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O CAPITAL PORTADOR DE JUROS: ACUMULAÇÃO, INTERNACIONALIZAÇÃO, EFEITOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS François Chesnais O mundo contemporâneo apresenta uma configuração específica do capitalismo, na qual o capital portador de juros está localizado no centro das relações econô- micas e sociais. As formas de organização capitalistas mais facilmente identificáveis permanecem sendo os grupos industriais transnacionais (sociedades transnacionais, STN), os quais têm por encargo organizar a produção de bens e serviços, captar o valor e organizar de maneira direta a dominação política e social do capital em face dos assalariados. Mas a seu lado, menos visíveis e menos atentamente anali- sadas, estão asUi:i_~tinúç§e~jlnafl_c~ir;isJbancárias, mas sobretudo as não ba,ncárias, que são constitutivas de um capital com traços particulares. Esse capital busca "fazer dinheiro" sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de emprésti- mos, de dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações e, enfim, de lucros nascidos de especulação bem-sucedida. Ele tem como terreno de ação os mercados financeiros integrados entre si no plano doméstico e interco- nectados internacionalmente. Suas operações repousam também sobre as cadeias complexas de créditos e de dívidas, especialmente entre bancos. O capit:alp()rtador dejuros (também designado '~c;~pitª'lfirrnnç<:ito" ou simples- mente "finança") não foi levado ao lugar que hoje ocupa por um movimento próprio. ~te~ que ele desempenhasse um papel econômico e social de primeiro plano, foi necessário que os Estados mais poderosos decidissem liberar o movi- mento dos capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros. Foi igualmente preciso que recorressem a políticas que favorecessem e facilitassem a centralização dos fundos líquidos não reinvestidos das empresas e das poupanças 36 A FINAN~:A MUNDIALIZMJA das famílias. Nos termos dessas transformações, instituições especializadas (antes pouco visíveis) tornaram-se, pela intervenção dos mercados bursátcis, as proprie- tárias dos grupos: proprietários-acionistas de um tipo particular que têm estraté- gias inteiramente submetidas à maximização de uma nova grandeza, o "valor acionário". Correntemente designado pelo nome de\''investidorcs institucionais"._ 1 esses organismos (fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades de investimento) fizeram da centra- lização dos lucros não reinvestidos das empresas e das rendas não consumidas das famílias, especialmente os planos de previdência privados e a poupança salarial, o trampolim de uma acumulação financeira de grande dimensão. A progressão da acumulação financeira foi estreitamente ligada à liberação dos movimentos dos capitais e à interconexão internacional dos mercados dos ativos financeiros - obrigações públicas e privadas, ações e produtos derivados. Este capítulo trata das etapas da acumulação financeira antes de apresentar alguns traços maiores da mundialização dos mercados financeiros. Aborda, em seguida, a caracterização econômica do capital portador de juros, assim como a natureza e os efeitos de sua interpenetração, tornada muito estreita, com o capital industrial. O capítulo levanta, por conseqüência, a questão da influência do capi- tal portador de juros sobre o nível e o rirmo da acumulação e, portanto, sobre o desempenho da economia mundial. A mundialização financeira contemporânea viu constituir-se urna configuração internacional dos fluxos de capital "parado- xal", em favor dos países dotados de praças financeiras. As mais seguras e as mais rentáveis dentre elas estão situadas nos Estados Unidos. A posição particular des- se país na economia e nas relações políticas mundiais, assim como as distorções muito fortes das taxas de crescimento no plano mundial são, ao menos em parte, conseqüência direta disso. O capítu)o termina com interrogações sobre o que se designa, a título provisório, como à\'insaciabilidade" da finança\ As etapas e os mecanismos da acumulação financeira Quando 0 capital portador de juros ressurgiu no início dos anos 80, a esmagadora maioria dos assalariados e dos cidadãos da maior parte dos países, com exceção dos Estados Unidos e da Suíça e, cm menor grau, do Reino Unido, havia esquecido O termo, que é utilizado por convenção ao longo deste livro, necessita de uma explicação: é a tradução do inglês institutional investor, língua que não oferece, ao contrário do fran- cês, a distinção entre investimento e aplicação financeira. O deslize semântico do termo investor leva a crer que esses agentes contribuem para a criação de capacidade produtiva por meio dos investimentos nas empresas, enquanto o essencial de suas operações trata da compra e venda de títulos que dão direito ao recebimento de juros e dividendos. Ü CAPITAL POJUAIJOIZ DE JUROS 37 completamente sua existência e seu poder social. O reaparecimento e o aumento de poder do capital financeiro foram acompanhados pelo ressurgimento de mer- cados especializados - f!l~~c_<!dgs_de títulos de ef!lpresas ou mercados de obrigações. Estes garantiram ao capital portador de jui·ü; os privilégios e o poder econômico e social particular associados ao que se chama "liql1iA~7:". Dessa maneira compre- ende-se a possibilidade oferecida pelos mercados financeiros aos investidores fi- nanceiros, em período "normal'', fora da situação de crise financeira, de adquirir e de se desfazer de seus ativos de todos os tipos - bônus do Tesouro e outras formas de títulos da dívida pública, obrigações da empresa e ações. O forte crescimento dos mercados de tftulos de empresa graças ao movimento de acu- mulação financeira e das medidas de desregulamentação foi seguido de uma evolução notável da função dos mercados e do poder dos investidores. A partir dos anos 80, nos Estados Unidos, e dos anos 90, em países como a França, não só partes da propriedade das empresas tornam-se ativos financeiros cada vez mais compráveis e vendáveis na Bolsa, mas também as empresas como tais, e mesmo grupos industriais inteiros2• É necessário lembrar as etapas do processo de acumulação financeira que le- vou a esse resultado/Por a~11111utação fü~~nceira, entende-se a centralização cm instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que têm por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação cm ativos financeiros - divisas, obrigações e ações - mantendo-os fora da produção de bens e serviços/Nos Estados Unidos, o processo de centralização do capital sob a for- ma financeira recomeça nos anos 50, sem que se lhe preste grande atenção, à medida que os efeitos da crise dos anos 30 e as conseqüências da Segunda Guerra Mundial chegam ao fim. Na Europa, pode-se datar o início da acumulação fi- nanceira contemporânea em meados dos anos 60. Por um lado, trata-se de um subproduto da acumulação industrial do período da "idade de ouro". Encorajadas pelas disposições fiscais favoráveis, as famílias com rendas mais elevadas começa- ram a investir suas rendas excedentes líquidas em títulos de seguro de vida. Disso deriva que, ainda hoje, são as companhias de seguros que centralizam os ativos financeiros mais elevados (ver Figura 1, adiante). Na década de 1960, igualmente, o pagamento dos salários, que se tornou mensal, foi acompanhado da obrigação de os assalariados abrirem uma conta em banco ou no Correio. Uma massa considerá- vel de dinheiro líquido, que antes escapava dos bancos, afluiu em direção a eles. Isso aumentou a escala de suas operações de crédito, bem como de aplicações a 2 A expressão "grupo industrial" designa, aqui e na seqüência do livro, tanto os grupos engajados majoritariamente na indústria manufatureira quanto aqueles engajados nas ati- vidades de serviços (telecomunicações etc.). 38 A FINANÇA MUNDIALIZADA curto ou muito curto prazo com a mais alta remuneração que eles podiam obter no dia em que um mercadofinanceiro desregulamentado foi reconstituído. Essa reconstituição ocorreu graças a condições institucionais precisas, em um dos centros históricos do capital portador de juros, o Reino Unido. Enquanto o controle de câmbio atingia seu máximo, permitiu-se em 1958 a criação como offihore na City de Londres - isto é, com estatuto próprio, próximo ao de um paraíso fiscal - de um mercado interbancário de capitais líquidos registrados em dólares, chamado "mercado de eurodólares"3. Essa será a primeira base de opera- ção internacional do capital portador de juros. Grandes empresas ajudaram a sua reconstituição, ao lado de bancos que aproveitaram para começar a se internacio- nalizar. Muito antes do "choque do petróleo", lucros não repatriados e também não reinvestidos na produção são depositados em eurodólares pelas firmas transnacionais norte-americanas. O afluxo de recursos não reinvestidos se acelera no início dos anos 70, à medida que o dinamismo da "idade de ouro" se esgota4• Os governos foram obrigados a prolongar sua duração por meio de elevada cria- ção de crédito. Combinado com a primeira reconstituição de uma acumulação de capitais especulativos, isso explica por que a crise de 197 4-75 foi marcada por uma primeira forma de crash financeiro da qual os bancos foram o epicentro5• 3 Ver C.-A. Michalet, Le capitalisrne rnondia! (Paris, PUF, 1976), que sem dúvida é o primei- ro, na França, a ter procurado avaliar o mercado de eurodólares, assim como H.Bourguinat, Finance internationale (Paris, PUF, 1992), que situa a praça na marcha em direção à mundialização financeira. É em 1958 que a União Européia de pagamentos (com o sistema de compensações multilaterais dos saldos comerciais dos países membros) é dissolvida. Ocorre, então, o retorno à conversibilidade monetária. Mesmo permanecendo no regime de taxas fixas e ainda que os Estados mantenham um controle rígido sobre a alocação de divisas e movimentos de capitais, essa dissolução abre caminho para as aplicações financeiras sob a forma de depósitos remunerados fora do país de origem. Será em Londres que essas aplica- ções serão feitas. Aí os bancos franceses serão rapidamente muito ativos. O primeiro grande empréstimo cm eurodólares associado a um Estado será o organizado pelo banco britânico Warburg, em benefício da Itália, para o financiamento de auto-estradas italianas. 4 Nem a reconstituição do capital portador de juros nem a mundialização financeira a que ela conduz podem ser compreendidas fora do que os economistas da Escola da Regulação chamaram de "crise do modo de regulação fordistà' (R. Boyer, La théorie de la régulation: une ana/yse critique, Paris, La Découverte, 1986), e que os marxistas consideram o ressurgimento das contradições clássicas do modo de produção capitalista mundial, a saber, a superprodução e o sobre-investimento. A reconstituição de uma massa de capitais procurando se valorizar fora da produção, como capital de empréstimo e de aplicação financeira, tem por origem o esgotamento progressivo das normas de consumo e a baixa rentabilidade dos investimentos industriais (fato visível nas estatísticas). E. Mandei, La crise 1974-1978: les foits et leur interprétation rnarxiste (Paris, Flammarion, 1978). Ü CAl'l"!AL PORTADOR DE JUROS 39 A etapa seguinte foi a da "reciclagem", a partir de 1976, dos "petrodólares", ist'o é, das_ elevadas somas resultantes do aumento temporário do preço do pe- troleo, aplicadas em Londres pelos potentados do golfo Pérsico. Essa "reciclagem" tomou a forma de empréstimos e de abertura de linhas de crédito dos bancos internacionais aos governos do Terceiro Mundo, sobretudo da América Latina. As bases da dívida do Terceiro Mundo foram lançadas e, com elas, um mecanis- mo de transferência de recursos que possui a capacidade de se reproduzir no tempo. Lembremo-nos de suas origens e características. Independentemente de seu contexto histórico específico, a dívida pública sempre teve por origem as relações de classe e o poder político que permitem aos ricos escapar amplamen- te, ou mesmo quase completamente, dos impostos. Uma vez que seu montante ultrapassa certo teto, seu reembolso se assemelha ao tonel das Danaides*. A dívida se recria sem cessar. Por pouco que o nível das taxas de juros seja superior ao dos preços e às taxas de crescimento da produção e do Produto Interno Bruto (PIB), ela pode aumentar muito rápido. É isso que se chama de efeito "bola-de-neve da dívida"G. Os juros devidos sobre o principal da dívida (o ser- viço da dívida) absorvem uma fração sempre maior do orçamento do Estado, das receitas das exportações e das reservas do país, de sorte que a única maneira ~e fazer face aos compromissos do serviço da dívida é tomar um novo emprés- timo. Alguns Estados politicamente subordinados ou vencidos militarmente experimentaram, no século XIX ou na década de 1920, mecanismos cumulati- vos e perversos de endividamento. Na época contemporânea, eles apareceram das medidas tomadas pelos Estados Unidos a partir de 1979. As expressões "ditadura dos credores"7 e "tirania dos mercados"8 foram propos- tas para designar certas relações características da finança de mercado. Não se pode * S~g~ndo a mitologia grega, as Danaides eram as cinqüenta filhas de Dânaos, rei de Argos. Jup!ter as :ondcnou a passa~ a eternidade enchendo um tonel sem fundo como castigo pelo assassmato de seus mandas na noite de núpcias. (N. T.) 6 A Comissão de Finanças da Assembléia Nacional francesa descreveu esse mecanismo da s~guinte forma: "Desde 1983, a dívida pública foi submetida a um processo de c~escu1:ent~ espontâneo'. o efeito "bola-de-neve". Seu custo médio, influenciado pelo r11vel h1stoncamente rnutto alto das taxas reais de juros e pela parcela crescente da dívida negociável, é superior à taxa de crescimento da economia. Desde então, a carga tributária aprofunda espontaneamente o déficit, que se acrescenta ao estoque da dívida ao final do ano e deve ser refinanciado a custos elevados. Esse mecanismo, uma vez ativado, leva ao crescimento da dívida em comparação ao PIB, mesrno se o déficit sem a dívida for conduzido ao equilíbrio" (Assembléia Nacional, 1994). 7 J.-P. Fitoussi, Le débat interdit (Paris, Arléa, 1995). 8 H. Bourguinat, La tyranie des rnarchés: essai sur l'éconornie virtuelle (Paris, Economica, 1995). 40 A FINANÇA MUNDIAU7ADA ter ditadura sem uma forma de golpe de Estado9• Aquele que fez nascer a ditadura dos "credores" ou, mais precisamente, a do capital patrimonial contemporâneo com traços rentistas, remonta às medidas de liberação dos mercados de títulos da dívida pública e da alta do dólar e das taxas de juros norte-americanas tomadas em 1979-81. Foi nos países do Terceiro Mundo, incentivados a se aproveitar dos crédi- tos aparentemente vantajosos associados à reciclagem dos petrodólares, que as con- seqüências do "golpe de 1979" foram as mais dramáticas. A multiplicação por três e mesmo por quatro das taxas de juros, pelas quais as somas emprestadas deviam ser reembolsadas, precipitou a crise da dívida do Terceiro Mundo, cujo primeiro episó- dio foi a crise mexicana de 1982. Nos países chamados "em desenvolvimento" (PED) ou "de industrialização recente" (new industrializes countries, NIC), a dívida tornou-se uma força formidável que permitiu que se impusessem políticas ditas de ajuste estrutural e se iniciassem processos de desindustrialização em muitos deles. A dívida levou a um forte crescimento da dominação econômica e política dos países capitalistas centrais sobre os da periferia10• Considerada pelo ângulo da acumulação financeira como tal, é, entretanto, nos países do centro do sistema que a dívida pública fez o capital portador de juros apre- sentar um crescimento quantitativo e qualitativo. Em termos de valores absolutos de transferências financeiras, a dívida pública decisiva não foi a do Terceiro Mundo, mas a dos países avançados. A formação dos mercados de obrigações liberalizados respon-deu às necessidades de dois grupos de atores: os governos e as grandes instituições que centralizavam a poupança. Ela respondeu às necessidades de financiamento dos déficits orçamentários dos grandes países industrializados. A constituição de um mercado de obrigações completamente aberto aos investidores financeiros estrangeiros permitiu o financiamento dos déficits orçamentários pela aplicação de bônus do Tesouro e outros compromissos da dívida sobre o mercado financeiro. Isso é o que se chama "titulização"* dos compromissos da dívida pública. Nos Estados Unidos e no Reino Unido foram reunidas, pela primeira vez, as condições políticas e sociais que permitiram aos inves- tidores institucionais aproveitar uma política monetária favorável aos interesses dos credores e se beneficiar da liberalização e da desregulamentação das operações de aplicação e do movimento dos capitais. Mas, desde 1984-85, todos os outros países do G7 adotaram a nova tendência do financiamento dos déficits orçamentários pelo apelo ao mercado de obrigações liberalizado e da oferta de taxas de juros reais positi- 9 E Chesnais, La mondialisation du capital (Paris, Syros, 1997). 'º E. 1oussaint, La bourse ou la vie: la finance contre les peuples (Paris/Bruxelas, Syllepse/ Cederim, 1997). * Refere-se à conversão de dívidas contratuais cm dívidas mobiliárias negociáveis nos mercados financeiros internacionais. Mantivemos uma tradução literal de titrisation ("transformação em título") à falta de um termo correspondente em português. (N. T.) Ü Ci\Pll~'\L POK!i\DOR DE JUROS 41 vas. Essa tendência fez dos mercados de obrigações públicas - o que o FMI chamou de "espinha dorsal" dos mercados de obrigações internacionais o lugar onde se detém uma fração variável, mas sempre elevada, de ativos financeiros mundiais. Mes- mo se as taxas de juros são muito baixas para responder a outras necessidades de sustentação dos mercados financeiros, a segurança das aplicações continua a fazer delas um refugio (o que é chamado de flight to quality). A titulização, a alta das taxas de juros e a liberação dos movimentos dos capitais coincidiram com o momento em que, em razão do volume das somas que haviam sido acumuladas, os fundos de pensão buscavam oportunidade de aplicação em larga escala. Os investidores institucionais foram os primeiros beneficiários da desregu- lamentação monetária e financeira. Ao longo dos anos 80, eles tiram dos bancos 0 primeiro lugar como pólo da centralização financeira e lhes tomam parte de sua atividade de empréstimo. No caso dos Estados Unidos, a formação das caixas de previdência de empresas ou da administração pública remonta às vezes aos anos 20, mas mais freqüentemente ao período 1940-50. Sua emergência nos países anglo- saxões e no Japão como principais atores da finança de mercado no fim dos anos 70 é conseqüência da escolha política feita nesses países, ao fim da Segunda Guerra Mundial, em favor dos sistemas de previdência privados. Mas, nos anos 70, os estí- mulos fiscais reforçaram sua atratividade. Nos outros países industrializados, associe- dades de seguro são os investidores institucionais mais poderosos. Nos países da OCDE, como nos países periféricos, a dívida pública alimenta continuamente a acumulação financeira por intermédio das finanças públicas. A neces- sidade de recorrer ao financiamento mediante empréstimos torna-se permanente por causa da desoneração do capital e das rendas elevadas, a qual foi ainda facilitada pela mundialização financeira, pela impunidade da evasão e pela multiplicação dos paraí- sos fiscais. Deu-se um duplo presente às rendas elevadas: beneficiam-se da redução de impostos e emprestam a taxas elevadas. A riqueza transferida começa por assumir a forma de salários, de rendas agrícolas e de trabalho por conta própria, parcialmente a forma de lucros, antes de se transformar em impostos diretos e indiretos e outras "contribuições especiais" que são dirigidas ao setor financeiro mediante a parte do º~9ll'.1ento do Estado alocada para o serviço da dívida. No fim dos anos 90, essa parte atmgm ou ultrapassou 20% na maioria dos países da OCDE, a começar pelos Esta- dos Unidos 11 • De 1987-88 até meados da década de 1990, os déficits orçamentários " A d d · . d retoma a a economia o armamento e o financiamento do imenso programa Guerra n,as Estrelas foram efetuados, a despeito de todos os discursos "reaganianos" sobre a ortodo- xia monetária e orçamentária, mediante o crescimento da dívida federal. A dívida federal do Estado norte-americano elevou-se de US$ 322 bilhões em 1970 para US$ 906 bilhões em 1980 e para US$ 4,06 l trilhões em 1992. Em relação ao orçamento federal, 0 serviço da dívida passou de 12,7% cm 1980 para 20,1% cm 1990. 42 A HNANÇA MUNlJ!ALJZADA dos países da OCDE- e, portanto, o recurso aos empréstimos - se situaram entre 3% e 7% do PIB. Depois de uma redução passageira, o nível superior foi novamente atingido pelos Estados Unidos em 2003. Nos anos 80, a dívida pública permitiu a expansão dos mercados financeiros ou a sua ressurreição em outros países, como no caso da França. Ela é o pilar do poder das instituições que centralizam o capital portador de juros. Em seguida, a dívida pública gera pressões fiscais fortes sobre as rendas menores e com menor mobilidade, austeridade orçamentária e paralisia das despesas públicas. No curso dos últimos dez anos, foi ela que facilitou a implanta- ção das políticas de privatização nos países chamados "em desenvolvimento". Os recursos financeiros centralizados pela dívida ficam sempre amplamente cativos dos mercados financeiros. Assim, os anos 80 viram a reconstrução dos mercados capazes de garantir aos investidores financeiros a possibilidade, em tempo normal, de revender seus ativos a qualquer momento 12• Uma nova etapa da acumulação financeira é então aberta, na qual os dividendos se tornam um mecanismo impor- tante de transferência e de acumulação, e os mercados de ações o pivô mais ativo. Essa etapa viu a implantação do "governo de empresa''* contemporâneo13• A pres- são "impessoal" dos "mercados'', exercida sobre os grupos industriais pelo viés do nível comparado da taxa de juros sobre os títulos da dívida e dos lucros industriais, se multiplica em formas de controle muito mais diretas, que beneficiam constru- ções teóricas feitas sob medida14• Impõem-se novas normas de rentabilidade, que geram pressões bastante acentuadas sobre os salários, tanto em termos de produti- vidade e de flexibilidade do trabalho, como de mudanças nas formas de determina- ção dos salários. Ainda assim, mesmo se os mercados acionários ocupam a frente da cena, as aplicações em bônus do Tesouro não perdem sua importância. Em tempos de choques financeiros, os títulos da dívida pública dos países mais fortes - os Estados Unidos à frente - tornam-se o valor-refúgio por excelência. Os emprésti- mos às sociedades (empresas e bancos) mediante obrigações e os créditos hipotecá- 12 Sobre a procura de "liquidez" por todos os detentores de títulos, a começar pelas ações das empresas, consultar Orléan, Le pouvoir de la finance (Paris, Odile Jacob, 1999). De fato, ela é a base do "poder da finança". Para uma análise crítica desse importante livro, ver F. Chesnais, "Le pouvoír de la finance d'André Orléan", nora de leitura, em "Fonds de pension er nouvcau capiralisme", L'Année de la Régulation (Paris, Association Recherche et Régulation, 2000, v. 4). * O governo das empresas (ou sociedades) foi sistematizado pela OCDE na forma de um conjunto de princípios que deveriam ser seguidos pelas empresas, para dar maior estabilidade ao sistema financeiro, cujo ponto central decorre da separação entre a propriedade e o controle e da relação entre acionistas e administradores das empresas. (N. T.) 13 Ver os capítulos de Catherine Sauviat e de Dominique Plihon. 14 É, em particular, o caso da teoria da "agência", de Jensen. 0 CAPITAL PORTADOR DE JUROS 43 rios aos particulares completama panóplia da apropriação, cuja força última se encontra sempre na produção. Eles estão estreitamente articulados com os mecanis- mos das taxas de juros interbancárias baixas ou muito baixas e de criação de crédi- tos que formam a base da política de estímulo das despesas que é característica da macroeconomia do regime de acumulação financeirizada 15• Nos Estados Unidos, 0 Federal Reserve (Fed) praticamente estabeleceu como princípio a obrigação de, em caso de dificuldade, fornecer aos controladores do mercado as linhas de crédito que os ajudem a manter a liquidez16• Depois de ter dado ao poder da finança seus fundamentos por meio da alta das taxas de juros, se prestam a fornecer o oxigênio aos mercados, quase permanentemente. Uma medida da amplitude da acumulação financeira é fornecida pela evolu- ção do volume de ativos financeiros de investidores institucionais. V} <l) -o ,,, <l) 'º ._e: ] Figura 1 - Ativos financeiros dos países da OCDE, por tipo de investidor institucional 14 12 lO 8 6 4 2 o 1992 1993 1994 li Seguradoras D Fundos de pensão D Sociedades de investimento D Outras 1995 1996 1997 1998 1999 Fonte: OCDE, lnvestisseun institutionnels: annuaire statistique, 1932-200 J, Paris, 200 J. No fim dos anos 90, o volume de ativos em posse do conjunto dos inves- tidores institucionais ultrapassava US$ 36 trilhões. Esses haveres representavam em torno de 140% do PIB dos países da zona da OCDE. Mas, em alguns 15 F Chesn 1·s '"L li ' · ' · 1 · , a,, a nouve e econom1e, une con1oncture propre à a puissance hégémonique américaine" (Séminaire Marxiste, 2001 ); "La théorie du régime d' accumulation financerisé: contenu, portée et Ínterrogations" (Paris, Actes du Forum de la Régulation, Association Recherche et Régulation, 2001). 16 M. Aglietta, "Le risque de systeme dans la finance libéralisée" (Revue d'Économie f<znanciere, n" 70). 44 t\ HNAN<,:A J\>!UNDIALIZAllA países, a relação entre os ativos financeiros e o PIB que representa as. prete~ sões de apropriação da produção econômica presente e futura.- é multo mais elevada: 226% no caso do Reino Unido, 212% nos Países Baixos, 207% nos Estados Unidos, 200% na Suíça. Ao longo da década, o crescimento do valor dos ativos dos investidores institucionais se fez a um ritmo sustentado, mais de 11 % em média durante o período 17 • Se as sociedades de seguro estão na frente pelo volume dos ativos que detêm, são ultrapassadas no fim .dos ~nos 90 pelas sociedades de investimentos e pelos fundo~ de. pensão, CUJOS ativos aumentaram a um ritmo mais elevado. Foram as pnmerras, sobretudo aque- las especializadas na gestão dos fundos mútuos, que tiveram maior cresci- mento: entre 1990 e 1999, seus haveres aumentaram em média 20% ao ano contra 13% dos fundos de pensão. A forma de mundialização nascida da liberalização financeira A mundialização financeira foi preparada pelo mercado de eurodólares, ~epois pela passagem a um regime de taxas de câmbio ~exíveis.ap~s o colapso do s1ste1:ia de Bretton Woods. O mercado de câmbio foi, assim, o pnmeiro a entrar na mundia- lização financeira contemporânea. Ele permanece um dos me~cados onde os in- vestidores institucionais continuam a manter parte de seus ativos. Mas foram as medidas de liberalização e de desregulamentação de 1979-81 que deram nasci- mento ao sistema de finança mundializado tal como o conhecemos. Elas puseram fim ao controle do movimento de capitais com o estrangeiro (saídas e entradas), abrindo assim os sistemas financeiros nacionais para o exterior. A primeira conse- qüência foi a expansão muito rápida, desde a metade dos ano~ 80: ~os mer~ados de obrigações públicas interconectados internacionalmente e a ~ifus~o mte.rnaoonal do financiamento dos déficits pela emissão de títulos negociáveis. Mais do que uma decisão deliberada, a liberalização e a transformação em títulos dos com- promissos públicos foram o resultado de um processo de c~ntági~. Qualquer Estado que quisesse colocar bônus do Tesouro nos mercados liberalizados estava forçado a se alinhar às práticas norte-americanas. A abertura externa e interna dos sistemas nacionais, antes fechados e compar- timentados, conduziu à emergência de um espaço financeiro mundial'.A liberalização e a desregulamentação não suprimiram os sistemas financeiros naoo- nais. Elas os integraram de maneira "imperfeita" ou "incompleta':, em ~m con- junto que tem muitas particularidades. Ele é muito fortemente h1erarqmzado: ~ sistema financeiro dos Estados Unidos domina os outros em razão tanto da pos1- 17 OCDE, Études économiques de l'OCDE 1998: ]apon (Paris, 1998) · Ü CAPITAL PORTADOR JlE JUROS 45 ção do dólar 18 quanto da dimensão dos mercados norte-americanos de obrigações e de ações. Ele é marcado por uma carência de instâncias de supervisão e de controle, sobre a qual todos os especialistas concordam, mesmo se têm julgamen- tos diferentes sobre o grau dessa carência e sobre as soluções a dar. Enfim, a configuração geopolítica dos mercados, assim como sua interconexão internacio- nal, é assegurada pelos operadores financeiros. São seus julgamentos que decidi- rão a participação de tal país na rede, em graus que diferem de um compartimento a outro (câmbio, obrigações, ações etc.). A integração internacional dos mercados financeiros nacionais resultou de sua descompartimentalização regulamentar e foi facilitada por sua interconexão em tempo real. Mas o conteúdo efetivo dessa integração resulta, de maneira concreta, das decisões tomadas e das operações efetuadas pelos gestores das carteiras mais importantes e mais internacionalizadas 19• A personificação dos "mercados" (seu antropomorfismo) não é trivial. Exprime, simultaneamente, ao menos três dimen- sões do poderoso crescimento da finança. A primeira concerne ao movimento de autonomia relativa da esfera financeira em relação à produção, mas sobretudo em face da capacidade de intervenção das autoridades monetárias. A segunda relacio- na-se ao caráter fetiche, perfeitamente mistificador, dos "valores" criados pelos mer- cados financeiros. A terceira remete ao fato de que são os operadores que delimitam os contornos da mundialização financeira e decidem quais agentes econômicos, pertencentes a quais países e em quais tipos de transações, participarão. Na configuração da mundialização financeira, o capital portador de juros norte- americano tem posição à parte, tanto em razão do lugar do dólar quanto da dimen- são e da segurança dos mercados financeiros norte-americanos. Ao mesmo tempo, eles são uma base a partir da qual o capital norte-americano opera nos outros mercados financeiros e o lugar ao qual convergem os capitais ociosos, a poupança dos fundos de pensão não norte-americanos e os patrimônios das classes ricas do mundo inteiro. Nem por isso, a participação dos outros grandes países no proces- so mundializado de valorização financeira pode ser negligenciado. Os bancos euro- 18 Ver o capítulo de Suzannc de Brunhoff. 19 A expressão "mundialização do capital" é a que corresponde mais precisa mente à substância do termo inglês globalisation. Tratando-se da produção e da comercialização, o termo g!obalisation traduz a capacidade estratégica do grande grupo de adotar uma abordagem e uma conduta "global", atuando simultaneamente nos mercados com demanda solvável, nas fontes de aprovisionamento e na localização da produção industrial. Na esfera financeira, vale a mesma coisa para as operações de investimentos financeiros, a composição de suas carteiras de ativos (divisas, obrigações, ações e derivativos) e as arbitragens que eles operam entre diferentes instrumentos financeiros, compartimentos de mercado e países onde eles se colocam. 46 A flNAN<,:A MUNDJALIZADA peus logo ocuparam um lugar central nos consórcios de credores com os quais se confrontaram os países devedores do Terceiro Mundo. Mais tarde, fortalecidos pelo apoio das sociedades de seguros prontas a cobrir os riscos, emprestaram maciça-mente aos bancos asiáticos, antes de se negarem a refinanciá-los no momento da crise, que eles agravaram. Em seguida, participaram ativamente da privatização e da desnacionalização dos sistemas bancários da América Latina e, mais recentemente, do Leste Europeu. Forneceram um trampolim para a participação em primeiro plano das empresas européias, entre as quais empresas ainda públicas, na privatização dos grandes serviços públicos na América Latina 20 • Classicamente, os autores distinguem três elementos constitutivos na imple- mentação da mundialização financeira: a desregulamentação ou liberalização mone- tária e financeira, a descompartímentalízação dos mercados financeiros nacionais e a desintermedíação, a saber, a abertura das operações de empréstimos, antes reserva- das aos bancos, a todo tipo de investidor institucional. São os três "D" cujo alcance 1 B · 21 H' · - d foi analisado especia mente por ourgumat . a uma mteraçao e um enca ea- mento profundo entre os três processos. A mundialização financeira remete tanto à "descompartimentalização" interna entre diferentes funções financeiras e diferentes tipos de mercados (de câmbio, de crédito, de ações e obrigações) quanto à interpe- netração externa dos mercados monetários e financeiros nacionais e sua integração nos mercados mundializados. A descompartimentalização externa se apóia sucessi- vamente na liberalização dos mercados de câmbio, na abertura do mercado de títulos públicos aos operadores estrangeiros e na abertura da Bolsa às empresas estrangeiras. A descompartimentalização interna abriu caminho para uma (des)especialização progressiva dos bancos em nome da concorrência e da liberdade de empreendimento. É o terceiro "D", a "desintermediação", que permite às insti- tuições financeiras não bancárias ter acesso aos mercados como emprestadoras. Foram elas que tiveram um crescimento particularmente espetacular desde o início da desregulamentação financeira. Enfim, o movimento de liberalização e descompar- timentalização foi igualmente marcado pela criação de numerosas formas novas de aplicação da liquidez financeira (o que se chama de novos produtos financeiros), à medida que a remoção das regulamentações e controles nacionais anteriores abriu caminho para as "inovações financeiras". Mesmo para os grandes países industrializados, a liberalização externa e inter- na de seus sistemas financeiros e a desintermediação foram fonte de graves pro- blemas. O Japão é um exemplo notório22 • Para os países ditos "emergentes" (de- 2º Ver o capítulo de Esther Jeffers. 21 H. Bourguinat, Finance internationale, cit. 22 Ver o capítulo de Marianne Rubinstein. () Ci\l'ITAL l'OlffA!lOR llF JUROS 47 signação que substituiu a de "novos países industrializados" ou NIC25), os pro- blemas foram infinitamente mais graves. A liberalização e a desregulamentação de seus sistemas financeiros foram feitas a passos largos, sob a direção do FMI e do Banco Mundial e sob a pressão política dos Estados Unidos24 • Os mercados financeiros "emergentes", que foram abertos às ope- rações do capital financeiro a partir do início dos anos 90, são distintos das praças financeiras aguerridas como Hong Kong e Cingapura, nascidas como intermediárias da City no quadro da antiga zona da libra esterlina. Pode-se tratar de praças financei- ras novas como em alguns países do Sudeste Asiático e na China. Em outros casos, trata-se de fato de mercados financeiros antigos (como naArgentina), que conheceram, após a crise de 1929, um regime de controle estrito dos movimentos de capitais. Os Estados Unidos, o FMI e seus aliados e representantes locais formados nas universidades norte-americanas segundo o credo e as receitas neoliberais, trabalharam para obter dos governos a descompartimentalização dos mercados financeiros dos NIC, a passa- gem à títulízação da dívida pública e a formação, nesses países, de mercados de obri- gações domésticos interconectados com os mercados financeiros dos países do centro do sistema. Os mercados "emergentes" nunca receberam, mesmo antes da crise mexicana de 1995, mais de 15% dos capitais mundiais que buscavam se instalar conservando um grau de liquidez elevado25 • Os fimdos de pensão e os mutual fands norte-americanos neles fizeram aplicações em ações, mas as obrigações continuaram a representar a parte mais importante de suas carteiras de títulos. Nessas obrigações a liquidez dos mercados é fraca; uma das razões está na preferência das classes possuido- ras autóctones por aplicações em Wall Street 26 • A integração no regime de mundialização financeira "incompleta e imperfeita", de países cujos sistemas antes estavam fechados e cujos dirigentes são ao mesmo tempo pouco instruídos nas sutilezas da finança de mercado e hábeis nos métodos da corrupção política, teve como resultado a criação de sistemas financeiros muito frágeis27 • n Para uma interpretação dessa mudança semântica, ver J.-E Dufour, Les marchés hn.Pr<r.>nt< (Paris, Armand Collin, 1999). 24 J. Sgard, L'économie de la panique: foire face aux crises financieres (Paris, La Découvertc, 2002, cap. 1 ), apresentou as condições políticas obscuras. 25 FMI/IMF, lnternational Capital Markets: Developments, Prospects, and Policy lssues (Washington, DC, 1994). 26 Ver o capítulo de Mamadou Camara e Pierre Salama e também o de Gérard Duménil e Dominique Lévy, que apresentam as cifras estimadas para os fluxos referentes às aplicações rentistas das classes possuidoras dos países latino-americanos. 27 F. Chesnais, "Crises de la financc ou prémisses de crises économiques propres au regime d'accumulation actuel?" (Paris, Appel des Économistes pour Sortir de la Pensée Unique, 2000); M. Aglietta, A. Orléan, La monnaie entre violence et confiance (Paris, Odile Jacob, 2003). 48 A FINANC,:A IvlUNDlJ\Llí'.ALlil Viu-se também os choques financeiros, com freqüência provocados diretame1:te pelas retiradas brutais dos investidores estrangeiros, propaga:·em-se de ~ane_1ra contagiosa, atingirem funções essenciais do sistema financeiro.- e~ _pnme1ro lugar os mecanismos de criação de crédito - e estenderem-se _i~u.1to rap1do sobre a esfera da produção e das trocas. Para outros Estados ~u te~nt~~10s formal~ent~ soberanos ou autônomos, confere-se o papel de para1sos 1und1cos e fiscais. As empresas e os particulares ricos neles podem organiz~r ~ evasão fiscal, e os fundo~ provenientes do comércio de ~rogas e de todas as a_nv1~ad~: mafiosas podem ali começar as primeiras fases críncas da lavagem de dmhe1ro . Um regime específico de propriedade do capital A base teórica aqui defendida identifica diferentes formas de fin~nciamento, cujos papel e amplitude são bem mais circunscritos do que geralm_ente se diz, ~ma :onfigura~ ção específica da propriedade capitalista, a saber, ~ prop_nedade p~tnmonial. ~sta. e dominada pela figura do proprietário-acionista e, mais precisamente amda, pelo a~10111s ta institucional possuidor de títulos de empresas 29 • A posição ocupada pela propnedade bursátil do capital coloca nas mãos dos proprietários-acionistas (que detêm ao mesmo f d "d d ")os tempo os serviços da dívida pública, que azem os governantes _s~us ev~ o~es . ~ meios de influir na repartição da renda em duas dimensões essenCia1s: a da ~istnbuiçao da riqueza produzida entre salários, lucros e renda financeira, e a~~ repartição.entre a parte atribuída ao investimento e a parte distribuída como d1V1,~endos e Juros --: essa parte é consumida ou destinada ao "moderno entesouramento_ , e~ que o~ capi- tais são cativos da finança e redirecionados continuamente para aplicaçoes em ntulos. A tese aqui defendida sustenta que os detentores ~as ações e de v~J~n::es importantes de títulos da dívida pública devem ser definidos como"propnet:nos situados em posição de exterioridade à produção, e não com~ credores . O regime de acumulação contemporâneo, ao menos tal como existe n~s Estad~s Unidos, foi caracterizado como "patrimonial"'º· A palavra remetea relaçoes econo- micas e sociais das quais 0 termo "credor" não dá conta. Um patrimônio designa uma 2s J. de Maillard, Un monde sans foi (Paris, Stock, 1998); L'Économie l'olitique, 119. 4 (Les paradis jiscaux), 42 trimestre, 1999; Attac, Les paradis jiscaux ou la finance sans lo1 (Paris, Mille et Une Nuits, 2000). 29 É preciso não subestimar a importância dos patrimônios fin~nceiros familiares. Um e,studo da União dos Bancos Suíços (UBS) revela que 45% das soCJedades que figuram no mdice CAC 40 da Bolsa de Paris são controlados por famílias. Ver "Families, b Bourse vous ai me", Le Monde, 19 de outubro de 2003, suplemento Dinheiro. JO M. Aglietta, Le capitalisme de demain (Notes da la Fondation Saint-Simon, novembro de 1998). () CAP!Ti\l. PORTADOR DE JUROS 49 propriedade mobiliária e imobiliária que foi acumulada e dirigida para o "rendi- mento". As fases iniciais da acumulação financeira foram dominadas pelos em- préstimos aos Estados, de maneira que os consórcios de bancos internacionais se posicionaram em face desses Estados na posição de "credores". Isso não é suficiente para justificar o abandono do termo keynesiano "rentista"31 . O termo "credor" remete a empréstimo, cuja figura tutelar é a banca e no qual a "finançà', sob a forma de crédito, engendra relações diretas entre a banca e os beneficiários do empréstimo cuja base é um financiamento efetivo. A instituição central da finança é o mercado secundário de títulos, que negocia somente ativos já emitidos, cujos resultados do financiamento, se existiram, pertencem ao passado. A administra- dora da carteira intervém nesses mercados para neles aplicar dinheiro em títulos e avalia os resultados de suas aplicações. Quando ela existe, sua atividade de finan- ciamento se faz em outros quadros institucionais que não os mercados financei- ros. Os mais importantes são os business angel e o venture capital, em que os meios financeiros são postos à disposição direta dos investidores ou de capitalistas individuais inovadores, nos quais o investidor financeiro faz uma aposta. Os mercados de obrigações lhe permitem jamais conhecer seus devedores dos empréstimos. Seu problema não é saber "quem pagará o mico"32, mas saber se os mercados perma- necerão líquidos. Quando subsistem formalmente, as relações de crédito estão subordinadas à finança de mercado financeiro. Para fazer frente à desintermediação definida mais acima, os bancos "redefiniram suas atividades para tornarem-se intermediários de mercado"33 , a exemplo de outros investidores institucionais. Por pouco que se analisem os "fatores da mudança em termos de lógicas financeiras", é preciso caracterizar o crédito, especialmente internacional, como um mecanismo de captação e de centralização do fluxo de rendas, portanto uma instituição muito próxima da definição de rentista dada por Keynes. .ll No final da Téoria geral, no momento de se posicionar cm favor de "uma taxa de juros muito menor do que a que reinou até agora", Keynes escreve: "este estado de coisas seria perfeitamente compatível com certo grau de individualismo, mas isso não suporia menor eutanásia do rentista e, por isso, a eutanásia do poder opressor, do caráter patrimonial, do capitalismo de explorar o valor conferido ao capital por sua raridade. O juro atualmente não remunera nenhum sacrifício verdadeiro, não mais do que a renda da terra" (edição francesa, p. 39 l, ou J. M. Keynes, A teoria geral do emprego do juro e da moeda, São Paulo, Nova Cultural, l 985, p. 255). Essa passagem é cada vez menos citada. No entanto, o termo utilizado por Keynes e Kalecki ( 1956, livro V) expressa melhor do que "credor" a realidade das relações econômicas. 32 A expressão é de P.-N. Giraud (Le cormnerce des promesses: petit traité mr la finance moderne, Paris, Senil, 2001), que amplia a importância da finança no ciclo de produção e de circulação de mercadorias e esquece as dimensões da apropriação de valor e da punção financeira. 33 M. Aglietta, A. Orléan, cit., p. 243. 50 A FINANÇA MUNIJIALIZADA A propriedade patrimonial cria direitos a rendas sob a forma de aluguéis, de rendas do solo (urbano ou rural) e de fluxo de rendas relacionadas às aplicações em Bolsa. A finalidade dela não é nem o consumo nem a criação de riquezas que aumentem a capacidade de produção, mas o "rendimento". A propriedade patrimonial se faz acompanhar de diferentes estratégias de investimento financei- ro. Uma é aquela realizada pelo acionista chamado "minoritário", que faz uso das oportunidades fornecidas pelo mercado de títulos de empresa (a "Bolsa") para exercer uma forma radical do direito de propriedade, cujo resultado é, em geral, a morte das empresas. Tornada "mercado para o controle das empresas'', a Bolsa coloca sua existência e a dos assalariados nas mãos de gente sobre a qual Keynes dizia que se comportavam como um cultivador que, "tendo examinado seu barô- metro após o café da manhã, pudesse decidir retirar seu capital da atividade agrí- cola entre as dez e onze horas da manhã, para reconsiderar se deveria investi-lo mais tarde, durante a semana''34 • Voltaremos a esse ponto adiante. Outras estraté- gias de gestão financeira, que podem ser conduzidas paralelamente à precedente, escolhem formas de valorização derivadas da definição de especulação dada por Kaldor35 como transação sobre uma mercadoria "cm que o motivo [ ... ] é a ante- cipação de ganho que nasce de uma variação de preço e não uma vantagem resultante do uso do bem, de uma transformação qualquer ou de uma transferên- cia de um mercado para outro". Estamos diante de uma lógica econômica em que o dinheiro entesourado adquire, em virtude de mecanismos do mercado secundário de títulos e da liquidez, a propriedade "miraculosa" de "gerar filhotes". O "capitalismo patrimonial" é aquele em que o entesouramento estéril, representado pelo "pé-de-meia'', cede lugar ao mercado financeiro dotado da capacidade mágica de transformar o di- nheiro em um valor que "produz"36 • Aqui Marx é incontornável: desde que ele é emprestado ou investido em uma empresa, desde que ele produza uma renda distinta do lucro da empresa, o juro impulsiona [o dinheiro] o seu pro- prietário, quer dormindo ou em vigília, seja em sua casa ou em viagem, de dia como de noite. O voto piedoso do entesourador se encontra realizado no capital portador de juros. [Suas "economias", sua "poupança" adquiriram] a propriedade de criar valor, de proporcionar juros (ou de angariar dividendos e mais-valias bursáteis) tão natu- ralmente como a pereira dá peras. (O capital, livro 3, cap. :X::X:TV) 34 J. M. Keynes, La théorie générale de l'emploi, de l'intérêt et de la monnaie (Paris, Payot, 1949), p. 166. 35 N. Kaldor, "Speculation and economic activity" (Review ofEconomique Studies, v. 7, n 2 1). 36 Para o termo "entesouramento" e suas relações com a "preferência pela liquidez", ver Keynes (La théorie générale de l'emploi, cit., final do cap. XII e cap. XV). Ü CAPITAL PORTADOR DE JUROS 51 A reticência que há hoje em caracterizar o capital portador de juros utilizando o termo "rentista", e mesmo em tirar as implicações plenas do adjetivo "patri- monial", tem a ver, por um lado, certamente, com a escolha política feita por certos países em favor dos sistemas de previdência por capitalização e com o lugar que os fundos de pensão ocupam no capital de aplicação financeira em escala mundial. Os fundos de pensão acumulam contribuições calculadas sobre os salá- rios e vencimentos, e seu objetivo declarado é assegurar aos assalariados, depois de aposentados, uma pensão regular e estável. Trata-se então de instituições que centralizam, no quadro de regimes privados de previdência de empresas, uma forma de poupança cujas rendas salariais (no sentido amplo) representam a fonte inicial. O pagamento das pensões, com a ajuda de rendas geradas pela proprieda- de patrimonial financeira, não dá a essa última uma legitimidade que permitiria abandonar a teoria da renda. Issoao menos por duas razões. A primeira está 110 fato de que as aposentadorias podem ser asseguradas de maneira diferente dos regimes privados de previdência das empresas ou da poupança-salariaP7• A esco- lha em favor desses sistemas foi e é mais do que nunca uma escolha política, escolha em favor dos mercados financeiros, cujas consequências, hoje, são conhe- cidas. Da mesma maneira que Keynes opõe a gestão da "poupança comum" pelos poderes públicos à exploração de sua "raridade" pelo capital rentista, pode-se opor os sistemas de previdência por repartição, que não tiveram necessidade de mercado financeiro para cumprir suas funções, às aposentadorias de mercado financeiro submetidas à sorte do "cassin0 "38. A segunda razão provém da alquimia própria da centralização financeira. Nas mãos dos gestores, a poupança acumulada se transforma em capital. Essa mutação coloca os fundos de pensão na primeira linha das instituições financei- ras não bancárias, sendo sua função fazer frutificar esse capital maximizando 0 rendimento, assegurando-lhe um elevado grau de liquidez. Produz-se uma mudança na natureza econômica da poupança, cuja abrangência social e cujas implicações políticas não podem ser escamoteadas. Os assalariados aposentados deixam de ser "poupadores" e tornam-se, sem que tenham clara consciência disso, partes interessadas das instituições cujo funcionamento repousa na .J? B. Friot, Puissances du salariat: emploi et protection sociale à la fi"ançaise (Paris, La Dispu- te, 1998); Et la cotisation sociale créera !'emploi (Paris, La Dispurc/L'Harmattan, 1999). 38 "Q d d l . d . 1 . uan o o esenvo vllnento o capita em um país se converte em subproduto das at1v1dades de um cassino, é provável que ele seja realizado em más condições. Se se considera que a finalidade propriamente social da Bolsa é canalizar o investimento novo em direção mais favorável, não se pode reivindicar o gênero de sucesso obtido em Wall Strcet como um brilhante triunfo do laissez-faire capitalista" (J. M. Keynes, La théorie générale de l'emploi, cit., p. 174). 52 A FlNANC,:A MUNDIALIZADA centralização de rendimentos fundados na exploração dos assalariados ativos, tanto nos países onde se criaram os sistemas de pensão por capitalização quanto naqueles onde se realizam as aplicações e as especulações. Os planos de poupan- ça salarial fazem de seus beneficiários indivíduos fragmentados, cuja personali- dade social está cindida: de um lado, a de assalariados e, de outro, de membros auxiliares das camadas rentistas da burguesia39• Ambivalência de que as oligar- quias financeiras e políticas dos países capitalistas avançados estão plenamente conscientes e que buscam explorar ao máximo. A exterioridade da finança em relação à produção É ainda possível opor a "finança" à "indústria'' ou, mais precisamente, encontrar grupos industriais cujas decisões não estejam subordinadas aos imperativos do capital portador de juros? É ainda possível elaborar uma teoria da acumulação que possa fazer abstração das demandas dos acionistas relativas à partilha do lucro? A oposição entre "finança" e "indústria" remete a duas distinções interconectadas, mas separadas. A primeira é entre o "capitalista ativo" ou "em- presário" e o "financeiro" que se encontra em Marx e em Keynes40 , assim como em Schumpeter41 • A segunda é entre os acionistas-proprietários e os administra- dores, desenvolvida especialmente a partir dos trabalhos de Berle e Means"2 • A aproximação entre a "finança'' e a "indústria" foi pensada há muito tempo no contexto da teoria da "interpenetração" desenvolvida por Hilferding. Este propôs o termo "capital financeiro" para designar a forma de capital que se cons- titui, a partir da última década do século XIX, após a entrada dos grandes bancos no capital da grande indústria alemã. A teoria da interpenetração entre capital industrial e capital de empréstimo tem efeitos políticos importantes em termos de concentração de poder, no plano nacional e internacional. O interesse dos marxistas por esses aspectos, que são um dos pilares da teoria do imperialismo, levou-os a deixar de lado urna questão cuja implicação é considerável. ' 9 Séminaire Marxiste (ed.), Bourgeoisie, état d'une classe dominante (Paris, Syllcpse, 2001). 10 J. M. Keynes, La théorie générale de l'emploi, cit., capítulos XII e XXIl/2. 41 Schumpcter trata das relações entre os empresários e os financistas-banqueiros, cujo papel é ser seus auxiliares e nada mais, na Théorie de l'évolution éconornique (Paris, Dalloz, 1935; ed. orig. 19 l 2). '12 Ver W. Lazonick, Business organisation and the myth of the rnarket economy (Cambridge[UK]/Nova York, Cambridge University Prcss, 1991), e M. O'Sullivan, "Sustainable prosperity, corporate governance and innovation" em J. Michie e J. Grieve Smith, Globalisation, growth and govermmce: creating an innovative economy (Oxford/ Nova York, Oxford University Press, 1998). Ü CAPITAL PORTADOR DE JUROS 53 Trata-se da questão da distância da finança em relação às atividades de produção e de investimento no sentido amplo (tecnologia incluída), do olhar fortemente externo que ela põe sobre aquilo que constitui o cerne da atividade produtiva. Entretanto, as suas bases estão presentes em Marx. No livro III de O capital, ele desenvolve uma teoria da "autonomia'' da finança15 que é acompanhada de uma problemática de sua "exterioridade à produção". Os capitalistas financeiros partilham com os propriet<irios fundiários, que não cultivam suas terras mas confiam a gestão delas a fazendeiros, o traço rentista que consiste em se pôr em posição de exterioridade à produção44 . Falan- do dos empréstimos às empresas, Marx define o juro como "a mais-valia obtida pela simples posse do capital [pois que] seu possuidor permanece fora do processo de produção; o juro é então produzido pelo capital subtraído de seu processo" (O capital, livro III, capítulo XXIII). Tão logo haja desenvolvimento ou ressurgimento da Bolsa e forte subida ou retomada dos proprietários-acionistas, essa "subtração" cria um problema muito sério. Urna vez passada a época heróica dos "grandes barões da indústria'', da qual Henry Ford foi o último representante, o capitalismo norte-ame- ricano foi forçado a encontrar uma alternativa. A resposta aos perigos que a "subtra- ção" faz pesar sobre a acumulação industrial foi o poderoso administrador tecnocrata privado, que, beneficiário de uma delegação quase completa de poder dos proprietá- rios-acionistas, tem grande liberdade para investir e financiar a pesquisa-desenvolvi- mento (P&D) a partir de lucros retidos. Foi essa figura que Burnham, Galbrait e Chandler teorizaram. Com a distância do tempo, compreende-se até que ponto a vitória temporária do administrador (um longo parêntese de quase meio século) foi apenas um subproduto do enfraquecimento considerável dos proprietários-acionistas rentistas produzido na ocasião da crise de 1929. A restauração do poder da finança teve dois resultados cujas conseqüências para a reprodução do capital no longo prazo não podem ainda ser apreciadas, mas devem ser postas em evidência. A primeira é a força formidável da centrali- 43 Para Marx, na scq üêncía da acu1nulação financeira, "unia parte do lucro bruto se cristaliza e se torna autônoma sob a forma de juro". Então, "a classe dos capitalistas financeiros se opõe [aos capitalistas industriais! como uma categoria particular de capitalistas, o capital financeiro como uma espécie de capital autônomo e, enfim, o juro como a forma inde- pendente da mais-valia que corresponde a esse capital específico". 14 Lordon atenta a isso. Um traço central nas relações contemporâneas entre a "finança" e a "indústria'' é o "grau de exterioridade ou de distância dos credores cm relação à divisão do trabalho" (Fonds de pension, piêges à cons, Paris, Raisons d'Agir, 2003, p. 36-7). Notemos de passagem que o termo "credor" coloca algumas dificuldades ao autor, pois ele é forçado a fazeruma distinção muito precisa entre "o credor-acionista r que] só mantém uma relação instrumental e indiferenciada com a indústria de seu devedor, considerada como um meio puro e sem outro sentido que a produção de mais-valia financeira'' e "a relação de crédito [que] diminui a distância, principalmente se ela for personalizada, ou seja, de parceria". 54 A flNANÇA MUNDIALIZADA zação do capital15, compreendida como processo nacional e internacional (es- pecialmente transatlântico) que resulta das fusões e aquisições (F&A) orques- tradas pelos investidores financeiros e seus conselhos. A segunda diz respeito à maneira pela qual a finança conseguiu alojar a "exterioridade da produção" no próprio cerne dos grupos industriais. É possível que isso seja um dos traços mais originais da contra-revolução social contemporânea. A partir dos anos 80, os proprietários-acionistas despenderam energia e meios jurídicos, ou quase jurídicos, consideráveis para subordinar os administradores-industriais e os trans- formar em gente que interiorizasse as prioridades e os códigos de conduta nas- cidos do poder do mercado bursátil. A transformação disso em mercado de empresas como tal e a possibilidade dada aos "acionistas minoritários" de se desfazer das ações cujo desempenho não os satisfizessem foram as alavancas. Como delegados dos proprietários-acionistas e a fim de responder a suas deman- das de rendimentos, os administradores dos fundos de pensão e de aplicação financeira devem obter, das empresas das quais são os acionistas "minoritários", níveis de rendimento estáveis muito elevados (os 15% de rendimento sobre fundos próprios, que tem como um de seus componentes o valor nominal das ações em Bolsa). Os novos administradores devem se submeter à retórica, se não à realidade dessa exigência. Dominando os segredos dos mercados finan- ceiros e da indústria de serviços financeiros, foi necessária apenas uma curta década para que os novos administradores se adaptassem ao governo de empre- sa, embora possam manipular os procedimentos. O "poder administrativo" é mais forte do que nunca no seio das empresas, mas fixa para si objetivos muito diferentes dos do período anterior. O administrador-financeiro molda-se no molde da finança e explora a liberdade permitida pela "virtualidade" dela. Ele contornou rapidamente o controle do qual era, a princípio, objeto. Mas suas prioridades são muito diferentes das do administrador-industrial que ele subs- tituiu. Os grupos são dirigidos por pessoas para as quais a tendência da Bolsa é mais importante do que qualquer outra coisa. O controle da corporate governance foi em geral frustrado, mas os valores da finança triunfaram46 • 15 Encontraremos urna discussão das relações entre a centralização e a concentração, assim como um balanço da situação em 1996-97, cm F. Chesnais (La mondialisation du capital, cit.). Seria preciso atualizar completamente esse balanço. 16 F. Lordon (Fonds de pension, cit., p. 45-6) considera que "a encenação da submissão é a modalidade dominante da comunicação financeira [do industrial)" mas que "a restrição da finança patrimonial emprega bem suas estratégias". Esta foi interiorizada tão fortemente que eu não estou seguro de que ainda possamos dizer (p. 34) que o capital esteja "fragmentado entre conatus empresarial e conatus patrimonial". [Hobbes denomina conatus o instinto de conservação ou de afirmação e de crescimento de si próprio. (N. T.)J 0 CAPrlAL POlffAIJOR DE JUROS 55 Os assalariados foram as verdadeiras vítimas da chegada dos proprietários- acionistas. É contra eles que se exerce o novo poder administrativo. Foram eles que sofreram e vão continuar a sofrer, desconsiderando acontecimentos políticos e sociais maiores, os efeitos das normas de rentabilidade impostadas pelos finan- cistas. Nos anos 90, a base material da taxa de rendimento de 15% sobre os fundos próprios foi uma taxa de crescimento dos lucros de 8% a 9%17. O rigor salarial e a flexibilização do emprego18 , assim corno o recurso sistemático ao tra- balho barato e pouco protegido, por meio da deslocalização e da subcontração internacional, permitiram esse movimento. O exemplo de Keynes sobre como seria a gestão de urna exploração agrícola de acordo com os critérios do mercado bursátil já foi citado. Ele pode ser ampliado. A inovação e os longos processos de aprendizagem e de acumulação tecnológicas exi- gem, em muitas indústrias, uma gestão das firmas com longos tempos de maturação. Estes são contraditórios com o tempo do investidor financeiro, cuja exterioridade à produção e cujas prioridades fazem a inovação e, portanto, a fonte da produtivida- de, correr sério perigo. Duas séries de fatores, uma comum a todos os grupos, qualquer que seja sua nacionalidade, e outra própria aos Estados Unidos, vêm resistindo aos efeitos no momento. A primeira se refere às oportunidades muito importantes oferecidas aos grupos para a dominação dos assalariados pela liberalização do comércio e dos investimentos diretos. Isso possibilitou que os grupos organizas- sem a deslocalização da produção e a criação de vastos sistemas de subcontratação internacionais (global production networks), que permitem explorar o trabalho de uma mão-de-obra qualificada (às vezes muito qualificada) nos países de salários baixos ou muito baixos para a produção de bens e serviços que serão vendidos nos países avançados49 • A exploração das diferenças de valor e de preços entre países não ocorre nas matérias-primas, mas no preço de compra da força de trabalho e nas taxas de rendimentos permitidas pela ausência de regulamentação do trabalho, do direito de se sindicalizar e de proteção social. As filiais no exterior e as redes de subcontratação sustentam os lucros e os valores acionários50 • Elas também criam, 47 Co1nissariat Général du Plan, Rentabilité et risque dans le nouveau réginze de croissance (Ilclató- rio do grupo presidido por Dorninique Plihon, Paris, La Docurnentation Française, 2002). 48 Para o cxen1plo norte-americano, ver Cappelli et ai., Change at work: how Anzerican industry are coping with corporate restructuring and what workers must to do take charge oh their own careers (Oxford, Oxford University Press, 1997). 49 C. Pottier, Les multinationales et la mise en concurrence des salariés (Paris, I:Harrnattan, 2002), e UNCTAD, World lnvestment Report 2000, Crossborder mergers and acquisitions and development (Genebra, 2000). 50 Em seu capítulo, Gérard Durnénil e Dorninique Lévy apresentam as estimativas calculadas para os Estados Unidos. 56 A FINANÇA MUNDIALIZADA nos países de origem dos grupos, as condições de forte pressão para tentarem impor aos assalariados as "reformas" que organizam o retrocesso social5 1 • Os fatores próprios aos Estados Unidos são expressões da hegemonia norte- americana e dos privilégios que se arrogam como potência dominante. Eles incluem 0 afluxo maciço e contínuo de estudantes, mas também de pesquisa- dores vindos do estrangeiro. Os países periféricos, mas também países perten- centes à Tríade, têm sofrido uma fuga de cérebros em benefício dos Estados Unidos, paralela e sem dúvida de uma gravidade ainda superior à fuga de capi- taiss2. Se a P&D do setor privado foi bem a partir de 1995, é, por um lado, um efeito mecânico da retomada cíclica5' e, por outro lado, conseqüência da trans- ferência progressiva pelos grandes grupos europeus de uma parte de sua capaci- dade e de suas despesas em P&D para os Estados Unidos 54 • Mas é necessário também destacar 0 papel essencial das despesas públicas, as financiadas pelos ministérios de Defesa e de Energia, mas também as da Saúde e dos National Health Institutes, nos quais a pesquisa médica se apóia. O financiamento público é uma das principais fontes das pesquisas que promovem os start-up:· E sol~re o dinheiro dos contribuintes e sobre o empréstimo público que o capital de nsco, tão vangloriado, se apóia. Um crescimento mundial muito lento,concentrado em um número muito restrito de lugares O balanço da liberalização, da desregulamentação (não somente dos mo~imen tos de capitais, é claro, mas também do comércio e dos investimentos di~etos) e da privatização pode ser abordado de duas maneiras. Primeiro, a parm das promessas feitas pelos apologistas do neoliberalismo em matéria de crescimento, de emprego e de bem-estar. Nesse caso, medido pelas performances macroeco- nômicas e pelos indicadores de desenvolvimentos mundiais, o balanço da liberalização é desfavorável se não desastroso. Mas podemos também sustentar que 0 objetivo do neoliberalismo, cuja expressão foi a "revolução con~ervador:" de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, era recolocar o poder e a nqueza tao si M. Husson, "Années 1970, la crise ct ses leçons" (Séminaire Marxiste, 2001, p. 31-52). 57 13. Kogut, "The transatlantic exchange of ideas and practices: national institutions and diffusion" (Paris, Les Notes de l'!FRI, nº 26). 53 D. Guellec e E. Ionnadis, "Causes of fluctuations in R&D expendirures: a quantitativc analysis" (Paris, OECD Economic Review, 1997). 54 A parte dos grupos estrangeiros no financiamento próprio da P&D do. setor privado passou de 9% em 1987 para 15% em 1997 (ver Dalton et ai., ,Globalzszng zndustrzal research and development, Washington D.C., US Department of Commerce, 1999). Ü CAPITAL PORTADOR DE JUROS 57 plenamente quanto possível nas mãos da fração superior das classes capitalistas e das instituições onde se concentra sua capacidade de ação55• Entendido dessa maneira, o neoliberalismo, é forçoso constatar, atingiu plenamente seus objeti- vos, pois ocorreu um grande salto na concentração da riqueza. A questão, en- tão, é saber se esse sucesso não foi obtido em condições que, no longo prazo, poderiam tornar pouco viável a dominação reencontrada das classes superiores e dos países que lhes servem de baluarte porque fundada em bases econômicas estreitas e instáveis. Se esse é o caso, então estaríamos diante de uma situação propícia à acentuação do militarismo, assim como ao reforço dos métodos mi- litares e de segurança para o controle político e social, tanto no plano interna- cional quanto no doméstico56 . As políticas neoliberais não inverteram o sentido da taxa de crescimento mundial. Ao contrário, elas foram contemporâneas do prosseguimento de sua redução. Esta caminhou junto com o aumento das diferenças nas taxas de crescimento. A economia capitalista sempre experimentou um desenvolvi- mento desigual, mas o crescimento do período 195 5-1975 foi marcado por uma tendência à convergência no plano internacional. Os anos 90 caracteri- zaram-se pelo retorno a uma configuração de desenvolvimento desigual, com o crescimento concentrando-se em duas zonas apenas. Utilizando-se o indi- cador de crescimento anual do produto mundial por habitante - que é um indicador sério do estado da produção e da riqueza, apesar de mascarar os efeitos da distribuição de renda, muito desigual -, constata-se o seguinte: enquanto a taxa se aproximava de 4% entre 1960 e 1973, caindo depois para 2,4% entre 1973 e 1980, não foi mais de 1,2% entre 1980 e 1993, não aumentando depois disso. Em face do crescimento demográfico, a taxa anual média de crescimento do produto mundial não superou 2% ao longo da dé- cada de 1990. A longa série estatística publicada pela OMC57 mostra a queda regular dessa taxa. Superior a 7% no período 1963-73, caiu para 3% entre 1973 e 1990 e para um pouco mais de 2% entre 1990 e 1999. Um outro indicador que os economistas consideram crucial é a taxa de crescimento da produção industrial. Nos países da OCDE, isto é, nos mais ricos, observou- se a queda contínua dessa taxa. Ela passou de cerca de 6% no início dos anos 60 para 2% ao longo dos anos 90. Boa parte da explicação desses resultados encontra-se do lado da reparti- ção, em suas duas determinações - divisão entre salários e lucros e, no interior 55 Ver o capítulo de Gérard Duménil e Dominique Lévy. 56 Ver o capítulo de Luc Mampey e Claude Serfati. 57 OMC, Statistiques du commerce international 2003: tendances à long terme (Genebra, 2003). 58 A flNANÇA MUNDIALIZADA dos lucros, entre a parte não distribuída e reinvestida e a parte distribuída em juros, dividendos e "restituição do valor" para os acionistas, notadamente pela recompra de ações. O investimento é a variável determinante do cresci- mento no longo prazo. No setor privado, ele é financiado pelos lucros reti- dos. A taxa de lucro necessária para a realização das normas do "valor por acionista" conduz à rejeição de todos os projetos de investimento que não garantirão a taxa exigida. No momento em que a participação dos salários nos resultados da produção se reduz e a parte dos lucros reservada aos inves- timentos também diminui, a taxa de investimento é duplamente atingida pela desaceleração do consumo dos assalariados e pela reduzida propensão a investir. A taxa de crescimento é lenta e o desemprego aumenta. Como mos- tra a Figura 2, foi precisamente uma redução conjugada dos salários e da parte dos lucros reservada ao investimento que marcou a macroeconomia da Europa nos anos 80 e 90. Esse movimento não é específico da Europa. Como Duménil e Lévy mos- tram (ver em particular a Figura 2, no capítulo desses autores), houve também uma queda no lucro retido nas empresas dos Estados Unidos, assim como uma queda nos investimentos, interrompida somente quando ocorreu o boom na segunda metade dos anos 90. É nesse ponto que é necessário tratar da forte desigualdade das taxas de crescimento entre os países e, em particular, da "exceção norte-americana". Na década de 1990, a economia mundial cresceu somente em dois lugares. Um estava situado no sudeste da Ásia e durou até o começo da crise, em 1997; o outro, nos Estados Unidos, até a quebra da Nasdaq na primavera de 2001. O crescimento dos países do sudeste da Ásia sustentou-se sobretudo na produção destinada a ser escoada para os mercados externos e foi estimulado pelo afluxo de capitais estrangeiros em busca de investimentos e de aplicações rentáveis. Como ocorreu no contexto de redu- zido crescimento do resto do mundo, com exceção dos Estados Unidos, foi marcado por uma concorrência muito forte. Inicialmente, as exportações ba- seadas na competitividade-preço alegraram os mercados de outros países produtores de bens similares, transformando-se num obstáculo a seu cresci- mento antes de serem um fator de propagação da crise entre países vizinhos na Ásia e, em seguida, de transmissão de pressões deflacionárias para o con- junto da economia mundial. Ü CAl'rJAL POIUAllOR DE JUROS Figura 2 - Lucro, investimento e desemprego na Europa 32,5 .. 30,0 , ...................................................................................... . ........................... = .................. ,~ 20,0 1.... ............... , ............................................................... :::-~=~: .............. ~, ....................... ,,.""" ........... J 17.S ... 15,0 12,5 + ....................................... . 10,0 7,5 5,0 .................. .. 2.5;·~~;~~~~~,~~~-~~l"''~~. 7e~~"~················· 0,0 ~~~~....,...,...,.. ... :;.~,.....,....r-'1'-r-,..,~r-r--r~-~,.....'F"'f~""r.....,.._.r~--1 ~M~~mnu~nw~M~nw~M%n~m Fonte: Michel Husson, Les casseurs de l'État social (Paris, La Découverte, 2003). 59 . ?s Estados Unidos são o único país onde o regime de acumulação finan- cemzado comandado pelo capital portador de J'uros foi também um " · d · ,, regime e. c~e~c1ment~ . 5~s condiç.ões particulares foram destacadas na coleção Se-mmano Marxista . O crescimento que os Estados Unidos tiveram entre 1996 e 2001 baseou-se em parte na retomada dos investimentos. No início isso deu um substr~to ta~gível à "nova economia''. Mas a acumulação de capital teve como parti~ulandade a n~o-recuperação da taxa de lucro retido das empresas n~rte-amencanas. A realização de investimentos por muito tempoadiados foi sustentada pelos efeitos dos importantes estímulos resultantes da queda d~~ preços dos bens de .capital que incorporaram as tecnologias informáticas, assim como da melho'n~ da produtividade, principalmente do capital. Mas, com~ mostram Dumeml e Lévy em seu artigo, foi acompanhada da conti- nuaçao ~a qued~ na cur~a de lucro retido. A renovação dos equipamentos do setor pnvado foi financiada em boa parte pelos capitais estrangeiros, princi- 58 ~é~inaire Marxiste, Cris~s struc~u~e~les et financieres du capitalisme au XX' sit:cle (Paris, Y e~se'. 2301). [A. coleçao Semmar10 Marxista, em três volumes, reúne os debates e as contnbu1çoes das discussões sobre remas contemporâneos, em encontros, a partir do ou- tono de 1998, no Museu da Ciência do Homem, em Paris. (N. T.)] 60 A FINANÇA ~füNDIALIZAD;\ paimente sob a forma de investimentos diretos feitos pelas empresas euro- péias e japonesas'9 . A hipótese de uma "insaciabilidade" da finança A macroeconomia mundial carrega assim a marca de contradições e impasses origi- nais, próprios de uma configuração do capitalismo colocada sob a dominação econô- mica e social do capital portador de juros. As contradições do capitalismo sempre estiveram profundamente enraizadas nas relações sociais fundadas sobre a propriedade dos meios de produção e na obrigação de a maioria da população vender (ou procurar vender) sua força de trabalho no mercado de trabalho (de se colocar como "demandante de emprego", expressão que destaca bem a relação de dependência). É a situação atual, tal como no passado. Isso posto, as contradições capitalistas "clássicas" resultaram, durante muito tempo, do dinamismo da acumulação, manifestando-se sob a forma de quedas nas taxas de lucro em fases de rápida acumulação (que se podem atribuir tanto ao superinvestimento quanto a uma elevação passageira dos salários) ou ainda em crises de superprodução. Essas patologias não desapareceram, mas foram contidas e sufocadas sob o efeito combinado de estratégias industriais oligopolistas preocupadas em não criar capacidade produtiva muito elevada60 e de políticas estatais anticíclicas, cujo pivô foi a política de criação maciça de crédito pelo Fed. Elas se combinam com as contradições e os processos antagônicos suplementares cuja origem é, de um lado, uma acumulação branda e, de outro, o que, a título de hipótese, chamarei de uma "insaciabilidade" da finança quanto ao nível de suas punções. A possibilidade de que estejamos na presença de qualquer coisa do gênero foi evocada por outros pesquisado- res. Blanqué 61 lembra aos investidores que uma "economia só pode dar aos mercados [financeiros] o que ela tem". Por seu lado, Lordon62 viu, em algumas técnicas empre- 59 Ver os dados nos capítulos de Gérard Duménil e Dominique Lévy e de Esthcr Jeffers. r.o Uma exceção importante foi produzida pelos grupos da indústria de telecomunicações e seus fornecedores. Na euforia das privatizações e da bolha da Nasdaq, eles se lançaram, a partir de 1998, em novos investimentos e aquisições que sempre apresentaram uma trajetória superior à da situação real do mercado. O estouro da bolha da Bolsa revelou a amplitude da sobrecapacidade e do endividamento dos grupos. A segunda conduta divergente vem dos grupos industriais que lutam para participar no oligopólio mundial. Para isso, eles são constrangidos a fazer investimentos em uma escala que representa um risco para eles próprios e para o conjunto do oligopólio. As sobrecapacidadcs criadas pelos grupos coreanos nos anos 90 forneceram um exemplo perfeito: foi preciso o ii~pacto da crise das economias vizinhas para que elas fossem reveladas em toda a sua amplitude. 61 P. Blanqué, "Too much of everything: économie globalc ct surcapacités", Flash Eco Credit Agricole, 1 O janeiro 2002, p. 13. 6l F. Lordon, Fonds de pension, piêges à cons (Paris, Raisons d'Agir, 2000), p. 80. Ü C\PlTi\l l'ClRTi\DOR DE JURO,; 61 gadas para sustentar os índices da Bolsa que nutriram a bolha da Nasdaq, uma ex- pressão da "contradição entre valorização financeira exigida e valorização econômica possível, com o supercrescimento financeiro cobrindo a diferença entre rentabilidade demandada pelo capital acionário e capacidade objetiva de lucratividade dos ativos econômicos subjacentes". A propensão do capital portador de juros para demandar da economia "mais do que ela pode dar" é uma conseqüência de sua exterioridade à produção. É uma das forças motrizes da desregulamentação do trabalho, assim como das priva- tizações. Mas ela tende, também, a modelar a sociedade contemporânea no conjunto de suas determinações. No quadro da mundialização capitalista con- temporânea, da qual a finança é uma das forças motrizes mais fortes, a autono- mia que parece caracterizar o movimento de acumulação do capital (ou, se assim se preferir, a predominância que a economia parece ter sobre todas as outras esferas da vida social) se acentua de forma qualitativa. Todos são obrigados a "se adaptar" às exigências da "economià' e a admitir que se reordenem os traços fundamentais da sociedade sem consideração pelas posições sociais "adquiridas" pelo passado e sem respeito pelos habitus provenientes da evolução anterior. Daí decorre esse encaminhamento paralelo de formas de expropriação nos países "emer- gentes", as quais remetem à brutalidade quase sem mediação da acumulação primitiva, e de modalidades muito sofisticadas de modulação das relações sociais (em termos de gestão dos recursos humanos ou de gestão e constituição do ima- ginário coletivo pelo viés televisivo) para reproduzi-las sob uma forma de submis- são à sombra da "ditadurà' dos mercados financeiros. O caráter insaciável do apetite dos acionistas, dos administradores e das socie- dades especializadas da indústria financeira encontra-se, evidentemente, na base dos escândalos financeiros que se sucederam desde o da Enron, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Este país tem, ao menos, uma situação que lhe é própria: construiu seu crescimento em parte sobre a importação de capitais e de produtos a baixos preços. A hipótese que se deve levantar, então, é que as relações (com traços predatórios) que eles têm com o resto do mundo se tornaram talvez uma das competências de sua política diplomática e militar. Nos grandes locais de acumulação financeira onde não foi possível compensar, a exemplo dos Estados Unidos, a queda da taxa de lucro retido pela importação de capital estrangeiro, a extensão das privatizações dos serviços públicos e dos sistemas de previdência representa o pilar das políticas de sustentação e de alimentação dos mercados financeiros. Na União Européia, o restabelecimento da taxa de rentabilidade dos grupos foi obtido pela acentuação contínua das pressões sobre os assalariados por meio da deslocalização das fábricas, acompanhada, salvo algumas exceções, por estratégias de produção e de preço baseadas no aumento das capacidades produtivas e de uma adequação dos volumes de produção às tendências de estagnação ou de 62 A FINANÇA MUNDIALIZADA declínio da demanda. Os grupos europeus procederam também às formas de internacionalização da produção definidas anteriormente. Mas foram as privatizações das empresas de serviço público e a acentuação dos processos de privatização dos sistemas de previdência e de saúde que constituíram a coluna vertebral das políticas governamentais de sustentação dos mercados financeiros. Para o capital portador de juros em busca de fluxos estáveis de rendimentos, não há melhor investimento que as indústrias de serviços públicos privatizadas. Os domicílios que estão habi- tuados ao gás, à eletricidade e ao telefone são "consumidores cativos" e "vacas de leite", fontes de ganhos regulares e absolutamente seguros. As antigas empresas públicas são ativos tanto mais atrativos quanto mais o Estado tenha nelas realizado, com os impostos da coletividade, elevados investimentos que assegurarão rendi- mentos sem a necessidade
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