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Fichamento: História do Suicídio (Georges Minois)

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MINOIS, Georges. História do Suicídio: a sociedade ocidental diante da morte voluntária. Traduzido por Fernando Santos, - São Paulo: Editora Unesp, 2018. 
Antes de mais nada, essa lacuna tem causas documentais. As fontes que fazem referência às mortes voluntárias são diferentes das que relatam as mortes naturais. Os famosos registros paroquiais de óbito não têm nenhuma serventia nesse caso, já que os suicidas não tinham direito ao sepultamento religioso. Portanto, o historiador tem de lançar mão dos arquivos judiciais, pois a morte voluntária era considerada crime. Como são arquivos muito incompletos, é preciso recorrer as fontes variadas, heterogêneas e, aliás, pouco abundantes: memórias e crônicas, jornais, literatura. (MINOIS 2018, p.1)
Essas razões metodológicas vem se juntar uma razão de fundo: não podemos estudar os suicídios como podemos fazê-lo em relação à destruição provocada pela peste ou pela tuberculose, pois a morte voluntária é um tipo de óbito cujo significado não é de ordem demográfica, mas filosófica, religiosa, moral, cultural. O silêncio e a dissimulação que a rodearam durante muito tempo instauram um clima de mal-estar em torno dela. (MINOIS, 2018, p.2) 
A humanidade existe porque, até o momento, o homem encontrou motivos suficientes para permanecer vivo. Alguns deles, porém decidiram que não valia mais a pena viver esta vida e preferiram partir por vontade própria, antes de ser tragados pela doença, a velhice, a guerra... e muitos outros consideraram que a morte voluntária, gesto especificamente humano, era a prova suprema de liberdade, a de decidir eles mesmo se viviam ou morriam. Diante dessa escolha, devemos nos perguntar, como Raymond Aron: “Dar-se a morte é capitular diante da provação, ou adquirir o controle supremo, o controle do homem sobre a própria vida? (MINOIS, 2018, p. 3) 
O próprio termo “suicidio”, que aparece pouco antes de 1700 e substitui a expressão, até então utilizada, “morte de si mesmo”, é um sinal dessa evolução. As resistências por parte das autoridades não desapareceram, é claro, mas pouco a pouco, entre os séculos XVI e XVIII, a pergunta passa a ser formulada em público, e alguns ousam reivindicar a liberdade de que cada pessoa possa responder por ela, o que força os poderes públicos a mudar sua atitude. É essa mudança crucial nas mentalidades ocidentais, à qual se deu pouquíssima atenção até o momento, que gostaríamos de examinar. (MINOIS, 2018, p. 4) 
Uma das explicações psicológicas clássicas do suicidio é que, na maioria dos casos, o indivíduo volta contra si mesmo uma agressividade que ele não pode liberar contra os outros nas sociedades civilizadas. (MINOIS, 2018, p. 11) 
O suicidio continua representando, é verdade, um fracasso, sejam quais forem os motivos ou as circunstâncias: as pessoas se matam por causa de um amor impossível, por excesso de mágoa, por remorso, pela vontade de evitar a humilhação da derrota, em suma, porque foram vencidas e não conseguem suportar a derrota (MINOIS, 2018, p. 14) 
Todos os suicídios representam, é claro, atitudes fracassadas, e é possível concordar com Jean-Claude Schmitt que, “também na literatura, o suicidio era um gesto funesto por excelência, que só podia ser ditado por uma dor insuportável”. Mas, em todas essas obras aristocráticas, ele aparece como um gesto heroico e admirável, que se evita condenar. Os heróis fazem o sacrifício supremo, único meio de redimir a culpa vergonhosa ou de superar um obstáculo humanamente insuperável. Através do suicidio, eles superam a condição mortal e se elevem acima do comum dos mortais. (MINOIS, 2018, p.17) 
Mais do que o gesto, é a personalidade e motivação do suicida eu importam. Tanto no romance como na vida, o camponês que se enforca para escapar da miséria é um covarde cujo corpo tem de ser supliciado e cuja alma vai para o inferno; o cavaleiro impetuoso que prefere a morte no campo de batalha à rendição é um herói ao qual se prestam honrarias civis e religiosas. Não encontramos, na idade média, um único caso de processo contra o cadáver de um nobre que tenha morrido de morte voluntária. (MINOIS, 2018, P. 17) 
O suicidio na Idade Média tem duas faces. Ele parece servir de modo quase exclusivo aos plebeus e poupar os nobres, pois comportamentos de substituição lhes evitam o “homicídio de si mesmo”: o torneio, a caça, a guerra e a cruzada são ocasiões para se fazer matar ou para sublimar tendências suicidas, ao passo que o camponês e o artesão só dispõe da corda ou do afogamento para pôr fim aos seus sofrimentos. (MINOIS, 2018, p.17) 
Essa diferença também está presente no direito e na moral. O suicidio do nobre ou é do tipo altruísta, quando ele se sacrifica pela causa que defende, ou é provocado pelo amor, pela cólera ou pela loucura: nos dois casos, é justificável. De todo modo, é um suicidio ligado à função social do nobre: quer se trata do suicidio guerreiro ou amoroso, ele compromete o círculo mais próximo do personagem, diluindo, portanto, a responsabilidade desse último. Gesto social, o suicidio do nobre, é de certa maneira, honroso. O suicídio do homem rude é um gesto isolado, de uma pessoa egoísta e covarde: ele foge de suas responsabilidades, indo se enforcar às escondidas: é motivado pelo desespero, defeito fatal que lhe é inoculado pelo diabo. O nobre enfrenta suas responsabilidades até a morte gloriosa. (MINOIS, 2018, 18) 
A idade média apresenta, portanto, uma visão matizada do suicidio, muito distante de uma condenação monolítica. Mais do que o próprio gesto, são os motivos, a personalidade e a origem social do suicida que importam. É bem verdade que a doutrina e o direito são muito rigorosos, mas sua aplicação é marcada por uma flexibilidade surpreendente. A condenação de princípios do suicidio na civilização cristã não é nem evidente nem original. As fontes religiosas do cristianismo são, na verdade, omissas, ou melhor ambíguas, a esse respeito. (MINOIS, 2018, p. 21) 
O importante é constatar que o mundo judeu, saído diretamente do antigo testamento, não tem uma posição definida em relação aos suicidio, e isso, na segunda metade do século I, no momento em que ocorre a separação do cristianismo. Todos os argumentos favoráveis e contrários são apresentados por Flávio Josefo. Moralistas, teólogos e filósofos não acrescentarão quase nada até o século XX. São as circunstâncias históricas que farão pender a balança orado lado da indulgência, ora do lado do rigor, pois nenhum argumento peremptório poder ser extraído dos textos bíblicos, nem a favor, nem contra o suicidio. (MINOIS, 2018, p. 26) 
Porém, a morte cristã tem de ser um testemunho de fidelidade a Deus. Portanto, ela não deve ser buscada por si mesma ou por motivo de desespero. A morte feliz do mártir contrasta com a morte desesperada do pecador (MINOIS, 2018, p.29) 
A vida é detestável, mas é preciso suportá-la; a morte é desejável, mas não podemos busca-la: esse é o difícil exercício no qual deve repousar a vida cristã. (MINOIS, 2018, p. 30) 
A igreja, cujas propriedades fundiárias aumentam de maneira considerável, não busca, de maneira nenhuma, a emancipação dos colonos ou escravos. A vida desses homens pertence ao seu senhor: em 452, o concílio de Arles condena o suicídio de todos os famuli, isto, os escravos e os criados. O criado que se mata rouba seu senhor, que é seu proprietário: seu gesto é equiparado a uma rebelião, e diz-se que ele mesmo foi “tomado por um furor diabólico” em 533, o concílio de Orléans, homologando o direito romano, proíbe as oblações aos suspeitos que se matam antes de ser julgados. Portanto, o arsenal repressivo e dissuasivo contra o suicidio é posto gradualmente em prática. A pressão da situação econômica, social e política se sobrepõe à moral, transformando o suicídio em um crime contra Deus, contra a natureza e contra a sociedade. (MINOIS, 2018, p. 34) 
O suicidio por desespero é o mais condenável de todos (MINOIS, 2018, p.35) 
Nas duas esferas, a proibição do suicídio acompanha o recuo da liberdade humana: o homem perde o direito fundamental de disporde sua própria pessoa, em proveito da igreja, que tem um controle total sobre a vida da pessoa e retira sua força do número de fiéis, e em proveito dos senhores, alguns dos quais são eclesiásticos, que precisam conservar e aumentar sua mão de obra, em um mundo subpovoado no qual a fome e as epidemias comprometem regularmente a valorização das propriedades. (MINOIS, 2018, p. 36) 
A Idade Média exclui a possibilidade daquilo que se chamará no século XVIII de “suicídio filosófico”, É inconcebível então que uma pessoa de mente saudável possa considerar com frieza que a vida não vale a pena ser vivida (MINOIS ,2018, p.45) 
O suicidio comum na Idade Média diz respeito, antes de mais nada, ao mundo dos laboratores, os trabalhadores. São os camponeses e os artesãos que buscam a morte, em geral depois de uma piora brutal em suas condições de vida. Os bellatores, os guerreiros e os nobres, não procuram a morte diretamente, os oratores, o clero, o fazem às vezes, mas a explicação é sempre a loucura, e os corpos não são justiçados. O suicidio inferior, o suicidio mesquinho, egoísta, o suicídio do covarde que foge das provações é sempre o da pessoas rude, do vilão, do trabalhador manual, do artesão. E isso contribui bastante para o descrédito do ato. (MINOIS, 2018, p.49)
Além disso, a literatura reconhece a grandeza dos suicídios por amor e pela honra, e a nobreza, tinha seus próprios substitutos do suicidio direto. (MINOIS, 2018, p. 49) 
Será que a morte voluntária de tantos personagens tão respeitáveis pode ser qualificada indistintamente de covardia indigna que leva à condenação eterna? (MINOIS, 2018, p. 52) 
Desde a época mais remota, o pensamento grego formulou a questão fundamental do suicídio filosófico. Os cirenaicos, os cínicos, os epicuristas e os estoicos reconhecem, todos, o valor supremo do indivíduo, cuja liberdade reside na capacidade de decidir ele mesmo a respeito de sua vida e de sua morte. Para eles, a vida só merece ser conservada se for um bem, isto é, se estiver de acordo com a razão e a dignidade humana, e se gerar mais satisfação que sofrimento. Caso contrário, é uma loucura preservá-la. (MINOIS, 2018, p. 53) 
Restam os dois gigantes do pensamento grego que mais marcaram o pensamento ocidental, em sentidos muitas vezes opostos: Platão e Aristóteles. Ao contrário das correntes precedentes, eles consideram o homem antes de tudo um ser social, inserido em uma comunidade. Portanto, o indivíduo não deve raciocinar em função de seu interesse pessoal, mas levar em conta seu respeito pela divindade que o pôs em seu lugar (Platão) e pela Cidade onde tem um papel a cumprir (Aristóteles). (MINOIS, 2018, Pp. 54-55) 
A posição de Platão é mais flexível e indefinida, como se ele hesitasse. Sua reflexão sobre a morte voluntária foi deturpada, com o objetivo de ser reciclada, pelos pensadores cristãos, mas é bastante matizada. Em uma passagem das Leis, truncada pelos adversários do suicídio, Platão declara que se dever recusar a sepultura pública a quem tiver se matado, o qual, por meio de violência, priva o Destino da sorte que lhe cabe...” Ele deveria ser enterrado no anonimato em um lugar isolado, sem nenhuma lápide. No entanto, Platão deixa claro que isso não se aplica a quem se matou “por causa de uma sentença proveniente da Cidade, nem pelos sofrimentos agudos de uma doença ocasional de cujo ataque ele não conseguiu escapar, nem tampouco porque o destino que lhe cabe é de uma ignomínia sem fim e inviável”. Existem, portanto, três exceções importantes: a condenação (caso de Sócrates), a doença muito dolorosa e incurável e um destino miserável, que pode abranger inúmeras situações, da penúria à humilhação. No mesmo dialogo, Platão declara, a propósito dos ladrões de templos: se você não consegue curar suas tendências nocivas, “assim que concluir que a morte é a melhor saída, livre-se da vida”. (MINOIS, 2018, p. 55) 
Ao contrário da mensagem platônica cheia de ambiguidades, a mensagem de Aristóteles é marcada por uma brutalidade marcial: o suicídio é totalmente condenável porque é uma injustiça cometida contra si mesmo e contra a Cidade, porque é um gesto de covardia diante de nossas responsabilidades, porque se opõe à virtude. Devemos permanecerem nosso lugar e enfrentar a vicissitudes da vida com serenidade. No entanto, ao mesmo tempo, Aristóteles declara na Ética que o magnânimo “não é guardião de sua vida, pois ele pensa que a vida não deve ser mantida a qualquer preço” (MINOIS, 2018, p. 56) 
O caráter particularmente trágico desse gênero de morte, que parece desafiar o destino e a natureza, também gera uma inquietação a propósito do cadáver, que, possuído por espíritos malignos, poderia vir incomodar os vivos. É por isso que se observa, em todas as sociedades primitivas, a realização de rituais destinados a imobilizar o corpo do defunto e a mutilá-lo, a fim de torna-lo impotente. (MINOIS, 2018, p.57) 
A tradição do suicídio por amor é, com certeza, um dos fundamentos do romance cortês, e Boccaccio menciona outros tantos em Decameron; contudo, a partir de então os exemplos históricos assumem o lugar das histórias romanescas, o que lhes ajuda conferir um valor moral (MINOIS, 2018, Pp. 77-78) 
Exaltado nesse caso pela beleza do gesto e do sentimento, o suicídio tem, portanto, um valor moral positivo quando é provocado por motivos nobres. Verdadeiro manual de conduta nobre renascentista, O cortesão consagra a passagem do suicídio da esfera romanesca para a vida aristocrática real. (MINOIS, 2018, p. 78) 
A morte por enforcamento é sempre desonrosa, e o suicídio por espada, nobre. (MINOIS, 2018, p. 79) 
Jamais a tentação básica do suicídio havia sido expressada com tanta sinceridade. Hamlet é Shakespeare? Pouco importa, pois, para além do indivíduo Shakespeare, o que conta é que a pergunta tenha sido formulada, e que seu eco extraordinário não tenha parado de ressoar até os dias de hoje. Hamlet é um ator: todos nós somos atores; ele se encontra entre a loucura e a lucidez: esse é o destino de todos. Sua questão é a questão do ser humano. (MINOIS, 2018, p.106) 
A tentação do suicídio em Hamlet é a expressão mais acabada de uma preocupação que marca o pensamento inglês e europeu durante os anos 1580-1620. Em quarenta anos, o teatro inglês encena mais de duzentos suicídios em uma centena de peças: esse número revela por si só um “fenômeno social”, uma atração feita ao mesmo tempo de curiosidade e de inquietação por parte do público. Os espectadores do final do século XVI e início do século XVII adoram mortes voluntárias. (MINOIS, 2018, P. 107) 
...o suicídio não é uma questão de moral abstrata a respeito do qual podemos discutir em termos absolutos para chegar a conclusões universais; é uma questão de moral em situação. É uma solução que se apresenta a um indivíduo confrontado com um contexto difícil cujas dimensões totais só ele pode avaliar, no mais fundo dos eu ser... A pessoa só pode tomar uma decisão quando ela mesma se vê confrontada à situação... (MINOIS, 2018, p.111) 
Tema de reflexão filosófica, de pesquisas médicas e psicológicas, o problema do “ser ou não ser” também invade a literatura entre 1580 e 1620. As pessoas se suicidam em um ritmo acelerado dos romances, nas poesias e nas cenas de teatro, onde a ficção permite contornar as condenações oficiais. Duas lições podem ser tiradas dessa enxurrada imaginária de mortes voluntárias: a popularidade do tema e a ausência de reprovação por parte dos autores em relação a esse ato. Nenhuma lição de moral é tirada dessas obras para condenar o suicídio, que é cometido tanto pelos bons como pelos maus, e que, de acordo com os motivos e circunstâncias, ora é um gesto admirável, ora é um gesto covarde. (MINOIS, 2018, p.125) 
Não conheço um único caso em que o suicidio de um personagem o torne malquisto. (MINOIS, 2018, p.125)
O romance permite representar livremente os problemas, e o simples fato de apresenta-los equivale a contestar a moral tradicional. (MINOIS, 2018, p.127) 
Romances e poesias medievais também põe em cena suicídios, em geral apresentadoscomo atos heroicos no contexto de uma moral cavalheiresca, mas sem comentários. A novidade é que os romancistas dos anos 1580 e 1620 organizam verdadeiras discussões escolásticas dentre de suas obras, contrapondo os argumentos favoráveis e contrários ao suicídio de seus heróis. Sem falar de uma verdadeira moda, podemos concluir que doravante a questão passa a interessar autores e leitores. Ela faz parte, visivelmente, dos casos de consciência debatidos com frequência. E se discute a legitimidade do suicídio, é porque, a despeito da condenação maciça das autoridades políticas e religiosas, a dúvida se instalou. (MINOIS, 2018, P. 128) 
Os motivos sofrem uma certa evolução: se durante todo esse período o amor continua sendo o principal motivo para se matar, a honra vai dando lugar aos poucos ao remorso, enquanto o desespero medieval fica apenas em quarto lugar, e ganha terreno um motivo socioeconômico, relacionado a ascensão do capitalismo: o suicídio provocado pela ruína. (MINOIS, 2018, p.129) 
Os autores não dão opinião, embora apresentem o suicídio sob uma ótica favorável, como um ato admirável, sem fazer referência à moral tradicional: tudo é uma questão de circunstância, motivos, critérios estéticos. Aliás, a predominância esmagadora do suicídio com arma branca é sinal de sua nobreza. O enforcamento, o afogamento e o envenenamento são raros. (MINOIS, 2018, p.130) 
Shakespeare não é um moralista, e sim um observador da condição humana. Ele não faz apologia do suicídio, e uma das suas observações mais penetrantes é justamente a oposição entre o falar e o agir. Hamlet, o personagem que mais fala em se suicidar, não se suicida. Aqueles que o matam fazem rápido e sem discurso. (MINOIS, 2018, p. 131) 
É aí que Shakespeare vai muito mais longe que seus contemporâneos e assume um dimensão atemporal. A única lição que ele dá é uma lição de humildade, desmistificando todos os saberes, denunciando todas as certezas. (MINOIS, 2018, p.131) 
Nenhuma interpretação deve ser descartada a priori, mas se aproximarmos o suicídio fracassado de Gloucester do não suicídio de Hamlet, dos suicídios equivocados de Romeu e Julieta, do mal-entendido que esteve na origem do suicídio de Otelo, dos suicídios após fracassos dos políticos ilustres de outrora, percebemos que a verdadeira questão apresentada por Shakespeare é: será que o suicídio tem sentido? O cego e irresponsável Gloucester, conduzido pelo louco a um suicídio fracassado, decide continuar vivo: é a tragédia da falta de sentido. A resposta à pergunta de Hamlet, ser ou não ser?, não seria que essa pergunta não faz sentido? (MINOIS, 2018, p. 134) 
O sucesso dos debates sobre o suicídio, que também é tema das conversas na corte e nos salões da elite, é sintomático de uma crise de consciência cultural. A passagem escolástica à razão analítica, do mundo fechado ao universo infinito, do humanismo à ciência moderna, do mundo das propriedades à linguagem matemática, da verdade imutável à dúvida sistemática, da certeza ao questionamento crítico, da unidade cristã à divisão entre confissões rivais, não pode ocorrer sem que o sistema de valores seja profundamente=te abalado. Período de transição e de transformação na direção do espírito moderno, os anos 1580-1620 assistem ao surgimento de rupturas habituais dos tempos de crise: uma parcela da elite, entusiasmada, se lança sofregamente na direção do novo mundo; outra parcela junto com os responsáveis políticos e religiosos, se refugia nos valores tradicionais, transformados em absolutos atemporais, enquanto a maioria assiste, desorientada e preocupada, a esses enfrentamentos, pronta a se unir ao mais forte. Por ocasião de cada uma dessas crises, o relativismo moral avança em um primeiro momento, o que se traduz sobretudo em um questionamento das normas, que aumenta a distância da linguagem dos censores, das autoridades e dos responsáveis pela moral pública, os quais são levados a endurecer o tom. (MINOIS, 2018,Pp.134-135) 
Nesses novos enfrentamentos sem saída, só existem vencidos, e a morte é, na maioria das vezes, a única solução, tanto para os heróis como para os outros – mais para os heróis do que para os outros. As pessoas medíocres e de segunda classe sempre fazem um acordo para continuar vivas. (MINOIS, 2018, p.135) 
As tragédias shakespearianas e as tragédias cornelianas, tão diferentes na forma e tão semelhantes no conteúdo, são mecanismos de morte cuja saída fatal é percebida desde o começo como inevitável. A importância das peças com temática suicida é a marca das épocas de conflitos e valores. (MINOIS, 2018, p,135) 
O suicídio literário e teatral, quando atinge a frequência e as proporções conhecidas entre 1580 e 1620, assume, decerto, um papel de terapia social, além de ajudar um geração desorientada a atravessar um período difícil por meio da redução de suicídios de verdade. Veremos que a casuística, que floresce nesses tempos de conflitos de valores, e a espiritualidade da aniquilação, que, sob muitos aspectos, é seu contrário, tem função semelhante. (MINOIS, 2018, P.136) 
Quem prefere partir rumo ao desconhecido da morte mostra que não tem nenhuma confiança nas teorias, nas ideologias, nas crenças, nos projetos e nas promessas dos dirigentes de todos os quadrantes. Só resta a estes fazê-los passar por louco, o que afasta qualquer possibilidade: a dos suicidas, mas também, e talvez principalmente, a dos vivos. Até mesmo os sistemas mais liberais se recusam a admitir o suicídio, a tolerar a liberdade de expressão sobre o assunto. O suicídio talvez seja o último grande tabu da humanidade. Os dirigentes religiosos e políticos do início do século XVII, que tentam retomar o controle cultural global em uma Europa perturbada por sua crise de consciência, não podem permitir que se desenvolva um debate sobre o suicídio. Deve-se aceitar a vida tal como ela se apresenta, e tal como os dirigentes a concebem. Para aqueles que se sentissem tentados a fugir, existe a repressão e os derivativos, como o suicídio espiritual. Submissão ás autoridades no mundo, ou retiro espiritual para fora do mundo. Essa é a escolha que o Grande século oferece ás almas melancólicas. (MINOIS, 2018, p.141)

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