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- -1 SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA JURÍDICA DIREITO E SOCIEDADE Marcus Vinícius de Freitas Teixeira Leite - -2 Olá! Você está na unidade Direito e Sociedade. Conheça aqui a importância de algumas abordagens sociológicas do Direito, tais como as teorias de Georges Gurvitch, Eugen Erlich, Leon Duguit e Clifford Geertz. A partir desses autores, você compreenderá a importância de tais perspectivas para o estudo sociológico do Direito. Além disso, analisaremos as noções de “globalização” e “multiculturalismo”, tão importantes no mundo atual cada vez mais conectado. Por fim, estudaremos a questão da eficácia do Direito a partir de uma abordagem sociológica. Bons estudos! - -3 1. Contribuição de outros teóricos para a Sociologia e a Antropologia do Direito Algumas correntes específicas do Pluralismo Jurídico trataram o Direito sob uma perspectiva sociológica própria, como é o caso de Georges Gurvitch, Eugen Erlich, Leon Duguit e Clifford Geertz. Todas são teorias que de alguma forma colaboraram para refletir sobre o fenômeno jurídico de diferentes maneiras e trouxeram suas contribuições para o que será discutido ao longo desta unidade e da disciplina, como veremos a seguir. Assista aí https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2 /fcf8adcb10f863542a1688091cc8807c - -4 1.1 Concepção e objeto da Sociologia Georges Gurvitch (1894-1965) foi um sociólogo e jurista nascido na Rússia e que, ao longo de sua vida, realizou diversos estudos no campo sociológico em geral e especificamente na . A teoria deSociologia do Direito Gurvitch insere-se dentro da corrente do Pluralismo Jurídico, que simplificadamente compreende outras formas de existência de juridicidade fora do aparato estatal. Na concepção de Gurvitch, há uma verdadeira teoria do Direito, baseada em uma relação de complementariedade entre a Sociologia e a Filosofia: “(...) a Filosofia auxilia na diferenciação de fatos morais, de interpretação, estéticos e jurídicos enquanto a Sociologia ajuda a entender de forma fática a multiplicidade empírica desses aspectos na vida prática dos comportamentos sociais” (ROCHA, 2019. p. 200). Gurvitch percebe na Jurisprudência certa autonomia em relação à dogmática jurídica, por entender que aquela uma “engenharia social” adaptada às possíveis interpretações de necessidades específicas de sistemas jurídicos concretos em “sociedades totais”. Tais sociedades seriam “grandes esferas culturais localizadas em épocas diferentes”, como civilizações e países culturalmente identificados (Estados Unidos, Império Romano, Inglaterra, dentre outros) (ROCHA, 2019. p. 200). que Gurvitch busca compreender a sociedade e seu dinamismo ao levar em conta os conflitos existentes, e a necessidade de solucioná-los, que seriam oriundos de choques de ordem moral, cultural, religiosa e estética. E, como forma de solução dos conflitos, o direito aparece enquanto intervenção regulativa (ROCHA, 2019. p. 202). Daí, então, a preponderância que Gurvitch dá à Jurisprudência, na medida em que é voltada à particularidade do fenômeno social sub judice, isto é, os fenômenos sociais que estão no âmbito do Poder Judiciário, sob a tutela de juízes. Tais fenômenos devem, portanto, ser analisados com auxílio da Sociologia do Direito e da Filosofia do Direito, que contribuíram para uma compreensão mais completa a respeito dos conflitos que caracterizam essencialmente o dinamismo social (ROCHA, 2019. p. 202). Gurvitch entende, ainda, que o direito nasce na sociedade, não no Estado, não sendo sequer necessário o Estado para a existência do Direito, o que implica na plena possibilidade de haver Direito sem que haja qualquer ato estatal. Para haver Direito, porém, é preciso que existam “ ”, que são considerados ideias-açõesfatos normativos guiados por valores morais e jurídicos. Assim, sendo o Direito surgido da sociedade e dos fatos normativos que nela emergem, Gurvitch diz haver duas espécies de Direito: social e individual. O social é baseado “na coletividade organizada e se caracteriza por uma ordem normativa integradora”, enquanto o individual, “de base individualista, caracteriza-se por ordem normativa de exclusão”, pode ser considerado como consequências das condições sociais do liberalismo econômico (VIEIRA, 2015. p. 117). - -5 Embora Gurvitch tenha feito sua teoria com uma riqueza maior de detalhes e com outras diferenciações pertinentes, o que se percebe é que ele fundou sua tese a partir de um pluralismo antiestatal dialético, uma vez que extrai sua fonte normativa da coletividade, sobretudo dos fatos normativos já vistos. Por conseguinte, o Direito social por ele formulado se opõe ao individualismo liberal e estabelece uma relação de equivalência entre os direitos existentes (VIEIRA, 2015. p. 123). - -6 1.2 Eugene Ehlich e o Direito vivo Eugen Ehrlich (1862-1918) foi um sociólogo e jurista nascido na Áustria e vinculado à chamada Escola do , que propunha uma maior liberdade ao juiz e intérprete da lei para sua aplicação, sem haver umaDireito Livre completa submissão à lei e com uma vinculação da aplicação à ideia de justiça. Para Ehrlich, o ponto central do Direito não se encontra na jurisprudência, nem na legislação ou na ciência jurídica, mas sim na própria sociedade. Trata-se, então, de um , que embora não negue a existênciaDireito vivo do Estado, rejeita o monismo jurídico - fonte do direito como sendo apenas estatal -, e o paradigma formalista. Em sua teoria, o Estado seria apenas mais uma entre as tantas associações organizadas que compõem a sociedade (VIEIRA, 2015. p. 109). Além disso, segundo Ehrlich, todo Direito é social, de modo que não há Direito privado ou individual. Isso porque, para o autor, não há indivíduo fora de um contexto social mais amplo, sendo que tal contexto na verdade sempre abarca o indivíduo de alguma maneira (VIEIRA, 2015. p. 119). Assim, com o propósito de tentar compreender o funcionamento do Direito na vida social, Ehrlich funda a teoria do chamado “Direito vivo”, segundo a qual o Direito equivale às normas jurídicas de conduta, ou seja, aquelas regras que as pessoas de fato observam em seu cotidiano, na convivência social (KONZEN e BORDINI, 2019. p. 315). Nesse sentido, as relações humanas em geral “são determinadas por regras aceitas como vinculantes pelos integrantes das associações sociais e convertidas em ações efetivas no dia a dia”. Por isso, para que se possa de fato estudar esse Direito vivo, seria necessário analisar como tais associações se estruturam, quais são as regras seguidas pelos membros, qual seria sua ordem interna etc. (KONZEN e BORDINI, 2019. p. 315). Dessa forma, Ehrlich retira a centralidade do aparato estatal como fonte do Direito. Para ele, o Direito existe antes de sua positivação, já que é a partir das práticas existentes na convivência social, dos chamados “fatos do Direito”, que se dão as bases para a elaboração de legislações estatais. Diante disso, Ehrlich coloca um importante questionamento acerca dos motivos que levam as pessoas a seguirem determinadas regras. Segundo o autor, as pessoas levam em conta o pertencimento às associações sociais – a fim de evitar desentendimentos e desavenças, perda de emprego ou prejuízos à reputação, por exemplo –, de modo que seria questionável até que ponto decisões judiciais e uso de coerção pela força influenciam as pessoas a seguirem regras postas. (KONZEN e BORDINI, 2019. p. 316). - -7 Por fim, vale ressaltar que Ehrlich faz uma diferenciação entre e . As proposiçõesnormas proposições jurídicas seriam formulações precisas de um preceito legal previsto em um estatuto ou código, enquanto as normas jurídicas seriam comandos legais “(...) reduzidos a termos práticas para obter obediência, emanado de uma associação determinada, (...) mesmo sem nenhuma formulação em palavras” (COELHO, 2003. p. 428). Em outras palavras, as proposições seriam, por exemplo, instrumentos utilizados pelos tribunais encarregados demanter certa ordem jurídica. Assim, segundo Coelho, as proposições não são de conhecimento generalizado na sociedade, uma vez que processos em tribunais não são fatos absolutamente rotineiros na vida das pessoas, ao contrário do que ocorre em relação às normas jurídicas, já que cotidianamente as pessoas estabelecem inúmeras relações jurídicas (COELHO, 2003. p. 428). Enfim, o que se pode ver é que Ehrlich valoriza a vivência da sociedade ao pensar o direito. Por esse motivo, conforme Coelho, sua teoria afasta uma grande relevância para o direito estatal, inclusive porque as relações jurídicas de uma sociedade sequer podem ser totalmente contempladas na legislação, na medida o dinamismo social pode rapidamente tornar a legislação antiquada para os fatos sociais (COELHO, 2003. p. 429). - -8 1.3 Leon Duguit e o Direito como regra da vida social Leon Duguit (1859-1928) foi um jurista francês que ficou notabilizado por sua contribuição nas teorias do Direito Público e pelo desenvolvimento das noções básicas da teoria do Direito. Assim, diante da completude de suas obras, a teoria desenhada por Duguit reverberou nas mais diversas áreas do Direito. De início, vale ressaltar a diferenciação que Duguit faz entre e . O primeiroDireito objetivo Direito subjetivo “designa os valores éticos que se exige dos indivíduos que vivem em sociedade”, de modo que a observância à tal ética seria responsável por preservar o interesse comum. O Direito subjetivo, por sua vez, consiste em um poder do indivíduo que integra a sociedade. Este poder é o que torna possível ao indivíduo a obtenção de um reconhecimento social dos seus atos de vontade - desde que legitimados pelo Direito objetivo (DUGUIT, 2009. p. 15). Nesse sentido, Duguit considera equivocada a visão monista do Direito, segundo a qual só haveria Direito no Estado. Além disso, Duguit parte do pressuposto de que o ser humano é intrinsecamente social. Para ele, “a existência da sociedade é fato primitivo e humano, e não, portanto, produto da vontade humana”, de modo que todos nós, desde o nascimento, integramos algum agrupamento humano (DUGUIT, 2009. p. 39). Assim, o que explicaria os laços de integração entre os seres humanos seria, segundo Duguit, a solidariedade social. A solidariedade abrangeria toda a humanidade, embora sejam laços ainda frágeis, já que os laços de solidariedade geralmente são voltados entre os integrantes de um mesmo grupo social, sendo que a humanidade estaria dividida em muitos grupos, na visão de Duguit. Ainda segundo o autor, os seres humanos de um grupo são solidários pois possuem necessidades em comum e anseios diferentes que se satisfazem a partir de trocas recíprocas nos grupos (DUGUIT, 2009. pp. 39-41). Dessa forma, Duguit entende que o próprio Direito tem seu fundamento na solidariedade. Isso porque, como ressaltado, a sociedade se mantém a partir da solidariedade. Por isso, impõe-se uma regra de conduta aos seres humanos, que pode ser assim formulada: “(...) não praticar nada que possa atentar contra a solidariedade social sob qualquer das suas formas e, a par com isso, realizar toda atividade propícia a desenvolvê-la organicamente”. Para Duguit, o direito objetivo se resume nesta fórmula e a lei deve ser a expressão deste princípio (DUGUIT, 2009. p. 45). É nesse sentido que Duguit considera o Direito como regra da vida social, já que: “A regra de direito é social pelo seu fundamento, no sentido de que só existe porque os homens vivem em sociedade”. Por fim, vale salientar que Duguit entende que a regra de Direito é ao mesmo tempo permanente e mutável, pois a solidariedade seria um elemento perene, mas oscila conforme as variações contextuais pela forma como a solidariedade se dá em cada grupo e momento (DUGUIT, 2009. pp. 45-46). - -9 - -10 1.4 Geertz: fatos e leis em uma perspectiva comparativa Clifford Geertz (1926-2006) foi um antropólogo nascido nos Estados Unidos e é tido como um dos mais influentes de todo o século XX, sendo fundador da chamada Antropologia interpretativa, que até hoje possui grande relevância nos mais diversos campos do conhecimento. Na perspectiva interpretativa de Geertz, ele busca desmitificar os problemas colocados em relação ao relativismo cultural. O relativismo se contrapõe ao etnocentrismo, segundo o qual determinada cultura seria melhor que outra, adotando parâmetros próprios para avaliar diferentes padrões culturais. Assim, o relativismo surge como resposta, com o intuito de promover maior respeito à diversidade cultural e às diferenças entre os variados contextos e culturas existentes. O que ele busca fazer, então, é atacar as perspectivas anti-relativistas, sem, no entanto, adotar uma postura de defesa do relativismo. Seria, assim, um anti anti-relativismo. Segundo Heinen e Laurindo, ele critica a ideia de que o relativismo nos conduziria ao niilismo, ao nada, em que se perderia por completo as noções de verdadeiro e falso (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 66). Assim, ao combater o anti-relativismo, Geertz não pretende confirmar a noção de que tudo depende apenas da perspectiva adotada. De acordo com Heinen e Laurindo, uma de suas pretensões – e, talvez, a mais importante para o estudo jurídico – é a de atentar à alteridade, “(...) para reconhecimento do outro em seu mundo, para a efemeridade, para as mudanças culturais, para a falta de harmonia e para a ausência de solidez” (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 67). De um ponto de vista legal, então, as críticas de Geertz ao anti-relativismo servem para afastar a ideia de um Direito rigoroso, estrito e natural, que seria capaz de resolver todos os problemas. Seu olhar nos convida, na verdade, a pensar no Direito também em mutação constante, flexível e em movimento. Como consequência, o reconhecimento dessa mutabilidade implica também em reconhecer a pluralidade, inclusive em relação às questões jurídicas (HEINEN e LAURINDO, 2018. pp. 70-71). Além disso: “A visão do anti-relativismo através do espelho, como propõe Geertz, contribui, ainda, com o debate sobre a universalidade dos direitos humanos”. Ao colocar certa centralidade nessas questões, Geertz colabora também para a consolidação do respeito à diversidade como um fundamento do Direito. E, aliás, faz com que esse processo seja de mão dupla, na medida em que um olhar crítico em relação a outra cultura sirva também como perspectiva para analisar a própria cultura (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 72). Dessa forma, a perspectiva comparativa e anti-relativista de Geertz possui grande valor para se pensar o mundo jurídico, pois nos permite compreender como a lei – embora congregue uma gama de valores morais, políticos, culturais etc. –, não é capaz de abarcar toda a complexidade e diversidade dos fatos. Por isso, é possível ter uma - -11 visão bem mais cuidadosa no que tange às particularidades e toda a complexidade que envolve a vivência humana em sociedade (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 72). - -12 2. Globalização e Multiculturalismo Agora, analisaremos os controversos conceitos de Globalização e multiculturalismo, buscando notar mais especificamente sua influência no estudo do Direito. Atualmente, em um mundo que se apresenta cada vez mais complexo e conectado, com novas identidades e comportamentos sociais, compreender a globalização e o multiculturalismo enquanto elementos constituintes do mundo hoje em dia mostra-se fundamental. Assista aí https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2 /90c12ff13f04ba0c3e2c3ab87692edb3 - -13 2.1 Globalização Anthony Giddens considera que a Globalização significa, em termos simples, que em um único mundo. O autor acredita que a globalização, tal como a vivemos hoje, é multifacetada, na medida em que é econômica, política, tecnológica e cultural (GIDDENS, 2007. pp. 18-21). Além disso, Giddens destaca que a Globalização não é apenas um processo que acontece fora do ser humano, mas também em aspectos tidos como íntimos, como os valoresfamiliares. Trata-se então, de um processo repleto de complexidades, longe de ser singular. Por isso, há muitas nuances ainda difíceis de se compreender no processo de Globalização, como o ressurgimento de identidades culturais locais em resposta a ela, a perda de certo poder econômico das nações, a pressão por maior autonomia local, dentre tantos outros aspectos (GIDDENS, 2007. pp. 22-23). Nesse sentido, a Globalização implica também na fragilização dos limites geográficos, culturais, políticos e econômicos da sociedade. Com tal fragilização, todos esses fatores que constituem as sociedades passaram a ser mais confusos e misturados, sem distinções perfeitamente nítidas de um contexto para outro. Como consequência, é possível afirmar que o Estado nacional tem ficado enfraquecido diante das transformações que se colocam, o que leva a uma mudança também em relação ao seu próprio papel no mundo (BELTRAME et al., 2008. p. 21). A Globalização pode significar, também, a criação de uma sociedade global, cujo surgimento e fortalecimento é potencializado sobretudo pelos processos de comunicação a partir das novas tecnologias. Nesse caso, tem-se o desenvolvimento de múltiplas redes de poder, com distribuição do poder entre nações e organizações; a autonomia relativa de algumas organizações, “a formação de parlamentos e tribunais em conexão local e transnacional” e a formação de associações em outros espaços de poder local ou transnacional (BELTRAME et al., 2008. pp. 22-23). É preciso, contudo, ter ressalvas em relação a esse processo, já que ele não é total em relação à humanidade e não ocorre de maneira homogênea nas diversas partes do mundo. Nas questões jurídicas propriamente ditas, a Globalização tem trazido um intercâmbio cada vez maior entre os diferentes sistemas jurídicos mundo afora, bem como um diálogo constante entre os Estados e as organizações internacionais, que ilustram esse processo de conexão. E, como a Globalização se dá em termos políticos, econômicos, culturais e tecnológicos, passa a surgir também uma demanda a nível mundial em relação à regulação jurídica das novas construções e comportamentos sociais que vêm surgindo com ela. - -14 Figura 1 - Globalização Fonte: VectorMine, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer Vemos na imagem pessoas de diferentes partes do mundo, conectadas graças ao sistema de telecomunicações e à Globalização. - -15 2.2 Multiculturalismo Nesse contexto de Globalização, não se pode ignorar que existem muitas diferenças culturais relevantes e que tais diferenças estão mais em contato que nunca. Assim, o conceito de surge como sendo “aMulticulturalismo coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’”, embora hoje ele tenha se tornado “um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global” (SANTOS, 2003. p. 26 apud BELTRAME et al., 2008. p. 25). Agora o indivíduo apresenta uma enorme capacidade de se mover entre diversas localidades e, consequentemente, ter contato com variadas culturas. Isso intensifica o processo de transformações das fronteiras e de mudanças culturais em escala global, o que é fortemente influenciado pela Globalização e as questões relativas às trocas econômicas e aos processos de comunicação atuais, conforme já mencionado (BELTRAME et al., 2008. p. 26). O multiculturalismo, portanto, tem a pretensão de construir uma política que respeite as diferenças e as pluralidades de cultura (BELTRAME et al., 2008. p. 27). Isso implica em um trabalho de fortalecimento dos direitos sobretudo das culturas marginalizadas e minoritárias, que frequentemente sofrem com a restrição do acesso aos direitos e à própria preservação cultural. Nesse sentido, a efetivação de uma política de multiculturalismo pode criar condições para um diálogo entre “o local e o global” que permita o reconhecimento das diferenças e a consequente aceitação do outro (BELTRAME et al., 2008. p. 28). No direito, o multiculturalismo foi incorporado por vários sistemas jurídicos mundo afora como um princípio a ser seguido. Percebe-se, então, que no mundo globalizado em que vivemos, o multiculturalismo tem especial importância na preservação de valores culturais e no respeito à diversidade, o que impacta fortemente no direito, já que tais questões devem ser tuteladas juridicamente para a garantia da pluralidade cultural. Fique de olho No Canadá, na Carta de direitos e liberdades, há expressa menção à valorização e promoção do patrimônio multicultural. Além disso, há uma lei específica sobre o multiculturalismo canadense, que propugna, como valores jurídicos, o reconhecimento da diversidade cultural e racial da sociedade canadense, o multiculturalismo como característica fundamental da identidade e do patrimônio canadense, a promoção da compreensão entre indivíduos e coletividades de diferentes origens, dentre outros tantos aspectos. - -16 Figura 2 - Grupo multiétnico de pessoas Fonte: Tartila, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer Vemos na imagem um grupo de pessoas diferentes entre si, com diferentes idades, gêneros, traços étnicos e formas de se vestir, demonstrando o Multiculturalismo. - -17 3. Função da Sociologia do Direito e a eficácia do Direito Como já vimos ao longo da disciplina, a Sociologia do Direito preocupa-se em analisar os fenômenos jurídicos em funcionamento nos processos e estruturas sociais, ou seja, como o Direito surge e repercute na sociedade. O que analisaremos neste tópico, então, é mais especificamente como se dá essa abordagem sociológica do Direito, além dos efeitos sociais e a eficácia das normas, sua análise empírica e os fatores pertinentes à eficácia da norma jurídica. Assista aí https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2 /f729959f12dc6cc25c44cf96f44875a4 - -18 3.1 Direito e a especificidade da abordagem sociológica Conforme dito, a grande relevância da Sociologia Jurídica consiste exatamente na análise dos processos de criação e aplicação do Direito na sociedade. Dessa forma, a Sociologia é uma disciplina que permite compreender, com mais completude, os efeitos dos fenômenos jurídicos na vida das pessoas, como elas alteram ou conformam estruturas etc. A autora Ana Lúcia Sabadell cita um exemplo que nos permite ilustrar como se dá concretamente a abordagem sociológica no Direito. No caso hipotético, situado quando o Código Penal brasileiro previa a prática de adultério como crime em seu artigo 240, ela descreve que em um caso de adultério, o advogado de uma mulher presa por essa prática iria pedir a absolvição sob o argumento de que o artigo 240 não era mais aplicado na prática. Na hipótese, o tribunal rejeita o argumenta e condena a mulher. Ao analisar o caso, um professor de filosofia do direito escreve um artigo afirmando que a punição por adultério é injusta e argumenta em relação à intimidade dos casais e da prática de adultério, concluindo que na verdade o tribunal deveria ter absolvido a mulher (SABADELL, 2002. p. 60). Diante de um cenário como esse, Sabadell questiona qual deve ser a postura do sociólogo do Direito. Ela entende, então que cabem duas etapas de para o estudo empreendido pela Sociologia Jurídica: i) realizar uma pesquisa empírica para ver em que medida o artigo do adultério é aplicado; e ii) “(...) analisar a relação entre o Direito e a evolução da sociedade, para, depois, tentar explicar porque a norma é aplicada ou não” (SABADELL, 2002. p. 61). Sabadell (2002, p. 61) chama a atenção, ainda, para a neutralidade valorativa que o sociólogo do Direito deve ter ao estudar casos como esse: Ao realizar esta pesquisa o jurista-sociólogo não pode emitir juízos de valor sobre o tratamento jurídico e social do adultério. Sua função é a de compreender o pensamento e o comportamento do legislador, das autoridades e dos cidadãos, ou seja, as razões sociais que levam à elaboração de determinadas normas e sua aplicação. Por isto,deve deixar de lado sua opinião pessoal. Em outras palavras, o sociólogo do direito não julga, mas tenta compreender o fenômeno que se propõe analisar: deve buscar o sentido que as pessoas de uma determinada sociedade dão aos acontecimentos e às instituições sociais. É preciso, contudo, relativizar em alguma medida essa pretensão de neutralidade. Embora seja de fato necessário um distanciamento mínimo ao analisar uma questão como essa, todo estudo e pesquisa são permeados pelas cargas valorativas pessoais da pessoa que os realiza. - -19 Disso se depreende que a Sociologia do Direito não está interessada na justificação do Direito (justiça, moral, razão etc.), nem busca compreender a validade das normas, mas sim está ligada à eficácia do Direito, ou seja, à realidade social do Direito. Isso não quer dizer, é claro, que os outros aspectos não sejam relevantes. Trata-se apenas de uma questão de enfoque (SABADELL, 2002. pp. 61-63). O que se vê, portanto, é que em geral o sociólogo do Direito busca analisar o funcionamento das estruturas e processos normativos na sociedade, sobretudo a partir de um estudo empírico. Trata-se de uma análise realmente debruçada sobre fatos concretos e narrativas reais, voltada principalmente para a forma como os fenômenos jurídicos repercutem na vida social. Para isso, a Sociologia Jurídica pode fazer uso de metodologias próprias das ciências sociais, que permitem fazer as averiguações necessárias conforme as especificidades de cada caso e a perspectiva adotada. - -20 3.2 Efeitos sociais, eficácia e adequação interna das normas jurídicas No que tange aos efeitos socias, à eficácia e à adequação interna das normas jurídicas, ainda na perspectiva de Ana Lúcia Sabadell, essas seriam as três dimensões possíveis de análise da repercussão social de uma norma (SABADELL, 2002. p. 64). Primeiramente, em relação aos efeitos da norma, a autora considera que qualquer repercussão social gerada por uma norma constitui um efeito social da mesma. Exemplificando, Sabadell cita um caso em que determinado Estado brasileiro promulga uma lei estabelecendo um aumento no imposto para empresas de capital estrangeiro. Como consequência, é notada uma migração das empresas para outros Estados com alíquotas menores. Não se trata, então, de descumprimento da lei, mas simplesmente de um efeito gerado (SABADELL, 2002. p. 64). A eficácia da norma, por sua vez, diz respeito ao “(...) grau de cumprimento da norma dentro da prática social. Uma norma é considerada socialmente eficaz quando é respeitada por seus destinatários ou quando sua violação é efetivamente punida pelo Estado”. O respeito espontâneo, independente de coerção estatal, seria a eficácia primária, enquanto a eficácia decorrente de intervenção repressiva seria a eficácia secundária (SABADELL, 2002. p. 64). Já a adequação interna da norma seria a capacidade da norma para atingir a finalidade social previamente estabelecida pelos legisladores. Assim, uma norma seria internamente adequada quando suas consequências refletem os fins pretendidos pelos legisladores quando de sua elaboração. A questão, então, é analisar se o meio empregado (a norma jurídica criada) permite atingir os objetivos do legislador (SABADELL, 2002. pp. 65-67). É importante ressaltar, ainda, a existências das chamadas “leis simbólicas”. Tais leis são normas elaboradas de modo que dificilmente alcançarão os objetivos em tese estabelecidos, isto é, são normas cuja baixa eficácia está desde a sua elaboração prevista. Em geral, essas leis são feitas com o intuito de dar algum tipo de resposta a uma insatisfação colocada por grupos sociais, a fim de dar a impressão de que o legislador está agindo para resolver os problemas colocados (SABADELL, 2002. p. 67). Há, ainda, a adequação externa da norma. Nesse caso, os objetivos estabelecidos pelo legislador são analisados a partir de critérios de “justiça” (SABADELL, 2002. pp. 67-68), ou seja, segundo perspectivas muito mais filosóficas que sociológicas. Vale lembrar, por último, que a eficácia pode ser considerada uma qualidade dos efeitos da norma. Isso porque os efeitos podem ser basicamente compreendidos como os resultados gerados pela sua existência, sejam eles - -21 quais forem. Ao passar a análise para os termos da eficácia, a questão passa a ser a qualidade do efeito produzido, isto é, em que medida os objetivos pretendidos estão sendo alcançados (ROSA, 2004. pp. 104-105). É nesse sentido que se diz que uma lei é ineficaz: quando não serve para os fins para os quais foi criada. 3.3 Análise empírica da eficácia das normas jurídicas Diante de todo esse quadro, Sabadell considera que a Sociologia Jurídica permite um estudo empírico para analisar a eficácia das normas, contemplando basicamente quatro questões: A norma possui efeitos, eficácia e adequação interna? No Canadá, na Carta de direitos e liberdades, há expressa menção à valorização e promoção do patrimônio multicultural. Além disso, há uma lei específica sobre o multiculturalismo canadense, que propugna, como valores jurídicos, o reconhecimento da diversidade cultural e racial da sociedade canadense, o multiculturalismo como característica fundamental da identidade e do patrimônio canadense, a promoção da compreensão entre indivíduos e coletividades de diferentes origens, dentre outros tantos aspectos. Qual é a reação do legislador em relação à constatação dos efeitos, eficácia e adequação de uma norma? E quais são as razões sociais para ela? - -22 3.4 Fatores de eficácia da norma jurídica Sabadell nos apresenta os fatores considerados pelo Direito moderno como indicadores de eficácia da norma jurídica, segundo os quais quanto mais forte é a presença de tais fatores, maior é a possibilidade de eficácia da norma. A autora divide os fatores em instrumentais e referentes à situação social (SABADELL, 2002. p. 70). Os fatores instrumentais dependem dos órgãos de elaboração e aplicação do direito e são os seguintes: i) divulgação do conteúdo da norma para a população através dos meios adequados, de modo a empregar métodos educacionais e meios de propaganda política e comercial; ii) conhecimento efetivo da norma pelos destinatários, o que depende largamente do primeiro fator; iii) qualidade técnica da norma, envolvendo a clareza na redação, concisão e precisão do conteúdo, bem como sistematicidade, elementos fundamentais no processo de elaboração da lei e com claras consequências na aplicação e observância; iv) elaboração de estudos preparatórios a respeito do tema sobre o qual se pretende legislar (trata-se dos trabalhos feitos pelo parlamento, em suas comissões por exemplo; v) preparação dos ditos operadores do direito que serão responsáveis pela aplicação da norma; vi) consequências jurídicas adaptadas à situação e socialmente aceitas, ou seja, elaborar normas que estimulem de alguma forma a adesão dos cidadãos; e vii) expectativa de consequências negativas por parte dos cidadãos em caso de descumprimento, de modo a desestimular a inobservância a partir da aplicação das sanções previstas (SABADELL, 2002. p. 70). Os fatores ligados à situação social, por sua vez, dizem respeito ao sistema de relações sociais e atitudes do poder político em relação à sociedade civil, de modo a influenciar nas chances de aplicação das normas jurídicas, havendo quatro fatores: participação dos cidadãos no processo de elaboração das normas, coesão social, adequação da norma à situação política e à relações de força dominantes e contemporaneidade das normas com a sociedade (SABADELL, 2002. pp. 71-73). A participação dos cidadãos no processo de produção normativa tem como cenário a valorização das formas democráticas de exercício do poder. Isso significa que, se as pessoas participam ativamente dos processos de tomada de decisão, considerando que as instituições pertinentes permitam tal participação, certamente haverá maior adesão da população às normas criadas, aumentando a eficácia normativa (SABADELL,2002. p. 71). De outro modo, podemos dizer que as normas em geral criadas pelo poder estatal possuem uma pluralidade enorme de destinatários. Por isso, é imprescindível que o processo de elaboração leve em conta minimamente as vozes das pessoas potencialmente afetadas pela norma. Isso pode resultar não só em uma maior adesão, como também em uma maior qualidade da norma. O segundo fator, de coesão social, diz respeito à existência de conflitos na sociedade em dado momento. Para Sabadell, quanto menos conflitos são travados na sociedade, e quanto mais consenso houver entre os cidadãos e - -23 a política estatal, maior será a eficácia das normas. Há aqui, então, uma relação entre a legitimidade do Estado e a observância às normas (SABADELL, 2002. p. 72). Embora de fato este seja um fator relevante, é importante pontuar também que não se pode ignorar a existência natural do dissenso e das divergências em uma sociedade complexa. Não há problema, em si, nos interesses conflituosos de diferentes grupos sociais. A questão parece muito mais pertinente a respeito de como esses conflitos são colocados e se há um respeito concreto aos direitos garantidos por lei, sobretudo daqueles grupos com menos força política. Já no que tange à adequação da norma à situação política e às relações de força dominantes, Sabadell considera que “(...) a situação socioeconômica de um país e as forças políticas que se encontram no poder influem sobre a eficácia das normas jurídicas. Uma norma que corresponde à realidade política e social possui mais chances de ser cumprida” (SABADELL, 2002. p. 72). Por fim, a contemporaneidade das normas com a sociedade quer dizer, segundo Sabadell, que em geral as normas não são eficazes se exprimem ideias antigas ou inovadoras (SABADELL, 2002. p. 73). Assim, pode-se dizer que a eficácia está ligada também a uma certa harmonia com aquilo que a sociedade anseia em determinado momento. A partir do exemplo já citado nesta unidade, da tipificação do adultério como crime no Código Penal, temos a ineficácia da norma em razão também de sua inadequação aos valores atuais, ou seja, em algum momento a norma passou a exprimir algo tido como antiquado e inapropriado. é isso Aí! Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • Compreender que o pluralismo formulado por Georges Gurvitch tem sua fonte normativa na coletividade. Assim, trata-se de um Direito social que se opõe ao individualismo liberal. • Compreender que, na visão de Eugen Ehrlich, há uma clara valorização da vivência da sociedade ao Fique de olho Ao se falar em eficácia das normas jurídicas, tem ganhado cada vez mais espaço no mundo jurídico, principalmente no contexto internacional, um ramo do Direito conhecido como Legística. A Legística ocupa-se do processo de produção normativa e é dividida entre “formal” e “material”. A legística material diz respeito aos estudos sobre o conteúdo da norma, sobretudo com a avaliação de impacto legislativo, enquanto a legística formal é pertinente aos processos de comunicação da norma, como sua redação. • • - -24 • Compreender que, na visão de Eugen Ehrlich, há uma clara valorização da vivência da sociedade ao pensar o Direito. Por isso, sua teoria não centraliza o direito estatal, mas destaca o dinamismo social, que pode rapidamente tornar a legislação antiquada para os fatos sociais. • Entender que a Globalização significa um processo de intercâmbio político, econômico, tecnológico e cultural entre as sociedades, enquanto o multiculturalismo é uma forma de garantir o respeito à diversidade cultural e às particularidades de cada grupo. • Analisar a eficácia da norma em relação ao grau de cumprimento da lei na prática social, na medida em que ela é respeitada (ou não) pelos seus destinatários. • Compreender que a abordagem sociológica do Direito se concentra sobre a realidade social e os efeitos nela causados pela norma, sem com isso realizar juízos de justiça ou moral, mas sim buscando compreender o funcionamento dos fenômenos jurídicos na vida social. Referências BELTRAME, A. et al. O multiculturalismo e a globalização como princípios para uma internacionalização do direito. In: Padê, Brasília, v. 2, n. 1, p. 4-46, jan./jun. 2008. COELHO, L. F. Teoria crítica do direito – 3ª ed. rev., atual. e ampl. – Belo Horionte: Del Rey, 2003. DUGUIT, L. Fundamentos do direito. Trad. Marcio Pugliesi – São Paulo: Martin Claret, 2009 GIDDENS, A. Mundo em descontrole –Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 6ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007. HEINEN, L. R. et al. Interfaces entre a Antropologia e o Direito: uma discussão sobre o anti anti-relativismo de Clifford Geertz. In: Revista Videre, Dourados, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2018. KONZEN, L. P. et al. Sociologia do direito contra dogmática: revisitando o debate Ehrlich-Kelsen. In: Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N.1, 2019, p. 303-334. ROCHA, J. M. de S. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras – 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. ROSA, F. A. de M. Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato social – 17ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. SABADELL, A. L. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. – 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. VIEIRA, R. de S. Pluralismo Jurídico Clássico: A Contribuição de Ehrlich, Santi Romano e Gurvitch. In: Direito, Estado e Sociedade n. 47 p. 108 a 127 jul/dez 2015. • • • •
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