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A FALÁCIA INTENCIONAL1 W. K. Wimsatt e M. C. Beardsley [641]2 O direito da “intenção” do autor sobre o julgamento do crítico tem sido considerado em uma série de discussões recentes, em especial no debate intitulado The Personal heresy, entre os professores Lewis e TilIyard. É, entretanto, duvidoso que este direito e a maior parte de seus corolários românticos estejam por ora sujeitos a qualquer questionamento mais difundido. Os presentes escritores, em curto artigo intitulado “Intention” para um Dicionário3 de crítica literária, levantaram a questão, mas foram incapazes de desenvolver suas implicações na devida extensão. Argumentamos que o desígnio ou a intenção do autor não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária e nos parece que este princípio penetra em certas desavenças na história das atitudes críticas. É um princípio que, aceito ou rejeitado, aponta para os pares opostos da “imitação” clássica e da expressão romântica. Ele acarreta algumas afirmações específicas sobre a inspiração, a autenticidade, a biografia, a história literária e a erudição, bem como certas tendências da poesia moderna, especialmente sobre seu caráter alusivo. E difícil haver um problema de crítica literária em que a abordagem do crítico não seja qualificada por suas ideias acerca da “intenção”. Como entenderemos o termo, “intenção” corresponde a aquilo que se pretendeu, a empregar uma fórmula que, de modo mais ou menos explícito, tem tido ampla aceitação. “Para julgarmos a realização do poeta, devemos conhecer o que ele tencionava”. A intenção é o desígnio ou o plano na mente do autor. A intenção tem afinidades óbvias com a atitude do autor quanto à sua obra, o modo como sentia, o que o fez escrever. Começamos nossa discussão com uma série de proposições esquematizadas e abstratizadas a um tal grau que nos parecem axiomáticas. 1. Um poema não passa a existir por acaso. As palavras de um poema, como observou o prof. Stoll, não surgem de uma cartola mas de uma cabeça. Insistir, contudo, no intelecto designante como 1 WIMSATT, W. K., BEARDSLEY, M. C. A falácia intencional. In:___. Luiz Costa, org. Teoria da Literatura em suas fontes; v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. pp. 639-56. 2 Os números entre colchetes referem-se aos números das páginas do livro. 3 Dictionary of world literature, Joseph T. Shipley (org.), New York, 1942, pp. 326-9. causa de um poema não significa conceder ao desígnio ou intenção o papel de um padrão pelo qual o crítico pode julgar o valor da realização do poeta. [642] 2. Devemo-nos indagar como o crítico espera alcançar uma resposta à pergunta sobre a intenção. Como deve descobrir o que o poeta procurou fazer? Se o poeta teve êxito em realizá-lo, então o próprio poema mostrará o que ele tentava realizar. E, se o poeta não foi bem-sucedido, então o poema não é uma prova adequada e o crítico deve extrapolar o poema, na busca de evidenciar uma intenção que não se efetivou no poema. “Devemos apenas manter uma cautela”, diz um eminente intencionalista4 no momento em que sua teoria repudia a si próprio; “o objetivo do poeta deve ser julgado no momento do ato criador, ou seja, pela arte do próprio poema”. 3. Julgar um poema é como julgar um pudim ou uma máquina. Exige-se que ele funcione. Só inferimos a intenção do artesão porque seu produto funciona. “Um poema não deve significar, mas ser”. Um poema pode ser apenas através de seu significado – já que seu meio são as palavras – e, contudo, ele é, simplesmente é, no sentido de que não temos desculpa alguma para nos indagarmos que parte é intencional ou pretendida. A poesia é uma operação do estilo pela qual um complexo de significado é apreendido de um só golpe. A poesia triunfa porque tudo ou quase tudo que nela se diz ou se encontra implícito é relevante; o que não importa foi excluído, como os caroços de um pudim ou os enguiços de uma máquina. A este respeito, a poesia difere das mensagens práticas, que são bem-sucedidas se e apenas se inferimos corretamente sua intenção. Por isso elas são mais abstratas que a poesia. 4. O significado de um poema por certo pode ser pessoal, no sentido de que um poema expressa uma personalidade ou estado de alma e não um objeto físico, como uma maçã. Mas, até mesmo um poema lírico curto é dramático, sendo a resposta de um falante (por mais abstrata que se lhe conceba) a uma situação (por mais universal que seja). Devemos atribuir os pensamentos e atitudes do poema de imediato ao falante dramático e, se de algum modo ao autor, apenas por um ato de inferência biográfica. 5. Tem sentido a afirmação de que o autor, por meio da revisão de sua obra, pode melhor captar sua intenção original. Mas é um sentido muito abstrato. Ele pretendia escrever uma obra melhor, ou melhor de certo tipo, e agora o alcançou. Mas ocorre que sua concreta intenção inicial não era sua intenção. “E O homem que procurávamos, é verdade”, diz o rústico delegado de polícia 4 J. E. Spingarn, "The New criticism", in Criticism in America, New York, 1924, pp. 24-5. de Thomas Hardy, “contudo não é o homem que procurávamos. Pois o homem que procurávamos não era o homem que queríamos”. [643] “O crítico”, pergunta o professor Stoll, “não é um juiz que não explora sua própria consciência, mas determina o significado ou intenção do autor, como se o poema fosse um testamento, um contrato ou a constituição? O poema não pertence ao crítico”. O autor diagnosticou com agudeza duas formas de irresponsabilidade, uma das quais é de sua preferência. Nossa opinião é contudo diferente. O poema não pertence nem ao crítico, nem ao autor (desliga-se do autor ao nascer e percorre o mundo subtraindo-se ao poder ou ao controle do criador sobre ele). O poema pertence ao público. Corporifica-se na linguagem, posse peculiar do público, e trata do ser humano, objeto de conhecimento público. O que se diz sobre o poema é sujeito à mesma indagação que qualquer afirmativa em linguística ou na ciência geral da psicologia. Um crítico de nosso artigo no Dictionary, Ananda K. Coomaraswamy, argumentou5 haver dois tipos de questionamento da obra de arte: (1) se o artista realizou suas intenções; (2) se a obra de arte “deveria ter sido de todo empreendida” e, portanto, “se vale a pena preservá-la”. Coomaraswamy sustenta que o questionamento (2) não é “a crítica de uma obra de arte como obra de arte”, mas uma crítica de ordem ética; é o questionamento (1) que constitui a crítica artística. Mas sustentamos que (2) não precisa ser crítica moral: há um outro modo de decidir se as obras de arte merecem ser preservadas e se, em um certo sentido, “devem” ser empreendidas, e é esta forma da crítica objetiva das obras de arte como tais a que nos permite distinguir entre um assassínio engenhoso e um engenhoso poema. Um assassínio engenhoso é um exemplo que Coomaraswamy emprega e, em seu sistema, a diferença entre o assassínio e o poema é simplesmente “moral”, não “artística”, pois cada um, excetuado de acordo com o plano, é “artisticamente” bem-sucedido. Sustentamos que (2) é um questionamento de mais valia que (1) e, uma vez que (2) e não (1) é capaz de distinguir a poesia do assassínio, o nome “crítica artística” é adequadamente concedido a (2). II Não é tanto uma afirmativa histórica quanto uma definição dizer que a falácia intencional é romântica. Quando um retórico do século I escreve:“O sublime é o eco de uma grande alma” ou 5 Ananda K. Coomaraswamy, "lntention", in American bookman, 1 (1944), pp. 41-48. quando nos diz que “Homero entra nas ações sublimes de seus heróis” e “compartilha a plena inspiração do combate”, [644] não nos surpreenderemos em encontrar este retórico considerado um precursor distante do romantismo e aclamado nos termos mais calorosos por Saintsbury. Pode-se discutir se Longino deveria ser chamado romântico, mas dificilmente se poderia duvidar que em certo sentido o é. As três questões levantadas por Goethe para a “crítica construtiva” são: “O que o autor se propôs fazer? Seu plano foi razoável e sensato e até que ponto conseguiu realizá-lo?” Se abandonamos a pergunta intermediária, tem-se com efeito o sistema de Croce – o auge e coroamento da expressão filosófica do romantismo. O belo é a intuição-expressão bem-sucedida e o feio é o mal-sucedido; a intuição ou parte privada da arte é o fato estético, enquanto o meio ou parte pública não é objeto da estética. A Madonna de Cimabue ainda se encontra na Igreja de Santa Maria Novella; mas continuará falando ao visitante de hoje como aos florentinos do século XIII? “A interpretação histórica luta (...) por reintegrar em nós as condições psicológicas que mudaram no decurso da história. Ela (...) nos possibilita ver urna obra de arte (um objeto físico) como seu autor a viu no momento de sua produção.”6 O primeiro grifo é de Croce, o segundo é nosso. O sistema de Croce leva a uma ênfase ambígua na história. Tomando tais passagens como ponto de partida, um crítico pode escrever uma bela análise do significado ou “espírito” de uma peça de Shakespeare ou Corneille – processo que envolve um rigoroso exame histórico mas permanece crítica estética – ou pode, com a mesma plausibilidade, escrever um ensaio sociológico, biográfico ou doutro tipo de história não-estética. III “Fui aos poetas; trágicos, ditirâmbicos e de todos os tipos. (...) Tomei algumas das passagens mais elaboradas de suas obras e perguntei-me sobre seu significado. (...) Vocês me acreditariam? (...) É difícil que um dos presentes não falasse melhor sobre a poesia deles do que eles próprios o fizeram. 6 É verdade que o próprio Croce, em seu Ariosto, Shakespeare and Comeille, (London, 1920, cap.VII), “The Practical personality and the poetical personality"” e em seu Defence of poetry (Oxford, 1933, p. 24) e noutros lugares, cedo e tarde atacou com eficácia o geneticismo emocional. Mas a principal inclinação da Aesthetic é, sem dúvida, em favor da intencionalidade cognitiva. Então percebi que não é por sua sabedoria que os poetas compõem suas obras, mas por uma espécie de gênio e inspiração”. Esta reiterada desconfiança quanto aos poetas, que recebemos de Sócrates, pode ter sido parte de uma visão rigorosamente ascética da qual é muito difícil [645] que queiramos participar, muito embora o Sócrates de Platão tenha captado uma verdade sobre a mente poética que o mundo já não percebe comumente, depois de tanta crítica e da espécie mais inspirada e mais passionalmente lembrada, procedente dos próprios poetas. Por certo os poetas tinham algo a dizer que o crítico e o professor não podiam; sua mensagem era mais empolgante: que a poesia deveria vir tão naturalmente quanto as folhas a uma árvore, que a poesia é a lava da imaginação ou que é emoção relembrada na tranquilidade. Mas é necessário que percebamos o caráter e a autoridade de um tal testemunho. Há apenas uma fina sombra de diferença entre estas expressões e uma espécie de conselho zeloso que os autores oferecem com frequência. É o que se verifica com Edward Young, Carlyle, Walter Pater: “Conheço duas regras de ouro da ética, não menos preciosas na Composition do que na vida. 1. Conhece-te a ti mesmo; 2. Reverencia a ti próprio”. “Este é o grande segredo para encontrar leitores e retê-los: faça com que aquele que emocionaria e convenceria a outros seja o primeiro a ser emocionado e convencido. A regra de Horácio, Si vis me flere, é aplicável em um sentido mais amplo que o literal. Para cada poeta, para cada escritor, poderíamos dizer: se queres ser acreditado, sejas verdadeiro”, “Verdade! nenhum mérito pode haver nem arte alguma sem ela. Além disso, toda beleza é, a longo prazo, apenas o refinamento da verdade ou, o que chamamos de expressão, a mais aguda adequação da fala à visão interior”. O pequeno manual de Housman sobre a mente poética fornece esta ilustração: “Depois de beber uma caneca de cerveja no almoço – cerveja é um sedativo para o cérebro e minhas tardes são a parte menos intelectual de minha vida – saía para um passeio de duas ou três horas. Enquanto caminhava, sem pensar em nada em particular, apenas olhando para as coisas a meu redor e acompanhando a mudança das estações, fluíam em minha mente, com repentina e indescritível emoção, às vezes uma ou duas linhas de verso, às vezes toda uma estrofe de uma só vez”. Este é o término lógico da série já citada. Deparamo-nos aqui com uma confissão de como os poemas eram escritos, que define exatamente a poesia como uma “emoção relembrada na tranquilidade” – podendo o jovem poeta de igual decorá-la como uma regra prática. Beber uma caneca de cerveja, relaxar, ir andando, pensar em nada em particular, olhar as coisas, entregar-se a si mesmo, procurar a verdade em sua própria alma, ouvir o som de sua voz interior, descobrir e expressar a vraie vérité. [646] Provavelmente é verdade que tudo isso representa um excelente conselho para os poetas. A imaginação jovem, inflamada por Wordsworth e CarIyle, provavelmente está mais próxima do ato de produzir um poema do que a mente do estudante que se fez sóbria pela leitura de Aristóteles ou Richards. A arte de inspirar poetas, pelo menos de incitar algo parecido à poesia nos jovens, sem dúvida avançou mais em nossos dias do que nunca. Livros sobre escrita criadora como os produzidos pela Lincoln School, são uma prova interessante do que uma criança pode fazer.7 Tudo isso, entretanto, parece pertencer a uma arte separada da crítica – a uma disciplina psicológica, a um sistema de auto-aperfeiçoamento, a uma yoga, que talvez faça bem ao poeta jovem observar, mas que é um tanto diferente da capacidade pública de avaliar poemas. Coleridge e Arnold foram melhores críticos que a maioria dos poetas e, se a tendência crítica ressecou a poesia em Arnold e talvez em Coleridge, isso não é incongruente com nosso argumento de que o julgamento dos poemas é distinto da arte de escrevê-los. Coleridge nos deu a clássica história “anódina” e conta o que pode acerca da gênese de um poema, coisa a que chama de “curiosidade psicológica”. Mas suas definições da poesia e da qualidade poética da “imaginação” devem ser encontradas noutra parte e em termos bem diversos. Seria conveniente que as senhas da escola intencional, “sinceridade”, “fidelidade”, “espontaneidade”, “autenticidade”, “genuinidade”, “originalidade”, pudessem ser equiparadas a termos como “integridade”, “relevância”, “unidade”, “função”, “maturidade”, “sutileza”, “adequação” e outros mais precisos, se é que “expressão” sempre tem o significado de realização estética. Mas isso não é verdade. A arte “estética” – diz o professor Curt Ducasse, um engenhoso teórico da expressão – é a objetivação consciente dos sentimentos,tendo o momento crítico como uma de suas partes intrínsecas. O artista corrige a objetivação quando esta não é adequada. Mas isto pode significar que a tentativa anterior não fora bem-sucedida em objetivar o eu ou “também significar que era uma objetivação bem-sucedida de um eu que, ao nos confrontarmos claramente com ele, repudiávamos e 7 Ver Hughes Mearns, Creative youth, (Garden City 1925, esp. 10, pp. 27-29). A técnica de poemas por inspiração foi, aparentemente, há pouco superada pelo estudo da inspiração em poetas e outros artistas bem-sucedidos. Ver, por exemplo, Rosamond E. M. Hardlng, An Anatomy of inspiration (Cambridge, 1940); Julius Portnoy, A psychology of art creation (Philadelphia, 1942); Rudolf Arnheim e outros, Poets at work, (New York, 1974); Pryllis Bartlett, Poems in process (New York, 1951); Brewster Chiselin (organ.), The Creative process: a symposium, (Berkeley and Los Angeles, 1952). renegávamos em favor de outro”8. Qual o padrão pelo qual renegamos ou aceitamos o eu? O professor Ducasse não o diz. Qualquer que seja este padrão, entretanto, é ele um elemento na definição da arte que não se reduzirá a termos de objetivação. A avaliação da obra de arte, permanece pública; a obra é medida em relação a algo externo ao autor. IV [647] Há crítica de poesia e psicologia do autor. Esta, aplicada ao presente ou ao futuro, toma a forma de uma promoção inspiracional; mas a psicologia do autor também pode ser histórica e então temos a biografia literária, um estudo legítimo e atraente em si mesmo, constituindo uma abordagem, como diria o professor Tylliard, da personalidade e que subordina o poema a uma abordagem apenas paralela. Não precisamos, por certo, ter uma intenção depreciativa ao afirmarmos serem os estudos biográficos distintos dos poéticos, dentro da especialização literária. Há, entretanto, o risco de se confundirem os estudos biográficos e os poéticos, havendo ainda o perigo de tomar-se o biográfico pelo poético. Considerando o significado de um poema, há uma distinção entre a prova interna e a externa. E afirmar que o que é (1) intemo é também público constitui um paradoxo apenas verbal e de superfície, porquanto a prova interna é descoberta através da semântica e da sintaxe de um poema, através de nosso conhecimento habitual da linguagem, através das gramáticas, dos dicionários, de toda a literatura que é a fonte dos dicionários, através, em geral, de tudo que forma a linguagem e a cultura; enquanto o que é (2) externo é particular ou idiossincrático, não uma parte da obra enquanto fato linguístico, consiste em revelações (por exemplo, em diários, cartas ou conversa) sobre como ou por que o poeta escreveu o poema, a que dama, enquanto sentado em que gramado ou na ocasião da morte de qual amigo ou irmão. Há (3) uma espécie intermédia de prova sobre o caráter do autor ou sobre os significados privados ou semiprivados, que se ligam a palavras ou temas de um autor do círculo a que pertencia. O significado de uma palavra é a história desta palavra e a biografia de um autor, a maneira como usava a palavra. As associações que a palavra assumia para ele, participam da história e do significado da palavra9. Mas os três tipos de prova, especialmente (2) e (3), se ocultam 8 Curt Ducasse, The Philosophy of art (New York, 1929, p. 116). 9 E a história da palavra, depois de um poema ser escrito, pode contribuir com significados que, embora importantes à matriz original, não deveriam ser eliminados por um escrúpulo quanto à intenção. um no outro tão sutilmente que nem sempre é fácil traçar uma linha entre os exemplos. Daí surge a dificuldade da crítica. O emprego da prova biográfica não precisa envolver a intencionalidade, porque, enquanto pode evidenciar aquilo que o autor pretendia, também pode evidenciar o significado de suas palavras e o caráter dramático de sua elocução. Por outro lado, pode não ser tudo isso. E um crítico que se preocupa com a prova do tipo (1) e, moderadamente, com a do tipo (3) fará a longo prazo uma espécie diferente de comentário do que o crítico que se preocupa com (2) e com (3), quando esta se oculta sob (2). [648] Toda a brilhante exibição de Road to Xanadu do professor R. Lowes, por exemplo, fica na fronteira entre os tipos (2) e (3) ou atravessa valentemente a região romântica de (2). “Kubla Khan”, diz o professor Lowes, “é entrelaçar-se de uma visão, mas cada imagem que surgia em sua tessitura já passara antes por aquele caminho. E pareceria que não há nada de fortuito ou causal neste retomo”. Isso não é bastante claro, nem mesmo quando o professor Lowes explica que havia aglomerados de associações, como átomos enlaçados, que foram levados a uma complexa relação com outros aglomerados no poço profundo da memória de Coleridge e que se amalgamaram então e irromperam como poemas. Se não existia nada “casual ou fortuito” na maneira como as imagens retomaram à superfície, isso pode significar (1) que Coleridge não podia criar aquilo que não possuía, que era limitado em sua criação por aquilo que lera ou de algum modo experimentara ou (2) que, tendo recebido certos feixes de associações, se inclinava a fazê-las retornar exatamente pelo mesmo caminho que empreendera e que o valor do poema pode ser descrito em termos das experiências em que ele teria de se haurir. Este último par de proposições (uma espécie de associacionismo hartleyano que o próprio Coleridge repudiou na Biographia) pode ser refutado. Haveria, por certo, outras combinações, outros poemas, piores ou melhores, que poderiam ter sido escritos por homens que leram Bartram, Purchas, Burce e Milton. E isso será verdadeiro, não importa quantas vezes possamos repetir o brilhante complexo das leituras de Coleridge. Em certos torneios, como o da sentença que citamos, e nos títulos de capítulos como “The Shaping spirit”, “The Magical synthesís”, “Imagination creatrix”, pode ocorrer que o professor Lowes pretenda dizer mais sobre os presentes poemas do que o faça. Há uma certa variedade enganosa nestes caprichosos títulos de capítulos; espera-se passar a um novo estágio na discussão e nos deparamos com mais fontes, com mais dados sobre “a contínua natureza da associação”.10 10 Os caps. VII, “The Pattern” e XVI, “The Known and familiar landscape”, serão considerados de máxima ajuda para o estudioso do poema. Wohin der Weg? (Para onde leva o caminho?) – cita o professor Lowes, como epígrafe de seu livro. Kein Weg! Ins Unbetretene (Não há caminho! Para o intrilhável). Precisamente, porque o caminho é unbetreten (intrilhável) deveríamos dizer: leva para longe do poema. O Travels de Bartram contém muito da história de certas palavras e de certos conceitos românticos rebuscados que aparecem no “Kubla Khan”. E muito desta história passara e estava passando para o interior de nossa linguagem. Talvez uma pessoa que tenha lido Bartram aprecie o poema mais do que quem não o tenha feito. Ou, ao olhar o vocabulário de “Kubla Khan”, no Oxford english dictionary, ou ao ler algo [649] doutros livros ali citados, possa melhor conhecer o poema. Mas teria pouca relação com o poema saber que Coleridge lera Bartram. Há um amplo corpus de vida, de experiência mental e sensorial subjacentes a cada poema e que, em certo sentido, o provoca. Mas ele nunca pode e não precisa ser conhecido na composiçãoverbal e portanto intelectual que constitui o poema. Para todos os objetos de nossa múltipla experiência, para cada unidade, há uma ação da mente que arranca as raízes e dissolve o contexto. Do contrário, nunca teríamos objetos ou ideias ou qualquer outra coisa sobre o que falar. É provável que não haja nada no vasto livro do professor Lowes que pudesse desacreditar a apreciação de qualquer pessoa quer de The Ancient mariner, quer do “Kubla Khan”. Apresentaremos, em seguida, um caso em que a preocupação com a prova de tipo (3) foi ao ponto de distorcer a visão do crítico sobre certo poema (embora não seja um caso tão óbvio quanto os que proliferam em nossas revistas críticas). Em um conhecido poema de John Donne, aparece este quarteto: Moving of th’earth harmes and feares, Men reckon what it did and meant, But trepidation of the spheares, Though greater farre, is innocent11 Um crítico, que oferece recentemente um tratamento elaborado à erudição de Donne, escreveu o seguinte sobre os citados versos: “Ele toca a pulsação emocional da situação por uma habilidosa alusão à astronomia nova e antiga. (...) Da nova astronomia. o ‘movimento da terra‘ é o princípio mais radical; da antiga, a ‘trepidação das esferas’ é a moção de maior complexidade. (...) O poeta deve exortar seu amor pela calma e imobilidade no momento de sua partida; e com este 11 O mover-se da terra causa males e terrores / Os homens estimam o que fez e indicou, / Mas a trepidação das esferas. / Embora em grau muito maior, é inocente. (N. da T.) propósito a figura baseada no último movimento (trepidação), há muito incorporada na astronomia tradicional, adequadamente sugere a tensão do momento, sem despertar os ‘males e terrores’ implícitos na figura da terra movente”.12 O argumento é plausível e se apoia numa tese bem sedimentada de que Donne era profundamente interessado na nova astronomia e em suas repercussões no campo teológico. Em várias obras, Donne revela sua familiaridade [650] com De stella nova de Kepler, com Siderius nuncius de Galileu, com De magnete de William Gilbert e com o comentário de Clavius sobre De Sphaera de Sacrobosco. Refere-se à nova ciência no seu Sermão em “Paul’s cross” e em uma carta dirigida a Sir Henry Goodyer. Em The First anniversary, declara que “a nova filosofia põe tudo em dúvida”. Em “Elegy on prince Henry”, afirma que o “mínimo movimento do centro” faz “o mundo tremer”. É difícil contestar a um argumento como este e impossível respondê-lo com uma prova de natureza semelhante. Não há motivo por que Donne não houvesse escrito uma estrofe onde os dois tipos de movimento celestial representassem duas espécies de emoção na despedida. E, se nos enchemos de ideias astronômicas e vemos Donne apenas em relação ao conhecimento da nova ciência, podemos acreditar que ele o possuía. Mas o próprio texto permanece ali para ser tratado, o veículo analisável de uma complicada metáfora. E pode-se notar: (1) que o movimento da terra, de acordo com a teoria copernicana, é um movimento celestial, suave e regular e, embora pudesse causar temores religiosos ou filosóficos, não podia se associar à crueza e à terrenalidade do tipo de emoção que o falante deseja desencorajar no poema; (2) que há um outro movimento da terra, um terremoto, que tem exatamente estas qualidades e deve ser associado às torrentes de lágrimas e tempestades de suspiros da segunda estrofe do poema; (3) que a “trepidação” é um contrário adequado para terremoto, porque ambas são um movimento de tremor ou de vibração; e a “trepidação das esferas” é de “grau maior” que um terremoto, mas não muito maior (se estes dois movimentos puderem ser comparados quanto à grandeza) que o movimento anual da Terra; (4) que a avaliação do que “fez e indicou” mostra que o acontecimento passara, como um terremoto, não como o incessante movimento celestial da Terra. Talvez o conhecimento do interesse de Donne pela nova ciência possa acrescentar mais uma nuança de significado, um sobretom à estrofe em questão, conquanto esta afirmação contradiga as palavras. Tomar a antítese geocêntrica e heliocêntrica o 12 Charles M. Coffin, John Donne and the new philosophy (New York, 1927, pp. 97-98). âmago da metáfora é desconsiderar a língua inglesa, é preferir a prova particular à pública, a externa à interna. V Se a distinção entre os tipos de prova tem implicações para a crítica histórica, não as tem em menor grau para o poeta contemporâneo e seu crítico. [651] Ou, uma vez que cada regra para o poeta não passa do reverso de um julgamento por um crítico, e uma vez que o passado é o reino do estudioso e do crítico, enquanto o futuro e o presente é o do poeta e dos críticos que lideram o gosto, poderíamos então dizer que os problemas que surgem na erudição literária, a partir da falácia intencional, se assemelham a outros que surgem no campo da experimentação progressiva. A questão da alusividade, por exemplo, como perspicazmente posta pela poesia de Eliot, é do tipo que leva a um julgamento falso a envolver uma falácia intencional. A frequência e a profundidade das alusões literárias na poesia de Eliot e de outros tem conduzido muitos a perseguirem significados absolutos no Golden bough de Frazer e no drama elizabethano. Isso chegou a tal ponto que já se tomou uma espécie de lugar-comum supor que não sabemos o que um poeta quer dizer a menos que o reconstituamos em sua leitura – suposição por certo impregnada de implicações intencionais. A posição assumida por F. O. Matthiessen é elogiável e elimina parcialmente o problema – “Se lemos estes versos escutando-os com atenção e mostrando-nos sensíveis a suas repentinas mudanças de ritmo, o contraste entre o Tâmisa real e sua visão idealizada em uma época em que ainda não atravessava uma megalópole, nos é fortemente transmitida por seu próprio ritmo, quer reconheçamos ou não ser o estribilho da autoria de Spencer”. As alusões de Eliot funcionam quando as conhecemos e, em grande parte, até mesmo quando não as conhecemos, através do poder de sugestão que contêm. Mas por vezes encontramos alusões apoiadas por notas. É uma questão pertinente indagar se estas são como guias que nos conduzem para onde possamos ser educados ou se operam como indicações auto-suficientes sobre o caráter das alusões. “Quase tudo que tem importância (...) para uma apreciação de The Waste land,” escreve Mathiessen sobre o livro de Jessie Weston, “foi incorporado à estrutura de próprio poema ou às notas de Eliot”. E, admitindo-se isso, pode-se começar a ver que não importa muito se Eliot inventou suas fontes (do mesmo modo como Sir Walter Scott inventou epígrafes de capítulos a partir de “antigas peças teatrais” e autores “anônimos” e do mesmo modo como Coleridge escreveu glosas à margem de The Ancient mariner). Alusões a Dante, Webster, Marvell ou Baudelaire sem dúvida tiram proveito do fato de que estes escritores existiram, mas é [652] duvidoso que se possa dizer o mesmo a respeito de uma alusão a um obscuro elizabethano: The sound of horns and motors, which shall bring Sweeney to Mrs. Porte r in the spring13 “Cf. Day, Parliament of bees”: diz Eliot When of a sudden, listening, you shall hear, A noise of horns and hunting which shall bring Actaeon to Diana in the spring, Where all shall see her naked skin14 A ironia é completada pela própriacitação; se Eliot, como é concebível, compõe esses versos para mostrar sua própria erudição, não haveria qualquer perda de validade. A convicção pode aumentar ao lermos a próxima nota de Eliot: “Desconheço a origem da balada de que esses versos derivam; sua informação vem-me de Sydney, Austrália”. A palavra importante nesta nota – sobre a senhora Porter e sua filha que lavavam os pés com água de soda – é ‘balada’. E, se percebermos sua qualidade de ‘balada’ pelos próprios versos, a nota será ociosa. Em última análise, a investigação deve-se concentrar na integridade destas notas como partes do poema, pois, quando constituem uma informação especial sobre o significado de frases do poema, devem ser objeto da mesma indagação a que se sujeitam quaisquer outras palavras que o compõem. Mathiessen crê que as notas foram o preço que Eliot “teve de pagar a fim de evitar que se dissesse que abafara a energia de seu poema pelas extensas ligações dentro do mesmo”. Pode-se contudo contestar que as notas e a necessidade delas são igualmente sufocantes. De maneira plausível, F. W. Bateson argumentou que “The Sailor boy” (O Menino Marinheiro) de Tennyson, seria melhor se metade da estrofe fosse omitida e as melhores versões de baladas, como “Sir Patrick Spens”, devem sua força exatamente à audácia com que o menestrel supunha conhecida a estória que comentava. Que ocorre então se um poeta achar que não pode supor como evidente muita coisa em um contexto menos conhecido e, ao invés de 13 O som das buzinas e motores, que trarão / Sweeny para a senhora Porter na primavera. (N. da T.) 14 Quando, de repente, ouvindo, ouvirão / Um som de trompas e caçadas que trarão / Acteon a Diana na primavera, / Onde todos verão sua pele nua. (N. da T.) escrever de [653] modo informativo, fornecer notas? Deve-se dizer em favor deste que pelo menos as notas não fingem ser dramáticas, como seriam se escritas em verso. Por outro lado, as notas podem parecer um material não assimilado, que permanece supérfluo ao lado do poema, necessário para o significado do símbolo verbal, mas não integrado, de modo que o símbolo fica incompleto. Sugerimos por esta análise que, embora notas tendam a justificar a si mesmas como índices externos à intenção do autor, devem, não obstante, ser julgadas como qualquer outra parte da composição (o arranjo verbal específico a um contexto particularizado) e que, quando são assim julgadas, a sua realidade como partes do poema ou sua integração imaginativa com o resto do poema pode ser questionada. Mathiessen, por exemplo, encara os títulos de poemas de Eliot e suas epígrafes como um aparato informativo à semelhança de notas. Mas, enquanto se preocupa com algumas das notas e pensa que Eliot “parece estar zombando de si mesmo ao escrever a nota, ao mesmo tempo que deseja transmitir algo com ela”, Mathiessen crê que o “estratagema” das epígrafes “de modo algum dá lugar à objeção de não ser suficientemente estrutural”. Acrescenta ele, “a intenção é possibilitar ao poeta garantir uma expressão condensada dentro do próprio poema”. Em cada caso, a epígrafe tem o propósito de constituir-se em parte integrante do efeito do poema. E o próprio Eliot, em suas notas, justificou sua prática poética em termos de intenção: “O enforcado, membro do baralho tradicional, serve a meu propósito de duas maneiras: porque em minha mente se associa ao Deus enforcado de Frazer, e porque o associo à figura disfarçada na passagem dos discípulos de Emaús na parte V. (...) O homem com três pentagramas (um membro autêntico do baralho Tarot) associo-o, com bastante arbitrariedade, ao próprio Rei pastor”. Talvez o poeta deva ser aqui tomado mais a sério, mostrando-se assim desarmado numa nota, do que deveria ser em suas Norton lectures (Conferências de Norton), ao comentar sobre a dificuldade de dizer o que significa um poema, jocosamente acrescentando que pensa pôr como introdução à segunda edição de Ash Wednesday alguns versos de Don Juan: I don’t pretend that I quite understand My own meaning when I would be very fine; But the fact is that I have nothing planned Unless it were to be a moment merry15 15 Não finjo que entendo bem / Meu próprio significado quando estou muito bem, / Mas o fato é que não tenho nada planejado / A menos que fosse uma alegria passageira. (N. da T.) [654] Se Eliot e outros poetas contemporâneos têm alguma falha característica esta bem pode ser a de planejar demais. A alusividade na poesia é um dos grandes problemas críticos que usei para ilustrar o tema mais abstrato da intencionalidade, mas pode servir, nos dias que correm, como sua ilustração primordial. Como prática poética, a alusividade chega a me parecer, em certos poemas recentes, um corolário extremo da pressuposição intencionalista romântica e, como problema crítico, ela desafia e faz ressurgir de modo especial a premissa básica da intencionalidade. O seguinte exemplo da poesia de Eliot pode servir para resumir as implicações práticas do que afirmamos. Em “The Love song of J. Alfred Prufrock”, próximo ao final, surge o verso. I have heard the mermaids sínging, each to each16 Isso apresenta uma certa semelhança com um verso de uma canção de John Donne: Teach me to heare Mermaides singing 17 Deste modo, para o leitor até certo ponto familiarizado com a poesia de Dorme, surge uma questão crítica: o verso de Eliot é uma alusão ao de Donne? Estará Prufrock pensando em Donne? Estará Eliot pensando em Donne? Sugerimos que há duas maneiras radicalmente diversas de buscar uma resposta a esta pergunta. Há (1) o modo da análise poética e da exegese, que se indaga se faz algum sentido o fato de Eliot-Prufrock estar pensando em Dorme. Numa parte anterior do poema, quando Prufrock pergunta: Would it have been worth while, (...) To have squeezed the universe into a ball18 suas palavras extraem parte de sua tristeza e ironia de certos versos enérgicos e apaixonados de Marvell, em “To his coy mistress” (A sua esquiva dama). Mas o exegeta pode-se indagar se o fato de as sereias consideradas como [655] “estranhas visões” (ouvi-las é, no poema de Dorme, análogo ao fato de a mulher ficar grávida com o poder da semente da mandrágora) têm muita relação com as 16 Ouvi as sereias cantando, uma para outra (N. da T.) 17 Ensina-me a ouvir as sereias cantando (N. da T.) 18 Teria valido a pena (...) amassar o universo em uma bola. (N. da T.) sereias de Prufrock, que parecem ser os símbolos do romance do dinamismo e que, incidentalmente, recebem uma autenticação literária, se esta for necessária, em um verso de um soneto de Gérard de Nerval. Este método de indagação pode levar à conclusão de que a suposta semelhança de Eliot com Donne não tem importância e que melhor seria nela não cogitar ou de que o método pode apresentar a desvantagem de não fornecer ao certo nenhuma conclusão. Sugerimos contudo que esta é a forma de crítica verdadeira e objetiva, considerando a grande incerteza que a exegese poderia levar a um segundo tipo de crítica: (2) trata-se da indagação de tipo genético ou biográfico. Dentro desta, aproveitando do fato de Eliot ainda estar vivo, o crítico, com o espírito de um homem que faz uma aposta; escreveria para Eliot e lhe perguntaria o que pretendia dizer ou se estava pensando em Donne. Não poderemos aqui afirmar quais seriam as probabilidades – se Eliot responderia que não quis revelar nada,que não tinha nada em mente, resposta que seria bem apropriada, ou se, em um momento desprevenido, forneceria uma resposta clara e, dentro de seus limites, irrefutável. Nossa opinião é que à resposta para uma tal pergunta nada tem a ver com o poema “Prufrock”; pois esta não seria uma pergunta crítica. As perguntas críticas, contrariamente às apostas, não são respondidas desta maneira. Não são resolvidas pela consulta a um oráculo.
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