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Gozos da mulher - Leda Guimaraes

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Sumário
Prefácio
Viver, amar, gozar
Parte 1
Estados Unidos
O estatuto da feminilidade na
contemporaneidade
Parte 2
Argentina/ Brasil
Da crença no pai para a crença
n’A Mulher
Puta, o nome do supereu
Mulher sinthoma do homem
Sublimação e posição feminina
Referências bibliográficas
Lêda Guimarães
GOZOS DA MULHER
DA DEVASTAÇÃO À VIVIFICAÇÃO
KBR/ Petrópolis/ 2014
Coordenação editorial Noga Sklar
Editoração KBR
Capa KBR sobre Antonio da Correggio, “Jupiter
e Io”, óleo sobre tela, circa 1533.
Copyright © 2014 Lêda Guimarães
Todos os direitos reservados à autora.
ISBN: 978-85-8180-317-3
KBR Editora Digital Ltda.
www.kbrdigital.com.br
www.facebook.com/kbrdigital
atendimento@kbrdigital.com.br
55|21|3942.4440
PSY016000 - Psicologia, sexualidade
Lêda Guimarães é psicanalista e escritora,
membro da EBP — Escola Brasileira de Psicanálise, e
da AMP — Associação Mundial de Psicanálise. Foi
AE — Analista da Escola da EBP-AMP (2000-2003).
Tem mais de cem textos publicados em várias línguas,
em livros e revistas de psicanálise. Alguns deles estão
reunidos pela primeira vez neste livro, seu primeiro
publicado pela KBR.
Email: leda.guimaraeslg@gmail.com
Segredos, silêncio, obstinam-se sentados nos
castelos escuros de nossos dois corações: segredos
cientes de sua tirania:
tiranos desejando ser destronados.
James Joyce, Ulysses.
PREFÁCIO
VIVER, AMAR, GOZAR
José Vidal1
Se, como nos orienta Lacan, a psicanálise deve fazer
uma leitura do modo como uma época vive a pulsão,
Lêda Guimarães nos oferece um instrumento
absolutamente válido para fazê-lo. Os interessados em
como tratar o mal-estar cultural no século XXI, tanto
desde o ponto de vista teórico como do ponto de vista
clínico, encontrarão neste livro uma abordagem nova e
atualizada com relação às tradições da psicanálise e ao
pensamento contemporâneo.
Como bem sabemos, os achados da psicanálise
sobre a sexualidade humana são notáveis. Convém,
porém, deixar claro que não são formulações sob a
perspectiva da sexologia, nem sequer da psicologia.
Embora pudesse fazê-lo, a psicanálise não encara as
condutas sexuais de homens e mulheres a partir da
observação da espécie animal, como uma etologia.
Essa pretensão existe de fato na cultura, onde
proliferam estudos que parecem científicos, sobretudo
indagações estatísticas que tentam descrever, definir e
precisar o comportamento humano normal com relação
à sexualidade, o que, regularmente, não conduz a nada;
melhor dizendo, induz ao pior, incrementando os
prejuízos e temores que pairam sobre a vida erótica.
A psicanálise, diferentemente, não se concentra
no comportamento, que evidentemente tem variações
infinitas, mas busca fundamentalmente capturar a
significação que o sexo adquire na vida subjetiva das
pessoas. Isso se efetiva partindo-se do simples fato de
que os seres humanos falam e desnaturalizam a
sexualidade, exilando-a do que seria uma “natureza”
animal ou uma determinação biológica. A vida das
relações dos seres que falam, não só a vida sexual,
está definitivamente separada do que poderíamos
chamar de “instinto” pelo fato de que o significante, ao
incidir no corpo, transforma-o radicalmente. O corpo
humano, suas zonas erógenas, a boca, o ânus, os olhos,
os ouvidos e quaisquer outros órgãos são passíveis de
um afastamento de suas funções fisiológicas para
serem transformados em aparatos de gozo, que podem
fluir pela via do prazer ou sofrimento, surgindo daí
possibilidades tão variadas que não poderíamos de
maneira nenhuma encontrar um tipo instintual
específico para a espécie humana.
Aliás, Freud abriu uma verdadeira Caixa de
Pandora ao inserir na cultura certas ideias, como a
sexualidade infantil, os desejos incestuosos
inconscientes, as fantasias de sedução e de castração,
e, principalmente, as consequências psíquicas que
derivam da diferença anatômica entre homens e
mulheres — quer dizer, ao propor que afetos no
psiquismo humano determinam o comportamento.
A diferença entre os sexos passa a ser
determinada por ter ou não ter um pênis, quer dizer,
pela presença ou ausência do falo, sendo este o nó em
torno do qual Freud organizou a clínica e a teoria
psicanalítica das neuroses, baseado na angústia de
castração, de onde provém a dissociação e a
conversão para a histeria, os sintomas e defesas da
neurose obsessiva, para as quais Lêda Guimarães
formula uma hierarquia renovada, articulando-as ao
supereu conforme o pensamento de Lacan.
Ainda segundo Freud, os fenômenos próprios da
psicose e da perversão também se organizam em torno
da castração, como consequência de um rechaço
fundamental ao falo — enquanto ordenador do mundo
simbólico —, ou como um desmentido dessa castração
simbólica, da qual o falo advém como metáfora.
Para fundamentar essas proposições, Freud
situou em primeiro plano a função do pai: é o pai, como
figura simbólica por excelência, que atua como agente
dessa ameaça de castração, tendo o falo como centro
da organização subjetiva. Porém, o fato de ter ou não
ter o falo, esta predominância do falo na concepção da
sexualidade humana e na etiologia das neuroses e
psicoses deixava todo um campo inexplorado, o que
não escapou ao próprio Freud: a sexualidade feminina.
Nesse território, era possível reconhecer
experiências que não podiam ser explicadas a partir
desse dispositivo conceitual centrado no pai/ falo, no
ter ou não ter. Os artigos de Freud sobre a
feminilidade, e em seguida as formulações de Lacan
sobre a sexualidade das mulheres, abriram um capítulo
investigativo onde proliferam mais dúvidas do que
certezas, e isso tem motivado muitos analistas a
questionar, debater e publicar textos em torno do tema.
Com reiterada generosidade, Lêda Guimarães vem me
acompanhando em algumas investigações, nas quais
temos obtido importantes avanços sobre a nomeação
da mulher na fantasia masculina, algo que em algum
momento publicaremos.
A evolução da sexualidade humana no século
XXI mostra claramente que essa indagação sobre o
planeta feminino não foi concluída; e mais, parece que
as mudanças vertiginosas às quais a ciência nos
submete, assim como o desenvolvimento das
sociedades capitalistas, nos confrontam com novas
experiências em relação à quais a psicanálise precisa
fazer um esforço e se atualizar.
Efetivamente, a queda do nome do pai como
ordenador da vida subjetiva — a pedra básica da
psicanálise durante o século XX — é um fato
incontestável, advindo do movimento político
desencadeado pelo discurso da ciência, verdadeiro
mestre de nosso tempo, a partir do qual vemos surgir
formas inéditas de gozo. As neossexualidades, as
formas inéditas de composição da família, a obtenção
de crianças por meios tecnológicos, o surgimento de
novas e cada vez mais surpreendentes formas de
procriação — nas quais desaparece progressivamente
a ligação entre o ato sexual e a reprodução —, e a
seleção genética, já uma realidade entre nós, fazem
com que a tão comentada função paterna na
psicanálise seja transformada em uma figura de
museu.
Vale também mencionar os avanços tecnológicos
de drogas que garantem a potência sexual e o controle
da natalidade, técnicas que permitem estabelecer a
filiação e os infindáveis recursos médicos que
permitem mudar a aparência, além de prolongar a
juventude e a vida — todas essas coisas modificam
radicalmente o modo como se vive a sexualidade, que
há apenas poucos anos era condicionada pela
possibilidade de gravidez indesejada e de infecções,
pela decrepitude natural da idade, pela finitude da vida.
Desse modo, ao modificar as condições de vida pela
introdução de novos recursos, a moral e os costumes
sociais tradicionais se transformam e se adaptam aos
novos tempos. A fidelidade, o adultério e a poligamia
são figuras que vão se retirando a partir das novas
possibilidades de gozo que a civilização coloca aoalcance de todos, inclusive estimulando seu uso através
do mercado. Diante da realidade, que se impõe de
modo crescente à sociedade, que já não necessita de
certas proteções, as próprias religiões devem modificar
seus dogmas, destinados a preservar a família, a
filiação e a herança.
Além do mito edípico estabelecido por Freud, que
organizava nosso pensamento em torno da família
tradicional, fica evidente a necessidade de novos
parâmetros conceituais que acompanhem essas
mudanças na vida sexual. Neste sentido, a partir de
uma releitura do que Miller vem chamando de “último
ensino de Lacan”, Lêda Guimarães nos propõe um
novo ordenamento das ideias na psicanálise, levando
em conta especialmente, como instrumento
privilegiado, a sexualidade feminina.
O “último ensino de Lacan” foi a maneira que
Miller encontrou para introduzir um corte no
pensamento de Lacan e ressaltar o que surge a partir
do Seminário 20, Mais, ainda, no qual Lacan
abandona a doutrina do significante em que havia se
apoiado desde o “Discurso de Roma”, ainda que esta
referência linguística permaneça como um antecedente
indispensável. Com esse recurso, esse corte forçado
nas formulações de Lacan, Miller alavancou o
movimento do real no século XXI, atualizando a
psicanálise diante dos desafios de nossa época e
proporcionando novos instrumentos para sua prática e
desenvolvimento da teoria. Com o “último ensino”
passamos a dispor de uma nova topologia, na qual a
afirmação de uma equivalência entre os três registros
— simbólico, imaginário e real — substitui o privilégio
do simbólico enquanto estruturante da subjetividade, o
que nos permite pensar a experiência humana sob uma
perspectiva que, sem prescindir deles, transcende o
falo e o pai, dando lugar a um gozo que vai além do
Édipo freudiano — o que implica que além do gozo
fálico masculino, relativo ao ter ou não ter, é possível
conceber um Outro gozo, diverso daquele fundado pelo
pai, que Lacan denomina “gozo da mulher“. Sob uma
perspectiva estruturalista, isso conduz claramente a
clínica psicanalítica a transpor os limites dos
diagnósticos, indo para um outro campo onde
prevalece a estratégia singular de cada sujeito para
suprir uma falha inaugural.
Lêda Guimarães nos introduz de imediato nessa
dimensão impensável que mobiliza os pilares da
tradição social — aí incluídos os pilares da psicanálise
—, onde não se trata mais do sentido ou do discurso do
Outro, da tradição, da ordem simbólica, mas do gozo,
do corpo gozante, que, ainda que não seja
independente da palavra, ainda que surja justamente
como contragolpe do significante, não pode ser por ele
capturado. Mais ainda, o determinante da subjetividade
é justamente aquilo que a palavra segrega, porque não
pode ser dito. Sendo a psicanálise uma experiência que
se situa no campo da palavra, não poderia ser de outro
modo: a dimensão que escapa à palavra passa a ser
capturada no que resta de um dizer.
A referência fundamental dessa ideia é sem
dúvida encontrada nos quadros da sexuação propostos
por Lacan no Seminário 20. Porém, o que nos chama
imediatamente a atenção nos textos de Lêda
Guimarães é que não são apenas mero comentário de
Lacan ou de Miller, nem partem de elaborações
teóricas ou de leituras eruditas, ainda que não deixe de
utilizá-las, mas que ela escreve a partir da própria
experiência de uma mulher que toma a palavra. Quer
dizer, não se trata de uma escrita indiferente, ascética,
com pretensões científicas ou universitárias, mas de
uma força testemunhal que emerge da experiência
própria na análise.
Lêda pôde dar conta dessa experiência analítica
durante os três anos em que assumiu na EBP a função
de Analista da Escola. Os conceitos emprestados de
Freud, Lacan e Miller foram então articulados ao que
foi efetivamente experimentado em seu corpo, em sua
própria análise e na análise de seus pacientes, das
quais resgata momentos memoráveis. Toma inclusive
como referência sua própria sexualidade, sua
experiência como mulher no sexo e no amor, e disso
resulta que seu livro tenha algo muito vivo, a que o
leitor dificilmente poderá ficar indiferente, já que a
teoria torna-se secundária em relação a algo
efetivamente vivido.
Essa corda é tensionada ao extremo para nos
fazer perceber um fenômeno que está presente em
quase todos os capítulos deste livro: o limite — um
limite que pode existir entre a palavra e a letra, entre o
sentido e o gozo inapreensível, um limite que distingue
o masculino do feminino, o pensar da loucura, aí
incluídos os confins que separam a vida da morte.
Esta última formulação é um postulado de Lêda
Guimarães. Ainda que a autora não o tenha
expressado exatamente dessa forma, pode-se ler que,
com os mesmos elementos pulsionais que habitam o
corpo, o gozo conduz tanto para a vida como para a
morte; tudo dependerá do uso que o sujeito faça deles
quando confrontado a esse limite. Com essa margem
tênue, vemos que é possível oscilar entre um supereu
devastador e mortificante e experiências de gozo muito
vivificantes: Eros e Tanatos se movem numa dança
onde a supremacia de um ou de outro dependerá da
operação analítica e da decisão do sujeito.
Para Lêda Guimarães, este é o desafio que a
psicanálise deve enfrentar: uma escolha de ferro entre
a versão arcaica do pai superegoico, moralizante, e a
liberação das forças vivificantes capturadas no gozo
feminino. Audaz como Lacan, ela toca nos pilares da
tradição psicanalítica, e a seu modo nos faz pensar
numa certa liberação, numa emancipação — como
diria meu amigo Jorge Alemán — das defesas que
impedem o surgimento desses aspectos vivificantes do
gozo feminino, defesas que Lêda gosta de chamar de
“obsessivas”, para identificá-las ao regime fálico.
Estamos, sem dúvida, no momento de síntese de
uma luta que as mulheres vêm travando nos últimos
cem anos, por seus direitos sociais, sexuais e humanos,
e sua iminente vitória tem produzido consequências
enormes no mal-estar da civilização atual. Faltava um
modo de descrever estas mudanças do ponto de vista
da psicanálise.
A própria psicanálise, ao mostrar sua estrutura
de ficção, contribuiu de maneira fundamental para a
queda dos emblemas paternos, e, por consequência,
para a emancipação da mulher. Nesse ponto emergem
problemas teóricos que Lêda Guimarães resolve com
habilidade: o gozo feminino, o Outro gozo, o que
escapa da significação, o que se situa além do falo, não
é algo que se limite a uma experiência feminina; ao
contrário, é compartilhado por todos os seres falantes,
sejam homens ou mulheres, quando se veem
confrontados com o amor. Desse modo, não se trata
aqui de um ensaio sobre o que ocorre às mulheres, de
uma psicologia feminina, pois o homem e a mulher
aparecem equiparados.
O amor aparece como uma mola essencial para
o entendimento da experiência do real para ambos os
sexos, como causa de devastação ou como saída da
cilada sintomática, fluido que eterniza o sujeito na culpa
superegoica.
Depois de ler Lêda Guimarães, talvez
devêssemos olhar os quadros da sexuação de Lacan,
não mais como uma bipartição demográfica dos seres
humanos, mas como um esquema do que ocorre na
experiência íntima de cada um de nós, de um corpo
atravessado pela linguagem onde habitam em graus
diferentes aspectos femininos e masculinos.
Não se trata aqui, absolutamente, de uma
perspectiva romântica e adocicada do amor. Ao
contrário, Lêda nos mostra muito bem como a
experiência amorosa pode conduzir perfeitamente ao
limite da morte e inclusive da loucura — que Lacan
denominou a devastação a que um ser falante em
posição de mulher poderá ser conduzido quando se
encerra no território do não-todo feminino, sem o
suporte do falo como garantia do extravio.
A clínica toma aqui uma nova forma. As
diferenças entre neurose e psicose perdem
importância, dando lugar aos modos como cada um
pode situar-se em torno da falha que constitui o nóda
estrutura.
Como leitora atenta de Lacan, Lêda Guimarães
encontrou no Seminário 23 um detalhe que nos permite
ver que a relação sexual, que não existe, pode existir
em algum momento. Cada um sabe quando se produziu
a falha em sua relação com a linguagem, em sua
experiência íntima. Haverá relação sexual sempre que
a reparação dessa falha, tarefa que é sempre singular
para cada um, se fizer no ponto em que foi produzido o
lapso inicial, no ponto traumático no qual a linguagem
fez sua irrupção no corpo, uma experiência única,
solitária, que não pode ser compartilhada. Se isso
ocorrer, poderá haver um encontro entre homem e
mulher, não como seres biológicos, mas como posições
de gozo, encontro em que o outro poderá advir com
sinthoma, ou devastação.
A psicanálise tem então a responsabilidade de
encontrar uma forma de fazer a interpretação operar
um distanciamento das defesas obsessivas,
superegoicas, ponto sobre o qual Lêda insiste — um
discurso que por momentos pode adquirir um aspecto
quase feminista, mas que não se deixa enganar pelo
canto da sereia dos ideais de nossa época, que querem
situar no lugar do pai caído um novo Outro Universal,
pensado como A Mulher. A idealização da mulher em
nossa época não passa de um novo engano
superegoico, que evita o encontro com aquilo que Lêda
pretende valorizar: a experiência singular e autônoma
de seres que falam com o amor, indo além das defesas
— nome psicanalítico da moral.
Talvez Guimarães queira nos confrontar com a
ética da psicanálise — bem diferente da moral, a
“ética do bem dizer” —, que indica que não se deve
retroceder diante do próprio desejo e da leitura que
dele se faz na experiência da análise. O passe ocupa,
portanto, uma posição de privilégio no que ela escreve:
trata-se da sexualidade encarnada, testemunhada, que
foi vivida em seu próprio corpo, no dela e de outros
que chegaram em suas análises ao ponto de poder
compartilhar esse achado, elevando-o à categoria de
conceito — o que, pelo contrário, restaria na ordem do
inefável.
Sua maneira de falar, de transmitir seu
pensamento, de praticar a psicanálise, vem produzindo
em torno dela um movimento importante. Aqueles que
a conhecem pessoalmente não conseguem escapar à
força impactante do seu desejo, à profunda convicção
que imprime a seus atos, à autenticidade do seu
trabalho. Lêda Guimarães atrai, inquieta, seduz,
perturba, interroga. E não é possível ser indiferente a
isso.
Devido à força da sua palavra falada, talvez
tenha demorado um pouco para reunir numa
publicação alguns de seus trabalhos. Entretanto, ainda
que não constitua a mesma experiência, o livro que
vocês têm em mãos é uma excelente tradução escrita
de tudo o que envolve o trabalho de Lêda, agora ao
alcance dos que vivem em outros países e não têm a
possibilidade de escutá-la.
PARTE 1
ESTADOS UNIDOS
O ESTATUTO DA FEMINILIDADE NA
CONTEMPORANEIDADE2
Lêda Guimarães3
Gostaria de expressar minha grande satisfação em
estar aqui com vocês nessa nossa tarefa de fazer a
Escola existir. Agradeço especialmente a Alicia
Arenas pelo convite, e a todos vocês pela recepção tão
amorosa. Minha satisfação se deve também ao fato de
estar na Escola de Lacan aqui neste país onde o
discurso analítico requer uma sustentação do desejo do
analista que beira o heroico, devo lhes dizer,
considerando que Freud aqui deixou o vírus da peste
que quase foi desativado.
Quando esteve na Bahia, Brasil, em 1998,
realizando seu seminário O Osso de uma Análise,4 no
final da sua intervenção Miller pronunciou uma
proposição que fez toda a audiência sorrir de modo
imediato, seguramente pelo desconcerto que produziu
na nossa realidade com relação ao amor, realidade
psíquica atualmente constituída pelas mulheres, já que
muitas delas assumiram de maneira explícita a função
de uma voz que enuncia a verdade acerca das
questões subjetivas. Porém, o efeito da interpretação
selvagem foi suavizado por um tom de voz muito gentil,
ao estilo de um convite, quase uma súplica. Falando
em nome dos homens e dirigindo-se exclusivamente às
mulheres, Miller disse: “Senhoras, amem-nos”. E com
essa frase impactante encerrou seus comentários
finais, logo depois de haver dito que na atualidade as
mulheres tropeçam no amor com muita dificuldade, e
que, por um movimento natural, a conquista dos
direitos de igualdade em relação aos homens se traduz
em dificuldades no âmbito do amor.
Por que formular esse convite em nome dos
homens? Para elaborar uma resposta, seria
conveniente considerar que o convite de Miller guarda
afinidades com uma declaração de Freud em O Mal-
Estar na Civilização, muito polêmica desde o ponto
de vista feminista, mas na qual considero que haja algo
muito interessante que destacarei aqui: “As mulheres
representam os interesses da família e da vida sexual.
O trabalho da civilização tornou-se cada vez mais um
assunto masculino, confrontando os homens com
tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a
executar sublimações pulsionais de que as mulheres
são pouco capazes”.5
Conforme o meu ponto de vista, há grande
pertinência nessa formulação, apesar da imprecisão no
que se refere à falta de capacidade sublimatória nas
mulheres. Mas Freud não deixa de ter uma certa
razão, pois a prática da psicanálise demonstra que há
uma grande diferença entre a sublimação nos homens
e a sublimação nas mulheres, especialmente no que
concerne à função de suplência que essa vicissitude
pulsional poderá ter para os homens, muito diferente do
que sucede com as mulheres, já que a sublimação nos
homens se mantém articulada ao traço perverso
fantasmático que eles cultivam, conforme a análise de
Leonardo da Vinci feita por Freud.6
Seguramente é esta a razão pela qual os homens
experimentam uma afirmação da sua masculinidade a
partir dos produtos derivados de suas satisfações
sublimatórias. Ainda que nas mulheres não
encontremos essa articulação da sublimação com seu
lastro fantasmático, verificamos que há nelas uma
capacidade de sublimação, quer dizer, elas obtêm
satisfação com suas atividades dessexualizadas no
campo da arte, da produção intelectual e nas diversas
áreas profissionais em que têm demonstrado
claramente suas grandes capacidades. Já que a
sublimação nos homens tem uma relação direta com
seu traço fetichista fantasmático, o que não ocorre do
mesmo modo nas mulheres, pergunto então: como
opera o traço singular de gozo na sublimação das
mulheres?
O gozo mais precioso das mulheres
A questão crucial que pretendo desenvolver aqui
é a seguinte: ainda que muitas mulheres de hoje
tenham alcançado grandes realizações no campo da
sublimação, isso não as torna mais felizes, pelo
contrário, estão mais infelizes.
O que se passa com muitas mulheres hoje, já que
não obtêm da sublimação uma satisfação que lhes
forneça um sentido para sua existência? Respondo:
elas vêm se afastando de seu gozo mais precioso, que
está articulado ao sonho de amar um homem, ao sonho
de amar um homem que seja seu. Esta é, portanto, a
dificuldade mais comum, pois é muito difícil que
atualmente uma mulher se refira ao seu parceiro como
“meu homem”.
No campo da sublimação, elas buscam alcançar
uma igualdade de diretos que se aplique a todas as
mulheres; procuram consolidar suas competências no
trabalho da civilização como um direito que toda
mulher pode alcançar, o que indica que, através da
sublimação, tentam se situar do lado masculino, do lado
do Todo da sexuação, conforme as elaborações de
Lacan no quadro das fórmulas da sexuação em seu
Seminário 20.7 Mas porque isso não as deixa felizes?
Porque seu gozo precioso se localiza, no quadro das
fórmulas da sexuação, do lado em que Lacan situa o
feminino, onde o simbólico tem uma abertura — S(Ⱥ)
— da qual emerge o gozo feminino e a dimensão do
amor. Desse modo, se do lado do Todo há satisfações
para todos, o gozo mais precioso dasmulheres não se
encontra aí, porém num reduto muito privado,
localizado na dimensão do singular.
Fórmula da sexuação de Jacques Lacan
Encontrei numa canção brasileira, “Infinito
Particular”,8 algo muito especial acerca desse gozo
feminino. Nela, com o verso “meu infinito particular”,
Marisa Monte faz uma alusão poética a esse gozo que
se converteu numa frase muito apreciada, uma
expressão mencionada por Éric Laurent, por ocasião
do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano,9
como equivalente ao “gozo sinthomático”. Para mim,
porém, a expressão de Marisa é bem mais
emblemática do gozo feminino, porque é exatamente aí
— nesse “infinito particular” onde não há nenhuma lei,
nenhum script que sirva para todas, nada que possa
orientá-las no campo do amor — que as mulheres
encontram seu maior desafio subjetivo, que consiste
em assumir de modo permanente e singular a tarefa de
construir seus laços de parceria a partir do seu modo
próprio de amar.
Voltando à citação “as mulheres representam os
interesses da família e da vida sexual”, agora podemos
afirmar que Freud estava correto, porque é
precisamente nos laços amorosos que se localiza o
gozo mais precioso das mulheres. Os homens, por
outro lado, geralmente não lidam bem com isso; suas
defesas obsessivas os impedem, o que suscita nas
mulheres queixas tais como: “Tenho que lutar sozinha
pela nossa relação, tudo eu, e ele nada”. Assim é!
Quem, a não ser elas mesmas, poderia lutar por seu
gozo precioso? O que ocorre quando as mulheres
deixam de lutar pela relação amorosa, deixando-a a
cargo dos homens?
Quando a parceria entre um homem e uma
mulher é controlada pelo homem, o que pode suceder?
A mortificação poderá impregnar a parceria,
conformada a uma insípida rotina obsessiva —
“Podemos fazer isso amanhã, hoje não”; “Tal dia faço
isso e tal dia você faz aquilo” —, conduzindo ao tédio e
ao declínio do seu desejo sexual e, consequentemente,
também ao declínio do desejo na mulher, já que no
apaixonamento o desejo masculino é condição
essencial para o gozo feminino.
Assim, o convite de Miller — “Senhoras, amem-
nos” — representa uma súplica em nome dos homens,
não em nome das mulheres, pois ele estava falando
como homem, como se estivesse dizendo para as
mulheres: “Não nos deixem mumificados, mortos, em
nossa armadura obsessiva”. E nos convoca a
interrogar: o que se passa com muitas mulheres
atualmente, que parecem ter se esquecido do amor?
Uma tentativa estrutural de
suplência para A Mulher que não
existe
Para elaborar uma resposta para essa pergunta,
convém recordar que a histeria é uma neurose
naturalmente feminina, pois se assenta na pergunta “O
que é ser mulher?” — uma pergunta sobre a
identidade feminina. Bem sabemos, porém, que se
trata de uma pergunta que não encontra respostas no
campo simbólico, e essa ausência de referências
simbólicas também está articulada ao gozo feminino, já
que esse gozo não se enquadra nas medidas fálicas.
Há uma citação de Lacan — correspondente ao
período inicial de seu ensino, mas pode ser lida desde a
perspectiva dos nós do final do seu ensino — que me
parece preciosa, pois nela Lacan indica de modo muito
preciso o movimento espontâneo da estrutura na busca
de uma suplência para uma identidade feminina. Na
medida em que o feminino se localiza na falha do
simbólico, ali onde nada pode ser dito acerca de uma
identidade feminina, ocorre na estrutura neurótica das
mulheres um esforço espontâneo para produzir uma
suplência. A citação à qual me refiro encontra-se em
“Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade
feminina”, e, segundo meu ponto de vista, antecipa o
que Lacan viria a formular em seu seminário Mais,
ainda:
(…) na posição de ou-isto-ou-aquilo em que se vê preso
o sujeito, entre uma pura ausência e uma pura sensibilidade,
não é de surpreender que o narcisismo do desejo se agarre
imediatamente ao narcisismo do Eu que é seu protótipo.10
Quando lemos essa frase de Lacan sob a
perspectiva do seminário Mais, ainda — “na posição
de ou-isto-ou-aquilo em que se vê preso o sujeito, entre
uma pura ausência [de referências simbólicas] e uma
pura sensibilidade [do gozo feminino]” — podemos
perguntar: que movimento espontâneo se produz na
estrutura, na tentativa de alcançar uma suplência para
a identidade feminina, já que o feminino emerge do
buraco no simbólico e de um gozo real?
Lacan nos dá a resposta em seguida: “(…) não é
de surpreender que o narcisismo do desejo se agarre
imediatamente ao narcisismo do Eu que é seu
protótipo”. Desse modo, formula a solução espontânea
da estrutura: “o narcisismo do desejo se agarra — se
enlaça, poderíamos dizer — imediatamente ao
narcisismo do Eu”. E o que isso significa? Lacan
parece situar aqui a função da mascarada como um
movimento espontâneo da estrutura, uma tentativa de
fazer consistir uma suplência para a identidade
feminina que não existe. A partir do buraco do
simbólico e de um gozo real, o narcisismo do desejo
feminino, que aspira a uma identidade na parceria
amorosa, se aferra imediatamente ao narcisismo do
Eu, erguendo no imaginário uma máscara que tem
como função instituir um semblante para a
feminilidade.
Podemos conceber dessa maneira que a
mascarada é um recurso imaginário que tenta
salvaguardar o narcisismo do Eu, um instrumento
privilegiado de que as mulheres dispõem para abordar
sua parceria no campo do desejo. Por essa razão,
Freud já nos dizia como são narcisistas as mulheres
nos seus vínculos amorosos, afirmando que não são
propriamente inclinadas a amar, porém, mais
precisamente, querem ser amadas. Além disso, Lacan
nos permite entender nessa citação que o narcisismo
feminino não significa que as mulheres amem a si
mesmas, mas que esse narcisismo é fundamentalmente
um instrumento espontâneo da estrutura no esforço de
constituir uma identidade feminina. Porém, sabemos
muito bem que essa tentativa de suplência tende a
falhar, pois a inflação narcisista feminina se transmuda
muito facilmente em um estado de aflição ou de
devastação.
O problema todo é que essa máscara é um
recurso imaginário fortemente associado à significação
fálica, que afasta as mulheres da feminilidade, como
disse Lacan no texto “A significação do falo”:
Por mais paradoxal que possa parecer esta formulação,
dizemos que é para ser o falo, quer dizer, o significante do
desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parte
essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus
atributos na mascarada. É pelo que não é, que ela pretende
ser desejada, ao mesmo tempo que amada.11
Aqui reside o paradoxo da inconsistência do
narcisismo na mulher: desejar ser amada e desejada
exatamente pelo que não é! Convém considerar,
inclusive, que a função da mascarada consiste em
proporcionar um semblante d’A Mulher como exceção
ao campo do Todo. Portanto, não se trata de ser igual
a todas; nenhuma mulher quer situar-se como sendo
“igual a todas”, ao contrário, almejam ser “a única”
dentre as outras, mais precisamente a única como
“razão do desejo do Outro”! Deste modo, o narcisismo
do Eu nas mulheres é um modo de situá-las na função
da exceção, como a melhor! Acima de todas as
demais! É disso que se trata o narcisismo do Eu nas
mulheres, o sonho mais elevado, o ideal inalcançável:
ser única diante do desejo masculino, inigualável dentre
todas, como condição necessária para sustentar uma
posição de desejante na parceria.
Essa máscara tende a desmoronar, a sucumbir
muito facilmente, como lhes disse há pouco. Nesses
momentos, desafortunadamente, a estrutura tende a
fazer consistir outro semblante que nas mulheres
também está localizado como uma exceção ao Todo,
porém, conforme uma lei muito severa, a lógica binária
de oposição entre os significantes, situando o
semblante do feminino no extremo oposto do ideal,
precisamente no semblante de objeto-dejeto. Assim, o
movimento espontâneoda estrutura, de acordo com a
lógica implacável dos significantes articulada à
significação fálica, ainda mantém o feminino na
posição de “exceção”, porém agora como “excluído”
do Todo, abaixo de todas as outras mulheres, como um
objeto descartável, depreciável, desvalorizado. O
sentimento de exclusão resultante da inevitável queda
desse sonho narcisista se traduz nos enunciados muito
comuns em mulheres apaixonadas, que se referem à
experiência do apaixonamento como se estivessem
numa montanha russa, pois se num momento se
consideram “tudo para ele”, “a única”, no momento
seguinte se sentem um “nada”, “não sou nada para
ele”.
Podemos, então, concluir que a mascarada é um
esforço imaginário de suplência nas mulheres que se
sustenta numa leitura fálica, como uma tentativa de
salvaguardar as mulheres da posição de objeto que é
tão insuportável para as feministas. De acordo com
cada cultura, em cada momento histórico, a máscara
da feminilidade se transmuda, muitas vezes numa
velocidade alucinante, tal como as mulheres mudam de
roupa e adereços todos os dias, numa corrida
vertiginosa para tentar alcançar A Mulher, que é
sempre Outra em si mesma.
A máscara da feminilidade
contemporânea
Vejamos como isso ocorre na atualidade. O
interessante desta época, que temos denominado
através de Miller como os “tempos do Outro que não
existe” — da perda dos significantes mestres, da
ausência de elementos simbólicos que assegurem
identificações que sirvam para todos — assistimos a
um fenômeno surpreendente, que se ergue muito sólido
e potente em nome de uma nova identidade feminina: a
máscara da feminilidade contemporânea.
E que máscara seria essa? A mulher multimídia,
multitarefa, polifacetada, com funções diversas,
autônoma, independente, capaz, a super supermulher,
que, frequentemente, pretende ser mais potente que os
homens. Essa máscara tem várias aspectos, e é
importante considerar que o modo de nomear o
feminino através dela traz uma conexão implícita, uma
posição diante dos homens, ou seja, os desfaliciza,
colocando-se no mesmo nível ou acima deles.
Conforme os ditos extraídos da boca das mulheres,
essa máscara poderia assim ser nomeada:
— A profissional realizada em suas
competências sublimatórias, sejam científicas,
artísticas ou técnicas, de tal sorte que o mundo
do trabalho, inventado e construído pelos homens,
não poderá mais prescindir das mulheres;
— A politizada, culta, inteligente, dedicada à
luta em defesa dos direitos dos excluídos,
especialmente dos direitos das mulheres diante
dos homens;
— A administradora do lar, que já não é
mais a dona de casa, subiu de posto, passando
inclusive a provedora financeira do lar em
proporção cada vez maior, muitas vezes com
homens situados numa posição de dependentes
economicamente.
Por ser uma máscara múltipla, pois atende ao
imperativo de ser várias em si mesma, requer outras
faces:
— A mãe psicopedagogizada, especializada
nos saberes relativos ao desenvolvimento infantil,
situando o parceiro como seu aluno predileto e
ensinando-lhe como deve ser pai;
— A malhadora diet, linda em qualquer
idade e muito mais saudável do que os homens,
pois se encarrega da contabilização obsessiva
das calorias e nutrientes de modo mais eficiente
do que eles.
Há ainda uma face a ser agregada que inclui a
sexualidade, restrita à dimensão erótica:
— A amante liberada, especializada nos
receituários de como incluir o orgasmo clitoriano
no ato sexual, transformando os homens em seus
alunos e lhes ensinando como fazê-la gozar.
Essa lista poderia ainda incluir outras faces,
conforme a tendência de agregar mais e mais
habilidades que, em última instância, nunca são
suficientes para denominar A Mulher. Existe também
uma face que não pode fazer parte da lista: onde
estará a mulher apaixonada, que sonha e morre de
amores por seu homem? Foi excomungada! Não faz
parte da lista da máscara da feminilidade
contemporânea, como se o apaixonamento fosse um
pecado mortal, o que se verifica nas expressões
habituais entre amigas: “Querida, seja (...)” — assim
tendem a se expressar, fazendo uso do verbo no modo
imperativo, enquanto um imperativo de “dever ser”:
“Querida, seja linda, seja independente, seja poderosa,
mas não se apaixone”.12
Essa peculiar propriedade de manter vários
traços identificatórios imaginários já havia sido
formulada por Lacan como própria à identificação na
melancolia psicótica;13 Lacan, inclusive, formulou que
os melancólicos tem uma identificação estrelada, quer
dizer, como as estrelas no céu, já que são traços
identificatórios que não constituem um elo de ligação
entre si.
Pois bem, a máscara da feminilidade
contemporânea tem a mesma configuração imaginária
da identificação nos melancólicos, o que nos convida a
indagar as razões dessa insólita semelhança. Há,
porém, uma diferença fundamental entre a
identificação melancólica psicótica e a função da
mascarada na feminilidade, já que a estrutura neurótica
contém a significação fálica no centro das
identificações imaginárias. E o que isso implica? Que,
mediante essa máscara, as mulheres contemporâneas
pretendem fazer-se o falo para o desejo masculino —
um artifício narcisista para abordar o parceiro,
apresentar-se como uma mulher plena de talentos e
realizações. O foco dessa máscara tende, muitas
vezes, a emergir nos enunciados das mulheres de hoje
através da negação, conforme uma expressão atual
muito comum: “Para que preciso de homem?”
O problema é que essa grande inflação fálica
tende a cultivar uma tristeza nas mulheres, pois essa
máscara da feminilidade contemporânea muitas vezes
não produz o efeito esperado de fetichização para o
desejo masculino. Assim, o tiro sai pela culatra, como
se denuncia nas próprias palavras de muitas mulheres
que se dizem realizadas, independentes, liberadas,
porém infelizes: “Onde estão os homens? Já não há
mais homens”.
Por que os homens tendem a se afastar dessas
mulheres tão poderosas? Parece-me que uma das
razões fundamentais é que essa máscara da
feminilidade contemporânea não se ergue como um
falo, mas sim, mais precisamente, como uma
multiplicação de falos, a própria cabeça da Medusa
que ressurge do cenário mitológico em nossa época.
Como Freud bem formulou em seu texto “A cabeça da
Medusa”,14 tal visão causa pavor, fobia, petrifica o
homem, faz com que ele se distancie em seu desejo
dessas mulheres que representam a ameaça de
castração, pois a multiplicação do falo não deixa de ser
um símbolo da castração. Por isso o horror de muitos
homens e seu tão comentado desaparecimento depois
de um primeiro encontro. Porém, para a sorte das
mulheres, nem todos fogem, há aqueles que
permanecem mesmo diante desse risco.
E quando eles permanecem ao lado das
mulheres, o que sucede? Quando creem nelas, quando
creem na máscara com a qual se apresentam, ou seja,
quando tomam uma mulher como causa de seu desejo,
instituindo-a como parceira-sinthoma, passam a tomá-
la na função de Sujeito Suposto Saber — algo que
geralmente elas mesmas não sabem, pois não
costumam se dar conta dessa função tão importante
que ocupam na subjetividade dos homens.
As mulheres que decidem fazer análise
costumam demoram muito tempo para descobrir o
enorme poder que suas palavras têm sobre os homens.
E o que ocorre com os homens quando creem nelas?
Tendem a submeter-se ao seu discurso, aos seus
mandatos, mandatos que muitas mulheres atuais
sustentam com eficiência, construindo um discurso
sobre como formar parcerias, como deve ser o homem
como parceiro, como ele deve ser pai para seus filhos
etc. Enfim, muitas mulheres atuais dizem aos homens
que homens eles devem ser. Pois bem, a máscara da
feminilidade contemporânea está diretamente
articulada a um discurso das mulheres que pretende
inscrever o “politicamente correto” nos laços afetivos.
Desse modo, a crença nessa mulher multipotentemantém no centro dos laços amorosos o script
delirante de um “amor politicamente correto”, que faria
existir a relação sexual.
Retomemos então a questão: por que “a mulher
apaixonada” foi excomungada da máscara da
feminilidade contemporânea? O estado de
apaixonamento das mulheres, definido por Lacan em
“Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade
feminina” como erotomaníaco, pode perfeitamente ser
concebido a partir da prevalência do gozo feminino.
Despertado pelo apaixonamento, esse gozo tende a
expandir-se sem limites, o que lhe é próprio, já que,
diferentemente do gozo fálico, não conhece medidas,
não se sujeita a limitações, nem se localiza em zonas
erógenas, por isso se expande no próprio corpo
intrinsecamente desarticulado de qualquer nomeação.
Por essa razão, tal gozo poderá fazer borda no campo
simbólico através das palavras de amor, das
mensagens de amor, das cartas de amor, que acabam
se instituindo como uma envoltura fundamental, e, ao
mesmo tempo, como uma condição para a emergência
do gozo feminino. E quando a dimensão sexual erótica
desse gozo permanece latente, ou mesmo reprimida, a
vertente do amor adquire um caráter de exigência
insistente, impulsionando a demanda imperativa de
amor. Desse modo, a excitação gozosa erotomaníaca
se traduz numa exigência de amor: “me ame mais,
mais, e mais ainda...”
O grande desafio subjetivo para as mulheres,
quando são tomadas pelo apaixonamento, consiste no
fato de que a aceleração erotomaníaca, que é própria a
esse gozo tende muito facilmente a adquirir um caráter
imperativo do qual as mulheres já não têm controle, um
imperativo que se impõe sobre muitas mulheres,
fazendo com que se dirijam ao parceiro exigindo que
ele diga incessantemente que as ama, que olhe para
elas, que lhes por telefone etc. Tal estado de aflição
indica precisamente a presença do imperativo do
supereu infiltrado nesse modo de gozo.
Lacan nos disse de uma maneira muito clara no
Seminário 20, Mais, Ainda:15 “Nada obriga ninguém a
gozar, a não ser o supereu”. Assim, proponho que a
aceleração do gozo erotomaníaco na direção de um
impulso incontrolável e devastador denuncia que o
imperativo mortífero do supereu se infiltrou muito
rapidamente nesse estado de gozo, que é inerente ao
feminino. Porém, abro aqui uma distinção fundamental
entre o gozo feminino e o imperativo do supereu: o
gozo feminino não é devastador, pelo contrário, é
fundamentalmente vivificante, mas por estar situado no
campo do silêncio, distante das palavras, tende a sofrer
os efeitos da infiltração do supereu. Desse modo,
quando sofre a intromissão do supereu, o estatuto real
do gozo feminino passa a sustentar um imperativo
“goza” num caráter mortificante próprio ao supereu —
uma vertente mortífera de gozo que se mantém
sempre à espera de uma oportunidade para ativar sua
imposição. Isso faz com que o gozo feminino, quanto
mais se acelera, até alcançar o topo de excitação —
muitas vezes experimentado no êxtase de se sentir a
“a única” —, se reverte muito rapidamente, se
transmuda em um estado de devastação pela
infiltração do supereu.
O paradoxo do supereu
Além dos efeitos mortíferos próprios ao
imperativo do supereu, o grande problema é que a
máscara da feminilidade contemporânea já está
intimamente articulada ao imperativo superegoico, com
muitas mulheres se mantendo na subjetividade a partir
de uma fixação de gozo no paradoxo do supereu.
Por um lado, a máscara da feminilidade atual
mantém de modo muito explícito uma das vertentes do
paradoxo do supereu, aquela que diz “Não” ao gozo do
apaixonamento, ao gozo próprio ao feminino — “Não
se apaixone”, “Seja livre, autônoma, realizada, linda,
poderosa etc., porém não se apaixone”, de acordo com
os ditos de muitas mulheres —, impondo assim a
renúncia dessa satisfação para que a face do eu ideal
d’A Mulher superpotente possa supostamente ser
mantida, o que é um terrível engodo para as mulheres,
porque a razão desse imperativo “Não se apaixone”
ser tão necessário para manter o sonho de potência se
deve precisamente ao fato de que o sonho está sempre
prestes a se desmoronar. O crucial é que o imperativo
explícito “Não se apaixone” já denuncia em si mesmo,
para quem mantém seus ouvidos bem atentos, seu
silencioso aspecto paradoxal, pois se as mulheres
necessitam tanto dele é justamente porque são
vulneráveis às garras do apaixonamento, necessitam
tanto desse “não” exatamente porque há aí um impulso
em direção ao “sim”. Além disso, diante de tanta
liberação na atualidade, é muito fácil e bastante
frequente que se apaixonem a partir de um encontro:
“Não há relação sexual que possa se inscrever”,
porém há encontros e há ato sexual. Dizer, como
Lacan, que “não há relação sexual”, não quer dizer
que nas parcerias não se possa alcançar um certo
estado de felicidade, e apoiar-se nessa formulação
para justificar uma defesa contra o apaixonamento é
fazer uso de termos lacanianos para gozar da
castração neuroticamente.
Pois bem, o sonho de amor está sempre presente
nas mulheres, de tal modo que, diante de um encontro
contingente com o objeto voz ou olhar no semblante de
um homem qualquer, uma mulher poderá facilmente
ser invadida por uma sensibilidade explosiva que se
expande por seu corpo. A expressão “amor à primeira
vista” é apropriada para nomear o que ocorre a partir
de um encontro de olhares: “nos olhamos, e vi naquele
instante que ele era o homem que eu estava
esperando” — isso é o que se chama contingência. O
efeito de emergência do gozo feminino fará com que o
olhar, ou a voz, se instituam como porta-vozes do
sonho idílico do apaixonamento.
O amor é um sonho sempre presente nos
devaneios secretos das mulheres, sonho que elas
guardam escondido nos porões da sua subjetividade, ao
mesmo tempo em que, muitas vezes, o refutam.
Que sonho é esse? É o sonho de entregar-se a
um homem, de fazer-se causa do seu desejo, de
deixar-se invadir pela pura sensibilidade do seu gozo
feminino, ali onde há também uma pura ausência de
sentido sobre seu ser, para desse modo se fazer mulher
para um homem. Porém, diante de um encontro com o
objeto olhar-voz localizado no semblante do parceiro, a
economia de gozo do supereu poderá ser
imediatamente disparada, injetando no gozo feminino
os efeitos daninhos da significação fálica superegoica.
Este imperativo silencioso — ou talvez latente, já que
pode ser enunciado conforme a lógica fálica, ainda que
de modo sigiloso, como se confessasse um segredo —
pode ser formulado da seguinte maneira: “Entregue-se
a este homem sem medidas, sem pensar, deixando-se
ser invadida por esse impulso até o extremo de suas
exigências, ainda que isso te custe a desgraça de sua
própria vida”. É como um “nada mais me importa”,
somente esse gozo.
Assim, as duas vertentes do paradoxo do
supereu estão articuladas à máscara da feminilidade
contemporânea, onde o “não”, imperativo explícito ao
gozo feminino, é uma defesa contra outro imperativo
que este “não” tenta refutar: “Apaixone-se e morra de
amor” — em outras palavras, este “não” implica a
presença do seu oposto latente, e a isso se deve o
pavor de certas mulheres ao apaixonamento. E bem
sabemos a que extremos uma mulher pode chegar
quando se apaixona.
Diante de tudo isso, que posição muitas mulheres
contemporâneas vêm adotando? Numa tentativa de
estabelecer uma definição para o apaixonamento,
inventaram-lhe novas designações, como por exemplo,
“dependência afetiva”, diagnosticando o
apaixonamento como uma “patologia”. Tais
designações fazem parte de alguns dos nossos debates
psicanalíticos, inclusive quando confundimos
conceitualmente o gozo feminino com o gozo
superegoico, e creio que isso denota uma certa
alienação a essas proposições, tomando-as como
verdades universalizantes, ainda que se tratem
fundamentalmente de formulações claramente
neuróticas. Quando no exercício da nossa prática
psicanalíticaacreditamos no apaixonamento como uma
“patologia”, estaremos fixando, reforçando nas
mulheres essa lógica do paradoxo do supereu. Por isso
é muito importante afirmarmos, insisto em deixar isso
muito claro, que a patologia devastadora que invade as
mulheres não é uma patologia da paixão amorosa, mas,
sim, uma patologia do supereu.
É importante recordar que Freud, ao considerar a
pulsão de morte ineliminável — já que há um quantum
de energia pulsional de vida e de morte que não pode
ser eliminado — se perguntava: qual seria o destino da
pulsão de morte num final de análise? Na sua prática
psicanalítica, constatou que a pulsão de morte era
melhor apaziguada quando se mantinha bem fusionada
à libido, quer dizer, quando a pulsão de morte e a libido
se uniam, isso resultava no erotismo, o que reduzia a
ferocidade da pulsão de morte, já que seu furor era
empregado para sustentar as ganas do desejo sexual.
Considerando seriamente essa formulação de Freud,
acrescento uma formulação à qual eu mesma só pude
chegar depois do meu final de análise: para sustentar
qualquer posição vigorosa de desejo, se usa a
ferocidade da pulsão de morte, se usa a ferocidade que
não está dirigida contra o outro nem contra si mesmo,
porém a favor de uma posição decidida de sustentação
de desejo. Para que fins? Para os fins da pulsão de
vida.
Deste modo, podemos agora formular que o
excesso de gozo da paixão amorosa pode, sem dúvida
alguma, produzir uma vivificação do corpo, algo muito
diverso do gozo produzido pelo supereu, que é
essencialmente mortificante. A vivificação que advém
da paixão é bem conhecida pelas mulheres, pois
quando encontram uma amiga cujo aspecto está muito
diferente, com um brilho muito especial, costumam
dizer: “você está apaixonada”. Sabem muito bem,
portanto, o quanto o amor vivifica uma mulher. Assim,
podemos afirmar que o campo da paixão amorosa
somente expande suas fronteiras ao terreno do
padecimento, da devastação, quando o imperativo
superegoico se infiltra no excesso de gozo que vivifica
o corpo, produzindo nele seus estragos mortificantes.
O estado de devastação produzido pelo
imperativo do supereu tende a manifestar-se nas
lamentações das mulheres sob a forma de uma queixa
— “Ele não me ama”; “Ele só quer me usar como
objeto” — enunciada através do recurso da
significação fálica, propondo uma interpretação
dolorosa para as mulheres na parceria sexual, quando
a vertente erótica do gozo feminino é enlaçada ao
sentimento de culpa inconsciente, resultando na
devastação. Deste modo, o gozo superegoico nas
mulheres tende a projetar nos parceiros o semblante da
figura obscena e feroz do supereu, como se os homens
fossem responsáveis por todas as desgraças sofridas
por elas, de tal modo que, quando muitas mulheres
empreendem seus esforços na luta contra os homens,
lutam na verdade contra seu supereu projetado
imaginariamente neles.
Quando Lacan nos diz que um homem pode ser
devastador para uma mulher, o que ele assinala não é
um mero detalhe entre outros acerca do feminino. A
experiência psicanalítica nos demonstra o quanto esta
questão é relevante, pois a devastação de que uma
mulher pode padecer na relação amorosa com um
homem constitui um ponto privilegiado para que uma
entrada em análise tome como direção o tratamento do
real do gozo mortificante. Muitas outras questões
podem ocupar a subjetividade de uma mulher que
busca uma psicanálise; porém, quando a questão
central da análise de uma mulher não é definida sobre
o eixo da devastação, os efeitos terapêuticos poderão
não ter muito alcance.
O supereu nas mulheres
Para situar o modo como funciona o supereu nas
mulheres, tomo uma proposição de Éric Laurent
extraída da aula de 18 de dezembro de 1996 do curso
de Miller “O Outro que não existe e seus comitês de
ética”:16 “As mulheres acreditam mais no juiz do que
na lei”.
Para fundamentar essa afirmação, Éric Laurent
se apoiou numa citação de Freud em sua conferência
sobre a feminilidade,17 na qual Freud diz que a menina
permanece no Édipo com o pai durante um tempo
indeterminado, modificando-o mais tarde, porém de
forma imperfeita, de modo que a formação do supereu
se vê afetada por essas circunstâncias. A partir dessa
referência freudiana, Laurent nos disse: “A formação
do supereu sofre dessas circunstâncias e nunca chega
a ser verdadeiramente impessoal. O pai permanece
marcado por um apego terno, que seguramente orienta
e faz com que a crença feminina sempre se dirija mais
ao juiz do que à lei”.18 Desta formulação de Éric
Laurent podemos destacar três proposições muito
importantes sobre o supereu nas mulheres:
1. o supereu nunca chega a ser
verdadeiramente impessoal;
2. porque sofre do resto de amor do Édipo
com o pai;
3. por isso, a crença feminina sempre se dirige
mais ao juiz do que à lei.
Essas proposições se aproximam do que Freud
formulou acerca do supereu em O mal-estar na
civilização, quando disse que a estruturação do
supereu se efetua em dois tempos.19 O primeiro
tempo se constitui a partir de uma “autoridade
externa”, à qual a criança se submete unicamente por
um motivo: o medo da perda do amor. Ao concluir o
Édipo — início da segunda etapa da estruturação — as
crianças internalizam essa “autoridade externa”,
convertendo-a numa “autoridade interna” sob a forma
de leis morais, o que resulta no modo de
funcionamento do supereu nos homens. Os homens
acreditam na lei moral, disse Lacan em seu texto
“Kant com Sade”;20 creem numa lei que faça da sua
ação uma medida universal que sirva para todos. Esse
supereu se torna um aborrecimento para os homens,
pois seus pensamentos fazem muito ruído, ocupados
com as regras que poderiam orientar seus atos, porém
resultando quase sempre numa afirmação de
culpabilidade, como, por exemplo: “Eu deveria ter feito
tal coisa a semana passada, e não haveria ocorrido isso
hoje”.
Quando os homens andam muito calados,
ensimesmados, geralmente estão muito ocupados com
seu supereu. Enquanto isso, quando as mulheres se
encontram também ocupadas com seu próprio delírio
devastador — o delírio da Outra projetada em outra
mulher — lhes perguntam: “Em quem você está
pensando?” E assim, cada um sofre com seu delírio
particular.
Enquanto os homens creem na sua medida
universal, nas mulheres — como seu Édipo não se
conclui, já que conserva um resto do vínculo amoroso
com o pai — o supereu nunca chega a ser
verdadeiramente impessoal. Assim, apoiados em
Laurent, podemos concluir que a “autoridade externa”,
o “juiz”, se mantém articulado ao “medo da perda do
amor”, fixando essas duas características
fundamentais no funcionamento do supereu das
mulheres. Em função do medo da perda do amor, as
mulheres se submetem ao juiz, projetado
primariamente na mãe, a seguir no pai, depois no
parceiro, e com frequência acabam se submetendo aos
seus ditames. Esse temor se manifesta quando as
mulheres se inclinam mais diretamente para seus
próprios desejos, especialmente quando são tomadas
por seus desejos eróticos em suas paixões femininas
singulares, ocasiões em que muitas vezes lhes surge o
temor superegoico: “O que ele vai pensar de mim?”
Muitas mulheres dizem atualmente: “Sou uma
mulher liberada, minha sexualidade não representa
qualquer conflito moral para mim, sou dona do meu
corpo e tenho o direito de fazer o que eu quiser com
ele, porém a sociedade está aí, sempre pronta para me
culpabilizar”. Portanto, além da mãe, do pai, do marido
ou companheiro, o juiz pode estar por todos os lados,
em “todo mundo”, como uma projeção superegoica.
Assim, ela se detém e diz “não” aos seus desejos pelo
temor do que “todo o mundo poderá pensar”.
Laurent disse também que as mulheres não
creem nas leis porque têm muita afinidade com a falta
do Outro, com as bordas do simbólico, com os limites
da simbolização diante do real. Por essa razão, por
estarem muito próximas desse limite,não creem na lei
e podem deixar de se preocupar com regras que lhes
pareçam ridículas. Porém, se podem tomar distância
das leis o mesmo não ocorrerá com o juiz, já que
acreditam firmemente nele.
Pelo fato de o Édipo nas mulheres não resultar
numa conclusão e por elas se manterem em numa
posição de indiferença às leis, Freud chegou a
considerar que o supereu nas mulheres era mais frágil,
mais suave, o que não é muito preciso, pois o supereu
nas mulheres é devastador e terrível, porém de modo
diferente. O próprio Freud, em dado momento,
assinalou os indicadores da ferocidade do supereu nas
mulheres em seu texto O Ego e o Id, especialmente
na histeria e nos estados do tipo histérico, onde
encontramos predominantemente o sentimento de
culpa inconsciente”.21 Portanto, quando uma mulher
diz “não sinto culpa de nada, só faço o que bem
quero”, ela afirma que, no plano da sua consciência,
não está preocupada com as leis morais, porém seu
grande temor “o que vão pensar de mim?” é o
testemunho mesmo do sentimento de culpa
inconsciente, tão “inconsciente” que não está inscrito
no inconsciente definido como cadeia significante.
Minha experiência de fim de análise me permitiu
constatar que esse “sentimento de culpa inconsciente”
só pôde ser subjetivado e reduzido em sua ferocidade
quando foi nomeado o traço do objeto voz que dava
consistência ao semblante desse juiz aterrorizador.
Quando se referia ao “sentimento de culpa
inconsciente”, ao próprio Freud não parecia muito
preciso o termo “sentimento”, pois afirmava que a
repressão não incide sobre os sentimentos, os afetos, e
sim sobre os representantes da representação da
pulsão; não encontrou, porém, outro termo mais
adequado para se referir a essa culpa que se mantinha
fora de qualquer subjetivação. Portanto, esse
“sentimento de culpa inconsciente” que está fora da
palavra tende a produzir seus efeitos silenciosamente,
por isso o estrago que acaba causando pode chegar a
graus muito extremos.
Lacan, em seu seminário L’insu que sait de
l’une bévue s’aile à mourre,22 disse que o “amor ao
pai” sustenta o eixo da histeria, e desse modo faz
consistir o inconsciente, o que quer dizer que a histeria
se sustenta no amor ao pai e implica também que a
crença no inconsciente tem seu lastro no amor ao pai.
Isso nos leva a concluir que sem a crença no amor ao
pai, a crença no inconsciente não se sustenta.
A prática psicanalítica tem me demonstrado que
o Édipo das meninas com o pai é introduzido, desde o
princípio, pela repressão da corrente erótica — uma
constatação preciosa na clínica psicanalítica. Quando a
menina sai do Édipo com sua mãe e entra no Édipo
com seu pai, a corrente erótica nessa transposição é
soterrada pela repressão, de tal maneira que a
passagem do Édipo com a mãe para o Édipo com o pai
introduz a menina na fase de latência — isso é
fundamental. Ainda que Freud não o tenha afirmado
assim tão explicitamente, articulei suas formulações à
minha prática: o amor edipiano pelo pai faz consistir a
operação da repressão nas meninas, e desse modo faz
consistir o inconsciente, através do qual se pode
construir o saber reprimido relativo ao erotismo da
menina com seu pai.
É importante levar em conta que essa passagem
do Édipo com a mãe para o Édipo com o pai é
mencionada por Lacan, em seu texto “A significação
do Falo”,23 como uma transferência, no sentido
analítico do termo, o que indica que a demanda através
da qual a menina esperava saber como “ser amada
como mulher”, antes dirigida à mãe, é transposta para
o pai. Ela nunca obtém essa resposta da mãe, o que
resulta numa profunda decepção, cheia de ódio, e essa
demanda impulsiona a passagem do Édipo para o pai.
Paralelamente, se efetua também uma operação de
transferência do supereu — da mãe para o pai — e
assim o pai passa a ser instituído como o juiz que
determinará para a menina o seu “ser enquanto
mulher”.
Graças a essa transposição poderá advir um
apaziguamento da devastação antes experimentada
pela menina através do supereu materno, pois a crença
no amor do pai a leva a supor que através desse amor
irá encontrar uma resposta dignificante para seu “ser”
de mulher. O certo é que esse apaziguamento surge do
“amor ao pai”, concebido como recíproco, ao mesmo
tempo em que a vertente erótica da sexualidade da
menina é reprimida e resguardada nas fantasias
inconscientes.
Consequentemente, “o amor ao pai” se institui
como a envoltura que mantém latente a vertente
erótica do Édipo com o pai, e esta é uma questão
fundamental na prática da psicanálise na atualidade, já
que o “amor ao pai” está em declínio, e por isso
encontramos nas neuroses das mulheres
contemporâneas uma versão do “pai erotizado” mais
consistente do que a versão do “pai do amor”, o que
tende a ampliar a vertente devastadora sobre o gozo
feminino.
Será o amor ao pai o que promoverá uma
envoltura do gozo feminino, fazendo consistir as
fantasias inconscientes de sedução sexual do pai que
estão no centro erótico do Édipo da menina, instituindo
nessas fantasias uma versão do pai como o agente do
impulso que faz a menina gozar sexualmente. Quando
esse amor do pai é questionado, ou perde sua
consistência, a devastação pode produzir-se como
efeito da mortificação superegoica sobre o gozo
feminino. Deste modo, temos na histeria, articulados
num mesmo nó, a crença no amor do pai, as fantasias
eróticas inconscientes, o gozo feminino e o “sentimento
de culpa inconsciente”. A crença da menina no amor
do pai faz com que ela suponha que é “a única”, “sua
princesa”, e que se fosse adulta seu pai a preferiria à
mãe como mulher. Por outro lado, a vertente erótica
reprimida que mantém o sonho de sedução do pai se
institui como um terreno fértil para a culpa
inconsciente da menina em relação a seu gozo
feminino, despertado pelo apaixonamento por seu pai.
Já abordei aqui que este “sentimento de culpa
inconsciente” fora da palavra mantém a projeção
paranoica do imperativo devastador nos homens, como
se o imperativo de gozo viesse do outro: “Eu não teria
motivos para me sentir mal, é ele quem me faz me
sentir sem nenhum valor”. Isso poderá resultar no
desafio histérico, que se constitui como um mecanismo
defensivo fundamental que poderá se manter sob a
base de uma posição feminista. O desafio histérico tem
como objetivo castrar o pai, para reduzir a potência
desse Outro que despertou o gozo feminino, castrar o
mestre do saber sobre sua subjetividade como mulher,
castrar o companheiro ou todo aquele que se erga
como semblante do supereu, constituído pelo amor
feminino por ele. Disso se alimenta o ódio/
enamoramento das mulheres: “Te amo, te odeio”. Tal
estratégia se mantém como um mecanismo defensivo
muito privilegiado, hoje em dia, ao tentar destruir a
potência viril dos homens, supondo que dessa maneira
se estaria eliminando o supereu, o que resulta numa
guerra sem fim, pois seu objetivo é equivocado.
E o que se passa com os homens, que sofrem os
efeitos de toda essa ferocidade que advém da luta das
mulheres contra seu próprio supereu, neles projetado
paranoicamente?
O declínio do amor cortês
Hoje já não se faz promessas de amor, num
mutismo próprio à nossa época que põe fim a uma
etapa do movimento civilizatório no qual floresceu o
amor cortês. Nós, os psicanalistas, propomos que o
ocaso do amor cortês se deve à vigência do discurso
capitalista, modo discursivo presente na atualidade que
produziu a queda da função paterna. Deveria o
discurso capitalista ser responsabilizado pelo declínio
do amor cortês, melhor dizendo, pelo declínio do amor
nas parcerias entre homens e mulheres? O grande
perigo para a prática psicanalítica é abordar essa
questão sob o ponto de vista sociológico.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que tem
sido muito citado por nossos grandes psicanalistas, não
tem essa visão tão apocalítica do amor. Bauman não
considera que haja umadecadência do amor, mas sim
que o amor mudou de forma, passou a ter a mesma
forma da nossa sociedade atual, do mundo atual, os
quais descreve como “mundo líquido”, fluido,
“sociedade líquida”. E considera que esta sociedade
líquida impõe uma nova forma de amor denominado
também “amor líquido”, que dá título a um dos seus
livros, Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos
laços humanos.24
Bauman afirma que o “amor líquido” se deve à
grande variedade de modelos das relações a partir da
grande liberdade de escolha e de troca de parceiros,
onde o sonho do amor eterno tem sido substituído por
relações tão fluidas quanto as relações virtuais, diante
das quais bastaria apertar a tecla “delete”, sem
maiores constrangimentos, para cortar qualquer
fixação de libido.
Disse-me uma ginecologista brasileira, mulher
muito bonita e hipermoderna — tem em torno de 50
anos, porém com o avanço da ciência conserva um
aspecto de uma mulher de 30: “É incrível, me apaixono
e me desapaixono muito depressa”. Referia-se à
“montanha russa” do apaixonamento, em que deixa
facilmente um estado de êxtase para entrar no estado
de devastação, quando pensa imediatamente: “Já não
quero mais esse homem, então o deixo e logo mais já
estou apaixonada por outro... é incrível como me
esqueço daquele homem, que rapidamente já não é
mais nada para mim”. Seu problema subjetivo
começou quando não conseguiu esquecer um dos
homens dessa série.
Para abordar a questão do amor nesse “mundo
líquido” de Bauman, tomarei como base o ensino de
Lacan a partir de certo momento, quando propõe como
ponto de partida, para abordar qualquer sujeito, não
mais a perspectiva do Outro social de Bauman, não
mais o predomínio do Outro simbólico sobre o sujeito,
mas a perspectiva da prevalência do gozo, quer dizer,
da sexuação, do modo de gozo escolhido diante do real
da diferença anatômica entre os sexos. Há um real do
corpo, não no sentido da determinação dos instintos
orgânicos, mas do real anatômico da diferença sexual
e, concomitantemente, uma leitura simbólica desse real
que sustenta uma decisão de gozo diante desse real.
Cada um se sustenta em sua versão de gozo,
articulada à leitura do que significa para si essa
diferença entre seu corpo e o corpo do outro sexo, que
tem ou não tem um pênis.
A subjetivação da sexuação tem como ponto de
partida o encontro do sujeito com o real anatômico do
seu corpo, diferente do corpo do outro, de tal modo que
não basta dizer que para a psicanálise pouco importa
se alguém nasceu organicamente homem ou mulher, e
que a questão da sexuação é inteiramente
independente do real anatômico do corpo, formulando
que bastaria simplesmente sustentar uma posição
masculina ou feminina para inscrever a escolha do seu
sexo. Creio que não podemos reduzir a questão a esse
simplismo, já que verificamos no exercício da
psicanálise que, por exemplo, a economia de gozo nas
variadas homossexualidades nos homens é muito
distinta das variadas homossexualidades nas mulheres,
e inclusive que as neuroses obsessivas ou histéricas
nos homens são também muito diferentes das mesmas
neuroses nas mulheres. A propósito, num seminário
realizado em Salvador, Bahia, nossa colega argentina
Nieves Soria Dafunchio, membro da AMP-EOL,25
propôs que há psicoses masculinas e psicoses
femininas. Mais precisamente, propôs que a paranoia
masculina difere da paranoia feminina, postulando que
o delírio de perseguição poderia ser denominado como
uma paranoia masculina, enquanto a erotomania
estaria do lado da paranoia feminina. Isto nos impõe,
portanto, um esforço para tentar formular como se
efetua a subjetivação da sexuação nas psicoses sem o
recurso da significação fálica.
Seguindo a orientação de Lacan, que a prática
psicanalítica nos confirma, devemos abordar os sujeitos
a partir do seu modo de gozo, quer dizer, a partir do
seu modo de gozo enquanto sexuado. Assim, tomando
em consideração o mundo líquido de Bauman, nosso
mundo líquido atual, pergunto: como estão nadando, ou
se afogando, os homens e as mulheres neste amor
líquido de Bauman, cada um com seu modo próprio de
subjetivar a sexuação? Mais precisamente: como
gozam desse amor líquido, segundo sua sexuação?
Esta me parece ser a pergunta-chave acerca das
parcerias na atualidade.
Assim, levanto a questão de como homens e
mulheres estão se servindo da vigência do discurso
capitalista para gozar em suas parcerias sintomáticas,
o que não implica que o discurso capitalista determine
o modo de gozo, mas sim a forma como os sujeitos
estão se utilizando desse laço social para gozar
conforme sua sexuação enquanto homem ou mulher.
Uma citação de Lacan no Seminário, Livro 18, nos
será útil a este respeito:
O importante é o seguinte: a identidade de gênero não é
senão o que acabo de expressar com estes termos, “homem”
e “mulher”. Claro que a questão do que surge precocemente
só se coloca a partir do que, na idade adulta, é próprio do
destino dos seres falantes que se distribuam entre homens e
mulheres. Para compreender a ênfase que se põe nessas
coisas, neste caso, é necessário nos darmos conta de que o
que define o homem é sua relação com a mulher e vice-
versa.26
Ainda que Lacan, por um lado, tenha formulado
que “não há relação sexual que possa ser inscrita”, já
que não há um script que possa inscrever a relação
entre os sexos, por outro nos adverte, através dessa
citação, que o homem se define por sua relação com a
mulher e vice-versa — um aparente paradoxo que nos
convida a considerar que a sexuação dos sujeitos se
inscreve a partir da crença que cada um cultiva em si
mesmo acerca da versão de gozo da sua sexuação
diante do outro sexo. Considerando seriamente essa
implicação proposta por Lacan, proponho, sob a
perspectiva das versões de gozo que sustentam as
sexuações, que há uma correlação direta entre a
histeria contemporânea das mulheres e o declínio do
viril nos homens de hoje; também levanto aqui a
hipótese de que o declínio do viril não poderia ser
engendrado na civilização sem a contribuição, ou até
mesmo a imposição do laço sintomático de gozo dos
homens com as mulheres.
Então, voltemos a falar de amor. Não se dizem
mais palavras de amor, não se fazem mais as
promessas de amor eterno das cartas dos
apaixonados! Voltemos um pouco no tempo para
recordar que, em certo momento, se produziu um
fenômeno inteiramente novo na civilização: no século
XII, o sonho do amor eterno, que faz pulsar o coração
secreto da feminilidade, alcançou um estatuto
simbólico no campo social através do surgimento do
amor cortês, quando o cavalheiro gentil começou a
oferecer palavras de amor à dama inacessível, e este
foi um fato raro, que se manteve durante sete séculos.
Durante esse período, floresceu a escrita das histórias
de amores impossíveis, e passou também a ocorrer
uma vinculação dos amantes através das cartas de
amor, de tal sorte que essa transposição da palavra
falada para a palavra escrita acabou instituindo a
crença num estatuto de verdade do amor cortês —
esta é a minha hipótese. Seguindo a história da
civilização, depois do surgimento do amor cortês, a
liberdade social para constituir parcerias baseadas nos
vínculos amorosos só foi possível no início do século
passado, exatamente na mesma época em que o
feminismo surgiu de maneira decisiva na sociedade.
O feminismo se instituiu inicialmente como uma
luta das mulheres por sua independência, sua liberdade
de escolha — liberdade de escolha para quê? Para
escolher um parceiro com o qual viver. Tomando a
sério as declarações do amor cortês e tentando pô-lo à
prova, o que fizerem as mulheres? Empreenderam
uma luta contra as tradições da família patriarcal, que
determinavam com quem deveriam se casar. Em sua
aposta feminista, as mulheres começaram uma luta
contra a autoridade paterna, para tentar reduzir, ou
eliminar, o poder desse juiz do seu destino, supondo quesobre ele incidia a culpa da impossibilidade de realizar
seu sonho de amor eterno. Para instituir a liberdade de
escolha do parceiro do amor eterno as mulheres
fizeram desmoronaram a autoridade paterna utilizando-
se de seu ingresso no mercado de trabalho, pois assim
supunham que ficariam livres para viver de amor.
Podemos, então, considerar que a gênese do
feminismo tomou como ponto de partida a posição de
desafio à autoridade paterna, àquele que era concebido
como o juiz que decretava a linha do destino das
mulheres. Podemos supor, assim, que o feminismo foi
impulsionado pela aposta nas promessas do amor
cortês, instituindo com suas ganas o declínio da imago
paterna.
Oh!… Lindo e esplendoroso amor, onde o
cavalheiro servil curvava-se embriagado de paixão
diante de sua Deusa: a Mulher Impossível! Porém, a
partir do avanço do feminismo, esse lindo sonho de
amor imediatamente começou a se esboroar. Por quê?
É bem possível — e estas continuam sendo
suposições minhas — que outro fato novo tenha sido
gerado pelo amor cortês. Seguramente, a partir da
aposta das mulheres nas promessas de amor eterno, a
dama inalcançável passou a falar também, em resposta
ao apelo de seu apaixonado. Deste modo, das
entranhas do amor cortês emergiu uma nova mulher,
com o poder que as declarações de amor lhe
conferem: o poder da réplica. E quando ela começou a
falar, provavelmente a desgraça começou a se abater
sobre a virilidade do amante, reduzindo suas promessas
de amor eterno ao ridículo de meras falácias. E hoje,
realmente, as declarações de amor eterno são
consideradas ridículas.
Por exemplo, a filha da ginecologista que citei, de
aproximadamente 15 anos de idade, começou a sair
com um garoto e, conforme os comentários de sua
mãe, já era bem evidente que ambos estavam
apaixonados, porém ainda não haviam nomeado essa
parceria como “namoro”. No Brasil, esse tipo de
relacionamento “não assumido”, sem compromissos, é
denominado “ficar”, ou “estar ficando”, que
corresponde a sair juntos, e às vezes ter relações
sexuais, sem considerar que há uma relação amorosa
formal. Essa relação não pode ser denominada de
“namoro”, pois não se estabeleceu nenhum
compromisso de direitos e deveres entre eles, e é um
tipo de vinculação muito comum, ao estilo das
“relações líquidas” de Bauman, acerca das quais não
se pode dizer que haja efetivamente um compromisso
entre os parceiros, pois nunca se sabe bem se voltarão
a se encontrar, ou se a denominação “namorados” será
estabelecida em algum momento. Tal indefinição se
converte num grande tormento para as mulheres
quando se apaixonam por um “ficante”.
Pois bem, essa garota estava “ficando” com o
rapaz quase todos os dias durante duas semanas e,
abruptamente, passou a recusar se encontrar com ele.
Sua mãe, preocupada, lhe perguntou o que tinha
ocorrido, e a garota respondeu:
“Não quero mais falar com ele.”
“Por que terminou antes de começar?”
perguntou sua mãe.
E a filha lhe respondeu:
“Ele começou a mentir, me disse: ‘eu te amo’.”
Diante disso, a mãe, horrorizada, verificou em
sua filha a que extremo o feminismo atual havia
chegado, constatando que atualmente os homens já
não podem mais dizer palavras de amor, pois são
consideradas “mentira”.
Prosseguindo em minha hipótese, pergunto: teria
a gênese libidinal do feminismo, instituída a partir do
amor cortês, constituído uma oportunidade
extraordinária para que o desafio histérico — advindo
da projeção superegoica do juiz, no pai e nos homens
em geral, aos quais se atribui a culpabilidade pela
devastação feminina — apontasse seu golpe certeiro
na direção da impostura fálica do amante? Depois do
amor cortês, temos, na atualidade, um novo modelo de
parceria no centro erótico do “mundo líquido” de
Bauman: a supermulher potente e castradora com seu
homem desvirilizado.
A mulher superpotente e seu
homem desvirilizado
Conforme as versões de gozo da gramática
fantasmática pulsional, temos, de um lado da balança, a
Mulher Multifacetada com suas diversas potências,
super supermulher; e do outro lado, que mantém o
equilíbrio da gramática pulsional, o que temos? O que
podemos dizer acerca dos homens atuais?
Oh... pobre amante eterno cada vez mais raro,
cada mais difícil de encontrar e de manter como
parceiro, como dizem muitas mulheres, pois acaba
pagando o preço da economia de gozo do supereu das
mulheres. O que resta para aqueles que sobrevivem ao
primeiro encontro com essa amante liberada, e ainda
conseguem sustentar seu desejo, tomando essa mulher
como sua? “Discutir a relação” — algo que Éric
Laurent, na aula de 18 de dezembro de 1996 do curso
de Miller “O Outro que não existe e seus comitês de
ética”, definiu como a própria estrutura do casamento
contemporâneo. Formulando de modo mais preciso,
Laurent nos disse que essa estrutura do casamento
atual, “discutir a relação”, corresponde a “discutir o
abismo da relação”, discutir o que não funciona nas
parcerias.
Essa proposta de “discutir a relação” proferida
pelas mulheres tem como objetivo fundamental castrar
o parceiro — exigir que nesse suposto diálogo ele
admita suas falhas, se culpe, se retrate, prometa mudar
e depois volte a admitir que falhou novamente. Então,
o suposto valor “politicamente correto” dessa proposta
de que “tudo se resolve conversando” se desvela como
um golpe certeiro da navalha afiada do sadismo
feminino. E quando esse homem decaído, ferido de
morte em sua virilidade, ainda permanece na parceria,
o requinte sádico feminista poderá descarregar seu
último golpe mortal diante do macho moribundo, em
seus últimos suspiros de vida, ao disparar: “Seja
homem!”
Assim se estabelece o lastro de gozo
mortificante nas parcerias contemporâneas entre
homens e mulheres. De um lado da balança, conforme
a lógica fantasmática da gramática pulsional, temos a
mulher multipotente que ataca sadicamente seu
parceiro, instituído como agente da sua devastação
pela projeção imaginária da lógica infernal do supereu.
Do outro lado, temos o parceiro que aceita de bom
grado fazer-se castrado, sustentando-se no gozo
superegoico obsessivo de fazer-se um objeto-dejeto
corroído pela culpa, e afirma: “Sou uma merda
mesmo”. É essa parceria sintomática superegoica que
sustenta muitas vezes o gozo mortificante do
matrimônio contemporâneo.
O que ocorre do lado dos homens?
Para orientar o tratamento desta questão,
retomarei um termo que Lacan utilizou para nomear os
homens em sua “Conferência de Genebra sobre o
Sintoma”.27 Diferentemente dos nomes insultantes
que muitas mulheres com frequência lhes imputam,
impulsionadas por seu gozo superegoico, a
denominação proposta por Lacan me parece uma
expressão muito linda, e ao mesmo tempo instigante:
“Drôle d’oiseau”, que se traduz para o português
como “ave rara”, o “pássaro raro”.
Nomear o homem como “pássaro” me remete ao
provérbio popular “Mais vale um pássaro na mão do
que dois voando”, provérbio que encontrei
parafraseado como chiste nas mensagens que têm
ampla circulação entre mulheres através da internet,
“Mais vale beijar um homem feio do que olhar dois
lindos se beijando”, e que tem a propriedade de
expressar a ambiguidade atual de certas mulheres,
para as quais “vale mais beijar um homem feio” —
quer dizer, vale mais “um homem na mão”, ainda que
desvalorizado no campo da escolha narcísica de objeto,
conforme o eu ideal — “do que olhar dois lindos se
beijando” — agora se acrescenta no plano da
enunciação do desejo uma intensificação do sadismo
feminista, que parece dizer: “Os homens que desejo e
aos quais não tenho acesso são gays”.
Porém, atribuir ao homem a denominação de
“pássaro”, conforme o provérbio que atualmente
algumas mulheres estão usando, denuncia sua
condição agalmática de objeto-causa-de-desejo para as
mulheres, na medida em que o “pássaro” é um animal
vivo muito gracioso, muito atraente, porém, ao mesmo

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