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Análise Crítica - Vênus Negra

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DEBATES E REFLEXÕES ACERCA DA OBRA “VÊNUS NEGRA”
 A produção cinematográfica Vênus Negra (2011) traz ao espectador a história de Saartjes, uma mulher negra que sai do sul da África com seu senhor, que passa a organizar espetáculos utilizando-se da imagem e do corpo dessa jovem. Além dos aspectos históricos apontados no filme, são diversas as reflexões que podem ser desencadeadas a partir da análise do tratamento ao qual Saartjes era submetida, assim como também pode-se observar as múltiplas facetas do racismo e as consequências do projeto colonial desenvolvido pelo homem branco. 
 Acerca deste colonialismo instituído há muitos séculos, e com desencadeamentos e até mesmo expressões vívidas nos dias atuais, é possível notar a demonstração desse projeto na exposição de Saartjes e do seu corpo, assim como na delimitação desse como passível de estudos minuciosos em busca da confirmação da inferioridade negra. Desde a apresentação realizada por seu senhor, a mulher é apresentada como um animal feroz, passível de ser domado e domesticado, irracional, características próprias a animais brutalizados. Dessa forma, através da formação de uma imagem animalizada, o homem branco europeu determina que apenas ele encontrava-se em um patamar elevado na escala evolucional das espécies, devendo ser encarado, portanto, como o detentor de todo saber e poder (QUIJANO, 2009). 
 Além disso, quando é encarada como um objeto de estudo a ser analisado de forma brutal e insensível, Saartjes é mais uma vez animalizada. Não existe sujeito, existe apenas um corpo a ser esmiuçado, tornando-se fonte de conhecimento para o europeu. Destarte, o homem europeu assume também, mais uma vez, o papel de único detentor do saber, daquilo que é correto, da régua através da qual todas as medidas devem ser tomadas. Pode-se observar, então, nessa organização colonialista a articulação de diversos aspectos, referentes a questões sociais e também individuais, levando a criação de ideais e estruturas padrão, que devem ser encaradas como únicas e verdadeiras (QUIJANO, 2009). Saartjes, o corpo da mulher negra, passa a ser um desses aspectos, aquele que serviria para a retificação da superioridade branca, auxiliando na consolidação desse padrão. 
 Outro aspecto que contribui para a delimitação do colonialismo e para articulação de suas ideias é a concepção supremacista do branco, que não é nem mesmo encarado como raça, haja visto que é o padrão. Ser é ser branco. Cria-se, portanto, uma “apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a auto-estima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais” e que investe na construção de um imaginário negativo sobre o negro (BENTO, 2014). Nesse contexto, Saartjes é inferior a todos os outros devido sua cor, e os outros não se encaram como parte dessa construção, o branco não está envolvido com a discriminação ou com as desigualdades. Pelo contrário, assim como o senhor da moça, há uma visualização do branco como um herói, aquele que trouxe o negro ao mundo civilizado e que encontra-se responsável pela sua humanização. 
 Ainda pode-se indicar a associação com a chamada branquitude no que se refere aos processos psíquicos que autores apresentam como compositores dessa, a projeção e o medo. Esses dois processos encontram-se atrelados ao surgimento de estigmas que visam a continuidade das desigualdades, a manutenção do estado atual de supremacia branca (BENTO, 2014). Acerca desses processos de assimilação e construção das realidades, é possível observar a forma como o corpo de Saartjes era sexualizado. No entanto, o corpo branco é construído como algo casto, puro, sendo assim, no corpo negro, no diferente, era possível a projeção dos desejos desses sujeitos, um corpo encarado como acessível e próprio para este fim. Até mesmo nos dias atuais podemos observar a permanência desse movimento de sexualização do corpo negro, não apenas feminino vale destacar, passando a ser encarado como um locus de satisfação comum a todos, público. 
 Além dessas dimensões próprias a colonialidade, ainda é possível indicar aquelas relacionadas a construção subjetiva dos sujeitos. Guattari e Rolnik (1996) apontam que a sociedade capitalista, que é perpassada pela lógica colonial, tem a tendência a bloquear processos de singularização, buscando o estabelecimento de subjetividades engessadas, criando-se indivíduos massificados. Assim, o pensamento colonial racista é instaurado como verdadeiro, levando a processos de culpabilização e discriminação aqueles que não se enquadram nessa subjetividade dominante. Nesse contexto, as subjetividades negras e as suas particularidades, assim como as máquinas produtoras dessas, são encaradas como desviantes, devendo ser desconsideradas. As expressões de singularidade desses sujeitos são pautadas como demoníacas, delinquentes, contraproducentes, devendo ser suprimidas e enquadradas nas subjetividades dos seres que existem, nos moldes brancos capitalistas.
 Através destes processos históricos, sociais e psíquicos é construído o negro. E é apenas isso que ele é para o sistema colonial capitalista: o negro. Não existem particularidades, não existe cultura ou passado, não existem sentimentos ou mesmo características, apenas a construção de algo inferior, que para existir precisa se adequar ao padrão. O negro, para existir, precisa torna-se branco, para que possa ter sua humanidade reconhecida (FANON, 2008). Diversos movimentos do sujeito são influenciados por essas concepções, pensar que o corpo desses indivíduos passa a determinar o seu todo, que é encarado como um todo vazio, traz múltiplas implicações psíquicas. 
 Nesse contexto, é importante indicar o papel da Psicologia, o desenvolvimento de uma ciência antirracista, que busque e promova o decaimento dessas estruturas coloniais vigentes, levando abaixo a discriminação e subalternização do negro. Um prática política é necessária. Além disso, da luta pela mudança, também é necessária uma atuação presente, pensando acerca do ser negro na atualidade e nas implicações sobre a saúde mental desses sujeitos hoje. O racismo ainda existe e suas vítimas também, não é possível fechar os olhos, os consultórios, os dispositivos públicos para essas pessoas e o seu sofrimento. E ainda é necessário apontar a necessidade de pesquisas e atuação sobre as questões referentes a branquitude e ao papel do branco nesses processos, sejam eles de discriminação ou de rompimento com o atual sistema, pensar sobre as possibilidades dessa raça dominadora atuar de forma responsável. 
 Por fim, trago uma fala de Fanon, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, que me leva a pensar bastante nas atitudes e posturas que o ser humano pode ter, nas incoerências que surgiram, que devemos reconhecer e reagir a elas, lutando para destruí-las: 
“[...] eu era odiado, detestado, desprezado [...] por toda uma raça. Estava exposto a algo irracional [...] para um homem que só tem como arma a razão, não há nada de mais neurotizante do que o contato com o irracional.” (FANON, 2008, p. 110)
REFERÊNCIAS
BENTO, Maria Aparecida (Org). Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida (Orgs). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 25-58
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Subjetividade e História. In: GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 25-45. 
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.) Epistemologias do Sul. Edições Almedina, 2009. p.73-117.

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