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SINOPSE Nesta primeira aula, o professor Marcus Boeira estabelece uma distinção introdutória entre os regimes políticos e os regimes impolíticos para caracterizar mais pormenorizadamente os primeiros. OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM Ao final desta aula, espera-se que você saiba: qual o critério principal de um regime político; por que os regimes impuros ou corruptíveis podem ser chamados de regimes impolíticos; o que diferencia os regimes políticos dos impolíticos; o que é a ordem; qual a função primordial da linguagem; o que é a novilíngua; o que é a constitutio; INTRODUÇÃO Sejam bem-vindos a estas duas aulas sobre os regimes políticos e os regimes impolíticos. Nessas duas aulas, eu pretendo analisar com vocês qual é exatamente o fundamento por meio do qual os regimes políticos, na história da civilização, entendidos como regimes legítimos, são não apenas aceitos, como também diferenciados do que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos. Esta diferenciação obviamente parte de uma série de quesitos que nos permitem estabelecer uma variedade de distinções conceituais e teóricas entre duas matrizes ou dois grandes modelos por meio dos quais os sistemas e regimes políticos ao longo da história se edificarem e se constituíram. De um lado, os regimes políticos, tomados aqui como regimes legítimos e ancorados numa perspectiva de ordem. De outro lado, os chamados regimes impolíticos, que procuram exatamente a destruição da ordem tal como considerada. Por isso, na primeira aula, eu gostaria de vencer com vocês aquilo que eu entendo ser a parte mais fundamental dos regimes políticos: quais são exatamente os seus aspectos teóricos subjacentes, qual é precisamente a sua marca característica. Para tal, eu vou distinguir essa primeira aula em três partes. Na primeira parte da aula, gostaria de diferenciar os regimes políticos legítimos dos regimes ilegítimos e explicar por que usaria a expressão “regimes impolíticos” para qualificar estes últimos. Na segunda parte da aula, eu gostaria de descer às peculiaridades atinentes ao que marca esses regimes aos quais eu chamo de regimes políticos. E, no fim, na terceira parte desta primeira aula, gostaria de explorar algumas noções específicas sobre alguns dos modelos que são talhados ou, digamos, considerados regimes políticos na história clássica e na história moderna. De modo que, em nossa segunda aula, possa vencer o que são exatamente os regimes impolíticos e quais são as suas marcas características. 2. OS REGIMES POLÍTICOS Dado isso, em primeiro lugar, é fundamental que nós tenhamos uma noção prévia sobre o que caracteriza, afinal de contas, os regimes políticos em contraste com os regimes impolíticos. 2.1. Os regimes puros e impuros Na “Política”, Aristóteles traz uma classificação sobre o que são os regimes políticos e faz uma distinção entre o que chama ali de os regimes que são tomados como regimes puros e o que ele chama, de outro lado, de regimes impuros ou corruptíveis. No primeiro grupo de regimes políticos, Aristóteles situa a monarquia, a aristocracia e a politeia. Do outro lado, como regimes corruptos - que eu chamaria de impolíticos - são aqueles regimes que degeneram essas formas puras do que seja uma ordem política, que são os regimes tirania, oligarquia e democracia, ao qual o Aristóteles trata como demagogia. 2.2. A democracia no mundo Antigo Obviamente, no mundo Antigo, a palavra “democracia” invocava uma forma de organização do poder que era muito distinta daquilo que temos hoje. Na era atual, nos últimos séculos, a democracia se tornou um dos cânones principais, um dos postulados decisivos da vida política moderna, porque, frente ao agigantamento progressivo e geométrico do Estado como nova forma de organização do poder, a democracia, atualmente, aparece como o regime político que contrasta precisamente esse aumento progressivo do poder estatal com a legitimidade popular, com a soberania popular. No entanto, no passado, a palavra “democracia” não possuía esta conotação. Ela normalmente era vista como uma forma degenerada de organização do poder político, porque, diferentemente da politeia, que é aquela em que as instituições e a vontade social de alguma forma se harmonizam, a democracia, no mundo Antigo, no mundo clássico grego, era vista como um regime que permitia a reificação da demagogia ou o protagonismo dos sofistas. 2.3. A ordem Quando nós olhamos para trás e realizamos o exercício de ler a “Política” de Aristóteles e de outros autores, como o próprio Platão na “República”, vamos perceber que existe, atrás dessa classificação entre os bons e os maus regimes, um critério principal a partir do qual essa distinção sobrevém. Esse critério é o que eu vou chamar aqui de ordem. Todos regimes políticos têm em vista uma noção prévia e constitutiva acerca do que é a ordem. Os clássicos gregos normalmente chamavam esta ordem usando a expressão grega nomos. A expressão nomos, em grego, pode ser muitas coisas como, por exemplo, regra, norma, lei, preceito, mas também ordem. O nomos, a ordem, era tomada como o princípio fundador fundamental por meio do qual uma comunidade humana se edificava e sobrevivia historicamente. Era tarefa das autoridades civis, no início de uma civilização, no início de uma cidade, de uma pólis, construir uma cidade que pudesse expressar e fazer representar, no tempo e no espaço, esta noção primeva de ordem que repousava no horizonte cultural e imagético dos seres humanos historicamente situados naquela civilização específica. 2.4. Os regimes políticos e os regimes impolíticos Os regimes políticos se distanciam e se diferenciam dos regimes chamados impolíticos porque reafirmam a política, isto é, a pólis, a cidade que vive sob o guarda-chuva desta mesma ordem. Uma ordem, o nomos, que, contrastada com a terra, com o elemento geográfico presente em uma cidade, ilumina e lança, sobre o conjunto dos seus habitantes, uma perspectiva integrada de vida, uma forma compartilhada de existência social dentro do que as diferentes formas de vida, os diferentes tipos sociais e as diferentes tipologias de existência vão, de alguma forma, convergindo dentro desta ordem, ainda que esta ordem sempre apareça de um modo espontâneo e aberto no horizonte dos mesmos habitantes. Em contraste com esta noção primeva e criteriosa do que eram os regimes políticos, aparece o que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos. Os regimes impolíticos são regimes que violam a política. Por isso, são chamados impolíticos, porque procuram, em maior ou menor medida, atacar e destruir essa noção primária e primeva de ordem espontânea que está na antessala das civilizações humanas. Os regimes impolíticos, portanto, articulam-se para bem destruir, rovinar, erodir e eclodir a forma e o modo por meio do qual uma comunidade estabelece a sua existência política na História. Por isso, na clássica conexão entre ordem e História, sempre aparece a imprescindibilidade de que algo possa expressar essa ordem ou, por outro lado, algo que venha patologicamente para assaltar ou destruir essa mesma ordem. Nos regimes políticos, portanto, percebemos como critério principal uma ordem natural substantiva no interior da comunidade humana. O nomos da terra, para usar uma expressão do Carl Schmitt1, que de alguma forma ilumina todo cenário histórico, mas o faz de um modo aberto e espontâneo, permitindo com que as ações e as abstenções humanas dentro de uma comunidade possam, de maneira involucrada, serem realizadas ou, no caso das abstenções, não realizadas, para concretar e determinar essa mesma ordem dentro desta mesma comunidade. Há, por assim dizer, uma compreensão da ordem que a toma como uma ordem natural. Diferentemente desta, os regimes impolíticos, para fazer de alguma forma eclodir a ordemnatural, suplantam-na colocando no lugar uma ordem que é meramente artificial. Uma ordem, portanto, que por um, alguns ou um conjunto de critérios, procura destruir esta versão ontológica da política que toma a ordem por acepção ao bem e ao ser humano. No caso dos regimes políticos, a ordem é tomada sempre como a forma do bem humano básico que é compartilhado na comunidade humana. Em outros palavras, a ordem é vista como a forma comum de vida dentro da qual as diferentes formas de vida podem, de maneira espontânea e aberta, realizarem-se e interagirem entre si de maneira a expandir essa ordem de uma maneira natural, espontânea, aberta na História. Os regimes impolíticos, por outro lado, procuram colocar, no lugar da ordem espontânea, uma ordem artificial criada ou por um tirano, ou por uma oligarquia, ou por demagogos, ou por classes de diferentes naturezas que estão diretamente interessadas em arregimentar a massa dos seres humanos em favor de seus respectivos interesses. Palavras como utilidade, interesse, voluntarismo, formalismo, aparecem para ou mitigar a ordem espontânea própria dos regimes políticos ou para fazê-la eclodir colocando no lugar sempre uma perspectiva que cria uma ordem que em pouco ou nada tem que ver com a conjuntura da comunidade humana como um todo. 1 Fi l ósofo (1888 - 1985). 2.5. A ordem e a distinção entre os regimes políticos e impolíticos Portanto, nós podemos dizer que, nessa primeira parte, a distinção conceitual entre os regimes políticos e os regimes impolíticos está precisamente no fato de que os regimes políticos são baseados numa concepção natural do que é a ordem, uma ordem que, caracterizada como espontânea e aberta, vai se expandindo no tempo e no espaço de um modo a permitir, de uma maneira flexível e gradual, o compartilhamento das formas de vida. Há, nessa perspectiva, sempre um aspecto comum, comunitário, que permite a comum unidade, isto é, a comunidade e, portanto, a ação comum, ou seja, a comunicação dos seres humanos ali presentes. Unidade comum, ação comum. Comunidade, comunicação. Esta conexão entre comunidade e comunicação, entre aquilo que é estático e dinâmico na história de uma sociedade humana, de uma comunidade política na História portanto, faz com que esta ordem se expanda para além do tempo e do espaço. Diferentemente desta compreensão, os regimes impolíticos procuram mitigar ou destruir essa ordem espontânea colocando no lugar uma ordem artificial. A vontade de um soberano, o decisionismo, um formalismo mitigado ou quaisquer outros critérios que possam de alguma forma impedir ou anular o avanço da ordem espontânea. Portanto, quais são os elementos que explicitam a ordem espontânea típica dos regimes políticos? Aqui, eu me dirijo à segunda parte da nossa aula. 3. A LINGUAGEM 3.1. A linguagem e a novilíngua Os regimes políticos supõem que subexista, no horizonte ulterior desta ordem espontânea, que nós vamos chamar aqui de a vida histórica dos regimes políticos, sejam eles quais forem, um vínculo constitutivo entre a linguagem e o mundo. De modo que a linguagem, neste sentido, nesta acepção, não é tomada como algo contingente, mas é vista como algo presente no mundo e necessário para que os próprios seres humanos, no mundo, interpretem o mundo e a si próprios. A linguagem, portanto, desempenha uma função primordial, aquela segundo a qual o mundo é expressável e cognoscível pelos seres humanos que habitam nesse mesmo mundo. Veja como são as coisas. A melhor maneira de impedir que os seres humanos possam compreender o mundo e possam compreender a si próprios no mundo é justamente o contrário da língua, que é o que nós chamamos de novilíngua. A novilíngua não é outra coisa senão o instrumento par excellence, por excelência, dos regimes totalitários, que têm em vista precisamente a anulação da consciência. A anulação da consciência que advém por meio de uma nova linguagem, uma nova novilíngua que substitui a língua, digamos assim, natural, que é uma língua convencional, por uma outra língua que é criada em laboratório, que, no caso, é um laboratório de natureza política ideológica. De modo, portanto, que, quando nós falamos nos caracteres principais, nos postulados adjacentes a todos os regimes políticos, nós falamos num envolvimento constitutivo entre a linguagem e o mundo público comum. E naquilo que diz respeito ao político propriamente dito - há uma ontologia do político, vamos dizer assim - qual é a linguagem e qual é o mundo correspondente? 3.2. A Constitutio A linguagem é algo que os romanos já traziam desde a Era Republicana. Nós encontramos rudimentos disso nos escritos dos juristas romanos como Caio2, por exemplo. Ali, nós percebemos claramente a importância do que eu vou chamar aqui em latim com a palavra “constitutio”. Constitutio, da onde vem a palavra “constituição”, é a linguagem que expressa essa ordem primária espontânea. A constituição, que no Mundo Antigo pouco ou nada tinha que ver com o que hoje nós chamamos de constituição, 2 Caio Ateio Capitão, jurista (30 a.C. - 22 d.C.) . representa a própria linguagem expressiva do nomos. Ou seja, como esse nomos é comunicado para os seres humanos. Como a ordem espontânea é expressa perante o auditório de seres humanos que compartilham desta ordem de um modo consciente ou mesmo de um modo inconsciente por vezes. Este compartilhamento se dá por meio de uma constitutio. Mas veja que a constitutio hoje pode ser, por exemplo, uma constituição escrita, ou uma constituição não-escrita, ou uma constituição parcialmente escrita por meio de certos documentos de fontes históricas, como é o caso do Reino Unido. A constituição inglesa, para o direito constitucional, não é uma constituição escrita, porque não é um documento formal como no Brasil, onde temos a Constituição de 88, ou como a Constituição dos Estados Unidos de 1787 e outros textos, mas é uma constituição historicamente construída e, portanto, construída por meio de atos, eventos históricos e documentos escritos, como é o caso da Magna Carta, do Bill of Rights e de outros documentos importantes que vão de alguma forma formatando aquela tradição jurídica. Tudo isso para dizer que a palavra “constituição”, entendida no sentido clássico ou entendida no sentido moderno - e por isso eu dizia que há pouco que ver, quer dizer, algo há de comum, há pouco, mas há alguma coisa - o que há de comum é precisamente isto: o fato de que, tanto no sentido antigo como no moderno, a constituição é a linguagem que expressa a ordem. E essa expressão da ordem é a expressão daquilo que há de comum entre os seres humanos em uma comunidade humana. O que os brasileiros possuem de comum? Aquilo que está na constituição. O que os norte-americanos possuem de comum? Aquilo que está na constituição. O que os italianos possuem de comum? Aquilo que está na constituição. Tudo isso para dizer que nós podemos criticar uma constituição ou outra, mas é causa final, é finalidade de uma constituição, seja ela qual for, expressar, por meio da linguagem, o que há de comum entre uma comunidade política. Só que isto basta? Essa é a pergunta. Ou seja, quando nós vemos as diferentes formas de aplicabilidade de eficácia das constituições entre si nos seus respectivos países, nós nos perguntamos: isto basta? Quer dizer, há países onde as constituições são mais eficazes do que o Brasil, por exemplo. Então, basta a constituição ou são necessárias outras coisas? 3.3. A relação entre a linguagem e o mundo público comum E aqui eu entro no segundo aspecto que eu havia dito, que é a relação entre a linguagem e o mundo público comum. Esta relação da linguagem com o mundo público comum exige que da constituição nós tomemosaquilo que vai de alguma maneira determinar a ordem no mundo público comum, aquilo que vai concretizar a constituição na realidade prática da comunidade política. E o que é isto que permite uma aplicabilidade, uma eficácia maior, uma determinabilidade prática da linguagem constitucional na realidade política propriamente dita? Esse envolvimento da linguagem com o mundo se dá porque, da constituição, nós mergulhamos no mundo por meio de três níveis discriminados entre si. Três níveis que estabelecem uma espécie de procedimento constitucional. Um démarche sociológico e político que permite a uma comunidade humana interpretar o mundo e autointerpretar-se nesse mundo. 3.3.1. O nível das instituições Vou chamar esses três níveis aqui com os seguintes termos. O primeiro nível é o que eu vou chamar de o nível das instituições juspolíticas. Da constituição, o primeiro nível que é exigido é o nível institucional, porque as instituições, de alguma maneira, estabelecem uma primeira modalidade concreta de expressão da linguagem constitucional. Mais ou menos assim: eu preciso ver a ordem. Assim como uma criança precisa ver a ordem dada por seus pais ou por aqueles que têm autoridade sobre ela, em razão de sua incapacidade de governar a si própria, os cidadãos adultos precisam ver a ordem para que possam ter uma orientação na comunidade política. E a primeira coisa que um cidadão deve ver relativamente à ordem é a conjuntura das instituições políticas. As instituições juspolíticas, e eu chamo de juspolíticas porque são instituições do Direito e da política, organizam a vida social e, ao mesmo tempo, estabelecem os limites das ações e abstenções humanas nesta mesma vida social. Ou seja, as instituições, ao fazê-lo, expressam bem a ordem. Se você for à Atenas e fizer o ato imagético de pegar uma máquina do tempo como Delorean, por exemplo, no “De volta para o futuro”, e voltar alguns milênios para Atenas ao tempo de Sócrates ou um pouquinho antes até, você veria ali uma organização social que, embora primitiva, era muito avançada para o seu tempo por vários motivos. Um deles é o fato de que os atenienses tinham bem claro que as instituições da cidade revelam essa ordem. Ou seja, independentemente se um cidadão como Agaton ou Apolo acreditasse ou não na Deusa Palas Atenas como fundadora da cidade, ou em Zeus como o grande Deus do Olimpo, ou em qualquer coisa que faça menção à mitologia, aos deuses do Olimpo, independentemente dos compartilhamentos e das crenças mitológicas ou mito-poéticas daquele tempo, o fato objetivo é que, acreditando ou não, todos estavam de algum modo vinculados à ordem manifesta visivelmente por meio das instituições da pólis, das instituições, no caso, de Atenas. A mesma coisa na República romana. Independentemente dos templos em honra aos deuses que eram compartilhados ao tempo da República romana e mesmo mais tarde, durante o Império, templo em honra a Vênus, templo em honra a Saturno e etc., o fato objetivo é que as instituições do direito e da política, como a questura e o pretorado em Roma, expressavam o modelo de ordem da res publica, da coisa pública, a ser seguido. As instituições constituem esse primeiro nível que manifesta a ordem visivelmente para uma comunidade. 3.3.2. O nível das regras Obviamente, somente as instituições são incapazes, por si sós, de manifestar toda a conjuntura completa do que nós vamos chamar aqui de os futuros contingentes das ações humanas compartilhadas nessa mesma comunidade. É necessário um segundo nível que torne ainda mais concreto este modelo de ordem que já por meio das instituições é visível e manifesto, mas que, de alguma forma, reduzidos a esse primeiro nível, não seriam capazes de atravessar os tempos e, às vezes, as décadas e os séculos, para de alguma forma lidar com a atualização cultural e dos valores dentro de uma comunidade. É necessário, portanto, que entre a realidade prática dos seres humanos na pólis e as instituições que expressam essa ordem exista um segundo ponto, um segundo nível que lide com maior eficácia e de maneira mais reduzida a um ou a alguns estados de coisas dentro dessa sociedade. Portanto, que lide com os aspectos mais particulares, mais contingentes, com as circunstâncias concretas de uma maneira mais concreta. Nós temos um segundo nível que é o que eu vou chamar aqui de o nível das regras, o nível das normas do direito ou, para falar mais contemporaneamente, o nível do sistema jurídico. O conjunto das leis que regulam as ações e abstenções humanas em uma pólis, em uma comunidade política. Ou seja, as instituições regulam, mas precisam de algo, de um instrumento para regular de uma maneira mais contingente, mais concreta as coisas, que é o que chamamos de mundo das regras. E por isso, vejam, essas regras se submetem, em primeiro lugar, às instituições e, em última análise, à constituição, que é a linguagem que expressa essa ordem. E o que acontece numa sociedade em que regras e constituição são ambas, de alguma forma, digamos - desculpem a expressão -, prostituídas em prol do arbitrário e da indeterminação? Acontece o caos ou o primeiro passo para os regimes impolíticos, que é justamente o contrário dos regimes políticos. Estas distinções são decisivas para o que chamamos de Rule of Law, Estado de Direito. Distinções sem as quais não há nenhuma possibilidade de um Rule of Law, de um império do Direito. Isto é, de uma ordem espontânea e aberta às vicissitudes históricas. 3.3.3. O nível das decisões Só que vejam que mesmo dentro do âmbito das regras, as regras como tais, as regras, digamos, seletiva e selecionadamente, são linguagem normativa. Elas precisam de um terceiro nível que as torne ainda mais concretas. Uma regra, para tal, precisa ter dois aspectos: precisa descrever um fato e uma sanção correspondente. Isso é uma regra, via de regra. Desculpem a redundância. Há regras que são mais descritivas e há outras que são mais prescritivas, mas todas as regras são, em maior ou menor medida, ambas as coisas, imperativa e prescritiva simultaneamente. Mas o que torna a regra aplicável concretamente falando? O que faz com que a sua dimensão sancionatória, o seu âmbito prescritivo, de fato desça às particularidades sociais e aplique o conteúdo dessa regra? Aí nós precisamos de um terceiro nível. E esse terceiro nível é o que vou chamar de decisão. E aqui eu vou me apoiar nas lições do Carl Schmitt a respeito. Uma instituição produz uma regra que por sua vez embasa uma decisão. De modo que nesse démarche político-jurídico procedimental, que parte da linguagem para a concreção no mundo, nós temos três níveis: as instituições, as regras e as decisões que por sua vez estabelecem estados existenciais correspondentes. Ou seja, as instituições, apenas visíveis aos olhos humanos, apresentam algo visível, mas indeterminado. As instituições estabelecem um campo de indeterminação, por assim dizer, porque, em existindo as instituições, nós não sabemos bem quais regras e quais decisões virão posteriormente. Sozinhas as instituições apenas expressam a ordem, mas de um ponto de vista indeterminado. Então, nós precisamos de um segundo nível para que essa determinação ganhe um certo corpo na vida contingente da sociedade, que é o que nós chamamos de regras. E as regras, portanto, correspondem a um plano de determinação. Só que as regras, como tais, ainda estão num âmbito abstrato. Nós somos capazes de ler as regras e de seguir as regras e de viver de acordo com as regras, mas se nós seguirmos as regras e vivermos de acordo com elas, nós não seremos capazes de sentir, na carne, as regras, o que só vem por meio das decisões, porque essas afetam especificamente as nossas vidas. Por exemplo, se eu violo uma regra, uma decisão me impõe o dever de restituir o bem ou qualqueroutra coisa que tenha sido objeto da injustiça que eu pratiquei com quem quer que seja - com outrem, com a sociedade ou com o próprio poder civil. Por isso que, se as regras correspondem a um plano de determinação, as decisões correspondem a um plano de autodeterminação, porque não são determinadas apenas em geral, como são as regras, de maneira abstrata, mas determinam o concreto. É uma determinação de carne e osso, vamos chamar assim, porque a decisão é uma determinação que não afeta apenas o Estado de Direito e as regras do jogo, mas afeta a vida concreta dos agentes que estão involucrados neste mesmo âmbito. Ou seja, as decisões consumam o nível mais particular e contingente que as regras podem invocar dentro de uma circunstância ou dentro de uma miríade de circunstâncias concretas dentro da vida política da sociedade. Toda ordem e, portanto, todos os regimes políticos, por serem chamados assim, exigem, para sua adequada compreensão, que o modelo, o edifício da sua constituição esteja assentado em discernir esses três níveis em que a constitutio expressa a ordem. Essa expressão da ordem supõe sempre três níveis de determinação dessa mesma ordem: um nível que perante a comunidade é ainda indeterminado, que é o nível das instituições; um nível que perante a comunidade é mais determinado, que é o nível das regras; e um nível que é absolutamente determinado, porque sob o ponto de vista dos seres humanos concretos e reais dessa mesma comunidade, é um nível autodeterminado, é um nível que abarca esses seres humanos do ponto de vista dos seus corpos. 4. AS CARACTERÍSTICAS DOS REGIMES POLÍTICOS E, portanto, se nós observarmos os regimes políticos ao longo da história que merecem este nome, são regimes que, de algum modo, estruturam os seus edifícios procedimentais e substantivos a partir desse arcabouço conceitual e teórico. Todo regime político, onde esteja e seja ele qual for, sempre terá uma constitutio, sempre terá um conjunto de instituições estáveis, sempre terá regras estáveis e sempre terá decisões estáveis. 4.1. As monarquias As monarquias antigas, de acordo com Aristóteles, tinham isso? Resposta: tinham. Porque ali o monarca era um servus servorum populum, ou seja, ele estava ali para servir ao povo e é isso que caracteriza a monarquia, poder de um, porque poder tem como titular central a massa, a comunidade dos cidadãos. Essa é a visão clássica antiga de monarquia. Na monarquia, tem uma constitutio, tem uma instituição e essa instituição tem, antes de mais nada, o dever de devido respeito à constitutio e, portanto, às regras estabelecidas pela constitutio, para somente depois conceber as regras e tomar decisões a partir da constitutio, porque a constitutio é o farol desse regime político. De novo, de acordo com o modelo clássico antigo. 4.2. As aristocracias A mesma coisa na aristocracia, Aristos, o governo dos virtuosos. Areté, virtude. Aristocracia, Aristói Kratos, o governo, o poder dos virtuosos. Qual é o poder dos virtuosos? É o poder de um grupo reduzido de pessoas chamadas virtuosas. Por quê? Porque são virtuosas na medida em que os seus atos e as suas abstenções na vida pública respeita aquilo que determina a constitutio. É precisamente essa ordem anterior e superior que é dirigida ao futuro tendo em vista sempre uma organização institucional, um conjunto de regras que estabilizam essas relações e decisões que reafirmam essas mesmas regras dentro da contingência prática da vida social. 4.3. A politeia Na politeia, que é uma espécie de boa democracia na Antiguidade, apesar do equívoco nominal - do qual nós falávamos no início da aula -, é precisamente esse regime que é uma constituição que considera a todos como partícipes diretos ou indiretos do poder civil. Essa é a politeia, esse sim é o modelo antigo mais topológico do que nós temos hoje como democracia e Estado de Direito, porque a politeia é a organização institucional que toma por base a participação de toda coletividade humana, em maior ou menor medida, nas estruturas de poder, as regras que estabilizam as relações e as decisões que conformam essas mesmas regras. Nós temos hoje regimes muito mais evoluídos do ponto de vista institucional do que tínhamos no passado. Por exemplo, nos atuais regimes parlamentares, nos regimes parlamentaristas, nós temos uma variedade de modelos com elementos aritméticos e geométricos cada vez mais complexos para definir os sistemas eleitorais e partidários. Nós temos sempre em vista o quê? Sempre a regra da isonomia, a igualdade política. Ou seja, a participação igual para todos com um peso, um voto. A isocracia é uma regra que deriva da isonomia, que, por sua vez, deriva do ison, da igualdade ontológica entre os seres humanos, o fato de que todos compartilham uma mesma igual dignidade. 4.4. Os dois ambientes constitucionais Mesmo nos Estados atuais de Direito, nós temos pelo menos dois ambientes. As constituições atuais estabelecem dois ambientes. Um ambiente que é o núcleo duro de significação, que é o que nós vamos chamar de identidade comum, que normalmente advém por meio de conceitos como dignidade da pessoa humana, dignidade humana, uma tábua de direitos fundamentais. Quer dizer, aquilo ali constitui o núcleo duro de significação de uma comunidade humana. Há ainda um segundo âmbito. Axel Honneth3, um autor muito interessante da Escola de Frankfurt, nos diz que há um espaço para o que ele chama de a luta por reconhecimento, que é um espaço por meio do qual os seres humanos e os movimentos sociais e políticos lutam para ter algum espaço dentro do primeiro âmbito, que é o âmbito da dignidade, o âmbito da identidade comum. Quer dizer, todo desenho, todo cenário dos Estados contemporâneos de Direito se estruturam tomando por base essa distinção entre dois ambientes: o âmbito da identidade e o âmbito do reconhecimento, que é o âmbito da alteridade. 4.5. Os movimentos sociais E onde entra, portanto, neste caso, os três aspectos? Entra de cheio. Por que o que é a luta por reconhecimento senão a luta por determinação e por autodeterminação? Do ponto de vista dos movimentos, é uma luta por determinação, porque é uma luta por regras, e, do ponto de vista dos indivíduos concretos que estão nesses movimentos, é uma luta por autodeterminação, porque estão querendo de alguma forma ver a sua identidade social dentro da identidade comum ou como algo pertencente à identidade comum. O que fizeram, por exemplo, os regimes totalitários do século XX, que são regimes impolíticos por definição? Eles procuraram destruir esse vínculo e, a partir de tanto, criaram um conceito ideológico para esse núcleo duro de significação, onde a identidade não é tomada como a dignidade comum, mas é 3 Fi l ósofo alemão. tomada pelo feixe ideológico característico. Então, por exemplo, os judeus, para o nazismo, não podem pertencer ao núcleo duro de significação dessa identidade comum dada pela constituição de Weimar, que era a constituição alemã na época. Por quê? Porque eles não pertencem à identidade que é o fundamento mesmo da constitutio para aquela comunidade política. De modo que todos os regimes totalitários procuram destruir um, alguns ou todos esses três níveis dos quais eu falava e, ao fazê-lo, impedem a harmonia adequada entre o nível da identidade com o nível do reconhecimento e da alteridade. Em outros palavras, a velha e máxima conexão entre ordem e liberdade. Ou os regimes impolíticos focalizam numa ordem artificial que desmorona o edifício da démarche procedimental da qual eu falava antes, os três níveis que o Carl Schmitt e outros nos ensinam, ou os regimes impolíticos procuram destruir a ordem colocando no lugar precisamente uma anomia e, portanto, uma anarquia em nome de uma liberdade que,no fundo, não existe, porque transforma-se em voluntarismo e indeterminação absoluta. Entre os regimes políticos e os regimes impolíticos, portanto, já finalizando essa terceira parte onde entramos em aspectos mais decisivos e específicos de cada qual, nós temos sempre o conceito de ordem espontânea, que pressupõe, para sua determinação, uma distinção nivelada em planos de determinação, que, quando desaparecem um, alguns ou todos, resta, no lugar, a ordem artificial, ou uma ordem criada por um soberano ou a anarquia absoluta do estado de natureza, que promove, em um ou em outro caso, uma civilização artificial e, portanto, a reificação de um regime impolítico que destrói a ordem e, em última análise, destrói a liberdade humana. SINOPSE Nesta segunda aula, o professor Marcus Boeira esmiuça as características dos regimes impolíticos e suas quatro tipologias existentes atentando para o risco que o momento atual oferece em relação à perversão da política. OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que são os regimes impolíticos e por que são assim chamados; as quatro tipologias dos regimes impolíticos e suas características. INTRODUÇÃO Sejam bem-vindos para esta segunda aula do curso de regimes políticos e impolíticos. Nessa aula, pretendo analisar os regimes impolíticos, as suas características, alguns dos seus elementos constitutivos, em especial, contrastar o último tipo de regime impolítico que tem se tornado cada vez mais presente na vida de algumas das democracias do Ocidente com os regimes políticos, que nós tratamos, na primeira aula, a partir das suas características principais. Quero dividir a aula de hoje para, do ponto de vista metodológico, bem organizar as ideias, em duas partes. Na primeira parte, eu gostaria de enfrentar com vocês alguns dos regimes impolíticos existentes historicamente falando e mostrar a sintonia fina entre esses regimes, esses modelos de regimes impolíticos, do ponto de vista do seu postulado uniforme e universal. E, a partir de estabelecer esta característica comum entre os regimes impolíticos na primeira parte, eu gostaria de me dirigir à segunda e última parte da aula, que é aquela que procura analisar um regime político em especial, que é o que eu vou chamar aqui de biopolítica. A biopolítica é o regime impolítico característico do nosso tempo. 2. OS REGIMES IMPOLÍTICOS Todos os regimes impolíticos são regimes que partem de um postulado central; a saber, os regimes impolíticos procuram erodir a ordem espontânea e natural e colocar, no lugar desta ordem espontânea e natural, uma ordem artificial que procura dar conta da sociedade humana tomando por base uma imagem distorcida, precária e, por vezes, mentirosa em relação a essa ordem espontânea originária. Os regimes impolíticos são assim chamados porque são contrários à política, à pólis, à ideia mesma de uma ordem para as ações e abstenções humanas. Toda ideia de pólis está assentada na ideia segundo a qual as instituições da cidade se dirigem ao fim comum, que é a felicidade, a vida boa dos seus cidadãos. O compartilhamento de certos bens humanos básicos que são realizados e vivenciados a partir do conjunto das condições formais e materiais que uma pólis traz relativamente à liberdade dos seus cidadãos. Quando falamos em regimes impolíticos, por outro lado, existe a pretensão de colocar, no lugar dessa espontaneidade, um espaço inteiramente artificial, onde há o controle em larga escala, seja por quaisquer razões - seja por uma razão cientificista, por uma razão moralista, por uma razão teocrática, por uma razão econômica, enfim, seja qual for a razão. Há sempre a pretensão de colocar, no lugar desta ordem espontânea, que admite uma espécie de pulverização harmônica, mas, ao mesmo tempo, indeterminada dos bens humanos no tempo e no espaço, o contrário, ou seja, um fechamento metodológico de uma única justificativa ou algumas justificativas que fundamentam o poder dentro de uma ordem civil, fazendo com que esta ordem seja, portanto, institucionalizada por critérios artificiais contrários a essa espontaneidade, a essa natural expansão de uma ordem humana. 3. TIPOLOGIA DOS REGIMES IMPOLÍTICOS Os regimes impolíticos podem ter quatro tipologias básicas. 3.1. Corrupção ou corrupção sistêmica A primeira tipologia básica que nós temos num regime impolítico é o que nós vamos chamar de corrupção ou corrupção sistêmica. Neste sentido, a corrupção pode se dar por inúmeros fatores. Uma corrupção que ocorre em razão da má organização das instituições, por exemplo, e promove o caos e a desordem em razão desta má organização, que é o caso brasileiro. Ou seja, em razão de uma organização institucional anacrônica, nós produzimos corrupção, não só a corrupção econômica, mas a corrupção civil. Não há uma ordenação das expectativas - o que é um traço característico e fundamental para a justiça política, não há isto -, quando falamos em ações que de alguma forma mantém relações com o Estado, com a burocracia estatal. Então, a corrupção sistêmica é o primeiro tipo de regime impolítico. A corrupção, obviamente, pode ser econômica também. Quando o poder econômico toma o poder político e vice-versa, criando uma espécie de planejamento político-econômico em larga escala. Alguns autores do século XX, como Hayek1, trazem um desenho desta primeira tipologia. 3.2. Autoritarismo Há algum segundo modelo de regime impolítico que é o que vou chamar de autoritarismo. O autoritarismo, que normalmente ocorre no caso dos regimes militares ao longo de quase todo século XX em alguns países - aqui na América do Sul, por exemplo, nós tivemos experiências dessa natureza -, ocorre quando se ataca o processo político democrático deliberativo impedindo a participação de setores da sociedade e de um grupo de cidadãos tendo em vista a efetividade de alguns valores em detrimento de outros. Então, em nome da nação, abole-se o direito ou liberdade de circulação e de imigração. Ou, em nome, por exemplo, da unidade nacional, focaliza-se na segurança e na ordem 1 Friedri ch Hayek, economista (1899 - 1992). em detrimento da liberdade e de certas políticas, digamos assim, de identidade. Em nome de uma força militar e civil, anula-se a capacidade da ampla participação democrática no processo político. Regimes dessa natureza são considerados regimes autoritários porque o foco da patologia está no processo político, na destruição do processo deliberativo que é incito à política numa ordem espontânea, como é o caso dos regimes políticos. A corrupção está no processo. 3.3. O autoritarismo Há um terceiro tipo de regime impolítico, que é o que eu vou chamar de regime totalitário, que é diferente do regime autoritário. Os regimes totalitários, diferentemente do segundo e do primeiro, procuram atacar a ordem, o nomos da terra, a ordem subjacente à constituição de uma sociedade política, porque, no lugar desta ordem, os regimes totalitários colocam uma cosmovisão, uma visão de mundo que é baseada numa ideologia subjacente. Uma ideologia que, de alguma forma, seculariza certas categorias espirituais na própria História e coloca, na História, uma visão destinatória, como se a História fosse um palco dirigido e por meio do qual uma classe dirigente conduz a História e o povo, volksgeist, rumo à perfeição Normalmente, nos regimes totalitários, existe uma antropologia distorcida que toma o ser humano como perfectível, o ser humano vai se aperfeiçoando na História até atingir um grau de perfeição absoluto. No caso do nazismo, por exemplo, isso fica muito claro. O ideal racial. No caso do stalinismo, do leninismo, isso tambémfica claro. O novo trabalhador, o novo homo faber que agora é a imagem mesma do animal laborans marxista. No fascismo também, mesma coisa, ou seja, o novo homos eticus do fascismo, aquele que está condensado na estrutura estatal que detém o monopólio ético. Ou seja, todos os regimes totalitários têm em vista uma visão de mundo, uma cosmovisão, que toma a História como um palco dirigido por uma classe dirigente. Uma classe dirigente que terá a missão de levar a humanidade à sua perfeição, à nova humanidade. Uma visão de mundo por trás que determina o processo histórico. Uma colonização do futuro. Uma demarcação do horizonte contingente futuro que reagrupa as diferentes particularidades a uma visão universal, abstrata e idealizada de humanidade que substitui a realidade propriamente dita, colocando na ideia, e não no real, o fundamento do poder civil. Todo regime totalitário, portanto, aniquila a realidade humana em prol de uma idealidade social. 3.4. A biopolítica E há um último modelo de regime impolítico, que ganhou força nos últimos tempos, que é o que eu vou chamar de biopolítica. A biopolítica possui uma classificação própria porque não se adapta perfeitamente nem a um totalitarismo tout court, nem a um autoritarismo tout court, nem a um regime corruptível tout court, mas engloba elementos dos três regimes anteriores. A biopolítica pega um pouco de cada qual e faz um novo modelo. O que traz o regime impolítico ao qual nós vamos chamar aqui de biopolítica? A biopolítica normalmente trabalha com a ideia de exceção ou de estado de exceção. O estado de exceção que pode ser provisório ou permanente. E o estado de exceção que pode assumir muitas facetas e, portanto, muitas justificativas, que vão desde uma emergência sanitária até uma decisão cientificista que, em nome da ciência, vale-se de um critério meramente empirista ou empírico-verificacionalista para determinar um plano de ação para a sociedade. Em nome da ciência, todos deverão usar máscaras. Ou seja, ao invés de calarmos o ser humano por atos e decretos que digam expressamente algo atinente à sua natureza humana digna, nós vamos usar o nome da ciência para dizer: “usem a máscara e, portanto, respeitem à ciência, porque esta medida é cientificamente válida e comprovada”. Com isto, obviamente, eu não quero dizer que o uso da máscara em certas circunstâncias, em razão do coronavírus e da pandemia que tomou conta do mundo nos últimos dias, não seja algo justificado. Obviamente é justificado em certos casos e em certas medidas. Eu sou o primeiro a defender isso e o primeiro a dizer que sim, o coronavírus é letal para uma faixa etária da população e é fundamental que nós prestemos atenção a isto. Eu sou o primeiro a dizer e o primeiro a defender isto. Só que, por trás do coronavírus e por trás da situação pandêmica, existe um uso político ilegítimo e, portanto, impolítico, que merece uma atenção de nossa parte. E é curioso que, atualmente, no mundo, possamos ver que, em alguns países, a atenção a essas coisas seja algo próprio de um movimento político que, por assim dizer, é identificado mais com o conservadorismo e com o liberalismo e, em outros países, como a Itália, foi exatamente a esquerda que preocupou-se com essas medidas de emergência e em denunciar o uso político irrefreado dessas medidas. De modo que não podemos fazer classificações, por assim dizer, ideológicas, de esquerda ou de direita, para analisar essa situação, porque a própria realidade empírica das democracias no Ocidente nas quais nós estamos a viver mostram que, em alguns casos, é um grupo ideológico que toma pé diante de uma crítica a este estado de caso e, em outros, é o outro grupo ideológico que o faz. Mostrando, de um lado, a irracionalidade à qual a luta ideológica conduz os cidadãos de algum modo dentro das respectivas democracias e, de outro lado, que os fatos como tais exigem uma atenção que as meras ideologias não são capazes de dar e, muitas vezes, até obscurecem essas mesmas análises. Não quero aqui pregar imparcialidade e neutralidade, longe de mim. Talvez isso seja muito difícil, no mínimo. Mas, de fato, uma situação como essa merece uma atenção que não se reduz a um escopo ideológico padrão. Parece não subexistir dúvidas quanto a esta medida: a exigência e a necessidade de uma análise mais afastada do ponto de vista das intenções ideológicas do observador. Por isso, a biopolítica pode ter uma miríade de justificativas que vão desde o cientificismo ou a plataforma econômica, como, por exemplo, em nome da economia, nós vamos suspender a democracia e o Estado de Direito, até medidas de caráter emergencial, como a emergência sanitária que estamos a viver. 3.4.1. As quatro características da biopolítica E o que está por trás desse fundamento biopolítico que contrasta com a política ou os regimes políticos propriamente ditos? Eu diria que existem pelo menos quatro grandes características na biopolítica que contrastam com os regimes políticos, com a política. Traçando aqui uma espécie de contraste, de tensão entre a biopolítica e a política. Em primeiro lugar, a política, como vimos, traz como seu fundamento primevo a ideia de ordem, de nomos da terra, de uma ordem que se expande naturalmente no tempo e no espaço. A biopolítica, por outro lado, baseia-se na ideia de uma ordem artificial e, portanto, numa exceção permanente a esta ordem. Quer dizer, se a ordem natural que se expande e se expressa por meio de instituições é a ordem que fundamenta o Estado de Direito, o Rule of Law, o ideal de política, de pólis, como nós vimos, na biopolítica, é a exceção, e não a ordem natural, o elemento central. De modo que não são as instituições que projetam a ordem, é o voluntarismo e o decisionismo do soberano, daquele que decide quando o Estado de Direito e o estado de exceção deverão ocorrer para satisfazer um, alguns ou todos esses critérios dos quais nós falávamos antes: emergência sanitária, cientificismo, critério econômico e até religioso, etc.. A biopolítica tem, portanto, como primeiro critério distintivo em relação à política, o fato dela ser um regime impolítico em que a exceção, e não a ordem, aparece como o estado de coisas ou o estado de normalidade. O novo normal para usar uma expressão do Giorgio Agamben. Só que, vejam, como nós falávamos na aula anterior, toda política, toda ordem política supõe uma compreensão sobre o que é esse núcleo duro de significação, esse âmbito duro, irrestrito, que é preenchido por uma certa antropologia. E aqui eu me dirijo ao segundo critério. Toda filosofia política requer uma antropologia subjacente, uma compreensão sobre o que é a natureza humana. Uma definição sobre o que é o ser humano. Para a ordem política, isto variou na História, mas, de maneira mais mitigada ou mais presente, em maior ou menor medida, sempre há o compartilhamento da tese de que o ser humano como tal merece alguma dignidade, seja ele quem for. Você poderia objetar: “mas, no mundo grego-romano, existia escravidão”. Por isso eu digo: mitigado. Lá no mundo greco-romano, a antropologia ainda era muito distante do ideal e, portanto, a fundamentação da filosofia política era totalmente precária em razão disso. Com certeza. Mas, quando contrastamos com a ideia de ordem política e civil que temos nos atuais Estados de Direito, na vida pautada pelo Direito portanto, e, sobretudo, pelo direito constitucional, nós vemos que o ideal de dignidade da pessoa humana, o ser humano tomado como uma pessoa, é o núcleo duro de significação da ordem política. E o que a biopolítica faz? A biopolítica substitui a dignidade da pessoa humana por um novo humanismo. Uma nova compreensão do que é o ser humano. Não é um ser digno e pessoal, mas é um indivíduo isolado e jogado na sociedade de massas, na coletivização absoluta e completa da vida social,onde nós não somos mais seres dignos e pessoais, com igual consideração e respeito, para usar a expressão de um filósofo do Direito nada usual, que é Ronald Dworkin, com quem eu tenho muitas divergências, mas, a despeito dessas diferenças, neste ponto, eu tenho impressão que o Dworkin acertou e acertou em cheio. Então, violando a igualdade de condições, a igual consideração e respeito, que é um traço sociológico distintivo da dignidade da pessoa humana, o novo humanismo coloca no lugar o indivíduo. O indivíduo que agora é visto não mais como um ser que por si mesmo é fonte de direitos fundamentais, mas é visto como uma parte aritmética do todo. E essa parte aritmética do todo entra numa perspectiva em que, da dignidade pessoal que oferecia, digamos, algum aspecto estático na dinâmica do tempo, algo permanente naquilo que é dinâmico, algo que permanece mesmo ante o perecimento do tempo e do espaço, o novo humanismo coloca no lugar uma espécie de liquidez na compreensão sobre o que é a natureza humana. São corpos em movimento dentro de uma sociedade líquida, para usar uma expressão do Bauman. E esses corpos em movimento, portanto, porque não possuem entre si qualquer dignidade, nem tampouco a relação entre esses corpos é tomada como um conjunto de relações igualmente respeitáveis, a não ser do ponto de vista daqueles que detêm o poder, esses corpos são vistos pela ótica não das relações em si, não do ideal de justiça correspondente a essas relações, mas a partir dos movimentos dos corpos. E cabe, portanto, a biopolítica traçar, por meio das tecnologias de ponta, os movimentos dos corpos. Para onde esses indivíduos vão, para onde eles voltam, quem são eles, o que eles fazem, qual é a reputação deles e o controle tecnológico que vai se agigantando sobre esses movimentos. Veja que, nesse sentido, nós chegamos a uma terceira característica, que é o fato de que, na ordem política, os valores que promovem as relações entre os seres humanos são sempre valores que correspondem à liberdade e à espontaneidade dos seres humanos. Vou fazer um contrato com alguém e faço porque sou livre e posso fazê-lo espontaneamente. A liberdade e a espontaneidade caracterizam as relações humanas, as relações de amizade, as relações de justiça e as relações de equidade que possam existir dentro do Rule of Law, do Estado de Direito, ao passo que, na biopolítica, não é mais a liberdade e a espontaneidade, é o monitoramento dos corpos, o que o Michael Foucault chama de o estado panótico, fazendo obviamente um resgate das teses do Jeremy Bentham. Um estado panótico em que o controle biotecnológico é usado para controlar e traçar os movimentos dos corpos numa espécie de monitoramento aritmético progressivo em que os indivíduos vão sendo cada vez mais invadidos nas suas esferas de particularidade e privacidade para dar vazão a um controle biotecnológico cada vez maior e cada vez mais absoluto. De um lado, a liberdade e a espontaneidade. De outro, o monitoramento dos corpos. E aí chegamos ao quarto ponto, que é precisamente o que, no passado, os juristas e os filósofos chamavam de obrigação de consciência. Ao que estamos obrigados por consciência e de quem vem esta ordem? Essa é a pergunta. E aqui o contraste entre um modelo de Estado que não obriga as consciências, que é o modelo de Estado onde a ordem política preserva a liberdade e a espontaneidade, a ordem espontânea, por assim dizer. O que nós temos aqui, portanto, é uma visão da laicidade, o Estado é laico porque o Estado permite aos seres humanos a opção por crenças e convicções de uma maneira livre. O Estado não entra nesse terreno. O Estado abstém-se de pautar as suas condutas de modo a invadir as consciências. E, no mundo da biopolítica, ao contrário, o Estado e mais a classe política e dirigente por trás do Estado têm em vista o uso do estado para a invasão da consciência, para a invasão daqueles padrões estéticos e simbólicos que definem a forma de vida e o horizonte de expectativas que um ser humano possa ter relativamente ao seu futuro e ao futuro da sua comunidade humana. O ideal de florescimento humano, que é muito presente no tipo específico dos regimes políticos, desaparece para dar vazão a um laicismo cada vez mais intenso em que o Estado é usado para, ao monitorar os corpos, monitorar também as intenções por trás dos movimentos desses mesmos corpos. Monitorando, portanto, quais são as ações e reações voluntárias dos seres humanos, que, no caso, são indivíduos. O que eles querem, quais são as suas expectativas, quais são as suas perspectivas, o que eles gostam de consumir, quais são os usos e dispositivos com os quais esses indivíduos vão permitindo cada vez mais um controle sobre si mesmos, sobre si próprios. No fundo, de que maneira esse laicismo militante vai destruindo a conexão entre os indivíduos e os seus respectivos horizontes de futuro, achatando o passado com o futuro de maneira a reificar o presente no controle total, no controle absoluto. Primeiro, dos corpos e das consciências depois. Em curso, o metacapitalismo, protagonizado por uma elite que tem em vista precisamente o domínio do poder econômico e do poder político e que usa a biopolítica como mecanismo de controle em larga escala. De outro, uma força política e econômica igualmente considerável, como é o caso do protagonismo hegemônico que a China tem ocupado na nova ordem mundial. Os globalistas ocidentais de um lado e os globalistas orientais de outro. Duas forças nefastas que têm em vista a destruição da classe trabalhadora, da classe política cidadã, da liberdade civil e política e, como não, da dignidade humana como tal. Em nome de um horizonte de futuro que se reifica no presente, tomando por base um estado de exceção permanente que vale-se das medidas emergenciais para arquitetar a biopolítica, um novo humanismo onde o monitoramento dos corpos e uma sociedade líquida e reificada no prazer e no consumo alienam de tal modo as consciências humanas que os próprios indivíduos não são mais capazes de atentar, de dar-se conta, afinal, do modo como estão sendo regidos e guiados, sem a mínima consciência de quem está por trás dessa direção e de quais são os usos de dispositivos que marcam esse estado de alienação permanente ao qual estão subjugados. Entre a política e a biopolítica, estamos a viver a luta entre a liberdade e uma nova forma de escravidão que congrega elementos do totalitarismo, congrega elementos do autoritarismo e congrega elementos da corrupção sistêmica para formar uma modalidade de regime impolítico muito mais letal e complexa, com capacidade suficiente de um controle biotecnológico em larga escala. A civilização da liberdade que se expressa na constituição, nas instituições, nas regras e nas decisões, como falávamos na primeira aula, tem sofrido um duro golpe daqueles que querem de alguma forma centralizar todo o poder ou na linguagem, ou no mundo, sem, todavia, conectar a linguagem com o mundo de uma forma harmônica e humanamente digna. Portanto, o olhar da filosofia política e da filosofia prática como um todo, que é aquela se determina a fazer um diagnóstico da ação humana na História, portanto é uma filosofia da ação humana, tem de atentar precisamente não apenas para o retrato do estado de coisas que se vive em um determinado momento histórico, mas, sobretudo, as consequências possíveis advindas a partir dos usos e dispositivos que são alocados dentro desses estados de coisas para fazer perpetuar um regime impolítico que substitui de maneira pouco aparente a ordem espontânea por uma ordem artificial, onde o estado de exceção se faz permanente sem que os indivíduos que estão colocados dentro desse mesmo estado de exceção sejam capazes de perceber. Nesta aula, portanto, eu procurei traçar um diagnóstico comparativo entre a política e os regimes impolíticostomando-se por base o último desses modelos de regimes impolíticos que é o modelo do nosso tempo, a chamada biopolítica. Muito obrigada pela atenção de todos e até mais.