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AULA 1 ÉTICA, MORAL E TRANSPARÊNCIA NA GESTÃO PÚBLICA Profª Zita Ana Lago Rodrigues 2 TEMA 1 – INTRODUÇÃO Objetivando refletir sobre alguns dos conceitos necessários para a vivência em sociedade – a vida na pólis –, destacamos os de ética, oral e moralidade para que, ao compreender suas funções e distinções conceituais, possamos pensar de modo mais aprofundado sobre sua importância na vida cotidiana dos sujeitos e das sociedades. A fluidez, a complexidade e a diversidade da sociedade contemporânea (Baumann, 2001; Morin, 2005; Santos, 2006) exigem que, como membros dela, em face das constantes disputas sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, o adequado e o inadequado, nos situemos quando se definem comportamentos segundo os ditames de uma sociedade democrática, em sua plenitude, necessários à ‘vida boa’ ou à busca da eudaimonia aristotélica – ou seja, a felicidade e a vida justa (Aristóteles, 1994). Portanto, na busca pelo melhor entendimento sobre as funções, objetivos e propósitos da organização de uma sociedade democrática, faz-se necessário expor conceitos fundantes, que se imbricam e se caracterizam nas diferentes formas de organização da sociedade ocidental contemporânea, visando compreender o espaço de ação dos sujeitos, entendidos como cidadãos da pólis – vida pública. TEMA 2 – CONCEITOS DE ÉTICA São muitos e diversos os conceitos sobre ética, moral e moralidade que se apresentam pela historicidade e flexibilidade deles, que se expressam em acordo com as diferentes posições teóricas ou filosóficas de seus autores. Consideramos que há pontos convergentes sobre o sentido, os objetivos e as finalidades de cada forma de entendimento. Trazemos uma síntese de tais conceitos, entendendo-os como básicos e fundamentais e que nos levem a refletir sobre a importância e suas diferentes formas de aplicabilidade e vivência prática na vida cotidiana dos sujeitos e das sociedades. Iniciamos por ética, o qual nos leva à necessidade de maiores reflexões a seu respeito suas decorrentes formas de viabilidade e aplicabilidade no campo teórico-prático de ação racional humana. A ética consiste em um dos grandes campos entre aqueles característicos da investigação filosófica. Estuda formas de comportamento dos sujeitos na ótica 3 da moral, dos valores, do justo e do injusto, do bem e do mal, sempre sob um cunho reflexivo e crítico sobre os valores e princípios morais vigentes, caminhando no sentido de sua superação (Rodrigues, 2016). Conforme comentam Japiassú e Marcondes (1990), mediante a necessidade de se conceituarem e se estabelecerem campos de ação prática para cada uma das formas de comportamento humano no âmbito da ética e da moral revela-se que a própria etimologia nos oferece alguns pontos comuns sobre ambas. Assim, ética deriva do grego ethos, ethikós, cujo significado se vincula aos costumes e aos jeitos de viver de uma sociedade, ou seja, aos seus habitus. Por seu lado, a base etimológica da palavra moral provém do latim mos, mores, morales, cujo entendimento nos conduz a referenciar também os costumes, as normas de conduta, os jeitos de viver e os valores de um grupo social, de uma sociedade ou uma cultura, ou seja, aos seus habitus. Porém, apesar do sentido etimológico idêntico, há sentidos práticos que necessitam ser esclarecidos, como segue: A Ética consiste em agir em acordo com um conjunto de valores e princípios morais que possibilitam nortear a conduta humana em determinada sociedade. A Ética, por seu cunho reflexivo, serve para que haja um equilíbrio e um adequado funcionamento social, possibilitando que todos os componentes de dado grupo social sejam contemplados de forma equânime, sem privilegiamentos ou exclusões seletivas. Em outras palavras, ser ético nada mais é do que estar em acordo com as regras morais estabelecidas como legítimas e válidas naquele período histórico ou naquela cultura. Essas regras morais são os fatores balizadores para o grupo social que as adota, com vistas a que todos os membros procedam de tal forma que nenhum seja favorecido ou prejudicado quando da ação comum. Portanto, ser ético é agir de forma justa, correta e adequada, sem prejudicar os outros membros daquele grupo social. Em situações específicas, ser ético pode ser considerado quando o sujeito busca atender a interesses de grupos determinados que explicitam seus valores, suas normas e seus princípios morais e os têm como apropriados aos determinantes dessa sociedade ou grupo social, adequando-os sempre que ocorram mudanças no contexto social, cultural, político e econômico. Revelam-se assim dois aspectos determinantes da condição ética 4 de uma sociedade: sua historicidade e sua condição reflexiva e compreensiva sobre as práticas morais vigentes naquele tempo histórico. Em Cotrim (1989), encontramos a definição de que a ética consiste em uma parte dos saberes filosóficos que busca refletir sobre o comportamento humano sob o ponto de vista das noções do bem e do mal, do justo e do injusto. Já Vázquez (1995, p. 12) considera trata-se da “teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade”. Portanto, segundo reforça esse autor, temos que a ética é uma ciência que trata de formas específicas dos comportamentos humanos, ou seja, ela se caracteriza por ser uma “[...] ciência da moral, isto é, de uma esfera específica do comportamento humano. Não se deve confundir a teoria com seu objeto: o mundo moral” (Vázquez, 1995, p. 12). Vázquez (1995, p. 11) chama a atenção para o fato de que a ética é eminentemente teórica e reflexiva, consistindo em formas de explicar ou investigar determinado tipo de experiência efetivado pelos homens em seu contexto sociocultural e deverá ser considerado em sua totalidade. Sendo teórica, não é normativa ou pragmática, diz Vázquez (1995), e seu valor está naquilo que pode explicar sobre os comportamentos humanos – jamais em prescrever, normatizar ou recomendar. O que caracteriza a ética se refere à natureza ou aos fundamentos das normas morais vigentes em dada sociedade ou grupo social ou profissional, cabendo-lhe analisar, estudar e refletir sobre sua legitimidade, validade e pertinência. Assim, se revelam suas características teóricas e históricas, o que a refere como uma forma de explicar esses comportamentos morais e as suas práticas à luz dos determinantes normativos da moral vigente naquela sociedade ou grupo social em seu espaços-tempos históricos, referendando a moral vigente. A condição histórica da ética e também da moral e da moralidade permite que a humanidade anteveja a pluralidade das morais vigentes em seu desenrolar factual e prático e reflita sobre ela. Porém, como ciência reflexiva e teoricamente situada, cabe-lhe tomar essas reflexões sobre a pluralidade e a diversidade de valores, princípios e normas morais vigentes neste ou naqueles períodos históricos, no sentido de buscar seus fundamentos e estabelecer reflexões pertinentes acerca de suas prováveis evoluções e/ou involuções. Não lhe cabe estabelecer vínculos com qualquer das morais vigentes e/ou existentes, nem mesmo atitude de indiferença sobre as práticas morais vigentes; entretanto, é pertinente a ela observar e explicitar os princípios que levam às idas 5 e vindas históricas, aos avanços e aos retrocessos que se descortinam por meio das relações que se caracterizam nos desempenhos e desenvolvimentos de diferentes sociedades, grupos sociais ou profissionais que as adotam e as legitimam. Vale lembrar, segundo Vázquez (1995, p. 11), que: Não lhe cabe formular juízos de valor [éticos] sobre a prática moral de outras sociedades, ou de outras épocas, em nome de uma moral absoluta e universal, mas deve antes, explicar a razão de ser desta pluralidade e das mudanças de moral; isto é, deve esclarecer o fato de os homens terem recorridoa práticas morais diferentes e até opostas. Sintetizando essa tentativa de explicitar conceitualmente no que consiste a ética, voltamos a referir Vázquez (1995, p. 12): “A ética estuda uma forma de comportamento humano que os homens julgam valioso e além disto, obrigatório e inescapável”. Cabe-lhe, pois, buscar reflexiva e racionalmente compreensões mais amplas do que as meras observações cotidianas sobre as ações humanas e sobre seus fundamentos valorantes, seus princípios e normas morais que se revelam nas práticas da moralidade vigente, por meio das quais um grupo social, uma instância profissional ou determinada sociedade se estabelecem, norteando até mesmo suas instituições, organizações e empresas públicas ou privadas. Apesar de algumas doutrinas éticas clássicas pretenderem dizer ao homem o que deve fazer para alcançar o bem, o bom, o justo, o correto, ditando-lhe normas ou princípios que pautem seu comportamento, as valorações morais, bem como as reflexões éticas referentes ao conhecimento que temos hoje sobre o bem, são relativas (entendidas apenas como antônimo de absolutas). O ético, o moral, o legal são conceitos históricos, portanto mutáveis. O agir do grupo social segue sempre seu modo de conhe(ser) – (conhecer o ser). Novas exigências existenciais sempre se apresentarão, e faz-se mister que uma sociedade e/ou um grupo social ou profissional se reestruturem, refaçam periodicamente seu conjunto de diretrizes e determinações valorantes para que a moral, a lei e a ética não se tornem inúteis ou insuficientes, desgastadas pelo tempo ou pelo uso indevido de suas normatizações. A ética é, portanto, uma ciência reflexiva que tem por objeto refletir sobre os princípios e as normas morais. Não raro, também reflete acerca das normativas da lei e da ordem legal – como referenciais legais sobre e das ações humanas – e pretende aprimorar as “atividades realizadoras de si” desenvolvidas pelos 6 sujeitos de uma sociedade determinada na constante busca do excelente, do bom, do justo, do adequado. Nesse sentido, a ética não deverá impor moral ou leis, mas, sempre que necessário e possível, compete-lhe propor rumos possíveis para a reflexão, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da vida em sociedade, a qual requer a existência de ambas. Contudo, a ética tem sido utilizada como fundamento e como justificativa para comportamentos morais desejados como úteis ou convenientes. Isso é feito por muitos em seus discursos ou ações, mesmo por quem não sabe precisamente do que fala. Conforme define Rodrigues (2008, p. 46): “Assim, a ética traz a proposta de que as instituições e a sociedade realizem um trabalho que possibilite aos sujeitos o desenvolvimento da ‘autonomia moral’ como condição essencial para a reflexão ética”. A autora também comenta que: A ética consiste em uma reflexão teórica sobre aspectos da vida prática dos homens em sociedade; é um olhar filosófico sobre o agir humano sob os pontos de vista do Bem e do Justo; [...] a reflexão ético-filosófica aponta para a presença dos valores na ação humana; tais valores são construções socio-históricas, ou seja em constante mutação e busca de aprimoramento.; [...] está presente em todas as práticas sociais; nas ações humanas, que não são neutras e nem impermeáveis a valores e significados; e no fato de que são os sujeitos que realizam essas práticas e que estes sujeitos são sujeitos reais e historicamente situados. (Rodrigues, 2008, p. 8) TEMA 3 – CONCEITOS DE MORAL Conforme já explicitado, são muitos e diversos os conceitos sobre ética, moral e moralidade, porém, diferentemente da opinião pessoal de teóricos ou filósofos, há pontos em comum em relação a seus objetos, objetivos, finalidades e práticas que as efetivam. Segundo conceitua Vázquez (1995, p. 14), sendo objeto da reflexão ética os atos humanos conscientes, voluntária e livremente definidos e que afetam seus semelhantes de alguma forma, as prescrições e normativas morais se expressam ou pelos hábitos ou pelos costumes – ethos/ mores – e se legitimam quando aquela sociedade ou grupo social e profissional os adotam e deles se servem para definir seus jeitos de viver e que, nem sempre, são definidos de forma natural. Esses jeitos de viver se expressam também como formas de saber e de poder, que se estabelecem como determinantes e deverão ser seguidos por todos os demais componentes dessa sociedade e/ou grupos de indivíduos objetivando a convivência harmônica. São considerados determinantes para estabelecer os 7 comportamentos legítimos e válidos para os demais sujeitos que vivem nesse mesmo contexto socio-histórico. Se etimologicamente o significado dos termos ética e moral é similar – referindo-se aos costumes, jeitos de ser e de viver, ou seja, ao ethos de determinado grupo social –, resta referir que ambos os conceitos se situam no terreno humano, simplesmente humano e se fundamentam nos âmbitos valorantes da ação humana, ou seja, no âmbito do comportamento moral. Esse âmbito se desvela no terreno da ação ante os demais membros do grupo que pode ser adquirida ou conquistada pelos homens, que assim agem sobre sua própria condição natural e que, por estabelecerem essas normativas e reflexões, criam uma segunda natureza, sua natureza social, âmbitos mais ampliados nos quais decorrem as referidas ações. Portanto, é na criação dessa segunda natureza que os sujeitos estabelecem as condições normativas e valorantes para que se efetivem as relações sociais, econômicas, políticas e institucionais. Estas se apresentam permeadas por condições morais, nas quais se definem os valores, princípios e normas que valem para aquela sociedade ou para aquele grupo social ou profissional. A moral, portanto, consiste em um conjunto de regras de conduta adotadas pelos membros de uma sociedade ou de um grupo social ou profissional e tem a finalidade de organizar as relações interpessoais segundo os valores do bem e do mal, do justo e adequado, do legítimo e válido. Ela se constitui em um rol de valores que, em sua dimensão prática, se vincula aos atos e às ações humanas sob o prisma do bom, do justo, do adequado que adquirem validade e legitimidade em uma cultura, sociedade ou grupo social. Sendo assim, conforme afirmam Japiassú e Marcondes (1990), a moral representa um conjunto de princípios, normas e imperativos ou ideias morais de uma época, de uma sociedade ou de uma cultura determinada. Isso, por si só, define sua historicidade e flexibilidade, em acordo com os imperativos de comportamento de cada período histórico. Das práticas efetivas da moral, como determinante e normativa, resultam as reflexões éticas no e sobre o cotidiano vivencial dos sujeitos; ou seja, essas determinações normativas da moral exigem que se efetivem considerações reflexivas sobre sua legitimidade, humanidade e adequabilidade nas e sobre as vivências dos sujeitos daquela sociedade, cultura ou grupo social, em qualquer 8 que seja o campo de sua atuação na vida social, política, cultural, econômica e organizacional. Conforme salienta Vázquez (1995), essas condições já revelam a historicidade tanto da moral quanto da ética, pois ambas se revelam em acordo com as condições de desenvolvimento e os valores e princípios que têm validade nesse contexto social. É deveras relevante definir que os agentes morais – os homens de determinada sociedade, grupo social ou profissional – são sujeitos concretos que fazem parte efetiva dessa mesma sociedade. Não são exógenos, mas situados historicamente e, nessa situação, são os autores das próprias determinações socioculturais e políticas, pois o âmbito moral não é algo abstrato, mas sim concreto e faz parte específica da situação desse mesmo grupo e somente pode ser considerado em suas relações práticas com os demais sujeitos que nesse mesmo grupo atuam e convivem.Reforçando as premissas apresentadas, buscamos em Vázquez (1995, p. 20) a consideração de que: O sujeito do comportamento moral é o indivíduo concreto, mas sendo um ser social e, independentemente do grau de consciência que tenha disto, parte de determinada estrutura social e inserido numa rede de relações sociais, o seu modo de comportar-se moralmente não pode ter um caráter puramente individual, e sim social. Os indivíduos nascem numa determinada sociedade, na qual vigora uma moral efetiva que não é a invenção de cada um em particular, mas que cada um encontra como dado objetivo, social. Considerações sobre essa historicidade aparecem em diversos autores que tratam do tema, porém entendemos que, como as sociedades se sucedem umas às outras em condições de evolução e desenvolvimentos, também os fundamentos valorantes e as determinações normativas morais se substituem umas às outras, conforme afirma o autor em tela. Assim, podemos discernir que a moral e a ética se constituem sobre arcabouços historicamente situados, mutáveis e em processo. Reforçando as premissas de Vázquez (1995, p. 25), citamos: “Portanto, a moral é um fato histórico, e, por conseguinte, a ética, como ciência da moral, não pode concebê-la como dada de uma vez para sempre, mas tem que considerá-la como um aspecto da realidade humana mutável com o tempo.” Isso significa sustentar que, tanto no âmbito da prática quanto no âmbito das ideias e das necessárias reflexões sobre elas, a humanidade tem buscado situar-se na condição da teckné (o fazer), na qual os artefatos – produtos da mão 9 humana – se embasam em fatores estabelecidos pelos mentefatos, ou pela poiésis – produtos da reflexão, da capacidade da mente e da consciência – e que buscam atender às necessidades da vida coletiva e da vida individual. Porém, é na vida coletiva que as dinâmicas morais – os valores, princípios e normas morais – se estabelecem; na vida individual, seus reflexos são sentidos diretamente. Sintetizando, temos que o âmbito individual tem sido historicamente absorvido pelos âmbitos sociais, culturais e políticos, e as instituições e as organizações – sejam públicas, sejam privadas – são a expressão prática dessa dimensão coletiva. Nessas instituições, organizações ou sociedades os homens agem, criam, refletem, determinam, sustentam, modificam e se modificam; nelas, os âmbitos políticos se expressam em valorações, determinações mais amplas e normativas legais – leis que se determinam e determinam as relações e as consequentes dimensões de poder que organizam as regras das relações produtivas – e é nelas que as valorações ético-morais se sustentam e legitimam. Portanto, não é possível entender um constructo ético-moral no âmbito absolutamente individual. É no âmbito da dimensão coletiva que se apresentam as limitações de cada um, os limites da moral, o coletivo absorve o individual, o que empobrece e desresponsabiliza cada um dos sujeitos – aqui entendidos como cidadãos da pólis. Podemos afirmar que isso revela uma dimensão moral pouco desenvolvida, cujas normas e princípios são aceitos pela força do costume e da tradição ou pelo poder da força ou das influências exógenas (mídias, pobreza política, falta de educação, ignorância e outros fatores que se impõem). O enunciado de Vázquez (1995, p. 30) é elucidativo ao considerar que: “Os elementos de uma moral mais elevada, baseada na responsabilidade pessoal, somente poderão evidenciar-se quando forem criadas as condições sociais para um novo tipo de relação entre o indivíduo e a comunidade” – e essas condições deverão ser eticamente situadas. TEMA 4 – CONCEITOS DE MORALIDADE Com relação às conceituações já apresentadas sobre ética e moral, exige- se que se definam as características conceituais de moralidade, a qual se revela por meio daquilo que se relaciona com as condições reflexivas da ética e normativa da moral. A moralidade se expressa nos âmbitos factuais da vida prática e pelos modos de agir dos sujeitos em relação ao que estabelecem os princípios e valores 10 morais de sua sociedade e seus grupos sociais e políticos, definindo-se mediante as formas com que se vivenciam esses valores no cotidiano. Podemos afirmar que ambas, a ética e a moral, têm sua expressão prática no campo factual, da vida real em determinada sociedade, evidenciando assim a forma de vivenciar a moralidade no cotidiano dos grupos sociais dessa mesma época ou cultura. Conforme Vázquez (1995), a moralidade consiste no conjunto de relações efetivas ou atos concretos que adquirem um significado moral, com respeito à moral vigente naquela sociedade. Portanto, pode ser entendida como a qualidade de um indivíduo ou de um ato, considerado quanto à sua relação com os princípios e os valores morais vigentes em sua sociedade, cultura ou grupo social. A moralidade é o campo vivencial das normas e dos princípios morais no qual, segundo Rodrigues (2016), podem ocorrer tanto o cinismo quanto o moralismo ético, pontos extremos da vida moral. Entende-se que nenhum deles seja adequado, por se constituírem em aspectos fundamentalistas e deterministas, expressando radicalismos, reducionismos e determinações estreitas que não possibilitam a ação dialogal necessária a uma vida justa e equânime entre os sujeitos, ou seja, da vivência da eticidade1. Temos presente que a ética se volta para detectar os fundamentos dos princípios que definem a vida dos sujeitos e das sociedades e que devem ser direcionados para a sabedoria prudencial e a felicidade coletiva ao refletir sobre sua legitimidade e validade. A moral, por sua vez, se preocupa com os constructos normativos sobre o conjunto dos princípios e valores que se destinam a assegurar a vida dos sujeitos nessa mesma sociedade. Nesse sentido, buscamos em Rodrigues (2008, p. 12), a consideração de que “a moralidade seria então o campo prático e factual, no qual tais normas e prescrições normativas decorrem em sua expressão prática cotidiana”. Portanto, o tema da moralidade se relaciona diretamente aos princípios organizativos da práxis social, cultural e econômica. Na sociedade hodierna, com sua complexa teia de relações e com sua diversidade organizativa e produtiva, 1 Eticidade é um termo de origem grega que define a qualidade daquilo que é ético e moral. Deve ser entendido como princípio que fundamenta valores universalmente situados e comportamentos aceitáveis em uma sociedade ou em determinado grupo social. Está vinculado de forma intrínseca aos conceitos de ética e moralidade, e quando um sujeito age em acordo com os princípios morais vigentes, diz-se que está se expressando em sua eticidade. 11 bem como com a diversidade de inter-relações e dinâmicas da vida política, em que princípios são estabelecidos em normativas legais – nem sempre morais ou eticamente situadas –, desvelam-se interesses sobre os quais cabem profundas reflexões e a necessidade de entender suas determinações no âmbito da moralidade pública. As premissas dessa condição da moralidade pública se destinam aos coletivos da sociedade, porém suas práticas são efetivadas por sujeitos individuais – gestores e servidores públicos –, os quais, em suas ações, deveriam primar pelo atendimento aos interesses e demandas coletivamente expressadas pela vontade de uma sociedade ou de um grupo social e profissional. Assim, a moralidade administrativa estaria a serviço do estabelecimento de uma maior eticidade e da superação das condições duais entre os sujeitos que, desde as mais primitivas e antigas organizações sociais, se estabeleceram como normais e sustentadas por tradições e costumes. Essa dualidade se desvela também ao antever que essas duas morais – a dos escravos e a dos homens livres, a dos senhores feudais e a dos servos, a dos reis ea dos súditos – ainda se fazem presentes em âmbitos mais recentes da organização política e produtiva – a moral dos senhores e a dos trabalhadores, a dos governantes e a dos governados. Cada uma delas define relações que correspondem à moral dominante e à moral dependente, à moral do capital e à moral dos trabalhadores. Trata-se de características que definem a dualidade da moralidade vigente ainda hoje e que expressam tal dualidade estrutural a partir da moralidade vigente, em práticas que separam o mundo da ação de cada um, ou seja, da capacidade produtiva do sujeito, em sua individualidade e da vida em sociedade, que se expressa nos coletivos da representatividade política, em sociedades democraticamente estruturadas. A moralidade é, portanto, um campo de conflitos e contradições. Nela, situam-se as ações dos sujeitos em sua individualidade, por meio da qual são praticados valores e princípios morais vigentes e as ações do âmbito público, no qual situa-se a “arena societária”. Ali, se abrem espaços para a inserção e a integração de novos atores, olhares e práticas que expressam valores coletivos. 12 TEMA 5 – DISTINÇÕES PERTINENTES E IMPLICAÇÕES NA ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE Sendo assim, pode-se deduzir e sintetizar que: A Ética é uma espécie de Filosofia da Moral, pois se constitui em uma dimensão reflexiva sobre a Moral; vem depois da Moral e preocupa-se em refletir sobre a legitimidade, pertinência e adequação das normas e das prescrições que se destinam a assegurar uma vida harmônica e justa para aquela sociedade ou grupo social. (Rodrigues, 2016) Conforme propõe Vázquez (1995), o ético em sua essência é algo problemático, pois mexe com a subjetividade humana, com conceitos, com posturas, com princípios e valores dos sujeitos em determinada sociedade e em determinado contexto socio-histórico. Distinguindo-se ética e moral, conforme assinala Rodrigues (2016), podemos dizer que a reflexão e o debate ético se referem à legitimidade e à validade das normas e proposições morais que fundamentam o discurso e as ações humanas em determinado espaço-tempo histórico. A questão da moral cuida da normatização das necessidades, ou pseudonecessidades, que levam os sujeitos ou os grupos humanos a agirem dessa ou daquela maneira em dados espaços-tempos, considerando-os “como o modo correto de agir”. Portanto, a reflexão ética se situa numa vertente que não é a mesma das prescrições e normas morais. O engajamento ético daí decorrente pode fazer com que os sujeitos transgridam tais prescrições e normatizações morais, distanciando-se do que “é”, no sentido de propor aquilo que entendem possa “vir- a-ser” (Rodrigues, 2016). Podemos, então, considerar que desse engajamento ético vêm decorrendo profundas modificações e transformações socioculturais nas formas de organização e nas ações práticas das sociedades e dos povos, as quais podem ser evolutivas ou mesmo demonstrar involuções e retrocessos em seu desenvolvimento. Os tempos contemporâneos nos quais a dimensão coletiva, ou seja, o campo político se sobrepõe aos interesses individuais, caracterizam situações conflituosas que requerem profundas reflexões éticas. Isso porque surgem daí aspectos mais amplos do que os meramente conceituais. Essa complexidade e fluidez dos tempos atuais têm em estudiosos como Baumann (2001), Morin (2005) e Santos (2006) sínteses que refletem as 13 condições contraditórias e factuais que levantam debates sobre a aplicabilidade de princípios morais mais condizentes com sociedades democráticas, com definições mais amplas sobre as relações pessoais (dimensão individual) e coletivas (dimensão política) e suas respectivas consequências na moralidade da sociedade. A sociedade contemporânea, com suas contradições e paradoxais formas de agir, situa-se ante esses aspectos transformadores, com mudanças paradigmáticas relevantes, em que ocorrem engajamentos éticos de diferentes ordens e naturezas. Nessas condições de mudanças e transformações paradigmáticas, estão diferentes aspectos e práticas da gestão organizacional e, de modo especial, da gestão pública. Isso, nas sociedades ocidentais, tem exigido de seus envolvidos ações com maior transparência e eticidade, em conformidade com ditames de sociedades democráticas. A aplicabilidade da ética serve como diferencial para que haja um equilíbrio e adequado funcionamento social, possibilitando que ninguém saia prejudicado (ética). Em outras palavras: que, por meio de ações éticas, do ser ético, se definam as ações em conformidade com o conjunto de valores e princípios morais (moral) e com respeito aos determinantes legais que exigem que as ações práticas e as vivências cotidianas de todos e de cada um dos cidadãos envolvidos em uma mesma pólis ocorram em prol do bem comum. E ainda: que tais vivências sejam organizadas, transparentes, ética e moralmente validas e legitimadas pelos seus aspectos normativos e de cunho amplo e comum (moralidade). Apresentar a ética e os princípios morais como fatores fundamentais para a vivência de uma moralidade que possibilite a transparência e a eficácia da gestão pública, como diferenciais necessários ao sucesso da ação do gestor público, como fator de relevância na sociedade contemporânea, na qual se vive a constante contradição entre o certo e o errado, o justo e o injusto, o adequado e inadequado, o correto e o incorreto, como fatos do cotidiano da vida pública – a vida na pólis! 14 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1994. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília: Senado Federal, 1988. BAUMANN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. COTRIM, G. Fundamentos de filosofia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. JAEGER, W. A Paidéia – a formação do homem grego. São Paulo: Cortez, 2000. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário de filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. MORIN, E. O método 6: a ética da Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005. RODRIGUES, Z. A. L. Ética, cidadania e responsabilidade social nas instituições educativas. Curitiba: Camões, 2008. _____. Ética na gestão pública. Curitiba: Intersaberes, 2016. SANTOS, A. R. Ética: caminhos para a realização humana. São Paulo: Ave Maria, 1997. SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2006. VÁZQUEZ, A. S. Ética. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. WEIL, P. A nova ética – na política, na empresa, na religião, na ciência, na vida privada e em todas as outras instâncias. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. AULA 2 ÉTICA, MORAL E TRANSPARÊNCIA NA GESTÃO PÚBLICA Prof.ª Zita Ana Lago Rodrigues 2 CONVERSA INICIAL O desenvolvimento histórico da ética, da moral e da moralidade e o progresso moral da sociedade e sua aplicabilidade no âmbito da vida pública – a pólis Nesta aula, apresentaremos o desenvolvimento histórico da questão da Ética, da Moral e da Moralidade na sociedade ocidental, tendo por base seu Progresso Moral. Além disso, descreveremos os conceitos e as características do progresso moral e do progresso histórico-social, em face da organização da sociedade democrática e da vida na pólis. TEMA 1 – O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA ÉTICA, DA MORAL E DA MORALIDADE A importância e a valorização dos aspectos éticos e da vivência dos princípios morais de uma sociedade podem ser avaliadas à medida que essa mesma sociedade alcança avanços, analisa seus desdobramentos e avalia o aumento de suas possibilidades de vivenciar práticas e ações em liberdade e responsabilidade sobre a importância do exercício da vida democrática. Assim se revelam as condições da moralidade que demonstram as condições de vivências práticas dos princípios morais de uma sociedade,quando seus componentes se engajam no sentido de estabelecer a veracidade e a legitimidade desses mesmos princípios. Conforme Rodrigues (2016), o engajamento ético pode levar os homens a se opor aos hábitos originais e aos discursos legitimadores, entendidos como justos e válidos pela tradição, no sentido de adquirir novas formas de agir, de pensar possibilidades e de aprimorar-se como sujeito humano, ser social e político, mutável e transformador de si e de seu ambiente. Rodrigues (2016) cita Aristóteles, que em seu livro Ética a Nicômaco (livro II, capítulo primeiro, 1994) diz que nenhuma das virtudes do homem surge naturalmente, pois estes estão sempre predispostos a adquiri-las, com a condição de aperfeiçoá-las pelo aprimoramento dos hábitos e costumes e pelas ações da vida prática. Em Aristóteles (1994), o ethos é uma espécie de ciência do caráter, podendo-se nele conjugar a criação e o desenvolvimento de hábitos, na ordem particular, que convergem e aprimoram a convivência social, na ordem universal. 3 Nos contextos sociais, existem alguns valores considerados universais, os quais cumprem funções fundamentais nos contextos social e cultural e, apesar das suas diferentes e variadas expressões das sociedades e das culturas, diz Rodrigues (2016), alguns desses valores – tais como dignidade, respeito mútuo, solidariedade, diálogo e justiça – são quase inerentes ao caráter humano e ao bom entendimento daquilo que se expressa nos jeitos de ser e de viver de cada um e de cada grupo social, ou seja, no seu ethos. São valores inerentes às ações reais e espontâneas de cada um de seus componentes e se revelam em seus juízos e expressões conceituais ou teóricas, para possibilitar a verdadeira com+vivência, ou seja, o estar com o outro, como se está consigo mesmo, em perfeita harmonia, atingindo assim a chamada eudaimonia aristotélica, ou seja, a felicidade entendida como fim último da vida humana. Portanto, é histórica a condição de aquisição e desenvolvimento da consciência ética que, em sua condição reflexiva passa a substituir perspectivas determinantes da ação moral entendida como fabricadora da norma e como definidora de hábitos e, então, se estabelecem relações e inter-relações entre os sujeitos, permitindo a eles analisar a validade e a legitimidade dessas normas e desses hábitos e princípios que constituem assim a moral vigente estabelecida pela tradição e pelos costumes. Podemos então entender que o sujeito ético é aquele capaz de entender e refletir sobre a concretude de sua existência, ou seja, sobre o seu existir consigo e com o outro, canalizando suas ações de forma equilibrada e justa, livre e consciente e, por sua capacidade de discernimento, procure agir de tal sorte que a vida em sociedade seja mais equilibrada e justa, melhorando-a para si e para aqueles com os quais convive. Este princípio ético-moral é a base para que a vida em sociedade – na pólis – seja efetivada, em suas constantes mudanças, com a presença de proposições construentes. A diversidade e modificabilidade dos hábitos, dos costumes e das ações humanas, individualmente ou em seus grupos de convivência, nos permite entender que não são apenas estes que se modificam, mas modificam-se os valores que lhe dão sustentação e, com isso, modificam-se os jeitos de viver – o ethós do grupo e/ou daquela sociedade. Diz Rodrigues (2016) que assim estariam bem delimitados os espaços de atuação da ética, da moral e da moralidade, enquanto teoricamente explicitados e praticamente exercidos, os quais devem sempre voltar-se para a vida boa, ou 4 seja, a vida justa e equilibrada, que tanto mais o será quanto mais seja possível refletir sobre sua historicidade, legitimidade e adequação aos períodos históricos vivenciados. TEMA 2 – O PROGRESSO MORAL Iniciaremos este tema parafraseando Vázquez (1995) ao destacar a relevância daqueles princípios que caracterizam os avanços e o progresso moral em uma sociedade, sendo que este poderá ser mensurado por meio de três aspectos a serem analisados em profundidade, sendo eles: 1) Ampliação da esfera moral na vida social – quando essa ampliação é revelada pela forma como se definem e se expressam as relações entre os indivíduos que antes seriam reguladas por normas externas à moral, ente elas as normas legais e as normas do direito, entre outras. 2) Elevação do caráter livre e consciente e o crescimento das responsabilidades individuais e coletivas – quando esse caráter livre e consciente leva os indivíduos a assumirem abertamente suas responsabilizações pertinentes aos diferentes aspectos da vida em sociedade, pois disso decorre que quanto mais forem ofertadas aos seus membros diversificadas condições para que assumam suas responsabilidades pessoais e coletivas, mais rica será moralmente essa sociedade e mais desenvolvidas serão as possibilidades de desenvolvimento de personalidades livres. 3) Grau de articulação e de coordenação entre os interesses de cunho coletivo e os interesses de cunho pessoal – se considerarmos que nas sociedades mais primitivas predominavam premissas de uma moral coletivista, na qual se absorviam, de alguma forma, os interesses pessoais e se sobrepunham aos interesses da comunidade, temos que nas sociedades mais atuais, modernas e contemporâneas, uma inversão dessas premissas e os interesses pessoais se afirmam com mais vigor, revelando avanços na moral vigente. Porém, nessa evolução moral que se atingiu nos tempos atuais, o que a sustenta é uma capacidade de articulação entre os dois âmbitos, ou seja, que se harmonizem e se sustentem princípios de equidade e justiça social, na qual sejam possíveis o desenvolvimento individual e o crescimento dos interesses da comunidade em crescentes articulações e inter-relações construentes. 5 Assim, segundo Vázquez (1995), é possível mensurar a elevação do índice do progresso moral de uma sociedade ao exigir que esta possibilite e exercite: A superação tanto do coletivismo primitivo como do individualismo e uma adequada harmonização entre os interesses do âmbito comunitário, complexo e diverso. A compreensão efetiva de que essa elevação – como movimento ascensional dialético de negação e afirmação, negação e conservação de elementos morais anteriores – tem raízes na possibilidade de mudanças e sucessão dos valores e princípios que se definem e sucedem em determinadas formações sociais. Portanto, é relevante que o desenvolvimento histórico da ética e da moral seja estudado e que, sendo a ética uma ciência de cunho reflexivo, ela se apresente com a finalidade de refletir sobre a pertinência e a legitimidade dos princípios e valores morais que embasam uma determinada sociedade ou grupo social. Essas reflexões devem ocorrer com base nos desdobramentos significativos sobre os princípios da moral vigente em cada período histórico e de seus vínculos com os avanços histórico-sociais de cada sociedade. Tais articulações são e serão conflituosas e, não raro, contraditórias, sendo eminentemente dialéticas em movimentos ascendentes de afirmação e negação dos princípios anteriores e presentes com suas determinações notáveis que se articulam e se sucedem dialeticamente situadas. Rodrigues (2008) considera que, ao serem analisadas as condições do progresso moral de uma sociedade, devemos sempre considerar alguns elementos fundantes, entre eles que esse progresso se sustenta pela: Negação ou afirmação radical de determinados valores. Conservação dialítica, portanto, mutável, de alguns outros valores. Incorporação de novos valores e o que implica em ampliação das exigências para novas virtudes morais. O progresso moral sempre tem origens nas mudanças de determinadas formações e condições produtivas, culturais e sociopolíticas, bem como na estruturação e adoção de novas formas de estruturaçãosocial, por exemplo, das condições primitivistas e lineares das sociedades antigas às condições complexas das atuais sociedades tecnológicas e sofisticadas em suas formas de estruturação notável. 6 TEMA 3 – CARÁTER HISTÓRICO E SOCIAL DA MORAL Neste tema estudaremos o caráter histórico da moral, sendo esta de cunho histórico e cambiante, em sua historicidade e, consequentemente a ética, que se refere aos valores que embasam os modos de se comportar dos homens – individual e coletivamente em seus grupos sociais – e, de acordo com Vázquez (1995), a autoprodução material e espiritual de um grupo social em seus tempos e espaços situacionais. Esse reconhecimento sobre a historicidade da moral e da ética levanta alguns problemas, segundo propõe Vázquez (1995). Entre eles, o da definição de suas fontes, causas ou fatores, que determinam as mudanças de valores e princípios, além do problema de seu sentido ou direção, que revela a importância de se estabelecer relações sobre a procura por essas origens ou fontes. Conforme Vázquez (1995), são três as chamadas concepções a-históricas dessa procura: Deus como origem ou fonte da moral. A natureza (o trabalho) como origem ou fonte da moral. O homem como origem ou fonte da moral. Seja qual for a fonte e a origem da moral, ela possui em sua essência a condição social, pois segundo Vázquez (1995), ela somente se manifesta em dimensões sociais quando cumpre uma determinada função, isto é, quando determina os valores e princípios para a ação humana em sociedade e quando responde de alguma forma às necessidades e demandas dessa mesma sociedade com relação aos valores que a legitimam. Vale lembrar que essas demandas sempre são apresentadas por sujeitos concretos e essa mesma sociedade é valorada concretamente por meio das ações desses sujeitos, nas quais se expressam factualmente os âmbitos da moralidade vigente. Vázquez (1995, p.55) também afirma que a função social da moral é definida quando, de modo consciente e livre, sem recursos de força ou coerção física, os sujeitos acatam os valores da ordem social estabelecida e, por convicções pessoais e adesão íntima, se convencem e aceitam também os fins, princípios e valores que consolidam os interesses dessa mesma sociedade ou cultura. Ainda que a moral mude historicamente, e uma mesma norma moral possa apresentar um conteúdo diferente em diferentes contextos 7 sociais, a função social da moral em seu conjunto ou de uma norma particular é a mesma: regular as ações dos indivíduos nas suas relações mútuas, ou as do indivíduo com a comunidade, visando a preservar a sociedade no seu conjunto ou, no seio dela, a integridade de um grupo social. Nesse devir de dimensões históricas, tanto a evolução ou involução dos princípios da moral como as demandas de uma sociedade podem modificar a esta com relação aos aspectos históricos, culturais, produtivos, tecnológicos, comportamentais e políticos; podem modificar a moral vigente. Isso exige algumas reflexões de cunho ético, altamente necessárias nesse contexto de análise e entendimento, pois entre um grupo social ou uma sociedade determinada há que se considerar que: A moral só surge quando o homem já é membro de uma coletividade. O trabalho – ponte entre o homem e a natureza – pode ser entendido como forma de sobrevivência para suprir e satisfazer as necessidades do homem e do grupo social, mas também como forma e fonte natural de valores e princípios de ação humana. A moral surge então como determinante de valores e princípios de comportamento nos grupos sociais, e como uma espécie de tábua de deveres embasada no que se considera bom ou útil para aquela sociedade. A moral tem um cunho coletivista, pois essa coletividade seria o ponto fulcral dos limites da moral prática, sendo que ela deverá ser única e válida, devendo ser vivenciada por todos os componentes do grupo social. A moral coletivista primitiva ainda persiste como fonte da regulamentação do comportamento de cada um, nem sempre em acordo com os reais interesses da coletividade. As bases morais e éticas de um grupo social, segundo Rodrigues (2008; 2016), não raro embasam as bases legais de uma sociedade e tornam-se efetivas por seu cunho determinante e por terem força de lei. TEMA 4 – O PROGRESSO MORAL E O PROGRESSO HISTÓRICO SOCIAL – CARACTERÍSTICAS E DESENVOLVIMENTO Ao analisar as condições existentes sobre o desenvolvimento de um grupo social e/ou de uma sociedade, é relevante entendê-lo levando em consideração suas fontes e origens, por meio das quais seja possível compreender seus avanços e/ou as regressões que caracterizam seu progresso sob o ponto de vista 8 moral e histórico social, sem descuidar das condições tecnológicas que a estruturam. Vázquez (1995) define alguns aspectos que são determinantes para que tais análises sejam efetuadas: O progresso histórico-social é fruto de histórias vividas pela humanidade em seu conjunto. A produção de bens culturais e materiais é item relevante na mensuração de critérios do progresso humano. Não se pode conceber seu progresso moral independentemente de seu progresso histórico-social. Não é possível proceder sua mensuração ou valoração isoladamente dos avanços técnico-científicos ou histórico-sociais. Portanto, entre as principais características do progresso histórico-social, o autor define que este: Cria condições para o progresso moral. Afeta os homens de uma determinada sociedade sob o ponto de vista moral. Estimula avanços significativos nas relações, inter-relações, comunicações, uso e disseminação de produções materiais, objetivas ou subjetivas. Faz parte da condição humana de produzir artefatos (frutos da mão humana) e mentefatos (frutos da mente humana), objetivando sempre e constantemente avanços e progressos. Destaca-se, visto que os fatos históricos nem sempre ocorrem como resultado planificado livre e conscientemente, pois não raro estes ocorrem como fruto do acaso e oportunizam descobertas (surveys) que determinam que uma sociedade se destaque mais do que outra. Como dito anteriormente, as mudanças da moral são históricas e, desde as sociedades primitivas, sempre ocorreram antagonismos entre os recortes populacionais, ou suas castas, diferenciando pobres e ricos. De acordo com Rodrigues (2016), tais antagonismos ainda se fazem presentes por meio dos valores da moral dominante e da moral dos escravos. A moral primitiva era considerada de cunho coletivista e, mesmo assim, tida como seletiva, pois embora nela tenham surgido leves sinais de uma consciência 9 coletiva de interesses e indícios de uma consciência reflexa sobre a individualidade das pessoas, a moral dominante relacionava-se a determinar os valores e comportamentos como técnica política para dirigir e organizar as relações entre os membros da comunidade sobre bases racionais. Além disso, impunha interesse coletivo tanto na produção como na partilha dos bens produzidos. Na sociedade feudal predominava ainda condição dual, sendo efetivas as duas morais: a do senhor feudal e a dos servos. Embora os servos não fossem mais considerados apenas como coisas, ainda assim o sistema de dependências ou vassalagens determinava as características materiais, econômico-sociais e espirituais daquela sociedade, revelando-se uma pluralidade de códigos morais. Já ao final do período Medieval, surge a burguesia possuidora dos meios de produção, prevalecendo uma moral individualista e egoística. Surgem os interesses das relações de trabalho como produtores de valores e princípios de outra natureza. O trabalho dignificaria o homem e este deveria ser moral e espiritualmente obediente e subserviente às vontades divinas. Surgem valores nos quais se destacaram a mais-valia, a posse dos meios de produção e aampliação do conceito de propriedade privada, as relações contraditórias e conflituosas entre a força de trabalho e o capital, surgindo daí o conceito do homem econômico que, com suas valorações, passa a ditar novas regras morais e legais. Nos tempos modernos, recorre-se à moral para justificar a opressão e surgem a tentativa de superação e a abolição de exploração do homem pelo homem como resultados de avanços individuais e coletivos. Além disso, surge a tentativa da construção de uma sociedade mais justa e humanizada. Criam-se métodos científicos e racionalizados para os sistemas produtivos e para a busca e elevação das condições materiais, visando a superação da desumanização e a construção de valores de participação, justiça, igualdade, fraternidade e solidariedade. Surgem também os conceitos democráticos de organização social e política, com avanços significativos nos direitos fundamentais dos homens e das sociedades, individuais e coletivos. Apesar de significativos avanços, ainda o cerne do sistema moral se conserva e difundem-se valores de obtenção de mais e maiores bens materiais, com o aumento da exploração do homem pelo homem e da máquina se sobrepondo ao homem, com vistas a obtenção de ‘mais-valia’. 10 Nos tempos contemporâneos acentuam-se os valores desumanizantes, a supremacia da tecnologia e da técnica em prol da suposta melhoria das condições no mundo do trabalho e na sobrevivência. Entretanto, a inversão de valores, a concentração das riquezas, a globalização econômica e a universalização das comunicações pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), acentuam valores excludentes. Embora os discursos políticos mundializados suponham uma nova era de progresso e desenvolvimento, ainda assim a máquina supera e, não raro, substitui o homem. Crescem então as formas de desestruturações sistêmicas, os desempregos massivos e concentração de renda na mão de poucos ou de grandes grupos econômicos internacionalizados que determinam as regras e os valores nas relações produtivas e políticas internacionais, nacionais e locais. A exclusão e a inclusão passam a ser as duas faces da mesma moeda e interferem subjetiva e fortemente na organização política, tornando determinantes os poderes do dinheiro e do chamado quarto poder, isto é, as relações midiáticas das grandes redes de comunicação e das infovias fazem e desfazem construtos valorantes e interferem substancialmente na questão da moralidade da sociedade hodierna. TEMA 5 – CARACTERÍSTICAS DO PROGRESSO MORAL E DO PROGRESSO HISTÓRICO-SOCIAL EM FACE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E DEMOCRÁTICA E DA VIDA NA PÓLIS No âmbito da vida pública, ou seja, da vida na pólis, deveríamos ter avanços significativos nas relações políticas que se consubstanciariam significativamente dos progressos comunicacionais e organizacionais, trazendo benefícios para as relações na vida política, nas quais as comunicações, as redes de infovias, a globalização e a internacionalização, por sua vez, deveriam trazer melhorias pelas interfaces que proporcionam. Os valores e os princípios ético-morais poderiam ser muito mais difundidos e vivenciados e, com isso, ganhariam substanciais apontamentos pelas constantes trocas e pela ampliação nas relações internacionais, nacionais e locais, o que certamente acrescentaria significativos avanços nas relações políticas entre os sujeitos, entre os povos e entre as nações. A experiência moral se consolida pelos fenômenos presentes em nossas vidas em seus diferentes espaços históricos, sociais e políticos e define aspectos 11 referentes à legitimidade dos princípios que a subsidiam e lhe dão a validade necessária em seus espaços e tempos, revelando sua transitoriedade e historicidade. Ao tecer reflexões sobre essas dimensões históricas e transitivas da ética, da moral e da moralidade, Rodrigues (2016) considera que essas mesmas condições levantam problemas que nos colocam diante da questão da realidade da modificabilidade de seus valores e normas morais, que diferem conforme se sucedem ou sobrepõem os diferentes grupos sociais e/ou as sociedades humanas. Rodrigues (2016, p.43), também afirma que: Tais valores e normas se modificam conforme os estágios históricos da evolução humana e dos grupos sociais e de acordo com suas respectivas valorações decorrentes das diferentes expressões e ações empreendidas individualmente, pelos agrupamentos e pelas sociedades. Assim, temos que a ética, a moral e a moralidade são fenômenos históricos como expressão de anseios e demandas que pressupõem o trato com questões do bom, do justo e do belo, o que permite definir uma diversidade histórica de critérios ético-morais na história da sociedade ocidental, destacando os critérios éticos clássicos, os eudemonistas, os hedonistas, os estoicistas, os deontológicos, os voluntaristas, os da liberdade e os espiritualistas. Segundo Rodrigues (2016), para entender os critérios ético-morais contemporâneos dessa sociedade diversa, multicultural e multifacetária – em suas diversificadas aplicações nas organizações e instituições sejam elas públicas ou privadas –, é preciso analisar as decorrentes implicações em suas formas de proceder e de subsidiar as práticas administrativas e gestoras, por meio dos valores e princípios que estruturam e fundamentam essa mesma sociedade em sua fluidez e complexidade. Isso nos leva a buscar compreender que a renovação contemporânea dos princípios éticos clássicos pressupõe o questionamento de inúmeros aspectos, entre eles os dos princípios religiosos, da força afirmativa da vida humana e dos direitos humanos, da realidade, da responsabilidade, da liberdade, da igualdade e da diferença, da autodeterminação, do respeito à vida e à natureza, dos constructos da ciência e da civilização tecnológica e de suas decorrências na vida das pessoas, dos povos e das nações. Essa exposição não esgota os critérios éticos, pois existem muitos outros que não foram realçados. Os critérios em apreço estão em sintonia com o senso comum e procuram ser a expressão das ideias veiculadas pela opinião e pelas mentalidades populares. 12 De forma resumida, independentemente de sua condição espaçotemporal ou histórica, segundo Rodrigues (2016), temos a considerar que qualquer que seja a perspectiva de análise dos atos humanos em contextos socioculturais, estes somente poderão ser julgados moralmente se forem realizados livre e conscientemente e, por conseguinte, sejam atos cuja responsabilidade pode ser assumida plena e livremente por seus agentes. FINALIZANDO Sintetizando os conteúdos abordados nesta aula, temos que a relevância das reflexões éticas sobre posturas e vivências humanas, com embasamento nas normativas morais de uma respectiva sociedade ou grupo social e profissional, têm demonstrado ao longo do percurso histórico da humanidade que, por mais determinante que seja a moralidade vigente, ela tem sua condição transitiva e adaptável. Além disso, está factualmente situada, permitindo que os sujeitos e as instituições, organizações e empresas (públicas ou privadas) sejam aprimoradas ou modificadas buscando sempre a construção de uma sociedade mais justa, socialmente mais sustentável e moralmente mais viável, consolidando o desejo universal da humanidade: ser feliz. Buscamos em Rodrigues (2016, p.46) a reflexão que finaliza as premissas aqui apresentadas e reforçamos que, seja qual for o período histórico, seja qual for o critério ético sustentado, de qualquer forma a humanidade não cessa sua busca pela condição idealizada pelos sábios da humanidade. Assim, podemos afirmar que: A história da humanidade nos apresenta interessantes e ilustrativos exemplos sobre essas mudanças e adaptações, avanços e/ou retrocessos no campo da moralidade. Há tempos de harmonia e tempos de barbáries e todos são temposhumanos, razão pela qual nos cabe sempre a reflexão ética. Conforme Machado Filho (2006, p. 22), é relevante ter presente que nas conectividades sociais, culturais, organizacionais, econômicas e políticas das sociedades hodiernas – com suas evolutivas complexas e céleres modificabilidades estruturantes –, por força das condições tecnológicas e midiáticas que se definem diuturnamente e implicam em formas diversificadas de relações entre os sujeitos, a sociedade política e suas instâncias governamentais e a sociedade civil organizada coletivamente, é preciso considerar que: 13 As mudanças institucionais decorrentes da evolução tecnológica (e midiática da sociedade contemporânea), que estão levando à intensificação do fluxo informacional e à internacionalização dos mercados, bem como novos marcos regulatórios especialmente em questões ambientais e sociais, têm induzido as empresas (públicas e privadas) a desenvolverem ações buscando manter ou ganhar reputação. E, nesse processo, cresce a preocupação com o comportamento ético e socialmente responsável (e se revelam substantivos índices de avanços e de progresso ético-moral). Portanto, para finalizar, consideramos a urgente necessidade de observar e refletir sobre as diversas maneiras para o desvelamento do cenário complexo e instável do contemporâneo, no qual parece, em uma primeira e rasa visada, que vale tudo no âmbito ético-moral. Porém, olhares mais aprofundados e análises eticamente situadas, revelam que os âmbitos democráticos – como conquistas dos tempos modernos – se apresentam e definem explicações e compreensões mais equânimes e diversas, nas quais o contexto da reflexão ética é cada vez mais valorizado e, juntamente com ambiências ambientalmente sustentáveis, são condição sine qua non para sustentabilidade da própria condição humana. 14 REFERÊNCIAS ALVES, J. A. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994. ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1994. BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução de: C.N. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de: R. Jugmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. KLIKSBERG, B. Mais Ética, mais desenvolvimento. Brasília: Unesco; Sesi-DF, 2008. MACHADO FILHO, C. P. Responsabilidade social e governança. O debate e as implicações. São Paulo: Pioneira; Tomsom Learning, 2006. MACYNTIRE, A. História de la ética. Tradução de: R. J. Walton. Buenos Aires: Paidós, 1994. MACYNTIRE, A. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução de: M. P. Marques. São Paulo: Loyola, 1991. MORIN, E. O Método 5: a humanidade da humanidade. Tradução de: J. M. Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005. QUINTANA, F. Ética e política - da antiguidade clássica à contemporaneidade. São Paulo: Atlas, 2014. RODRIGUES, Z. A. L. Ética, cidadania e responsabilidade social nas instituições educativas. Curitiba: Camões, 2008. RODRIGUES, Z. A. L. Ética na gestão pública. Curitiba: InterSaberes, 2016. SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez, 2006. SANTOS, A. R. Ética: caminhos para a realização humana. São Paulo: Ave Maria, 1997. WEIL, P. A nova Ética. Na política, na empresa, na religião, na ciência, na vida privada e em outras instâncias. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. 15 VALS, A. O que é ética. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. VÁZQUEZ, A. S. Ética. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. AULA 3 ÉTICA, MORAL E TRANSPARÊNCIA NA GESTÃO PÚBLICA Profª Zita Ana Lago Rodrigues 2 INTRODUÇÃO O objetivo desta aula é relacionar os conceitos de gestão pública e transparência com algumas competências essenciais para práticas gestoras de cunho transparente embasadas em valores e princípios da ética e da moralidade pública. Além disso, a ideia é a de mostrar a importância dos princípios constitucionais como fatores fundamentais para a eficácia e a transparência na gestão pública e como diferenciais necessários para as ações do gestor público. TEMA 1 – CONCEITOS Ao tratar da questão da gestão pública, vale lembrar alguns conceitos que, historicamente, a têm situado, alguns dos quais apresentam cunho mais conservador e outros que, por sua condição mais atual, se adequam às demandas da sociedade contemporânea, caracterizada por sua fluidez (Bauman, 1999; 2001; 2003) e por sua complexa tessitura (Morin, 2003; 2004; 2005) e diversidade crescente (Santos, 2006), na qual, de forma global, os fatos se apresentam e se sucedem celeremente. Essa sociedade contemporânea, com suas características fluídas, complexas e diversas, se revela por meio de fatores contraditórios, dinâmicos e inter-relacionados, o que afeta todos os âmbitos da organização da sociedade e influencia os contextos sociais, políticos e econômicos de forma ampla. Isso não pode ser desconsiderado quando os fatos locais se tornam globais em efêmeros segundos e, com isso, impactam as ações e as práticas gestoras e, em suas consequências locais, nacionais e internacionais, são parte do mundo, que Marshal Mc Luhan (1972; 1964) entendeu e classificou como uma aldeia global. Assim, no mundo e em especial no Brasil, não se permite mais que essas práticas ocorram à margem de determinantes de transparência e princípios constitucionais que as tornem parte efetiva de decisões que, por serem públicas, necessitam ser de acesso amplo e irrestrito a todas as pessoas que compõem uma mesma sociedade política – a pólis – na qual todos e todas se constituem como cidadãos e cidadãs de plenos direitos e deveres, condição mínima que lhes é constitucionalmente garantida. Nesse sentido, ressaltamos o teor do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, em que se afirma a necessidade de se: instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o 3 desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, e foi promulgada sob a proteção de Deus (Brasil, 1988). Esses direitos e deveres são também consubstanciados por essa mesma Constituição, que, em seu art. 1º. reza: Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: I. a soberania; II. a cidadania; III. a dignidade da pessoa humana; IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V. o pluralismo político. Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (Brasil, 1988) TEMA 2 – RELAÇÕES ENTRE GESTÃO E ADMINISTRAÇÃO Portanto, a gestão pública relaciona-se com a função de “administrar os bens e patrimônios do Estado”, seguindo leis específicas e em prol de sua manutenção e uso voltado para o bem comum de cada um dos membros da sociedade e exige qualificações técnicas minimamente possíveis que possibilitem ao gestor gerenciar os órgãos ou setores da administração pública, assumindo com responsabilidade e transparência o uso consciente dos recursos públicos em prol da cidadania de todos. A Administração é uma ciência que, de forma genérica, estuda formas de comportamento e planificação para gerir empresas, organizações e instituições públicas e/ou privadas, analisando suas práticas e padrões de atuação. Atualmente, destaca-se um ramo bastante complexo da administração que se situa no setor público e é composto por organizações e/ou instituições cujas finalidades e padrões organizacionais e culturais se diferenciam dasorganizações ou empresas do mercado e se denomina administração pública, conforme propõe Chiavenato (2018). Administração pública é o estudo aplicado às organizações públicas, e gestão pública é um conceito bem mais recente, que indica a utilização de práticas inovadoras na administração de instituições e organizações dos órgãos e dos setores públicos, conforme afirma Chiavenato (2018), e são mais vinculadas a práticas de gestão visando à organização, à funcionalidade e à atual situação do Estado, seja em âmbito federal, estadual, distrital ou municipal. Algumas de suas práticas foram importadas do setor privado, outras recuperadas dos porões da história, e as mais recentes relacionam-se às 4 instituições ou organizações de cunho público, cuja missão é de interesse do público ou relacionada à vida pública – a pólis – abrangendo ações em áreas como recursos humanos, finanças públicas, políticas públicas e organização e funcionamento do Estado. TEMA 3 – ORIGENS DO CONCEITO DE GESTÃO PÚBLICA Considerando-se o exposto e tendo em vista os preceitos constitucionais, vale refletir sobre a gestão pública, que, desde suas origens, tem sido estudada, pensada e repensada e tem seus conceitos como parte dos estudos e das formações teórico-práticas dos que se dedicam a formalizar do que consiste essa determinante da ação gestora no âmbito sociopolítico e econômico da organização do Estado brasileiro. Em uma visão mais clássica, retomamos a Fayol (1950) que, em sua obra Administração industrial e geral, apresenta o ensinamento básico de que a condição administrativa liga-se ao processo de previsão e visualização de possibilidades de realizar a avaliação e o provisionamento de condições para que uma organização e/ou instituição, pública ou privada, possa prever e organizar suas condições de planejamento, programação e orçamentação de recursos e condições para seu adequado funcionamento e se desenvolva a contento em seu contexto de ação. A evolução do conceito da gestão pública foi aplicada no Brasil à Administração Pública Federal (APF), sendo pensado como um processo administrativo tipificado em algumas etapas, tais como: o planejamento, a programação, a orçamentação, a execução, o controle e a avaliação das políticas públicas que visem, direta ou indiretamente, à concretização de ações em uma organização/instituição pública. Assim, essas etapas constituem-se em partes dos processos de execução do cotidiano da governação pública, com seus respectivos impactos e consequências para os que nelas se envolvem, seja como planificadores ou como receptores de seus resultados. Podemos definir que essas premissas do conceito fayolista que definem as funções administrativas de prever, organizar, comandar, coordenar e controlar apresentam forte analogia com os preceitos contidos no Decreto-Lei n. 200/1967, que dispõe sobre a organização da Administração Federal e estabelece diretrizes para a reforma administrativa e dá outras providências. E apresentam também analogias e similaridades com os preceitos da Lei n. 12.527/2011, ou seja, a 5 chamada Lei da Transparência, que regula o acesso a informações e que, em seu art. 1º., do Capítulo I, das Disposições Gerais, reza o seguinte: Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei: I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; II - as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (Brasil, 2011). Avançando nas premissas legais e nos aspectos conceituais sobre gestão pública, tomamos de Carneiro e Menicucci (2013) a afirmativa de que nas últimas décadas esse termo (gestão pública) tem sido utilizado de forma sistemática, em substituição ao conceito de administração pública, o que o tornou um termo polissêmico, referente ao fato de que alguns ainda o confundem com administração pública e outros entendem que seu uso marca o rompimento com aspectos tradicionais da administração e justifica sua adoção com base em seu sucesso e aplicabilidade, relacionado às novas ferramentas da organização e planificação no mundo empresarial, o que lhe daria um mais amplo significado. Nesse sentido, e em acordo com situações mais contemporâneas, definem Carneiro e Menicucci (2013) que gerir significa assumir responsabilidades sobre uma ação dentro de um sistema ou do espaço da organização e/ou instituição, nos quais se definem e realizam articulações, relações e negociações de interesse dos envolvidos nessas mesmas ações e dizem respeito à administração pública, cujos processos são específicos e se referem a um conjunto de práticas e atividades referentes ao conjunto de organizações, e não apenas de uma, cuja finalidade seja ajustar e adequar a complexidade da governança pública. TEMA 4 – NOVAS MODALIDADES DE GESTÃO: AÇÕES E PRÁTICAS INOVADORAS NA GESTÃO PÚBLICA Entendemos assim que o termo gestão pública tem sido aplicado, conforme normativas legais acima citadas, à administração pública e está relacionado a um processo administrativo que consiste em seis etapas de organização: planejamento, programação, orçamentação, execução, controle e avaliação de determinadas condições de oferta de políticas públicas que visem e se destinem 6 à concretização direta ou indireta de práticas de gerenciamento de instituições públicas e se constituem então naquilo que atualmente se denomina gestão pública (Chiavenato, 2018). Os avanços no tocante à administração não ocorreram apenas nos aspectos teóricos mas também ocorrem cotidianamente no âmbito da vida prática da organização sociopolítica e, conforme proposto por Quenehen (2019), essa nova modalidade de gerenciamento da coisa pública é denominada gestão pública, sendo também conceituada como gestão para o século XXI e que consiste em: uma proposta que se destina a adaptar e melhorar as formas de organização e funcionamento da Administração Pública, para que o Estado possa cumprir com eficácia e eficiência os seus fins. [Sendo] definida, também, como um novo contrato, um novo acordo entre políticos, funcionários públicos e sociedade para melhorar a capacidade do Estado na sua tarefa de implementar as políticas, sob condições fiscais e financeiras adequadas (Quenehen, 2019). Portanto, entendemos ser fundamental o reconhecimento das condições da sociedade, em especial nas sociedades ocidentais, frente ao contexto célere que modifica as formas de ver, sentir e representar o mundo e exige que sejam delineadas algumas das situações globais que constituem essa nova modelagem de mundo na complexa (Morin, 2003), fluída (Bauman, 1999; 2001; 2003) e diversa (Santos, 2006) sociedade contemporânea, destacando-se que sejam essas algumas de suas mais significativas marcas constitutivas e que exigem novas formas de ação e de caracterização da ação gestora, seja em âmbitos públicos, seja em âmbitos privados. Nesse sentido, com base nos autores acima citados, Rodrigues (2008) afirma ser relevante considerar que se vivencia hoje uma revolução tecnológica sem precedentes com a difusão maciça de dados e informações por infovias, novas formas de comunicação e de produção, uso e disseminação das informações e do conhecimento, a globalização dos mercados e das políticas públicas com o modelo neoliberal de diminuição do papel do Estado e ampliação e fortalecimento das leis de mercado, a internacionalizaçãodo capital com uma intensa reestruturação dos sistemas de produção e do desenvolvimento econômico, com mudanças nos processos de produção, na organização do trabalho e dos trabalhadores e na qualificação profissional, a circulação e o consumo globalizado da cultura e dos conhecimentos, com profundas mudanças nos paradigmas da ciência e do conhecimento, influindo na pesquisa, nas 7 ciências, na produção do conhecimento e nos processos de ensino e aprendizagem e o agravamento da exclusão social, cultural, política, econômica e tecnológica, com o surgimento de lideranças messiânicas. Esses são fatos que afetam a gestão da vida pública e apresentam riscos que exigem ações mais transparentes e de cunho participativo no âmbito da gestão da coisa pública, revelando como decorrência a efetiva construção e a ampliação da cidadania ativa. No fundamental reconhecimento do papel do Estado nas sociedades ocidentais para a consolidação da democracia, como detentor de princípios e normas para fomentar o crescimento econômico, cultural e social e responsável pela redução das desigualdades, por meio da promoção de educação, saúde, saneamento básico e segurança, entendidos como fatores cruciais para a manutenção da ordem e da harmonia da sociedade, há que se considerar de que forma esse mesmo Estado consolida essas prerrogativas e se define como um fator preponderante para que essa sociedade seja justa e equânime na distribuição dos recursos, financeiros, humanos, tecnológicos e de apoio, necessários a essa consolidação. Portanto, retomando Quenehen (2019), temos a considerar que, na atual configuração do Estado contemporâneo, seja ele do modelo patrimonialista, que esteve presente no âmbito brasileiro no período monárquico e nas fases iniciais do governo republicano, seja no sequente modelo burocrático, presente nos governos de Getúlio Vargas, seja no modelo gerencial do governo FHC, seja no modelo populista, marcante nos governos de Lula da Silva e de Dilma Roussef, e no atual momento da gestão governamental, com o governo Bolsonaro, esse Estado ainda se constitui em uma instituição determinante, vital e necessária. Essa condição vital e necessária se revela por ser sua função primordial a criação de condições para a organização e a manutenção da ordem social e política, visando estimular e fomentar políticas que propiciem o desenvolvimento nacional e o delineamento de necessários fundamentos e normativas legais – com a devida aquiescência e respaldo do Parlamento – que levem à exequibilidade de ações e práticas gestoras e ao delineamento de políticas públicas que permitam a manutenção, desempenho e desenvolvimento do governo e do Estado e que estimulem a vivência democrática e a participação e envolvimento de todas as pessoas que compõem o universo populacional do país. 8 É nesse contexto de mudanças que surgem iniciativas governamentais inovadoras que, embasadas em princípios constitucionais para a governação do Estado, se apresentam e contribuem para a definição e a normatização das relações entre governo e sociedade e que estruturam suas formas de gestão. No Brasil, desde 2011, com a promulgação da Lei n. 12.527/2011, a chamada Lei da Transparência, constituíram-se premissas de regulação sobre o acesso às informações e foram dispostos os procedimentos a serem observados pela União, estados, Distrito Federal e Municípios, com o intuito de garantir práticas embasadas nos princípios constitucionais, previstos no art. 37 (e seus respectivos incisos) da Constituição Federal de 1988: os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (LIMPE), que foram complementados pelo princípio da eficiência, instituído pela Emenda Constitucional n. 19/1988. Temos ainda os chamados princípios de embasamento infraconstitucional ou do segundo grupo que, embora não sejam definidos como princípios servem como parâmetros quando delimitam constitucionalmente nos Incisos I a XXI e seus respectivos parágrafos, aspectos sobre os desdobramentos e a condução das ações e dos atos relativos ao exercício da função e/ou do cargo público.” (Rodrigues, 2016, p. 146). Entendemos a relevância de destacar esses outros princípios relacionados ao desempenho dos serviços e das atividades da e na gestão/administração pública, sendo eles considerados princípios de embasamento infraconstitucional por serem fundamentados em premissas legais que complementam e regulamentam os determinantes constitucionais tidos como base da administração pública, sendo eles de não somenos importância e que deverão também ser considerados nas práticas das atividades administrativas no âmbito público, podendo-se elencar, entre outros, os princípios: do interesse público, da finalidade e da legalidade, da igualdade, da colaboração e boa-fé, da motivação, da razoabilidade, da lealdade, da integridade, da proporcionalidade, da justiça e imparcialidade, da informação e qualidade, da competência e responsabilidade. Com relação aos princípios constitucionais referenciados claramente no art. 37 da CF/1988 e na Emenda Constitucional n. 19/1998 acima expostos, referimos que suas expressões são também citadas em leis infraconstitucionais, como a Lei Complementar n. 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Planejamento, Transparência, Controle e Responsabilização); a Lei 8.666/93 – 9 Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública; a Lei 4.320/64 – que regulamenta o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (unidade, anualidade, universalidade – UAU), entre outras normas legais, tais como a Lei n. 8.112/1990, de semelhante relevância, que dispõem sobre atos e fatos que todos os gestores públicos devem observar e visam dar solidez e segurança legal ao exercício da função do agente público em todas as esferas do poder público. TEMA 5 – FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA Além dos princípios constitucionais, previstos no art. 37 da CF/1988, o Modelo de Excelência do Sistema de Gestão Pública (Brasil, 2013) pautou-se por fundamentos da gestão pública contemporânea e que, de certa maneira, guardam semelhança com os critérios de excelência utilizados por esse mesmo modelo e certamente contribuem com as premissas de uma gestão pública pautada por práticas de eticidade urgente e necessária: Pensamento sistêmico – Entendimento das relações de interdependência entre os diversos componentes de uma organização, bem como entre a organização e o ambiente externo, com foco na sociedade. [...] Aprendizado organizacional – Busca contínua e alcance de novos patamares de conhecimento, individuais e coletivos, por meio da percepção, reflexão, avaliação e compartilhamento de informações e experiências. [...] Preservar o conhecimento que a organização tem de si própria, de sua gestão e de seus processos é fator básico para a sua evolução. Cultura da Inovação – Promoção de um ambiente favorável à criatividade, à experimentação e à implementação de novas ideias que possam gerar um diferencial para a atuação da organização. [...] Liderança e constância de propósitos – A liderança é o elemento promotor da gestão, responsável pela orientação, estímulo e comprometimento para o alcance e melhoria dos resultados organizacionais e deve atuar de forma aberta, democrática, inspiradora e motivadora das pessoas, visando o desenvolvimento da cultura da excelência, a promoção de relações de qualidade e a proteção do interesse público. É exercida pela alta administração, entendida como o mais alto nível gerencial e assessoria da organização. [...] Orientação por processos e informações – Compreensão e segmentação do conjunto das atividades e processos da organização que agreguem valor para as partes interessadas, sendo que a tomada de decisões e a execução de ações devem ter como base a medição e análise
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