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LACAN WEB TÉLÉVISION TRANSCRIÇÃO Laurent Dupont entrevista Marie-Hélène Brousse OS MODOS DO SEXO Laurent Dupont: Gostaria, de imediato, de lhe fazer uma pergunta em relação à questão do gênero e, mais particularmente, à questão da criança transgênero, como se diz hoje, dois comentários, em especial, tiveram grande sucesso: Pequena garota e Stela. Vemos que há um tratamento da fala da criança com uma certa literalidade, transformando uma palavra, uma reflexão, um sentimento, algo vivenciado em uma demanda articulada a uma certeza por parte do Outro. É a resposta do Outro sobre uma base de certeza. Eu lhe pergunto: o que acontece com o íntimo neste momento, o que acontece, afinal, com o inconsciente do sujeito? Marie-Hélène Brousse: Esta é efetivamente uma verdadeira questão apresentada pelo problema da mudança da época. Há a abertura de uma fala pública – ou seja, do discurso comum, do discurso corrente – onde a dimensão da metáfora diminui. Em outras palavras, a fala se torna – hesito em dizer literal, mas – não há mais tanta diferença entre a fala e o real. Estamos em um período de mutação do semblante, como se a dimensão do real se impusesse. Então, o que eu chamo de real aqui? Chamo de real o contrário da realidade psicológica, da realidade psíquica, da qual, graças ao último Lacan, sabemos “que todo mundo delira”. Pois bem, hoje, essa dimensão do “todo mundo delira”, de algum modo, passou para o real. Há uma perda do lado dos semblantes. Penso que é fundamental, que é preciso apreender essa viragem da época, porque a psicanálise tem algo a dizer sobre isso. Ela disse isso, primeiro, com J.-A. Miller, quando ele inventou a dimensão do inconsciente real e a do corpo falante. Mas é preciso estar consciente de que, pelo aumento do poder das ciências e, em particular, das ciências biológicas, que trabalham com o corpo, que podem modificar o corpo sem temer a morte – que ainda assim é o mestre absoluto – devido a essa ascensão, progressivamente tornou-se possível o fato de que temos de lidar com um corpo biológico, a quem damos a fala, se posso dizê-lo de modo forçado. Então, sobre a história que você evocou dessa criancinha que queria se tornar trans, ou seja, mudar de sexo biológico – como bem lembrou François Regnault e como J.-A. Miller tweetou: sim, só há dois sexos orgânicos – mas há os gêneros, por um lado, e há também um real que tende a libertar-se dos semblantes. Por conseguinte, eu diria que estamos em um período em que é preciso balizar-se mais na clínica borromeana pelo enodamento, do que na clínica estritamente estrutural que, de algum modo, não está ultrapassada, mas integrada à clínica borromeana. E, no fundo, a abordagem dessa criancinha por uma clínica borromeana é interessante. Diria também que li dois artigos de jornais nos quais dois homossexuais tomavam a palavra, dizendo que, quando crianças, eles se perguntavam se não eram trans. E, de fato, eles explicavam que era porque não conheciam o modo de gozar homossexual, que estava em gestação neles, que se voltavam para essa perspectiva. Mas, evidentemente, a partir do momento em que, se assim posso dizer, “seu modo de gozar homossexual” lhes apareceu claramente, eles compreenderam que, efetivamente, não eram trans, mas apenas homossexuais. Portanto, creio que se pode cogitar, enfim, no âmbito político, o fato de que esse pensamento trans se impõe como sinal de certa emancipação do real biológico em relação ao real da fala, e penso que temos de escutar esses sujeitos como escutamos todos os sujeitos. Alguém que tenha feito uma operação biológica em seu corpo, que terá transformado seu corpo: será que ele terá menos vontade de falar disso? Será que ele sofrerá menos da relação que passará ou não passará por sua fantasia? Será que ele sofrerá menos do laço social? Não! O que leva as pessoas à análise é um sofrimento, seja ele qual for. Penso que devemos manter essa bússola. L. D.: É formidável essa resposta. Será que isto quereria dizer que, finalmente, as questões que tocam as crianças, os adolescentes – talvez desde sempre, com essas modificações do corpo, com o que está em jogo sobre o sexual, que não se reabsorvem, nem no biológico, nem no simbólico, nem no imaginário – levam hoje, por fim, por meio da ciência, a novas respostas, respostas outras? De saída, a pluralização dos modos de gozar, tal como Lacan... M.-H. B.: Apenas um comentário: quanto te escuto, me dou conta de que, para resumir meu pensamento, no fundo, o que a subjetividade da época efetua é o corte entre corpo e falante. Esta formidável expressão de J.-A. Miller, “o corpo falante”, pois bem, estamos diante de um movimento que separa o corpo do falante. E a perspectiva da psicanálise é, precisamente, a de manter ligado o corpo com o falante. Alguém que quer se submeter a uma cirurgia para se tornar de um gênero que lhe convém, essa pessoa corta a noção do corpo falante, ela se define apenas por sua corporeidade biológica. Mas toda a experiência analítica vai no sentido de que esse corte nunca funcionará. Nunca funcionará, no sentido em que essa ruptura constitutiva, essa divisão, essa figura de divisão entre corpo falante, ninguém nunca a superará, mesmo que se submeta a todo tipo de cirurgias. L. D.: O lugar da psicanálise é, então, o de restabelecer a fala no ponto em que ela foi cortada, onde foi cortada do corpo, isto é importante. Tenho outra questão, Marie-Hélène: vimos, na manifestação de 8 de março pelo dia dos direitos das mulheres, um confronto entre trans e feministas. Ora, você escreveu um livro maravilhosos, “Mode de jouir au féminin”, um livro muito importante. Parece-me que, ali, a discussão - era mais que uma discussão, um confronto – concernia justamente à questão: o que é ser uma mulher, o que é uma mulher? Então, você teria alguma coisa a nos dizer, não sobre o que é ser uma mulher, mas sobre o que a psicanálise pode esclarecer acerca desse questionamento que levou a um confronto violento? M.-H. B.: Falávamos sobre a questão dos trans, tal como ela situa o sexo mais do lado do real do corpo biológico. Seria bom, mesmo assim, não esquecer de ter em mente o tempo todo – algo que será um tema de trabalho para os dois próximos anos -, a saber, o tema que era para o Congresso e que estará, agora, em Visio. L. D.: A Grande Conversação Virtual Internacional da Associação Mundial de Psicanálise. M.-H. B.: Isso! Então, este é o próximo tema: “A mulher não existe”. Isto ancora o que a psicanálise concebe como o feminino, o A barrado. Não há o universal, há indivíduos singulares, corpos falantes singulares. E o fato de que hoje alguns corpos falantes reivindiquem para si um gênero ou uma biologia especifica, não muda em nada o fato de que, mesmo se submetendo a uma cirurgia, de um jeito ou de outro, não há como alcançar um A (de A mulher) que fundamentalmente se esquiva porque é barrado. Pode-se tornar- se uma mulher, mas não se poderá tornar-se A mulher. A única maneira de fazer existir A mulher é ser histérica, ou seja, crer nisto. Nunca tive dificuldades, no âmbito da minha análise pessoal – e ela foi muitas vezes relançada pelo trabalho de analista – nunca tive dificuldades de ser uma mulher, nunca achei que isto era uma maldição. Isto não me impediu de ser feminista, no sentido clássico do termo, ou seja, de lutar pelo aborto, pela liberdade etc. – mesmo que considere ser sempre um drama, eu era a favor dessa liberdade das mulheres e continuo sendo – mas nunca pensei que fôssemos toda-mulher. Sempre considerei que os homens, os “ditos homens”, como diz Lacan em “Mais, ainda”, e as “ditas mulheres”, eram UOM como os outros, isto é, corpos falantes. Portanto, não acho que a diferença biológica seja essencial na pratica analítica, uma vez que ela se refere aos modos de gozar. Tanto que, em “Mais, ainda”, Lacan é bastante prudente. Primeiro ele éofensivo, cuida muito bem de dizer que não há nenhuma complementaridade entre os “ditos homens” e as “ditas mulheres”, já que o que ele escreve nas fórmulas da sexuação é precisamente o suplementar. Portanto, se entendemos o feminino, o gozo feminino, como suplementar, não vemos porque ele não poderia suplementar os “ditos homens” e as “ditas mulheres”. Não vemos porque os homens não conheciam – aliás, é por isso que trabalhei sobre a questão do êxtase este ano, com Laura Sokolowsky - não vemos porque os homens não conheciam o gozo feminino. Não vemos por que o gênero deles os impediria disto. O modo de gozar não é do registro da identificação. O gênero feminino e o gênero masculino, além de ser primeiramente questão de gramática, e mais, aí temos a ortografia inclusiva -, então viva a ortografia inclusiva, então incluamos! Incluamos os homens com as mulheres! Os seres falantes, eles falam e se incluem, o que podemos pedir de melhor? Nada! Por que então essa experiência de gozo feminino suplementar não viria do lado homem? São João da Cruz fala disso: ele se põe na posição de ser a mulher do Senhor. Ele visa alto, do ponto de vista do parceiro, mas é semelhante a Santa Teresa d’Avila. Ela fundou, creio eu, entre 16 e 20 conventos, fundou uma Ordem, dirigiu-se ao papa: uma empresária determinada. Isto não a impediu de ter êxtases, nos quais experimentava esse gozo feminino, aos quais, aliás, ela deu um nome, ela realmente vivenciou isto. Não acho que, em termos de gozo suplementar, se possa excluir os homens como biologicamente definidos e marcados por um gênero definido. Penso que isto não é possível. Quando o gozo sexual está em jogo... então, evidentemente o gozo feminino é inconsistente, é aleatório, é tudo o que o gozo fálico não é. Ele é tudo o que o gozo do órgão não é. Mas, quando uma mulher se masturba, ela experimenta o gozo fálico. A questão é que nem tudo se resume ao sentido fálico. L. D.: Sim. M.-H. B.: Isso é o que me faz pensar que a psicanálise, que se interessa mais pelos diferentes modos de gozar, seja o objeto a, seja o gozo de sentido, seja o gozo... por que Lacan faz uma diferença entre menos phi e Phi maiúsculo, o impossível de negativizar? Eis uma questão que também pode nos orientar sobre esse caráter suplementar do gozo feminino em relação ao gozo do órgão ou ao gozo da fantasia. Aliás, quando alguém utiliza uma fantasia para gozar falicamente, está em todos os lugares. O que não é o caso no próprio ato. Portanto, creio que há recursos suficientes na psicanálise para tratar as novidades que se apresentam no discurso atual. Mas é certo que a especificidade da psicanálise é a de colocar o corpo falante, o parlêtre, ali onde a primeira clínica, estrutural, colocava essencialmente o sujeito. O sujeito não é o parlêtre, o sujeito não é o corpo falante. O sujeito é um efeito, um efeito de representação, o sujeito é representado por um significante para um outro significante. O sujeito não tem um ser; aliás ele se define pela falta a ser. L. D.: Muito bom! Eu lhe agradeço muito. M.-H. B.: Obrigada principalmente a você. L. D.: Até logo! M.-H. B.: Até breve! Publicado em 23 de maio de 2021 no canal Lacan Web Télévision no Youtube. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=kM2Ogcq3CaU > Transcrito por Priscila Gomes de Oliveira
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