciado se encontra especificado da seguinte maneira: não existe enun- ciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas, sempre um enunciado inserido em uma série ou um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, apoiando-se neles e se distinguindo deles ao mesmo tempo. Ele se integra sempre em um jogo enunciativo. 2 Texto: segundo Sarfati (2011, p. 13), o texto é o objeto empírico da análise do discurso, e se constitui de um conjunto contínuo (coeso e coerente) de enunciados que compõem um dizer (seja escrito ou oral). Como esperado, leva-se em conta as normas culturais e histó- ricas, e assim uma sociedade atribui a alguns textos o status de obra (sobretudo literária). 2 História: na AD, a noção de história está estreitamente ligada à de social. A origem desse olhar sobre a história se deve em boa parte à proposta de Foucault, que instaura uma nova visão da história como ruptura e processo descontínuo, mas que se reencontra constan- temente com os movimentos sociais a ponto de fundir-se com eles, como já dissemos neste capítulo. Garcia (2003, p. 124) acredita ser apropriado, sob essa ótica, afirmar que o social (a ordem social) constitui, por sua vez, a materialidade da (organização da) história. Esta é uma maneira de se chegar à compreensão da ideia de que a atribuição de sentidos (isto é, o plano simbólico incorporado no e pelo discurso) só é possível por meio da ancoragem histórica, pen- – 27 – Introdução à Análise do Discurso sada como materialidade social e ideológica (historicidade) (GAR- CIA, 2003, p. 124). 2 Gênero: de acordo com Sarfati (2011, p. 15), o gênero é uma cate- goria de classificação definida segundo algumas convenções formais (ainda que variáveis e objeto de intensa discussão), que permite a organização e reunião de textos literários (romances, novelas, contos, crônicas etc.). A AD foi além da questão da literatura e ampliou a problematização do pertencimento e delimitação dos textos a determinado gênero (assim, a análise do discurso jornalís- tico considera que em seus gêneros próprios – reportagem, entre- vista, crônica etc – há também a análise do discurso publicitário que considera os distintos gêneros – apolíneo ou dionisíaco, dentre muitos mais). 2 Discurso: alguns dos conceitos colocados por Foucault foram fecundos para a fundação das bases definitivas, e um deles foi o de discurso como “conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 1987, p. 149-150). Pêcheux e Fuchs somam a este conceito (ape- sar de rebatê-lo em alguns momentos, acabam por encontrar seus pontos de confluência), a materialidade histórica, os conceitos de ideologia e sua presença constante na constituição do sujeito que produz as diversas formas e expressões de discurso. Assim, o con- junto formado pelo discurso e seus elementos se torna objeto de conhecimento e estudo da AD, sempre considerados em relação a suas condições (sociais, ideológicas, culturais, temporais, políticas) de produção. Por exemplo: o discurso feminista, o discurso sindi- cal, entre muitos outros. Não é demais dizer que todos estes pontos, eixos centrais de estudo e debate na AD, serão aprofundados ainda mais ao longo dos próximos capí- tulos, não apenas considerando todos e cada um sob uma perspectiva teórica, mas também os aspectos práticos subjacentes. Estes, evidentemente, poderão ser assimilados por meio de exemplos e reflexões constantes sobre cada um dos elementos que compõem ou se entrelaçam com o discurso. Análise do Discurso – 28 – Para conhecer Analistas do Discurso: Eni Orlandi Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi é um dos nomes mais importantes da Análise do Discurso no Brasil, considerada uma pioneira nessa disciplina. Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo até 1979 e posteriormente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), aposentou-se em 2002, sem deixar no entanto de pesquisar e transmitir os conhecimentos adquiridos ao longo da car- reira. Orlandi apresentou ao Brasil há quatro décadas as principais teorias da AD que surgiram na França. Com mais de 35 livros publicados e um Prêmio Jabuti em 1993 por As Formas do Silêncio, seu trabalho é uma referência obrigatória para quem quiser mergulhar e entender o percurso desse campo de conhecimentos no país. Para saber mais, acesse: <http://redeglobo.globo.com/globouniver- sidade/noticia/2012/11/eni-orlandi-fala-sobre-analise-do-discurso-e- -linguagem-em-entrevista.html>. Atividades 1. De que forma as ideias de Bréal e Harris deram subsídios para a futura consolidaçãoda AD como campo de conhecimentos? 2. Os processos históricos não apenas são considerados dentro da AD, mas como elementos que ajudaram a constituí-la. Explique esta asseveração. 3. Como explicar, por meio da AD e das teorias da disciplina que apresentamos aqui, a propaganda a seguir? Considere o maior número possível de aspectos intrínsecos a esse discurso. 4. Explique de maneira sucinta o modo como os conceitos propostos por Althusser contribuíram para “fermentar” as ideias de Pêcheux. 2 O Discurso “Jamais encontramos na fala dos outros senão o que nós mes- mos pusemos, a comunicação é uma aparência, ela nada nos ensina de verdadeiramente novo.” Maurice Merleau-Ponty Neste capítulo apresentaremos e discutiremos a noção de discurso para a AD, em particular a de vertente francesa, com o objetivo de compreender o modo como essa linha específica deste campo de estudos considera a relação estabelecida entre sociedade, história e língua. Tendo como base esse tema de estudo, os analistas se debruçam para examinar as formas em que sujeitos e sentidos se constituem no processo discursivo, o qual vai muito além de uma simples transmissão de mensagem, como a Linguística saussure- ana postulava. Claramente, a AD se dedica a entender e debater o papel de um objeto simbólico, o discurso verbal ou não-verbal, na manutenção, eliminação ou introdução de valores e princípios e a maneira como os sujeitos, sem perceberem ou controlarem, partici- pam da realização desse fenômeno. Análise do Discurso – 30 – 2.1 O discurso para a AD O capítulo anterior nos permitiu “historicizar” a formação da AD como campo de conhecimentos e de pesquisa acadêmica, além de apresentar as bases teóricas sobre as quais a mesma se erigiu. Agora voltaremos nossa aten- ção em direção ao ponto central da disciplina: o discurso. Em sua origem etimológica, a palavra discurso provém do latim discursus, particípio passado do verbo discorrere, que significa “deslocar-se de um lugar para outro” ou “correr ao redor”, uma metáfora que, neste caso, remete ao ato de percorrer todas as partes de um assunto, de um tema, opinião ou expres- são de sentimento e as implicações desse ato. Embora esse termo tenha sido amplamente usado por diversas áreas desde a Grécia antiga – lembremos de Aristóteles e seu Organon, conjunto de obras sobre a lógica e a sistematização dos discursos – e com variedade de perspectivas e acepções, a que nos interessa como analistas do discurso é exatamente a de “movimento e dinâmica” impli- cada no logos, grego em sua forma original, isto é, a palavra falada ou escrita. É o modo, por exemplo, como Benveniste preferiu definir o termo dis- curso, enquanto os estudiosos alemães optaram por associá-lo ao conceito de texto escrito, assim como Roland Barthes e outros, que limitaram a ideia de texto apenas às mensagens escritas. Para esses teóricos que decidiram apli- car esta restrição, as mensagens faladas pertencem ao domínio do discurso (NÖTH, 1995). 2.1.1 O discurso para Michel Foucault e sua influência na AD Mas, como vimos no capítulo 1, a AD, especialmente na figura de Michel Pêcheux, fundamentou-se essencialmente sobre as ideias de Althusser e Foucault, entre outros filósofos e estudiosos. E é justamente Foucault que auxiliará na modulação da concepção de discurso para esta disciplina por meio de seus ensaios As Palavras e as Coisas (1966) e Arqueologia do Saber (1969), mas ainda mais mediante a aula inaugural apresentada ao Collège de France em 1970, A Ordem do Discurso. Nessa aula, Foucault assevera que em toda sociedade a produção do dis- curso é, simultaneamente, controlada, escolhida, ordenada e disseminada por – 31 – O Discurso meio de diversos procedimentos, cuja função é desfazer os possíveis “perigos” para a manutenção do padrão que se deseja manter ou instaurar, além de antever e dominar as eventuais consequências de sua difusão, diluindo sua materialidade (FOUCAULT, 1996). Nesse sentido, o discurso, na visão foucaultiana, por mais curto e sim- ples que seja – e recordemos aqui que discurso para a AD não é apenas fala ou texto escrito, mas a linguagem em funcionamento com todas as suas propo- sições – a forma como é construído ou difundido, e até mesmo as supressões que ocasionalmente venha a sofrer, revelam imediatamente sua ligação com o poder. Portanto, ao mesmo tempo, o discurso pode ocultar ou revelar dese- jos, jogos de poder, assimetrias e valores sub-reptícios, e assim seu trabalho simbólico se configura como um dos componentes da base de produção da existência humana (ORLANDI, 2009). Essa afirmação de Orlandi (2009) não é exagero e está fundamentada também sobre a ótica de Foucault: o discurso não apenas constrói ou eli- mina valores e estruturas em nível coletivo, mas também exclui ou sufraga o indivíduo. Para chegar à compreensão deste aspecto, pensemos em uma situ- ação corriqueira: você está andando pela rua ou por um parque no centro da cidade e avista uma barraquinha que distribui gratuitamente doces naturais. Ao passar na frente, a pessoa responsável pela barraquinha lhe oferece um doce e explica a você os benefícios de consumir esse tipo de alimentos, a qua- lidade dos mesmos, entre outros aspectos. No entanto, ela não usa uniforme, não se apresenta como profissional da área de Ciências da Saúde e nem traz qualquer marca conhecida consigo ou com o produto que apresenta. Agora imagine a mesma situação, mas com a pessoa vestida de branco e jaleco, e a barraquinha com a logomarca de uma companhia de cooperativa de saúde. Além disso, antes de começar a falar sobre os docinhos (usando as mesmas palavras da situação paralela, embora aquela tivesse um “desconhecido” no lugar), ele/ela se apresenta como profissional da saúde. Em qual você irá acre- ditar e, por conseguinte, de qual aceitará o doce? E mais ainda: qual dos dois terá seu discurso reconhecido como “legítimo” pelas condições em que foi produzido e se inscreve? Foucault (1996) explica que esse tipo de situações externas que envolvem o discurso se dão pelo fato de que este é atingido por três siste- mas de exclusão: Análise do Discurso – 32 – a) a palavra proibida (interdição); b) a segregação da “loucura” (separação e rejeição); c) a vontade da verdade (consenso da verdade). A interdição, ou “palavra proibida”, é o mais familiar: sabemos que não podemos dizer tudo o que pensamos, em qualquer lugar ou momento, por isso, reforça-se o conceito de que o discurso nunca é neutro e se adequa às condições de produção que lhe foram incutidas, frequentemente mantendo velhos tabus e regras que não são questionadas. Para ampliar a explanação sobre o segundo modo de exclusão, Foucault (1996) usa a oposição entre razão e loucura, centrando sua argumentação na figura do louco na Idade Média (e poderia mesmo ser nos dias de hoje): sua palavra não valia para confissão ou testemunho, nem para autenticar um ato, documento, entre outros. Podemos estender esse conceito às diferen- tes figuras sociais, como no exemplo que demos da barraquinha de doces. Social, histórica, política e culturalmente, o peso da palavra de um juiz não é o mesmo daquele de um sem-teto, ainda que isso nos pareça injusto. Há uma construção anterior, perpassada pela história e pelos movimentos de organi- zação das camadas da sociedade e seus atores, que determinou e distribuiu os “pesos e medidas” de validade de um discurso. Mas observe algo: nos parece iníquo que a palavra de um juiz tenha muito mais valor do que a de um sem-teto num depoimento, por exemplo, no entanto, ao sermos confrontados com a situação hipotética dos doces grátis, preferiríamos aqueles distribuídos pelo suposto profissional da saúde (mesmo que este pudesse ser um impostor). Por quê? Porque nos relacionamos com a linguagem em nosso cotidiano, enquanto falantes e receptores de mensagens, e essa relação está impregnada de historicidade, referências sociais, culturais e políticas que saem da nossa alçada ou poderde decisão. Por fim, o terceiro modo de exclusão se refere à busca da verdade e vai ao encontro do segundo, pois ambos se apoiam sobre um suporte institu- cional. O discurso verdadeiro representava aquele ao qual era preciso sub- meter-se, pois era pronunciado por quem de direito e segundo as normas e rituais requeridos. Especificamente, era o discurso pronunciado pela justiça, que anunciava o que aconteceria, ao mesmo tempo em que contribuía para – 33 – O Discurso sua realização, guiando o futuro a seu bel-prazer, suscitando a adesão dos cidadãos e urdindo a trama do destino. As instituições exercem poder e não raramente coerção sobre os discursos, dando-lhes status de verdade. Foucault (1996) cita as diversas práticas econômicas, “codificadas como preceitos”, que procuraram justificar seus métodos de geração de riquezas e distribuição das mesmas e assim fossem avalizadas e tidas como “verdades” pela sociedade mediante diversas instituições. Além dos três modos propostos pelo filósofo francês, há muitos outros procedimentos de controle do discurso e sua difusão. Cabe ao analista do discurso apreender e identificar. Mas de que maneira? Vejamos a seguir o que dizem estudos mais recentes. 2.1.2 O discurso e os caminhos para sua análise Fischer (2001) destaca que é preciso, antes de mais nada, deixar de lado as explicações imediatas, de uma só via, as interpretações óbvias, assim como a busca tenaz do “sentido último ou do sentido oculto das coisas”, fato corriqueiro quando se propõe o estudo de um discurso. É imprescindível se manter (ou ao menos fazer uma tentativa de se manter) simplesmente no nível de existência das palavras, das coisas ditas e dos elementos extratextuais que circundam um determinado discurso. Dito de outro modo, torna-se uma tarefa importante, em primeiro lugar efetuar um trabalho dedicado à observação e avaliação do discurso em si mesmo, permitindo que ele “exponha” suas complexidades e peculiaridades. Para realizar esse intento, o passo inicial consiste em se desligar de um longo e quase intrínseco aprendizado que ainda nos faz olhar para os discursos como um agrupamento de signos, como significantes que se referem a determinados conteúdos, carregando tal ou qual significado oculto que precisa ser desvendado. Se assim nos colocarmos, seríamos quase como um arqueólogo diante de um monumento ou peça recém-descoberta que necessita desvendar algo inimaginado e ainda não classificado por sua ciência. Na verdade, a empreitada de analisar um discurso deve partir exata- mente da premissa oposta: reconhecer e ponderar as relações históricas, as práticas sociais, valores culturais e ideologias que pulsam ali, natural e evi- dentemente. Por exemplo: analisar textos oficiais sobre educação inclusiva, se seguirmos essa perspectiva, significará antes de tudo tentar escapar da inter- Análise do Discurso – 34 – pretação imediata e da suposição aleatória daquilo que estaria por baixo dos textos, mas também de perscrutar de forma desesperada significados ocultos e subliminares. O profissional de AD deve simplesmente olhar o discurso como um todo e em suas partes constitutivas, fazer uma leitura acurada sem se adiantar às suposições, mas trabalhar com cada um dos elementos textuais e extratextuais, permitindo que um por um revele, por si mesmo, o que subjaz no discurso em questão. Para refletir... O preconceito linguístico e a análise do discurso A sociedade brasileira, apesar dos avanços das últimas décadas, carrega consigo alguns preconceitos dos quais não se desfez completamente. Os mais pobres ainda são consideravelmente discriminados, em particular quando essa parcela da população, que não tem acesso à educação de qualidade, deixa transparecer as barreiras que preci- sou enfrentar, mas não conseguiu superar por inteiro. Nesse sentido, o falar e escrever que foge às normas padrão da forma culta da língua portuguesa são também alvo de críticas e pretexto para atitudes preconceituosas. O preconceito linguístico, como o próprio nome diz, é o pré-julgamento de pessoas com base na lingua- gem. Ele parte do pressuposto de que só existe uma língua portuguesa digna deste nome, a ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários. A partir daí, aquele cujo discurso desvia dessa língua “correta” é discriminado e reprimido. Há uma ditadura da língua padrão produzida e alimen- tada por programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e de revista, em livros e manuais e, principal- – 35 – O Discurso mente, nas escolas, e é difundido pela sociedade. Mas qual a relação do preconceito linguístico com a AD? A AD visa compreender como um objeto simbólico está investido de significância para e por sujeitos. Para isso, tenta ler o que está por trás de um discurso, entender o contexto dele. Sendo o discurso uma forma de comuni- cação, ele reflete as características de um certo ambiente, ambiente este que está exposto a certas realidades eco- nômicas, sociais, políticas e culturais. Seguindo esse raciocínio, percebemos, através da relação entre AD e o preconceito linguístico, o quanto é importante respeitar a forma em que cada discurso se apresenta, uma vez que ela também é um produto do meio social do emissor. Fonte: adaptado de MARTINS, S. B. O precon- ceito linguístico e a análise do discurso. Dis- ponível em http://www.usp.br/cje/jorwiki/exibir. php?id_texto=69. Acesso em: 15 ago. 2016. 2.2 Bases e características do discurso segundo a AD Vimos até o momento o percurso da AD e, principalmente, a perspec- tiva que esta disciplina deu ao conceito de discurso. Ainda que outras áreas tenham diferente acepção para esse termo, para a AD (mesmo com suas sub- divisões propondo novos e mais amplos olhares) está claro que o discurso e os efeitos de sentido se produzem a partir da interação entre história, sociedade, cultura, ideologia e sujeito. Em outras palavras, a AD veio para quebrar o esquema “tradicional” de comunicação, que define que o emissor transmite uma mensagem a seu receptor, mediante um meio propício e um código de comunicação compreendido pelos dois sujeitos implicados. Análise do Discurso – 36 – Sob esse critério, a AD de vertente francesa, particularmente na figura de Pêcheux, se afasta do conceito serial que encontra suas raízes em Saussure e propõe a problematização das condições de produção do discurso, os ele- mentos subjacentes, implícitos e até subliminares. Assim, Pêcheux, com base em filósofos e teóricos do porte de Foucault e Althusser, refuta a ideia de mensagem direta como transmissão de informação entre dois indivíduos “A” e “B”, preferindo a ideia de discurso como “efeito de sentido” entre “A” e “B” (PÊCHEUX, 2002). Rocha (2014) destaca, a partir dessa concepção, que fica evidente para a AD que “A” e “B” não correspondem “a presença física de organismos huma- nos individuais”, mas figuras e lugares passíveis de uma descrição sociológica (como vimos no exemplo, a figura do médico que oferece doces ou o desco- nhecido, sob as mesmas condições), e inseridos em um contexto recheado de uma série de formações imaginárias que irão orientar a imagem que fazem de si e do(s) outro(s), bem como da circunstância, modo, tempo e lugar em que se dará o discurso. Dessa forma, estabelecem-se as relações entre indivíduos, suas posições e os lugares do discurso segundo uma lógica particular: o indivíduo inter- pelado em sujeito pelas formações discursivas (que representam na materia- lidade linguística as formações ideológicas que lhes correspondem) levará adiante diversos processos discursivos, entendidos como “sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos linguísticos – significantes – em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1997, p. 161). 2.2.1 As características do discurso segundo Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau Essas ideias pêcheuxtianas nucleares abriram o caminho para outrascon- fabulações sobre o discurso e seus elementos de influência, entre eles, as pro- postas do linguista francês Dominique Maingueneau. Em um sentido abran- gente, para Maingueneau, o discurso estará inscrito não tanto um campo de investigação capaz de ser delimitado, mas particularmente em uma forma de apreensão da linguagem, que presume a “atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados” (MAINGUENEAU, 2015, p. 43). – 37 – O Discurso Com essa proposta, Maingueneau (2015, p. 56) passa a definir discurso como prática discursiva, ou seja, uma “reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso”. Mais ainda, o linguista francês, em cola- boração com Patrick Charaudeau, apresenta as bases e características do dis- curso, sob sua visão (2004), a qual acrescentaremos algumas ponderações. a) o discurso supõe uma organização transfrástica (ou seja, o sentido está além de um simples agrupamento de palavras que formam uma frase ou um texto): o que não significa dizer que todo discurso se utiliza de sequências de palavras de efeito “superior” a uma frase, mas que ele põe em ação estruturas de ordem distinta àquela da frase. Por exemplo, quando alguém diz “vote consciente” ou se proferimos um provérbio como “o bom filho à casa torna”, teremos um dis- curso, pois temos ali uma unidade completa que mobiliza inclusive aspectos culturais, memória, política, entre outros, ainda que cada uma seja composta por uma só frase. Tanto a frase no imperativo “vote consciente” quanto o adágio popular, ao evocar memória política ou cultural (e até religiosa), trazem consigo diversos valores representados, portanto, temos ali um objeto linguístico impreg- nado de história, ideologia, sociedade, indivíduos, um discurso do ponto de vista da AD. b) o discurso é orientado: para Charaudeau & Maingueneau (2008), o discurso se constrói em função de uma finalidade, considera-se que vai “chegar a alguma parte”. Contudo, no meio do caminho ele pode desviar-se, tomar outro rumo, voltar ao início, depois ao fim e recomeçar. Além disso, se resgatarmos a teoria pêcheuxtiana, recordaremos que o discurso pode ser orientado em direção a um objetivo, mas jamais seriado, justamente porque carrega em si o próprio passado (referências históricas, vivências sociais arraigadas, princípios morais construídos e legados de geração em geração), presente (o que está sendo dito e não dito neste momento) e futuro (o modo como esse discurso reforçará ou não os valores atuais ou como irá ajudar ou atrapalhar na construção de outros). c) o discurso é um tipo de ação: a teoria dos Atos de Fala de John Lan- gshaw Austin, publicada em How to do things with words (1962) e seguida por John Searle (1969), enfatizou novamente a noção Análise do Discurso – 38 – de que falar é mais do que simplesmente transmi- tir uma mensagem, mas sobretudo uma forma de exercer uma influência ou executar uma ação no interlocutor e no mundo circundante, a qual terá efeito prolongado e dialogará com as três dimensões temporais (passado, presente e futuro). À luz dessa proposta, a enunciação seria um ato direcionado para modificar uma situação (interrogar, sugerir, indicar, influenciar), e cada um desses atos se agruparia em discursos que encontramos no cotidiano: panfletos, artigos, uma entrevista na TV, etc. Ao profis- sional de AD, portanto, caberia examinar como esses atos se inte- gram nos distintos discursos e de que modo o conjunto representa uma das facetas da materialidade ideológica. d) o discurso é interativo: a interatividade estaria representada no fenô- meno da conversação, composta por dois sujeitos falantes que alter- nam suas enunciações com base numa troca, ao mesmo tempo em que são capazes de perceber os efeitos do diálogo no exato instante em que são produzidos, modulando dessa forma as idas e vindas das palavras. Contudo, Charaudeau e Maingueneau (2004) nos lembram de que nem todo discurso encontra sua origem na conversação, afi- nal, além dos discursos escritos, os falados também não são apenas fruto de uma conversação, mas de atos de fala que podem não exi- gir interação entre locutores, como por exemplo, uma conferência, uma emissão radiofônica, entre outros. Se é assim, então por que os linguistas asseveram que o discurso tem como característica a interatividade? Porque não devemos confundir interatividade com interação oral, ou seja, toda enunciação, ainda que gerada sem uma figura de destinatário determinada, traz implícito um intercâmbio, uma recepção por parte de um interlocutor ou leitor que irá reagir perante essa enunciação, desencadeando o processo interativo. Nesse sentido, fica claro que a interatividade do discurso não reside no fato de este ser necessariamente uma conversa, mas por trazer subjacente a figura real ou virtual de um ou vários interlocutores, estabelecendo com este(s) um câmbio. A conversa é apenas uma manifestação, uma forma de discurso. – 39 – O Discurso e) o discurso é contextualizado: como sabemos, extrair uma enunciação de seu contexto não permite que se lhe atribua um significado, pois, se resgatarmos noções básicas sobre linguagem e contexto, perceberemos que as atividades que envolvem o uso da língua e da linguagem, mesmo destinadas a cumprir diferentes metas, são permeadas constantemente pelos elementos que compõem a socie- dade, a história e a cultura. Além disso, não podemos considerar o contexto como um marco, uma moldura para o discurso, mas como um elemento que se entrelaça com este último, a ponto de conseguirem influenciar-se mutuamente. Assim, o discurso contribui para definir seu contexto e este, carregando as marcas sociais, históricas, culturais e políticas, também modela aquele. f ) o discurso é assumido: o discurso só pode ser considerado como tal a partir do instante em que reflete as referências culturais, pessoais, políticas e sociais de quem o produz, embora o grau de envolvi- mento de quem emite esse discurso possa ser variável. Seguindo essa linha, ao emitir um discurso, o produtor pode atribuir a outrem a responsabilidade dos conceitos ali expostos, pode fazer digressões, contradizer-se, usar figuras retóricas como a ironia, para deixar evi- dente que não concorda com o que está sendo expresso. Mesmo assim, a subjetividade estará plasmada ali; o que vai exigir atenção especial do analista do discurso é a variação, isto é, as formas de subjetividade presentes no discurso em questão. g) o discurso é regido por normas: se partirmos da premissa que o dis- curso é a linguagem em funcionamento, e que esta se inscreve num contexto social regido por normas, percebemos que cada ato de linguagem, no caso o discurso, também estará submetido a regras particulares. Mas que regras seriam essas? De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2004), nenhum ato de enunciação pode ter lugar sem explicar, de alguma forma, o direito que tem de se apresentar como tal, isto é, sua inscrição num determinado gênero tem papel preponderante para sua legitima- ção. Imagine se um advogado apresentasse a defesa de seu cliente nos tribunais usando uma linguagem coloquial, recheada de gírias? Análise do Discurso – 40 – Ou se uma série de comédia popular para a TV lançasse mão de terminologias próprias de profissões? Ou mesmo uma propaganda veicular a verdade total acerca do novo produto que pretende intro- duzir com sucesso no mercado? 2.2.2 Discurso e sociedade Com base nas características delineadas pelos linguistas franceses, conse- guimos captar vários aspectos referentes ao discurso como ato de linguagem e as implicações que esse ato traz consigo. Um desses aspectos consiste na abor- dagem da relação que se estabelece entre linguagem e sociedade, pontuada por uma dinâmica interna e de reciprocidade. Essa mesma dinâmica interna nos revela que os textos são produtos da estruturação social da linguagem, ao mesmo tempo em que são potencialmente agentes transformadores dessa estruturação,assim como os eventos sociais são tanto resultado quanto subs- trato das estruturas sociais (RESENDE; PEREIRA, 2010). Ao usarmos as linguagens com a finalidade de comunicação, estamos simultaneamente representando nossa experiência no mundo, os construtos culturais, sociais, políticos e históricos que carregamos conosco e que foram gerados muito antes de estarmos produzindo discursos e até mesmo de nas- cermos. Mais ainda, como afirmam Resende e Pereira (2010), formamos diversos tipos de relações sociais, construímos identidades – até mesmo as nossas próprias –, agimos sobre o mundo ao redor e as pessoas, além de dia- logarmos por meio da linguagem com as três dimensões temporais. Sendo assim, as teorias de base da AD e a categorização das principais particulari- dades do discurso por Charaudeau e Maingueneau (2004) nos indicam que este não apenas se erige no meio social como também participa ativamente no ordenamento da sociedade. No entanto, Resende e Pereira (2010) afirmam que, ao contrário do que se costuma imaginar, a metáfora do espelho – reflexos mútuos – torna- -se insuficiente para designar a relação entre linguagem e sociedade: os dis- cursos não atuam como meros reflexos dos eventos e fenômenos sociais, mas colaboram para o fortalecimento ou enfraquecimento dos valores que permeiam a sociedade, servem como substrato para mudanças ou períodos de estagnação social. – 41 – O Discurso À luz dessas concepções, não há margem de dúvida de que pesquisas que examinam o vínculo entre aspectos discursivos e não discursivos de prá- ticas sociais viabilizam o desenvolvimento de estudos e análises relativos à materialização discursiva de questões sociais e à disseminação ou supressão de princípios vigentes, e está ali uma das maiores razões de se estudar o discurso considerando as teorias da AD. Igualmente, fica evidente que essas práticas sociais, guardando uma constante relação com as mais variadas áreas de atividade humana, têm um integrante discursivo, em maior ou menor escala, dependendo de sua natu- reza. O discurso, portanto, se forma paralelamente a essas práticas, bem como lateralmente a outros eventos não-discursivos (RESENDE; PEREIRA, 2010). Levando em consideração as teorias aqui apresentadas, passamos a entender que a AD, ao articular-se com o conceito de práticas sociais, pode ser de extrema valia para a observação, problematização e reavaliação de ques- tões sociais urgentes que precisam ser modificadas, saindo do campo da teoria da AD e alcançando a realidade em que vivemos. Resende e Pereira (2010) consideram que diferentes âmbitos oferecem subsídios para que analistas do discurso possam, por meio de suas pesquisas, promover indiretamente essa remodelação dos valores sociais em vigor. Uma das esferas que forneceria vasto material é a mídia, isto é, os meios de comunicação. O ponto de partida para essa análise estaria na observação do modo como a dialética entre linguagem e sociedade se materializa no encontro entre mídia e sujeitos, ou mais ainda, entre os meios de comunicação e a sociedade como um todo. Os autores destacam que muitos outros campos também tra- riam rico material de estudo para os profissionais da AD, mas devido ao papel fundamental que a mídia exerce na sociedade moderna (inclusive também por meio da internet). Mas podemos nos perguntar: de que modo devemos trabalhar com o vínculo entre mídia, sociedade e AD? Primeiramente precisamos recordar que, para a AD, as mensagens não são seriadas, isto é, passadas unicamente de um emissor para um receptor, e estão completamente impregnadas de ideologias, valores construídos ao longo da história, cultura e política. Se estendermos essa ideia aos meios de comunicação, perceberemos que mais do que simplesmente veicular infor- mações para os indivíduos, a mídia é responsável pelo revigoramento ou des- Análise do Discurso – 42 – construção de enquadramentos, marcos interpretativos e referências indivi- duais e coletivas. São uma presença constante no dia a dia dos sujeitos e, por conseguinte, fazem parte da estruturação das relações, eventos e fenômenos sociais, são capazes de incutir novos conceitos e princípios morais que passam então a conduzir e formar a mentalidade de comunidades inteiras. Nesse sentido, os meios de comunicação acabam exercendo influência preponderante em distintas esferas, abrangendo desde núcleos sociais como a família, até mesmo a organização da sociedade como um todo, isto é, a política e sua dinâmica. Suas ações estendem-se também ao que consumimos (produtos, marcas, mercadorias de todos os tipos), as ideias que propagamos e até mesmo o conhecimento ao qual temos alcance, tudo é permeado pela comunicação mediática. Vimos até aqui as características do discurso em seus pormenores, assim como a relação que este estabelece com o meio social e os sujeitos. No entanto, como a AD também envolve prática de análise, vamos seguir a proposta feita por Resende e Pereira (2010) e observaremos o discurso da mídia na práxis. 2.3 O discurso na prática Diariamente recebemos e produzimos discursos e, como estudamos nas teorias de base da AD, todos estão entremeados de construções dirigidas a manter ou modificar valores sociais, políticos, culturais, entre outros. Se já percebemos que até uma simples propaganda de restaurante pode conter diversos significados e evocar construções de diversas ordens, imaginemos então o que uma notícia de jornal cotidiana traz subjacente. É com esse pen- samento que uma linha de pesquisa chamada AD e Mídia trabalha: articu- lando a produção jornalística cotidiana com os conceitos de AD. Analistas de discurso voltados para a observação minuciosa das subcamadas de um texto de jornal ou revista e como seus elementos textuais e extratextuais atuam para levar o leitor a produzir formas simbólicas de representação do seu entorno, da realidade circundante. Como propusemos, vamos nos colocar no lugar de um analista do dis- curso de mídia: vamos examinar elementos de uma notícia publicada no jor- nal O Estado de São Paulo, no dia 17 de abril de 2012, na seção internacional. – 43 – O Discurso Figura 2.1 – Exemplo de notícia de jornal Fonte: O Estado de São Paulo (2012). À primeira vista, a reportagem informa que a então presidente da Argen- tina, Cristina Kirchner, submeteu ao Congresso um projeto de lei para esta- tizar a petrolífera argentina que, entretanto, pertence à Espanha desde 1999. A decisão de Kirchner, evidentemente, provocaria uma reação imediata do governo espanhol e dos mercados internacionais, provavelmente bastante negativa. Mas o que mais o jornal quer nos dizer com esse texto e todos os elemen- tos que o compõem e complementam, inclusive visuais (foto)? Observemos a foto: Kirchner tem ao fundo a imagem delineada de Evita Perón, famosa política argentina que marcou sua governança pelo interesse dedicado às massas desassistidas e seus problemas, mas, para alguns, esse perfil voltado às desigualdades sociais era apenas uma estraté- gica demagógica para chegar ao topo da política daquele país, como assim conseguiu. Outro aspecto importante: a então presidente segura com uma das mãos uma amostra de petróleo extraído na Argentina, mas se pusermos atenção, notaremos que a tal amostra apresenta o formato de um corpo humano, em que braços, tronco, pescoço e cabeça são formados por uma fita com as cores da bandeira argentina. A primeira pergunta que vem à cabeça de um especialista em AD de mídia não é se a foto e os componentes textuais ali apresentados foram colo- cados intencionalmente ou se foram parte de uma escolha aleatória, pois ele Análise do Discurso – 44 – sabe que nada é randômico num discurso, mas de que modo essa imagem traz o passado e faz com que este atravesse o presente. Mais ainda, o especialista verifica o modo como ela sintetiza e veicula as “verdades” estabelecidas por uma determinada parcela da sociedade ou quais valores ela almeja perpetuar e reforçar ou demonizar.
Compartilhar