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1 2 SUMÁRIO 1 CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE E IDENTIDADE ............................ 3 2 O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO E DA SUBJETIVIDADE NA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL ..................................................................... 5 3 ALGUMAS CONCEPÇÕES DE SUJEITO E SUBJETIVIDADE NO ÂMBITO DA FILOSOFIA ............................................................................................................ 9 4 EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE NA CULTURA GLOBALIZADA: IDÉIAS A PARTIR DA TEORIA DA COMPLEXIDADE DE EDGAR MORIN ............................. 13 5 CULTURA, SUBJETIVIDADE E AS ORGANIZAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE ......................................................................................... 15 6 A CONJUNÇÃO DO POLÍTICO E DO SOCIAL NO MUNDO DO TRABALHO ............................................................................................................... 17 7 SUBJETIVIDADE COMO PRODUTO DO SOCIAL .................................. 21 8 CULTURA, SUBJETIVIDADE E ORGANIZAÇÕES .................................. 23 9 CONFIGURAÇÕES DA MICROCULTURA ORGANIZACIONAL NA CONTEMPORANEIDADE ......................................................................................... 27 10 MODOS DE SUBJETIVAÇÃO ............................................................... 31 11 MÍDIA E PRODUÇÃO DE MODOS DE SUBJETIVAÇÃO ..................... 34 12 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E A SUBJETIVIDADE A PARTIR DE VYGOTSKY: ALGUMAS REFLEXÕES ..................................................................... 37 12.1 Ênfase no funcionamento intra-individal ou a sociogênese ............ 39 12.2 Ênfase no funcionamento interindividual ou intersubjetividade ....... 40 12.3 Ênfase na relação dialética das dimensões intra e interindividuais . 41 12.4 O nascimento cultural do homem .................................................... 43 13 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 45 3 1 CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE E IDENTIDADE Fonte: dokumen.tips A subjetividade, identidade e constituição do sujeito precisam de uma discussão ontológica para que possam ser verdadeiramente compreendidos. Partindo de uma perspectiva dialética de entendimento do ser humano e de suas relações sociais, é possível apontar que a “identidade” pode ser compreendida como constituição do sujeito, desde que seu significado esteja na direção daquilo que se faz aberto e inacabado. Nesta perspectiva, a subjetividade é uma dimensão deste sujeito, assim como a objetividade que, a partir das relações vivenciadas, se faz construtora de experiências afetivas e reflexivas, capaz de produzir significados singulares e coletivos (MAHEIRIE, 2002). Muitas vezes não se sabe falar do homem singularmente, indaga-se qual o conceito utilizar para descrever o processo de constituição daquilo que o faz este sujeito e não outro. De qualquer maneira e independente do conceito que se possa utilizar, compreendemos que toda e qualquer concepção de sujeito traz implícita ou explicitamente uma ontologia que a sustenta. Ou seja, toda teoria traz uma concepção do ser em geral (homem e coisas), que serve de horizonte para fundamentação e desenvolvimento de uma concepção do que seja o ser humano (MAHEIRIE, 2002). 4 Para Sartre, o homem é um ser que se constitui ao mesmo tempo como corpo e consciência, em que está só pode ser entendida como sendo relação a alguma coisa. Por isso sua teoria indica que toda consciência é consciência de alguma coisa, sendo desprovida de todo e qualquer conteúdo. Ela é somente “relação”, não tendo interior nem conteúdo, revelando-se, então, como a dimensão subjetiva do sujeito entendido como a negação do absoluto de objetividade. Nesta perspectiva, o conceito de consciência em Sartre contempla todo e qualquer fenômeno da psique humana, desde o mais breve impulso perceptivo de um recém-nascido, até a mais elaborada das reflexões de um sujeito adulto (MAHEIRIE, 2002). O significado que ele atribui à consciência não pode ser confundido com a noção que em geral se tem a respeito dela, qual seja, como uma modalidade do conhecimento. A consciência é anterior ao conhecimento, sendo que este é apenas uma possibilidade daquela (MAHEIRIE, 2002). Sartre parece romper com o paradigma cartesiano, no qual “existir” corresponde ao “pensar”. Rompendo com o privilégio da reflexão sobre vivência humana, é possível romper também com algumas dicotomias, dentre elas, a da razão e da emoção, colocando a consciência no patamar da existência. Como consequência, temos a afetividade, imaginação, percepção e reflexão, seja crítica ou não, como consciências, cada qual com sua especificidade (MAHEIRIE, 2002). De acordo com o referencial teórico psicodinâmico percebe-se a tentativa de compreender as formas como estão se dando os processos de subjetivação dos sujeitos, que terminam esmagados nas suas singularidades, resultando isso nos variados tipos de manifestações e sintomas presentes na atualidade (OLIVEIRA, 2003). A identidade, subjetividade e sintoma na era contemporânea. Pesquisadores refletem a forma como está sendo construída a identidade do homem moderno, para podermos assim compreender a crise de paradigmas e sintomas sociais que vivenciamos na atualidade, e que, por sua vez, influenciam intensamente na construção das identidades individuais e coletivas (OLIVEIRA, 2003). Vive-se em uma era em que do homem é exigido o uso pragmático da razão sobrepondo-se aos sentimentos e emoções, encontramos o ambiente propício à manifestação dos mais variados sintomas e enfermidades (OLIVEIRA, 2003). 5 Quando se fala da doença, sabe-se que está se manifesta por meio de um corpo no qual habita. Entretanto, ao evocarmos a noção de corpo, não nos limitamos apenas a um corpo anatômico, mas a um corpo vivido, dotado de existência, possuidor de subjetividades (OLIVEIRA, 2003). Segundo Merleau-Ponty (1962), o corpo do homem não é um simples corpo, mas um corpo humano, que só pode ser compreendido a partir da sua integração na estrutura global. A doença no corpo transcende o físico, o palpável, o orgânico e o real, e refere-se ao aspecto simbólico, o qual só poderá ser compreendido a partir das histórias pessoais de cada indivíduo. Daí a importância da construção de uma identidade, que vai constituir diferentes e peculiares formas de ser, de existir e de produzir sintomas e doenças (OLIVEIRA, 2003). 2 O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO E DA SUBJETIVIDADE NA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL O conceito de subjetividade, apesar de ser amplamente utilizado pela psicologia e por outras ciências, possui diversas definições, que variam de acordo com o autor, com a interpretação, etc. Pode-se observar que, até mesmo no interior de uma mesma perspectiva, como a psicologia histórico-cultural, existem diferentes interpretações e formulações teóricas acerca da constituição da subjetividade. Molon (2003) realizou um estudo acerca da constituição do sujeito e da subjetividade na concepção de diferentes autores e na leitura que esses autores fazem sobre a constituição do sujeito na obra de Vygotsky. Identificou que os autores analisados por ela têm por pressuposto a origem social do homem, mas diferem entre si com relação à maneira como veem esta relação entre indivíduo e sociedade e na maneira como veem a relação entre a constituição da subjetividade no meio social e individual. Alguns autores priorizam o funcionamento intrapsicológico como, por exemplo, Jaan Malsine e alguns dão ênfase ao funcionamento Inter psicológico como, por exemplo, James V. Wertsch. Outros, ainda, veem de forma dialética a relação entre ambos os aspectos. Cada uma dessas formas de pensar a constituição da subjetividadetraz consigo, portanto, diferentes formas de se analisar a constituição do sujeito. 6 A constituição do sujeito e da subjetividade não é esclarecida nem entre os, autores que dão ênfase ao aspecto intrapsicológico, nem entre os autores que se preocupam com o Inter psicológico, e que a análise do tema subjetividade é feita com reduções de ambas as partes, não se pautando no caráter dialético das produções de Vygotsky. O desenvolvimento do psiquismo e a constituição da subjetividade que se fundamentem em uma visão marxista dos autores que compõem a escola de Vygotsky, tais como o próprio L. S. Vygotsky, A. N. Leontiev, A. R. Luria, entre outros. Leontiev (1978/2004) diz que acerca da constituição psíquica do homem e seu desenvolvimento. Para Leontiev (1978/2004, p.279, grifos do autor), o desenvolvimento do homem é um processo histórico e social, visto que “o homem é um ser de natureza social, que tudo o que tem de humano nele provém de sua vida em sociedade, no seio da cultura criada pela humanidade”. Apenas o aparato biológico não é suficiente para que o homem se torne homem, pois cada indivíduo aprende a ser homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. Ainda é preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (Leontiev 1978/2004, p.285, grifo do autor). Portanto, o homem só se torna homem ao apropriar-se do mundo, quando se transmite, às novas gerações, o legado da humanidade. É o processo de apropriação e objetivação dos bens materiais e culturais que propiciam o desenvolvimento de novas gerações de seres humanos. A constituição da subjetividade humana caminha desse ir e vir do mundo interno para o mundo externo, numa relação dialética entre objetividade e subjetividade. Martins (2007), a partir das ideias defendidas por Leontiev, diz que compreender a essência humana como conjunto das relações sociais implica reconhecer que estas relações são produzidas pelos homens por meio da atividade consciente, encontrando-se na base destas relações as relações sociais de produção (Martins, 2007, p.141). Isto mostra a conexão entre subjetividade e atividade vital do homem o trabalho, pois é pela atividade que este homem constrói a si mesmo e ao mundo. Desta forma, a compreensão da subjetividade deve considerar que o homem pertence a uma forma determinada de sociedade, e que as particularidades desta sociedade condicionam a construção dos indivíduos que dela fazem parte. 7 Para analisar o indivíduo devemos nos fundamentar na análise do momento histórico e social enfocando a relação dialética homem-sociedade. E para viver em sociedade o homem precisa controlar o seu comportamento e isso é possível com o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para Vygotsky (1931/2000), o desenvolvimento do psiquismo é o resultado, por um lado, de um processo biológico de evolução das espécies animais que conduziu à aparição do homo sapiens, por outro lado, é resultado do processo histórico, graças ao qual o homem primitivo se converteu em um ser culturalizado. A filogênese, a ontogênese e as condições histórico-sociais seriam responsáveis pelo homem cultural. Vygotsky (1931/2000) diz que as transformações nos planos natural e cultural promovem o processo de formação biológico-social da personalidade da criança. Conforme a criança vai se apropriando da cultura, vai aprendendo a utilizar os recursos mediadores que o ambiente dispõe para realizar determinados comportamentos. Ocorre uma superação dos aspectos biológicos pela apropriação da cultura. O comportamento passa a ser mediado por instrumentos e signos. O comportamento da criança, pela mediação de outras pessoas, vai se modificando. Ocorre a “ a criação e o emprego de estímulos artificiais em qualidade de meios auxiliares para dominar as reações próprias” (Vygotsky, 1931/2000, p.82). A criança passa a se utilizar de signos para controlar seu comportamento. Vygotsky (1931/2000, p.83) diz que denomina sobre signo os estímulos mediadores artificiais introduzidos pelo homem na situação psicológica, que cumprem a função de auto estimulação, estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta. Vygotsky diz que, do ponto de vista psicológico, a significação, a criação e a utilização de signos é que diferencia o homem do animal. Quando Vygotsky (1931/2000, p. 146) analisa a gênese das funções psicológicas superiores destaca que o signo a princípio, é sempre um meio de relação social, um meio de influência sobre os demais e tão somente depois se transforma em um meio de influência sobre si mesmo”. Os signos externos tornam-se internos e, desta forma, o homem passa a ser ele mesmo através do outro. Vygotsky (1931/2000) está se referindo não apenas a personalidade em seu conjunto, mas também a cada função psicológica superior. 8 Cada função superior é primeiramente externa, Inter psíquica, para depois se tornar interna, intrapsíquica. Toda função psicológica é primeiramente social. Vygotsky (1931/2000) afirma que, quando ele se refere a algo “externo”, está querendo afirmar que é algo “social”. Ou seja, o que sustenta as funções superiores são as relações sociais. Todo aspecto cultural é social, uma vez que a cultura é produto da atividade humana social. Vygotsky e Luria (1030/1996) diz que no início de seu desenvolvimento, a criança utiliza-se de suas funções psicológicas naturais para se adaptar ao meio. Quando ela passa do estágio primitivo e natural para o estágio cultural, passa a utilizar-se de signos externos como auxílio para, por exemplo, memorizar algo. Com o passar do tempo, estes signos tornam-se internos, são internalizados pela criança, e está passa a utilizar-se de suas funções psicológicas superiores para realizar suas tarefas, não necessitando mais de auxiliares externos. A formação da subjetividade, nesta linha de raciocínio, é condicionada tanto por fatores internos, como fatores externos; ou seja, tanto fatores culturais como o próprio desenvolvimento das funções psicológicas superiores formam a personalidade da criança. No que se refere ao termo subjetividade, Silva (2007) pontua que o conceito é amplamente utilizado hoje, porém possui as mais diferentes definições. A autora procura compreender o significado deste termo a partir de Leontiev, diz que, a palavra subjetividade se refere ao processo pelo qual algo se torna constitutivo e pertencente ao indivíduo; ocorrendo de tal forma que esse pertencimento se torna único, singular (Silva, 2007, p.75). O fato da subjetividade se referir àquilo que é único e singular do sujeito não significa que sua gênese esteja no interior do indivíduo. A gênese dessa parcialidade está justamente nas relações sociais do indivíduo, em que ele se apropria (ou subjetiva) de tais relações de forma única (da mesma maneira ocorre o processo de objetivação). Ou seja, o desenvolvimento da subjetividade ocorre pelo intercâmbio contínuo entre o interno e o externo, relação essa tal qual Vygotsky (1995, 1931) descreve quando se refere a gênese das funções psicológicas superiores. Em síntese, é o processo de tornar o que é universal em singular, único, isto é, de tornar o indivíduo pertencente ao gênero humano (Silva, 2007, p.76). 9 Considera-se que o contexto histórico e cultural no qual o indivíduo está inserido é que vai constituir o mesmo como sujeito, por meio de uma relação dialética entre objetividade e subjetividade, conforme destacam Cambaúva e Tuleski (2007). Segundo Bock (2001), o fenômeno psicológico deve ser entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constitui na relação com o mundo material e social, mundo este que só existepela atividade humana. Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se confundir. A linguagem é mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicológico é um mundo em relação dialética com o mundo social. Conhecer o fenômeno psicológico significa conhecer a expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um processo de conversão do social em individual; de construção interna dos elementos e atividades do mundo externo. Conhecê-lo desta forma significa retirá-lo de um campo abstrato e idealista e dar a ele uma base material vigorosa (Bock, 2001, p.23). A subjetividade, portanto, é constituída por fatores internos e externos, na qual a forma do indivíduo se perceber está relacionada com a forma como os homens estabelecem as relações sociais em um contexto específico, decorrente de condições histórico-sociais. 3 ALGUMAS CONCEPÇÕES DE SUJEITO E SUBJETIVIDADE NO ÂMBITO DA FILOSOFIA Os primeiros estudos acerca da noção de subjetividade foram produzidos no âmbito da Filosofia. Na Grécia antiga, Platão, em seus estudos a respeito do conhecimento humano, já tecia considerações sobre o sujeito. Esse filósofo entendia o ato de conhecer como um reconhecimento dos sentidos inscritos nas coisas, por isso, para ele, o saber não era construído pelo homem, porque Deus era responsável pela criação e ao homem cabia apenas a imitação, o conhecimento se dava pelo reconhecimento. 10 Em diálogo com essa ideia, recorremos às palavras de Brandão: “o SER tinha uma existência autônoma, era algo exterior ao homem a quem cabia apenas uma função de reconhecimento e não de construção de saber” (BRANDÃO, 1998, p. 34). O advento da subjetividade na filosofia se dá, mais precisamente, no momento em que a consciência passa a ser considerada como produtora de todas as verdades. Assim, o existencialismo é o ponto de partida da filosofia humanista e tal ideia é fundamentada pelo célebre axioma1 de Descartes, de que pensar, é logo, existir. Brandão diz: A verdade não é simplesmente reconhecida, mas produzida pelo homem nesse processo de percepção de si próprio. O “eu penso” é a primeira verdade, a de acesso mais imediato e o ponto de partida de todas as outras evidências que serão produzidas por esse mesmo “eu penso”. (BRANDÃO, 1998, p.34) De acordo com a concepção cartesiana, a subjetividade é responsável pela construção do saber e esse processo acontece quando o sujeito passa a representar o objeto, atribuindo-lhe significado: “considerado como uma exterioridade, o objeto passa a ser algo que é representado por um sujeito que lhe confere sentido” (BRANDÃO, 1998, p.35). Esse processo de representação considera o princípio da identidade e recusa a contradição, uma vez que o sujeito, na concepção de Descartes, seria um produtor de verdades universais, o que, no entendimento de Rey (2003), contribuiu para a construção de uma visão maniqueísta da sociedade. Por trás dessa ideia está o princípio profundamente racional de caráter universal das crenças que permite uma divisão estática entre um mundo “bom” e outro “mau”, o que tem escasso valor ético e moral, pois todos sentimos que somos parte do mundo “bom”, assumindo muito pouco a identidade do mal. A ideia de um sujeito universal apresenta-se muito associada à do sujeito ideal que inspirou boa parte das construções éticas, políticas e religiosas do pensamento ocidental e que continuam muito arraigadas até hoje. (REY, 2003, p. 21). Surge a dialética da realidade e a subjetividade, que antes estava na identidade dos seres, agora, é construída na relação de oposição entre eles. 1 Axiomas são verdades inquestionáveis universalmente válidas, muitas vezes utilizadas como princípios na construção de uma teoria ou como base para uma argumentação. 11 Foucault (1972) nega a unicidade do sujeito e o inscreve no âmbito da linguagem, opondo-se à ideia de uma subjetividade produtora de verdades universais, uma vez que, no entendimento desse autor, a contradição é inerente ao discurso. O discurso deixa de ser a manifestação “majestosamente desenvolvida” de um sujeito pensante para se constituir em um espaço de exterioridade no qual o sujeito pode ocupar diversos lugares. Segundo a teoria foucaultiana, o sujeito pode assumir diversas posições em suas práticas discursivas, o que caracteriza sua dispersão. As diversas modalidades de enunciação em lugar de remeter à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão. Aos diversos estatutos, aos diversos lugares, às diversas posições que pode ocupar ou receber quando tem um discurso. À descontinuidade dos planos de onde fala. (FOUCAULT, 1972, p. 69- 70). Kant também desconstrói a ideia cartesiana, uma vez que a construção do pensamento não está simplesmente ligada ao fato do “eu penso” como determinador das propriedades dos objetos, mas sim na relação que o indivíduo estabelece com o meio. Na concepção kantiana, a relação entre o sujeito e o objeto passa pela percepção individual. Tentamos provar que todas as nossas intuições só são representações de fenômenos, que não percebemos as coisas como são em si mesmas, nem são as suas relações tais como se nos apresentam, e que se suprimíssemos nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos nossos sentidos em geral, desapareceriam também todas as propriedades, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e também o espaço e o tempo, porque tudo isto, como fenômeno, não pode existir em si, mas somente em nós mesmos. (KANT, s.d., p. 25). Outro filósofo que problematiza a visão cartesiana é Husserl (1929). Ao discorrer sobre o que considera ser uma nova fenomenologia, esse filósofo chega a salientar a influência do pensamento cartesiano sobre essa corrente filosófica, mas propõe uma reformulação das meditações de Descartes, no que tange à noção de sujeito. No entendimento de Husserl, o sujeito cartesiano é abstrato, desvinculado do mundo. Infelizmente é o que acontece em Descartes com a viragem discreta, mas funesta, que transforma o ego em substantia cogitans, em animus humano separado, em ponto de partida para raciocínios segundo o princípio da causalidade, em suma, com a viragem pela qual se tornou o pai do contraditório realismo transcendental. (HUSSERL, 1929, p. 8). 12 Para Husserl, faltou a Descartes desvendar o ego, compreendendo-o, não como algo vago, mas como uma “corrente incessante do ser” (HUSSERL, 1929, p.13). No campo da Psicologia, retomando Rey, a rejeição ao sujeito da razão provocou o que esse autor denomina “morte do sujeito”. Dessa forma: A subjetividade e o sujeito não aparecem na psicologia como resultado de seu trânsito pela modernidade, mas como resultado de sua assimilação da dialética marxista, enriquecida no processo de desenvolvimento da psicologia pela influência crescente do pensamento complexo nas ciências do homem. (REY, 2003, p. 222). Nem sempre a psicologia abarcou discussões sobre a subjetividade. Rey (2003), ao traçar um panorama das teorias do sujeito no âmbito da psicologia, destaca as bases empiristas e experimentais que dominaram essa ciência, no final do século XIX e início do século XX, na Europa e nos Estados Unidos. A subjetividade aparece na psicologia como produto da assimilação da dialética marxista. Dessa forma, pode- se notar a influência da visão marxista na psicologia social. A assimilação organizada do marxismo pela psicologia, que se apresenta pela primeira vez na psicologia soviética, incorporou a visão marxista do homem na construção do pensamento psicológico e, pela primeira vez, reconheceu a formação da psique dentro do espaço histórico-cultural do homem. (REY, 2003, p. 222). O surgimento da psicanálisefoi fundamental para a inclusão do tema subjetividade nos estudos de Psicologia. Rey (2003) analisa as contribuições de Freud e Lacan, apontando os avanços de suas teorias e, ao mesmo tempo, tece algumas críticas a partir das lacunas deixadas por esses autores. Freud e Rey (2003) diz que é importante o estudo de casos para a construção da base teórica da Psicologia. Porém, acrescenta que o sujeito freudiano se apresenta como um cenário de luta de forças, o que não nos autoriza, no entendimento de Rey, a considerar esse indivíduo como um sujeito propriamente dito. Com relação ao sujeito lacaniano, Rey (2003) diz que a inserção da linguagem nos estudos, apesar de considerar tal fato como um avanço da teoria lacaniana, Rey sustenta que o “sujeito de Lacan é ficcional; está incapacitado para seguir o princípio da realidade” (REY, 2003, p.38). A linguagem, então, deixa de ser uma forma de expressão, desenvolvimento e mudança do próprio sujeito, uma vez que esse sujeito não se responsabiliza por sua ação no mundo. 13 Sob essa perspectiva, o sujeito lacaniano é visto mais como uma entidade/construção psíquica que se adapta ao mundo, não se constituindo em agente de transformação, ou seja, é um sujeito incapaz de romper, de criar, de mudar e se torna “preso” às estruturas da linguagem, tornando-se produto delas. Portanto, é um sujeito a-histórico, alienado e sem criatividade. Dessa forma, para Rey, o sujeito lacaniano aparece como efeito, o que o descaracteriza enquanto sujeito social, com uma história, cuja consciência reflete as implicações da relação entre o eu e o outro. Rey defende um sujeito que só existe em sua relação com o social, rompendo com a ideia de que a subjetividade é um fenômeno individual. Na perspectiva da subjetividade social, segundo o autor. Os processos sociais deixam de ser vistos como externos em relação aos indivíduos, ou como um bloco de determinantes consolidados, que adquirem o status do "objetivo" diante da subjetividade individual, para serem vistos como processos implicados dentro de um sistema complexo, a subjetividade social, da qual o indivíduo é constituinte e, simultaneamente, constituído. (REY, 2003, p. 202). Em consonância com Rey, diz que aqui, o sujeito é ativo, atuante na sociedade em que está inserido, um sujeito que age no mundo através do discurso, constituindo a realidade e a si mesmo no processo de interação dos indivíduos em um determinado espaço social. 4 EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE NA CULTURA GLOBALIZADA: IDÉIAS A PARTIR DA TEORIA DA COMPLEXIDADE DE EDGAR MORIN Subjetividade “Essa é uma noção ao mesmo tempo evidente e misteriosa”, diz Morin (2002: 117) que ainda emenda da seguinte forma: “é uma evidência perfeitamente banal, uma vez que qualquer um diz “Eu”. Mas é uma noção misteriosa, pois temos dificuldade para dizer deste nosso “eu”. Será, o nosso eu, a subjetividade? Mas o que é ela? Pode-se tomar de empréstimo algumas tentativas de dizê-la, como a seguinte de Elaine T. Dal. Mais Dias diz que a subjetividade é um sistema organizador do mundo interno e do mundo externo do sujeito, construído nas relações interpessoais e por sua influência. 14 Ela se manifesta na singularidade e na peculiaridade de cada um, podendo ser conhecida ou desconhecida. Esta subjetividade permite ou obstrui o desenvolvimento e o crescimento pessoal. Impede ou resgata lembranças do passado que se mostram e interferem no presente. (In: Almeida e Petraglia, 2006: 13-14). Araújo diz que, “espaço/moradia onde se organizam as nossas experiências existenciais, é território no qual nos situamos, para podermos estabelecer relações com os outros, e para atribuir significado às experiências vividas. ” (In: Linkeis, 2005: 15). Esta ideia de espaço/moradia, que nos envolve e envolve nossas vivências, e que se deixa marcar por relações as mais diversas e que, de algum modo, nos identifica a nós mesmos para nós mesmos e para os outros, é rica. Ela se aproxima da ideia de “sistema organizador do mundo interno e do mundo externo” de Dias e também do que diz Naffah Neto. Linkeis diz que uma espécie de envergadura interior, de vazio, capaz de acolher, dar abrigo e morada às experiências de vida: percepções, pensamento, fantasias, sentimentos. Ou, se quisermos usar um só termo: afetos, diferentes expressões de como somos afetados pelo mundo. (In: Linkeis, 2005: 14). Morada e abrigo de afetos ou das experiências de vida. Mas abrigo e morada do que fazemos com tais experiências lá dentro de nós mesmos constituindo-nos e sendo constituídos. Subjetividade “como experiência de si e como condensação de uma série de determinações” (Mezan, in: Linkeis, idem, p.15). A subjetividade pode mesmo ser pensada como este “sistema organizador” que é “construído nas relações interpessoais e por sua influência” e que “se manifesta na singularidade e na peculiaridade de cada um”. Se assim for, nossa subjetividade é algo construído, construído por cada um de nós e ao mesmo tempo por influências poderosas do meio em que vivemos: ou dito de outro modo, nas inter-relações nas quais estamos enredados desde que nascemos. Enredados, isto é, postos numa rede complexa de relações. É nesta rede que construímos a morada/abrigo ou o espaço/moradia de nós mesmos com tudo o que nos afeta e de onde também afetamos o que e a quem nos cerca. Afetamos incluindo e excluindo o que de fora nos vem e pelo que nos deixamos afetar ao mesmo tempo. 15 5 CULTURA, SUBJETIVIDADE E AS ORGANIZAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE Cultura como conceito reacionário: O ponto de partida de nossas reflexões consiste em situar os conceitos que favorecem a compreensão dos fenômenos que se revelam no âmbito das organizações e que são relativos à produção subjetiva dos seus trabalhadores. Iniciar pela compreensão do conceito de cultura tem o propósito de ressaltar a sua complexidade, para, então, buscar uma posterior abordagem dos níveis pertinentes às micropolíticas que configuram a dinâmica e os modos de funcionamento próprios das organizações. Kroeber (1950, citado por Laraia, 2001), ao definir cultura, ressalta importantes elementos deste conceito, dos quais destacamos: A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do homem e justifica as suas realizações. Adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizado do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas. A cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo. (p. 50). Para esse autor, a nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações, nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da influência direta da cultura onde se vive. Pessoas de culturas diferentes podem ser facilmente distinguidas devido a uma série de características, tais como: o modo de agir, vestir, caminhar, comer, destacando-se a linguagem como uma das diferenças mais visíveis. Esse fenômeno, próprio dos grupos sociais, conjuga-se ao modo de organização adotado pelo ser humano ao longo do seu percurso no planeta. 16 O homem tem despendido grande parte da sua história na Terra, separado em pequenos grupos, cada um com sua própria linguagem, sua própria visão de mundo, seus costumes e expectativas. O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seuscasos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais (Laraia, 2001, p.72). A participação do sujeito em sua cultura é limitada, pois nenhuma pessoa participa de todos os elementos de sua cultura. Porém, é necessário existir um mínimo de participação do indivíduo em seu entorno, a fim de permitir a sua inserção nos grupos sociais importantes para o seu convívio no dia a dia. As pessoas precisam saber como agir em determinadas situações e, também, ter uma expectativa quanto ao comportamento das outras. Apesar de isso tudo possibilitar um certo controle das situações, há sempre o risco de que as previsões não se realizem e as situações se apresentem sob novos modos de acontecer, pois em nenhuma sociedade todas as condições são previsíveis e controladas. Os inúmeros vetores que atuam na construção dos fenômenos culturais, melhor seria referirmo-nos às culturas, tal é a diversidade que acompanha as suas formas de aparecimento. Neste sentido auxilia-nos Guattari (1993), quando a define colocando- a sob três categorias: cultura-valor, cultura-alma coletiva e cultura-mercadoria. E os sentidos que incorporam a categorização delineada pelo referido autor ao trabalhar com este operador conceitual. A palavra cultura teve vários sentidos no decorrer da história: seu sentido mais antigo é o que aparece na expressão "cultivar o espírito". Vou designá-la "sentido A" e "Cultura-valor", por corresponder a um julgamento de valor que determina quem tem cultura, e quem não tem: ou se pertence a meios cultos ou se pertence a meios incultos. Vou designá-lo "sentido B". É a "Cultura alma-coletiva", sinônimo de civilização. Essa é uma cultura muito democrática: qualquer um pode reivindicar sua identidade cultural. O terceiro núcleo semântico corresponde à cultura de massa e eu o chamaria de "cultura-mercadoria". Aí já não há julgamentos de valor, nem territórios coletivos da cultura mais ou menos secretos, como nos outros sentidos. Cultura são todos os bens: todos os equipamentos, todas as pessoas, todas as referências teóricas e ideológicas relativas 17 a esse funcionamento, enfim, tudo que contribui para a produção de objetos semióticos (livros, filmes, etc.), difundidos num mercado determinado de circulação monetária ou estatal. (Guattari, 1993, p.17). A ideia incutida nessa definição é a de que esses três sentidos que aparecem sucessivamente no curso da história, continuam a funcionar, e estão presentes simultaneamente. Portanto, há uma complementaridade entre esses tipos de núcleos semânticos. O mesmo autor vai se referir à inexistência de uma cultura popular ou erudita; mas, ao invés, utiliza o termo capitalística para designar uma cultura com vocação universal, apoiada nos processos subjetivos que decorrem da produção dos meios de comunicação de massa. No entanto, seguindo na contramão da força coletiva de controle social que opera sob essa dimensão essencial, escapam outros territórios subjetivos que provocam rupturas na cultura geral predominante. "o conceito de cultura é profundamente reacionário" (Guattari, 1993, p. 15) por considerar que os processos culturais acabam por servir de meio para segmentar as atividades semióticas, em seguida padronizá-las e capitalizá-las para o modo de semiotização dominante. Sendo assim, a cultura constitui-se um importante vetor que engendra os processos subjetivos e atua junto à influência de outros campos de força, dentre eles, os fatores políticos e sociais que permeiam o momento histórico da sociedade. Portanto, percebe-se como necessária uma breve incursão no campo político/social, cujos contornos constroem a cultura capitalística, assim como a construção subjetiva na contemporaneidade. 6 A CONJUNÇÃO DO POLÍTICO E DO SOCIAL NO MUNDO DO TRABALHO Após o advento da sociedade capitalista, que teve sua expansão em meados do século XVIII, instalou-se a fase industrial, caracterizada, principalmente, pelo uso da força mecânica e das máquinas, deixando sem emprego um grande número de operários. Aqueles que conseguiram oferecer sua força de trabalho em troca de sua sobrevivência, viram-se na contingência de aceitar uma jornada extenuante, além do rebaixamento de seus salários, instalando-se uma relação de desigualdade entre os proprietários (capitalistas) e a grande massa da população (proletários). 18 Além disso, o modo de realizar as tarefas passou por mudança significativa e trouxe sérias consequências para a relação homem/máquina/atividade laboral. Nessa direção, trazemos Marx (1984), quando se refere à produção capitalista dessa fase histórica. Enquanto o trabalho em máquinas agride o sistema nervoso ao máximo, ele reprime o jogo polivalente dos músculos e confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual. Mesmo a facilitação do trabalho torna-se um meio de tortura, já que a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo. Toda produção capitalista, à medida que ela não é apenas processo de trabalho, mas ao mesmo tempo processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem usa as condições de trabalho, mas que, pelo contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador: só, porém, com a maquinaria é que essa inversão ganha realidade tecnicamente palpável. (p. 43). O mundo industrializado, como ambiência para a ação focada na produção coletiva, trazia, como consequência, a sensação de exaustão acompanhada da frustração que, via de regra, se convertia em baixo desempenho e problemas de saúde. Essa situação correspondia às demandas sociais e políticas da era industrial vigente que tinha como base o crescimento da produtividade em níveis cada vez mais altos. O trabalho era visto como mercadoria. Inserido, nitidamente, na lógica do capitalismo, Marx supunha que a força de trabalho poderia ser mercantilizada em apenas uma forma que seria verdadeiramente capitalista, ou seja, através do trabalho livre assalariado, em que o trabalhador, como um indivíduo livre, poderia dispor da sua força de trabalho como sua própria mercadoria. O marxismo se constituiu em um essencial ponto de partida para o entendimento da nossa época, nos aspectos relacionados à produção político/social Santos (1996). Para esse autor, em que pese as críticas dirigida a Marx, ele obteve mérito ao realizar uma articulação entre a sociedade capitalista e a capacidade de superação e transformação social pela ação coletiva, fruto de uma vontade política radicalmente construída nessa direção. Apesar de sua análise não ter abrangido a relação entre a exploração do trabalho e a consequente destruição da natureza, acreditava que as profundas mudanças sociais perpassavam pelo desenvolvimento de contradições. Uma das 19 contradições que apontou dava conta do poder social e político do capital sobre o trabalho. Marx acreditava na transformação social proveniente da luta de classes, com realce para as forças produtivas, e isso derivou do momento histórico em que desenvolveu as bases para sua proposta sociológica. Entretanto, esse movimento forneceu insumos para uma leitura sociológica com tal profundidade, que permitiu enunciados que revelaram a inserção do plano político-social na microcultura que engendra a ambiência das organizações e o modo de ser de seus trabalhadores no âmbito da era industrial. Em poucos anos, a partir da Segunda Guerra Mundial, passou-se da sociedade industrial, centrada na produção em série de bens materiais, à sociedade pós- industrial, centrada na produção de bens não-materiais, tais como, informações, símbolos, estética, valores. Paralelamente, o poder passou dos proprietários dos meios de produção aos proprietários de criação (De Masi, 2000). 3 Ele diz nestes termos que o advento pós-industrial provocou um profundo corte epistemológico, isto é, uma visão totalmente inéditada sociedade, da vida, do progresso, dos métodos para compreender e agir. Entre quem já saltou para o novo e aquele que ainda se mantém no velho vai-se interpondo um abismo intransponível. (p.65). Durante a era industrial, as ideias propostas por Marx, embora não fosse sua intenção, adquiriram um caráter utópico, embutido numa proposta profundamente transformadora no plano sociopolítico. A utopia do marxismo é um produto da modernidade e, como tal, pode nos ser insuficiente ao tentarmos tomá-la como único norteador no atual momento histórico, período de transição na pós-modernidade (Santos, 1996). Nos encontramos numa fase de transição paradigmática, entre o paradigma da modernidade, cujos sinais de crise me parecem evidentes, e um novo paradigma com um perfil vagamente descortinável, ainda sem nome e cuja ausência de nome se designa por pós-modernidade. (p.34). Paralelamente a esse fenômeno, um movimento de ordem planetária tem início e se instala: o processo de globalização da economia. Se, por um lado, o intercâmbio entre as nações promoveu a abertura dos portos elevando o desempenho da balança comercial, favorecendo, principalmente, o incremento das transações internacionais, 20 a globalização trouxe significativas consequências sociais à própria ação do ser humano na sua comunidade e, portanto, no seu modo de ser como trabalhador. Sobre alguns dos efeitos do processo de globalização para as pessoas, podemos ainda constatar que: Em vez de homogeneizar a condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais tende a polarizá-la. Ela emancipa certos seres humanos das restrições territoriais e torna extraterritoriais certos significados geradores de comunidade - ao mesmo tempo que desnuda o território, no qual outras pessoas continuam sendo confinadas, do seu significado e da sua capacidade de doar identidade. Para algumas pessoas ela augura uma liberdade sem precedentes face aos obstáculos físicos e uma capacidade inaudita de se mover e agir a distância. Para outras, pressagia a impossibilidade de domesticar e se apropriar da localidade da qual têm pouca chance de se libertar para mudar-se para outro lugar. (Bauman, 1999, p.25). No último quartel do século XX, forçando redefinições e reavaliações de produção, processos e mercados, tem início a sociedade pós-industrial, também denominada por alguns estudiosos, sociedade informacional. Podemos, ainda, afirmar que: O processo de transição histórica para a sociedade informacional e uma economia global é caracterizado pela deteriorização das condições de trabalho e de vida para uma quantidade significativa de trabalhadores. Resultado da reestruturação atual das relações capital-trabalho, com a ajuda das poderosas ferramentas oferecidas pelas novas tecnologias da informação e facilitadas por uma nova forma organizacional, a empresa em rede (Castells, 2006, p. 274). A reorganização no mundo do trabalho, fruto da mutação significativa que emergiu da própria sociedade e dos seus novos modos de produção coletiva constituiu-se importante vetor, promovendo nova configuração no campo de forças que engendram os processos subjetivos. 21 7 SUBJETIVIDADE COMO PRODUTO DO SOCIAL Fonte: moashare.wordpress.com A compreensão do conceito de subjetividade perpassa pela ordem do social. Devemos também fazer referência a sua natureza polifônica, múltipla. Por isso, a análise dos processos subjetivos precisa considerar, necessariamente, a análise dos processos de produção social e material. Nesta mesma direção, diz Rolnik (1993) "não há subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia, e, reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil. A rigor, é impossível dissociar essas paisagens (p. 40). Guattari e Rolnik diz que (1993), é evidente que um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade. Sendo assim, podemos dizer que "a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social" (p.31). A produção de subjetividade subsiste, nitidamente, no âmago do que Marx chamou de infraestrutura produtiva, constituída pelo conjunto de forças de consumo e de todos os meios de semiotização econômica, comercial e industrial. Esses autores preferem falar em agenciamentos coletivos de enunciação, pois não correspondem nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada. Tal como afirmam: 22 A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, de semiotização, ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica - não são centrados em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, eólicas, micros sociais), nem em agentes grupais. Estes processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extra pessoal, extra individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, etológicos, de mídia, enfim sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infra psíquica, infra pessoal. (Guattari & Rolnik, 1993, p.31.) O indivíduo está na encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade. Alguns são inconscientes, outros são do domínio do corpo e daquilo que alguns sociólogos chamam de grupos primários (o clã, o bando, a turma, a organização, ...). Outros, ainda, relacionam-se a produção de poder, constituindo-se em relação à lei, à polícia. A ideia é que existe uma subjetividade ainda mais ampla, denominada por Guattari e Rolnik (1993) "subjetividade capitalística". Fruto da influência conjugada de fatores políticos e sociais, o lucro capitalista é, essencialmente, produção de poder subjetivo. Portanto, o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam são produtos da subjetivação capitalística, e trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. Trazendo essa questão para o contexto organizacional, percebemos que nos segmentos mais avançados da indústria, o resultado produtivo é fruto de um trabalho ao mesmo tempo material e semiótico. Para se fabricar um operário especializado é necessário muito mais que sua formação técnica em escolas profissionais. Na verdade, essa produção de competência no domínio semiótico depende de sua confecção pelo campo social. Esse mesmo operário vivencia todo um aprendizado que envolve inúmeros deslocamentos de espaços. Desde a escola primária, a vida doméstica, ver televisão, cinema, propaganda, enfim, está inserido em um ambiente maquínico, ou seja, afetado pelos agentes de enunciação, aos quais nos referimos anteriormente (Guattari & Rolnik, 1993). 23 8 CULTURA, SUBJETIVIDADE E ORGANIZAÇÕES A proposta de apreciação do contexto organizacional e as particularidades que o compõem. A ação laboral é o fio condutor que permeia e dá sentido às relações entre trabalhadores e organizações. Francisco (2000) diz, que nos remete ao entendimento das organizações a partir do sociusonde estão inseridas. Expõe que: As organizações em seus modos de funcionamento foram concebidas para e nos moldes de uma sociedade disciplinar, caracterizadas pelo controle do tempo, do espaço e dos corpos; porque, historicamente, as condições que permitiram o surgimento desta sociedade já não são as mesmas, condições estas que desenham o surgimento gradual de uma sociedade de controle em que o controle contínuo e a comunicação instantânea são os principais ingredientes; finalmente, a rigor, estamos no espaço do entre, da passagem entre a Sociedade Disciplinar e à do Controle, passagemque a meu ver não vem sendo objeto de análise dos estabelecimentos, sobretudo no que diz respeito a seus impactos. (p.06) Nesse tipo de socius 2 , gradualmente os modos de funcionamento das organizações adquirem seu formato ao apropriar-se da vida dos indivíduos, no controle de seu tempo, no controle de seus corpos, não só para restringi-los àquele espaço-tempo, mas objetivando, principalmente, a transformação desses corpos, preparando-os para adquirir aptidões e habilidades, de acordo com o cargo em questão. Em decorrência, desenvolvem-se formas de poder, tais como: delegar ordens, estabelecer regras e regulamentos, incluindo-se, aqui, a eficiência do poder econômico representado pela remuneração, na maioria dos casos, salarial. Na modernidade, o trabalho era tido como meio de sobrevivência, deixando de ser apenas fonte de realização pessoal e inclusão social. Os operários se entregaram de corpo e alma ao sistema imposto pela produção industrial que destinava a eles apenas a função mecanicista dos movimentos repetitivos e da obediência cega à autoridade do chefe, que detinha o poder sobre suas vidas através da disciplina que impunha aos seus subordinados. 2 Socius – significa (membro) 24 Essa situação correspondia ao contexto social/político da era industrial, que tinha como base o crescimento da produtividade em níveis cada vez mais altos, característica da economia industrial então vigente. Hoje, o modo como vivemos na contemporaneidade é extremamente distinto daquele em que surgiram as sociedades disciplinares. Fazemos uso de um conjunto de inovações de caráter arrojado que desafia o ritmo natural do ser humano. À guisa de exemplo, podemos nos referir à indústria da informação e da transformação digital, produzindo uma genuína minimização do tempo e abolição do espaço. Característica da Sociedade de Controle, todos os espaços cabem em um único espaço, não existindo diferenciação entre interior e exterior. Francisco, A. L. (2000). Existem diferenças marcantes nas formas de apropriação da subjetividade presentes no processo de produção capitalista dos séculos XIX - XX, sendo o advento da tecnologia de base eletrônica um dos fatores mais relevantes para se explicar as diferenças de contextos. As organizações direcionadas pelo processo de acumulação do capital, que se viabiliza pelas metas de máxima produtividade a baixos custos, parecem ter percebido que "a produção de subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até que o petróleo e as energias" (Guattari & Rolnik, 1993, p.26). Ao longo dos anos, o trabalho foi sendo apropriado pelo capital, que foi, a cada momento, moldando o modo de ser do trabalhador conforme suas necessidades. O modus operandi das organizações, na contemporaneidade, movido pela globalização do capital, propõe a imagem de um trabalhador ideal, capaz de alcançar níveis de resultados mais altos a cada dia. Instala-se o culto ao padrão de excelência que não deixa opções, restando, apenas, a submissão do trabalhador ao discurso globalizante do sucesso profissional. A própria organização passa a se constituir, instrumento de um poder que nela se confirma e se expande, para se obterem e se ultrapassarem os objetivos mensuráveis: produção e expansão. Aqui a história exerce uma função mítica, uma vez que, em sua realidade concreta, ela deve ser constantemente ultrapassada: o passado é sempre caduco, a unidade se afirma na permanência, o futuro é uma amplificação do presente, a performance é atemporal. "Sejamos excelentes, sempre 25 e já!": a eficiência está inserida em um presente imperativo, no qual amanhã deve ser hoje mesmo, em uma ação sem espaço de reflexão. (Barus-Michel, 2001, p.174) A cultura industrial imprimia sofrimento ao trabalhador, a cultura da excelência, permeada pela ética da eficácia, produz sofrimento de natureza diversa, mas que também desencadeia sintomas e, por inúmeras vezes, adoecimentos. Corroboramos a afirmação que define, o trabalho como construtor de identidade e inclusão social que atua sobre o indivíduo interferindo na sua vida como um todo, inclusive na relação saúde-doença, contribuindo, em alguns casos, para o aparecimento de problemas físicos e psíquicos. Ao se analisar o trabalho, pode-se verificar que a multiplicidade de fatores objetivos e subjetivos que atuam na relação trabalho-trabalhador podem vir a desencadear ou determinar adoecimentos (Vasques-Menezes, 2004, p.32). São diversos os sintomas que emergem do sofrimento do trabalhador, derivados de sua ação laboral em determinados contextos organizacionais. No entanto, certos tipos de adoecimentos acabam por merecer destaque pela amplitude de suas consequências, com repercussões tanto no âmbito individual - como aquelas advindas de procedimentos legais - as doenças laborais são responsáveis por grande número de afastamentos do trabalho. Com o intuito, de exemplificar algumas manifestações de sofrimento do trabalhador, que remetem a doenças com diagnósticos e tratamentos médicos específicos, abordaremos dados que se apresentam como demandas pertinentes não só aos profissionais do campo médico, mas também aos psicólogos e outros profissionais da saúde. Citada por Vasques-Menezes (2004), "a norma técnica do INSS sobre Dort define a LER/Dort como uma síndrome clínica com dor crônica, acompanhada ou não de alterações objetivas. Pode afetar tendões, músculos, e nervos periféricos" (p.46). Os números de trabalhadores que sofrem de LER/Dort e dão conta da gravidade da situação e da abrangência desse tipo de ocorrência: Pesquisa do Instituto Nacional de Prevenção das LER/Dort (Prevler), realizada pelo Datafolha, com financiamento do Ministério da Saúde, mostrou que, apenas na cidade de São Paulo, cerca de 310 mil trabalhadores sofrem de LER/Dort, ou seja, casos realmente diagnosticados. Isso equivale a 4% de todos os paulistanos acima de 16 anos de idade e 6% de todos os trabalhadores da cidade. 26 Número, aliás, muito acima dos 19 mil casos dessas doenças contabilizados pelo Ministério da Previdência no ano de 2000. E mais: a pesquisa da Prevler aponta que esse número pode estar aquém da realidade, uma vez que 4,7 milhões de trabalhadores relataram algum sintoma decorrente dessas doenças e 508 mil trabalhadores encontravam-se ocupados em situação de risco, fato que pode transformá-los em novos portadores de LER/Dort - doença, registre-se, que tem sido a responsável pelo maior número de afastamentos do trabalho em São Paulo (Salim, 2003, p.15). Segundo o mesmo autor, ainda que inúmeros fatores intervenham na formação das LER/Dort, sua determinação, em última instância, perpassa pela estrutura social, relacionando-se, sobretudo, com as mudanças em curso na organização do trabalho. O adoecimento físico e mental dos trabalhadores é uma realidade muito preocupante. A questão que envolve essa problemática tece seus contornos a partir da conjugação dos aspectos objetivos e subjetivos do sujeito. Quanto aos primeiros, são facilmente percebidos e, até mesmo codificados pelo saber médico. No entanto, com referência aos aspectos subjetivos, ou seja, aqueles que são pertinentes a sua relação com o trabalho e demais atividades na vida, esses não são vistos, muito menos reconhecidos como importantes na apreciação do quadro de adoecimento. Um outro exemplo, que podemos resumir aqui, trata-se da síndrome de Burnout que acomete, em geral, categorias de risco, como no caso dos profissionais de saúde e educação, policiais e agentes penitenciários, entre outros. O Burnout é uma síndrome de caráter relacional estabelecida por uma trilogia trabalhador -objeto do trabalho-condições de trabalho. Um trabalhador que entra em Burnout sofre ansiedade, melancolia, baixa autoestima, sentimentode exaustão física e emocional. Compromete suas relações afetivas e sociais, compromete sua vida. Quando está em casa pensa no trabalho e, quando no trabalho, não vê a hora de voltar para casa e sair daquela sensação de impotência. Como tratar uma situação como essa sem considerar os aspectos objetivos e subjetivos desta relação ou sem considerar o trabalho como cerne da questão? (Vasques-Menezes, 2004, p.38). A indagação formulada nos coloca frente ao desafio que remete à inclusão da experiência de vida de modo global para a análise, não só das diversas formas de adoecimento, como também das inúmeras possibilidades que se dá na relação do trabalhador/trabalho. 27 "Consideramos como subjetiva aquela experiência que expressa o sujeito na intersecção de sua particularidade com o mundo sociocultural e histórico" (Tittoni, 1994, p.13). Esse autor também afirma que o trabalho marca a vida dos trabalhadores. As pessoas instituem modos de pensar e de agir que têm na organização do trabalho uma referência essencial. Isto reitera a necessidade de considerar a atividade laboral para se compreender os modos de ser do sujeito, na medida em que delimita as formas de expressão da subjetividade. Por sua vez, a cultura organizacional, que se traduz melhor como microcultura, engendrada que está no sistema sócio/político/cultural do país, constitui-se, também, vetor de força dos mais importantes e atua sobre os modos de funcionamento dos estabelecimentos. Para melhor compreender as organizações, é preciso não só descrever seus organogramas e modos de funcionamento. É fundamental, analisar a dinâmica interna dessas organizações composta, essencialmente, pelos dispositivos nelas presentes, detendo-nos menos ao plano formal e mais em suas "micropolíticas". Dito de outro modo, ao realizar a cartografia dos dispositivos e das linhas de força que o comportam, pode-se chegar ao entendimento dos processos de subjetividade que constroem as vivências dos trabalhadores. 9 CONFIGURAÇÕES DA MICROCULTURA ORGANIZACIONAL NA CONTEMPORANEIDADE O atual mundo do trabalho é o resultado da conjunção dos diversos campos de força de natureza econômico/político/social que engendram a ambiência das organizações na contemporaneidade. Pensar a configuração e o modo de funcionamento desses espaços, que se colocam como lugares onde a ação coletiva gera produtos e/ou serviços à sociedade, requer, necessariamente, o entendimento do percurso traçado pelos trabalhadores, ao mesmo tempo em que são atravessados historicamente por todos esses fatores. Para os estabelecimentos, correntemente denominadas empresas, o processo produtivo na era pós-moderna ou em "período de transição paradigmática" (Santos, 1996), demanda outros níveis de investimento por parte daqueles o realizam. Se, em tempos idos, a força de trabalho provinha, primordialmente, dos esforços corporais, 28 desta feita a exigência dos gestores se volta para o grau de perfeição das tarefas, aliada a um processo de melhoria contínua frente a concorrência francamente acirrada e ágil nas manobras apresentadas pelo mercado. Autores, tais como, Antunes e Dal Rosso (2008), anunciam os novos contornos do trabalho no limiar do século XXI, e seus esforços nesta direção conduziram a leituras para os dilemas que se apresentam como resultado das diversas mudanças que atravessaram o trabalhador na longa história da atividade humana, em sua incessante luta pela sobrevivência, pela conquista da dignidade, humanidade e felicidade social. Algumas tendências que eles apontam decorrem das mutações que o capitalismo introduziu no mundo da produção e do trabalho nas últimas décadas. A partir dos anos setenta, o capital implementou um processo de reestruturação em escala global, visando tanto a recuperação do seu padrão de acumulação, quanto procurando repor a hegemonia que vinha perdendo, no interior do espaço produtivo, desde as explosões do final da década de 1960 onde, particularmente na Europa ocidental, se desencadeou um monumental ciclo de greves e lutas sociais. Foi nesse contexto que o capital, em escala global, vem redesenhando novas e velhas modalidades de trabalho, o trabalho precário com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa. (Antunes, 2008, p.14). Compõem esse quadro, segundo esse autor, as diversas modalidades de precarização. Como exemplo dessas modalidades, cita a flexibilização, que pode ser entendida como "liberdade da empresa" para desempregar trabalhadores, sem penalidades; para reduzir o horário de trabalho ou recorrer a mais horas de trabalho; possibilidade de pagar salários reais mais baixos; possibilidade de subdividir a jornada de trabalho em dia e semana segundo as conveniências das empresas, mudando os horários e as características do trabalho (por turno, por escala, em tempo parcial, horário flexível etc.) Outro traço revelado pelas atuais tendências é a da polivalência, que significa que um mesmo trabalhador toma conta de vários equipamentos ao mesmo tempo. Quando o trabalho é realizado de forma polivalente, o trabalhador desdobra-se, executa o trabalho antes feito por várias pessoas. A polivalência ocupa completamente o tempo de trabalho da pessoa. 29 No sistema de polivalência não há lugar para repetição de movimentos, porque diversos trabalhos são feitos simultaneamente. O engajamento do trabalhador é muito maior e o envolvimento de suas energias físicas, mentais e afetivas acontece ao máximo. Aqui, a noção de polivalência remonta ao modelo desenvolvido por Taichi Ohno (1989, citado por Dal Rosso, 2008), chamado sistema de produção Toyota ou Toyotismo. Nos períodos de crise, o sistema de produção Toyota beneficia-se tanto da revolução tecnológica em curso, quanto da reorganização do trabalho por meio da polivalência e outros que operam no mesmo sentido de elevar o grau de intensidade do trabalho. (p. 28). A implementação dessas tendências que se operam no âmbito da realidade corporativa conta com a receptividade habitual dos gerenciamentos dos processos produtivos, propícios a considerar naturais as contínuas modificações das condições de trabalho ou de fatores externos à organização, fenômenos até mesmo benéficos e, frequentemente, mantenedores do desempenho dos negócios frente aos competidores no mercado. Com efeito, Freitas (1999) descreve essa característica observada nas empresas da contemporaneidade nestes termos: Num contexto de grandes mudanças, as organizações, em especial as empresas e mais especificamente as grandes empresas, têm maior facilidade para captar as mudanças sociais e mais agilidade para capitalizá-las. Elas respondem a essas mudanças de maneira mais rápida do que a sociedade em geral, o que lhes confere um grande poder de influência sobre meio. (p.55) Sobre o que está por vir, recolocamos a questão anunciada por Guattari (1996) que, de algum modo, resume o grande desafio que se ergue frente aos diversos atores sociais na contemporaneidade, notadamente aqueles que pretendem uma legitimidade para gerir processos de produção semiótica e, ao mesmo tempo, processos de singularização subjetiva, distintos do modelo de produção capitalístico. "Como produzir novos agenciamentos de singularização que trabalhem por uma sensibilidade estética, pela mudança da vida, num plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformações sociais em nível dos grandes conjuntos econômicos e sociais?" (p.22). 30 As significativas mudanças no mundo do trabalho deveriam considerar questões pertinentes à saúde do trabalhador. Embora os avanços no campo da saúde mental e do trabalho sejam relevantes, ainda não garantem aos trabalhadores o respaldo suficiente para que tenham direitos a benefícios em razão de adoecimento psíquico provocado em situação laboral. Entretanto,há propostas que representam um avanço na tentativa de aproximar a categoria trabalho, da clínica psicológica, como alternativa para redução dos danos psíquicos voltados a uma ação destinada especialmente ao atendimento psicológico dos trabalhadores. Exemplo dos esforços nessa direção, realçamos o desenvolvimento, em 2004, do Projeto de extensão SAIT - Serviço de Atendimento Integrado ao Trabalhador, vinculado à PUC/Minas-Betim. Esta região, desde 1976, passou a se configurar como grande polo industrial, fato que trouxe consigo diversos desafios, dentre eles, a criação de serviços apropriados a receberem os trabalhadores com demandas de atendimento psicoterápico. Com alguns meses de funcionamento, o SAIT foi incorporando atividades de intervenção, com objetivos de realizar diagnósticos e mudanças nas organizações de trabalho e de promover a saúde mental dos trabalhadores. Atualmente ligado ao NUPSI, Núcleo de Referência em Psicologia do curso de psicologia da PUC/Minas- Betim, o SAIT se configura como um local de atendimento psicológico aos trabalhadores e de prestação de serviços às empresas da região que buscam a promoção da saúde mental e trabalho, tendo incorporado, em suas atividades, alunos de graduação em psicologia (Deusdedit-Júnior, 2007, p.128). Experiência da transição paradigmática, fenômeno que possibilita a emergência de um processo de construção social, em que o coletivo e o individual estão, inexoravelmente, imbricados. Esse modo de construir fundamenta-se na vivência da autonomia, e na emancipação. Autonomia aqui, ao contrário de autossuficiência, incorpora o sentido da troca e da comunicação entre todos os atores sociais. 31 10 MODOS DE SUBJETIVAÇÃO Ao empenhar-se na investigação histórica de como são compostas as maneiras de existir do sujeito, Foucault faz diferentes apanhados: resgatando os gregos e suas práticas de “cuidado de si”, passando pela descrição e análise da sociedade disciplinar e atentando-se para a emergência histórica do Estado e de suas intervenções biopolíticas sobre o corpo do indivíduo e da população. Essas investigações tiveram por objetivo conduzi-lo a uma compreensão de como os modos de subjetivação são constituídos e disseminados. Foucault faz a análise dos modos de subjetivação recorrendo, primeiramente, aos seus estudos sobre o estoicismo. Ele encontra, nos gregos, uma forma de vida a partir da qual o sujeito, por meio do denominado “cuidado de si”, não o toma como uma regra rígida a ser seguida por todos como conduta geral, institucionalizada ou imposta. Ao contrário, o cuidado de si configurava-se como uma forma de viver facultativa que era acolhida espontaneamente por aqueles que assim o desejasse. Desse modo, essa decisão era tomada apenas por uma parcela pequena da população que escolhia ter uma vida considerada como bela e, a partir dessa escolha estética, tinha interesse e disponibilidade para assumir os cargos públicos. Somente aqueles que tinham condições de cuidar de si e tomavam essa tarefa como uma forma de vida (que pressupunha diferentes exercícios regulares e na maioria das vezes austeros), poderiam cuidar dos outros, governando as cidades. Foucault argumenta: Na Antiguidade, esta elaboração do si e sua consequente austeridade não é imposta ao indivíduo pela lei civil ou pela obrigação religiosa; trata-se, ao contrário, de uma escolha feita pelo indivíduo para a sua própria existência. As pessoas decidem por si mesmas se cuidam ou não de si. Agiam, antes, de modo a conferir a suas vidas certos valores (reproduzir exemplos, deixar uma alta reputação para a prosperidade, dar o máximo possível de brilhantismo às suas vidas). Era uma questão de fazer da vida um objeto para uma espécie de saber, uma técnica, uma arte. (Foucault, in: Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 270). Foucault constata que havia, entre os gregos, diversos procedimentos a partir dos quais era possível construir um exercício de cuidado sobre a própria existência. Compreende-se, então, que a opção por construir uma vida bela poderia ser escolhida por qualquer um, mas não encontrava a adesão de toda a população, uma vez que 32 fazer isso implicava uma série de condutas e restrições que nem todos estavam dispostos a acolher. Daí que, além de uma dimensão ética do cuidar de si, estava colocada ao mesmo tempo a necessidade de tomar uma posição política diante da própria existência, uma posição que favorecia também a construção de uma estética. Dessa maneira, aquele que optasse por construir uma vida bela, por meio do cuidado de si, tinha também por objetivo um exercício político, ou seja, estava disposto a transformar seus hábitos e valores com o intuito de governar a cidade. Quem escolhesse esse caminho, precisava desenvolver a habilidade para suportar tanto os períodos de maior riqueza quanto aqueles de maior privação e dificuldade, sem que qualquer uma dessas duas situações extremas pudesse provocar abalos significativos na maneira de governar. Para conquistar essa segurança, o cuidado de si era indispensável, visto que, por meio dele, era possível manter um constante questionamento sobre as atitudes que deveriam ser tomadas em cada circunstância (favorável ou adversa) com vistas a melhorar a vida dos governados. Na obra História da Sexualidade III – O Cuidado de Si”, Foucault descreve mais detalhadamente aquilo que os gregos procuravam desenvolver. Trata-se de uma arte da existência que gravita em torno da questão de si mesmo, de sua própria dependência e independência, de sua forma universal e do vínculo que se pode e deve estabelecer com os outros, dos procedimentos pelos quais se exerce seu controle sobre si próprio e da maneira pela qual se pode estabelecer a plena soberania sobre si. (Foucault, 1985, p. 234) A escolha estética e política, por meio da qual se acolhe um determinado tipo de existência é compreendida por Foucault como um modo de subjetivação possível. Os modos de subjetivação podem tomar as mais diferentes configurações, sendo que estas cooperam para produzir formas de vida e formas de organização social distintas e, cabe insistir, mutantes. Como os modos de subjetivação são transformados? Dando continuidade às suas investigações sobre os gregos, Foucault assinala a emergência de uma ruptura histórica. Já no estoicismo, algo se altera quando, frente a uma determinada forma de existência, começa-se a afirmar: “Você é obrigado a fazer isso porque é um ser humano”. Vemos que emerge, pois, um discurso distinto, marcado pela obrigatoriedade do cuidado de si, que introduz uma mudança decisiva no modo de subjetivação anteriormente descrito. 33 Aquele conjunto de regras até então facultativas transforma-se em uma obrigação. Assim, o estoicismo passa a utilizar o cuidado de si como uma espécie de combate às fraquezas do “eu”, as quais se tornam fortemente associadas ao prazer e ao mal. Com isso, segundo Foucault, o próprio estoicismo acabou fornecendo condições para que fossem dados os primeiros passos em direção ao ascetismo cristão, baseado nos julgamentos morais, nas penitências e nas purificações. Esse fato, por sua vez, abriu caminho para a produção de um modo de subjetivação distinto (Foucault, 2004). Pode-se perceber, por conseguinte, que, no decorrer da história, os modos de subjetivação sofrem as mais variadas transformações. Nessa perspectiva, interessado em compreender a problemática da produção do sujeito nos dias atuais, Foucault comenta as lutas políticas que se fazem necessárias em nosso tempo. São lutas contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão). (Foucault, in: Dreyfus& Rabinow, 1995, p. 235) O final do século XX é marcado pelo terceiro tipo de luta que coloca em evidência os modos de subjetivação e as possibilidades de resistência que eles atualizam. Resistir hoje se torna uma ação política quando, por exemplo, recusamos o individualismo já tão naturalizado em nosso cotidiano e insistimos nos encontros, fazendo circular as invenções micros sociais de novas formas de vida que não se revertem em regras universais obrigatórias. A regra universal, ao pretender englobar a totalidade dos indivíduos, comprometendo-os com a obediência, simplesmente inviabiliza o contato com a diferença e com a criação de novas possibilidades de existir. Sobre os modos de subjetivação, cabe perguntar: quais modos de vida precisam ser abandonados e quais outros pedem passagem em nossos dias? Qual a potência que temos para produzir outros modos de existir e colocá-los em circulação no social? É perceptível o quanto os estudos de Foucault convocam para uma análise do presente e das nossas possibilidades de transformação. Para isso, ele resgata a dimensão histórica que atravessa os modos de subjetivação, descartando, assim, qualquer pretensão de universalidade. 34 11 MÍDIA E PRODUÇÃO DE MODOS DE SUBJETIVAÇÃO As análises da contemporaneidade dificilmente deixam de apontar o bom das tecnologias da comunicação e a centralidade que os produtos midiáticos adquiriram em nosso tempo. Acreditando que a mídia é uma das instâncias sociais importantes para o processo de subjetivação, temos os materiais de televisão, jornais e revistas para conhecer sobre a paternidade e refletir acerca da sua implicação na constituição subjetiva. Para compreender o tema mídia e subjetivação, vale ressaltar o fato de que ela oferece, predominantemente, representações hegemônicas como mote para problematizar a questão das diferenças e a forma como a psicologia tem contribuído para que certos “modelos de ser” sejam produzidos e circulem socialmente. Na contemporaneidade, propõe Veiga-Neto (2003) com base na leitura deleuziana de Foucault, está processando-se uma mudança social importante estamos sendo menos uma sociedade disciplinar e mais uma sociedade de controle. Uma das consequências mais marcantes de tal mudança se manifesta nas formas pelas quais nos subjetivamos: de uma subjetivação em que a disciplinaridade é central, está-se passando para uma subjetivação aberta e continuada na qual o que mais conta são os fluxos permanentes que, espalhando-se por todas as práticas e instâncias sociais, nos ativam, nos fazem participar e nos mantém sob controle (p.140). Os modos de ser não se engendram mais predominantemente a partir de instituições específicas, como escola e família, mas a partir de dispositivos dispersos no tecido social. As estratégias e técnicas de governo, por seu caráter sutil, indireto e plural, subjetivam-nos sem que nos apercebamos da sua atuação. As articulações entre cultura, discurso e produção subjetiva, desenvolvidas no campo dos estudos culturais, mostram-se valiosas: a cultura é compreendida como prática de significação e o mundo social concebido como construído discursivamente. Os discursos constituem-se como redes de significações e são tomados pelos sujeitos para se auto interpretar, e, assim, acabam por produzi-los. A interpelação acontece quando o sujeito se reconhece a partir dos discursos. Ele os toma como algo que lhe diz respeito, identifica-se e produz como um sujeito 35 daquele modo, compreende e explica a si e ao mundo a partir daquele regime de verdade. Outros/as pensadores/as (Fischer, 2001; Kellner, 2001), diz que a mídia por sua extensão, formatação, penetração e por ser lugar de produção e circulação de variados discursos constitui uma importante instância na produção subjetiva contemporânea, podendo ser pensada como uma autoridade. Como diz Rose (2001), à singularidade do grande poder, a perspectiva foucaultiana opõe a heterogeneidade das autoridades. Assim, em uma análise das condições sociais, é importante diferenciar dispositivos, pessoas, coisas, modos de pensar que reivindicam e adquirem autoridade ou aos quais se atribui autoridade. Este autor também coloca que a relação com a autoridade varia, podendo ser de domínio, de pedagogia, e de sedução, conversão e exemplaridade. A mídia processa discursos produzidos em múltiplos campos e reutiliza saberes de outras autoridades. Em seus produtos impressos, a referência a especialistas é uma constante, o que confere credibilidade às notícias e posicionamentos veiculados. Nos produtos televisivos, a caracterização de personagens como médico/a, educador/a possibilita que se falem verdades (no sentido foucaultiano do termo) através deles. O próprio formato de produtos como novelas, que hoje não deixam de incluir questões de relevância social e/ou temas polêmicos (sobre os quais se trazem informações, esclarecimentos e orientações), proporciona a ideia de que a televisão fala e pode falar, tem autoridade para tanto sobre o nosso tempo e modos de ser. Misto de relação pedagógica, de sedução e exemplaridade: a mídia nos ensina, cativa com sua (questionável) abertura para o novo e dá exemplos de formas de viver. Assim, lendo revistas e jornais, olhando televisão, aprendemos a ser, a conhecer o mundo, a atribuir valores, a pensar e a sentir de certas formas. E não de outras, pois a mídia não mostra o mundo por todos os ângulos. O que se tem chamado discurso da mídia (Fischer, 1996) é marcado pela heterogeneidade e processamento de muitas vozes. Discursos que ganham espaços a partir das lutas pela imposição de sentidos (para estabelecer regimes de verdade), das disputas de poder que são imanentes às práticas de significação. Neste sentido, 36 é na e pela cultura que se estabelecem divisões que implicam desigualdades, onde acontecem os embates políticos, onde se posicionam os sujeitos sociais. Com Foucault, aprende-se que a regulação, que o governo, não se faz através de mecanismos grosseiros. Hall (1997) coloca que não se trata de dobrar alguém por coerção, mas através de arranjos de poder discursivo ou simbólico: as ações das pessoas são reguladas normativamente pelos significados culturais. A partir do conhecimento que vamos adquirindo sobre as formas como as coisas normalmente acontecem em nossa cultura, forjamos nossos modos de ser e de fazer, que passam a ser automatizados, uma vez que não questionamos porque somos e agimos de determinadas formas. A mídia é uma das instâncias sociais que produz cultura, veicula e constrói significados e representações produz verdades a respeito dos seres humanos e do mundo. Contudo, importantíssimo frisar, a subjetivação não é produzida pela força, o poder não anula o sujeito: onde há poder, há resistência. Neste sentido, focando a lógica publicitária de existir, Fischer (1999) aponta a disputa pela imposição de sentidos: mesmo submetidos a essa lógica, ela não é fechada, pois nos meios de comunicação particularmente na publicidade estão em jogo diferentes valores, ideias, identidades, conquistas sociais e também “ porque nenhum de nós se submete igualmente e com a mesma intensidade a todo e qualquer discurso” (p.25). Esta posição é muito importante, pois, apesar de se dizer que através da mídia podemos nos encontrar com as diferenças, nas análises o processo foi defrontando com o “mesmo”, com representações hegemônicas que parecem constituir-se como regimes de verdade refratários às novas porque outras formas de ser (família, criança, homem, mulher, pai, mãe) que estão acontecendo na nossa sociedade. É na tensão entre o apresentado na mídia, os sentidos que se atribui a isso, as experiências de vida e os significados produzidos por outros sistemas culturais, que os modos de ser vão produzindo-se. 37 12 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E A SUBJETIVIDADE
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