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A Justificativa Derradeira da Etica da Propriedade Privada

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Autor: ​Hans-Hermann Hoppe 
Tradutor: LeSmurf 
A justificativa derradeira da Ética da Propriedade Privada 
 
Ludwig von Mises, em sua obra-prima ​Ação humana​, apresenta e explica todo o corpo da 
teoria econômica como implícita na, e deduzível da, compreensão conceitual do significado 
da ação (além de algumas suposições gerais e explicitamente introduzidas sobre a 
realidade empírica em que a ação está a ocorrer). Ele chama esse conhecimento conceitual 
de "axioma da ação", e ele demonstra em que sentido o significado de ação do qual sua 
teoria econômica estabelece, por exemplo, valores, fins, meios, escolhas, preferências, 
lucro, prejuízo e custo, deve ser considerado um conhecimento a priori. Ele não é derivado 
de impressões de sentido, mas de reflexão (um indivíduo não vê ações e sim interpreta 
certos fenômenos físicos como ações!). E o mais importante, não há possibilidade dele ser 
invalidado por qualquer experiência seja qual for, porque qualquer tentativa de fazê-lo já 
pressupõe a existência de ação e compreensão por parte de quem age das categorias de 
ação (experimentar algo é, afinal de contas, uma ação intencional!). 
Desta maneira, tendo reconstruído a economia como, em última análise, derivada de uma 
proposição verdadeira a priori, Mises pode alegar ter fornecido a fundação derradeira da 
economia. Ele denomina a então fundada economia de "praxeologia", a lógica da ação, de 
modo a enfatizar o fato de que as suas proposições podem ser definitivamente provadas 
pela virtude do indiscutível axioma de ação e as igualmente indiscutíveis leis do raciocínio 
lógico (como as leis de identidade e contradição)—completamente independente, assim, de 
qualquer tipo de teste empírico (como empregado, por exemplo, pela física).No entanto, 
embora sua ideia de praxeologia e sua construção de todo o corpo do pensamento 
praxeológico coloque ele entre os maiores da tradição ocidental moderna do racionalismo, 
Mises não acha que outra afirmação dessa tradição pode ser concretizada: a afirmação de 
que também existem fundações em questões éticas. De acordo com Mises não existe 
nenhuma justificativa final para proposições éticas da mesma maneira que existe uma para 
proposições econômicas. A economia pode nos informar se certos meios são ou não 
apropriados para realizar certos fins, no entanto se os fins podem ou não ser considerados 
justos pode tampouco ser decidido pela economia ou por qualquer outra ciência./Não existe 
justificativa para escolher um fim ao invés de outro. Em última instância, qual fim é 
escolhido é arbitrário de um ponto vista científico e é uma questão de capricho subjetivo, 
incapaz de ter qualquer justificativa para além do mero fato de simplesmente ser preferido. 
 Muitos libertários seguiram Mises neste ponto. 
 
Como Mises, eles abandonaram a ideia de um fundamento racional da ética. Como ele fez, 
esses libertários utilizam o máximo possível das proposições econômicas para provar que a 
ética libertária da propriedade privada produz um padrão de vida médio maior que qualquer 
outra ética e, como a maioria das pessoas prefere um padrão de vida alto a um baixo, o 
libertarianismo, consequentemente, se mostra altamente popular. Mas em última análise, 
como Mises certamente sabia, tais considerações podem apenas convencer alguém do 
libertarismo quem já aceitou o objetivo "utilitarista" de maximização da riqueza geral. Para 
aqueles que não compartilham desse objetivo, eles não tem nenhuma força convincente. 
Assim, em última análise, o libertarianismo baseia-se em nada mais do que um ato arbitrário 
de fé. 
A seguir eu esboçarei um argumento que demonstra porque essa posição é insustentável, 
e como a ética lockeana de propriedade privada essencialmente pode ser derradeiramente 
justificada. Na realidade, esse argumento apoia a posição de direitos naturais do 
libertarianismo como defendida por outro mestre pensador do movimento libertário 
moderno, Murray N. Rothbard - principalmente em seu ​Ética da Liberdade​. No entanto, o 
argumento que estabelece a justificativa derradeira da propriedade privada é diferente do 
normalmente oferecido pela tradição de direitos naturais. Em vez desta tradição, Mises e 
sua ideia de praxeologia e provas de praxeológicas, que fornecem o modelo. Eu demonstro 
que somente a ética libertária de propriedade privada pode ser justificada 
argumentativamente, porque isso é a própria pressuposição praxeológica da argumentação; 
e qualquer proposição ética não libertária está violando essa preferência demonstrada. Tal 
proposição pode ser feita, é claro, mas seu conteúdo proposicional iria contradizer a ética 
para qual ele demonstrou uma preferência em virtude do próprio ato de elaborar 
proposições, i.e., pelo ato de engajar-se na argumentação como tal. Por exemplo, pode-se 
dizer "as pessoas são e sempre serão ​indiferentes no que diz respeito a fazer coisas", mas 
esta proposição poderia se desmentir pelo próprio ato de elaborar proposições, que na 
verdade iria demonstrar ​preferência subjetiva (de dizer isto ao invés de dizer outra coisa ou 
não dizer nada). Da mesma forma, as propostas éticas não libertárias são falseadas pela 
realidade de efetivamente propor tais éticas. 
Para chegar a essa conclusão e entender sua importância e força lógica, duas ideias são 
essenciais. 
Em primeiro lugar, deve-se notar que a questão do que é justo ou injusto — ou para esse 
assunto a questão ainda mais geral do que é uma proposição válida e o que não é — só 
surge na medida em que, eu sou, e outros são, capazes de trocar proposições, i.e., de 
argumentar. A questão não surge cara a cara com uma pedra ou peixe porque eles são 
incapazes de engajar-se em tais trocas e de produzir proposições ditas válidas. No entanto, 
se isto está correto — e não se pode negar que está sem contradizer a si mesmo, porque 
não se pode argumentar que não se pode argumentar — então qualquer proposição de 
ética, bem como qualquer outra proposição precisa ser capaz de ser validada por meios 
proposicionais ou argumentativos. (Mises, também, na medida em que ele formulava 
proposições econômicas, deve supostamente ter afirmado isso.) Na verdade, na produção 
de qualquer proposição, abertamente ou como um pensamento interno, demonstra-se a 
preferência pela disposição de manter-se nos meios argumentativos para convencer-se ou 
a outros de algo. Há então, trivialmente, nenhuma maneira de justificar nada, a menos que 
seja uma justificativa por meio de trocas proposicionais e argumentos. Não obstante, então 
deverá ser a derradeira derrota para uma proposição ética se alguém puder demonstrar que 
seu conteúdo é logicamente incompatível com a afirmação do proponente de que sua 
validade é verificável através de meios argumentativos. Demonstrar qualquer 
incompatibilidade equivale a uma prova de impossibilidade, e tal prova constituiria a derrota 
mais mortal possível no domínio do inquérito intelectual. 
Em segundo lugar, deve-se notar que a argumentação não é constituída de proposições 
de livre flutuação, mas é uma forma de ação que exigeo emprego de meios escassos; e 
que os meios dos quais uma pessoa demonstra preferir por engajamento em trocas 
proposicionais são os de propriedade privada. Para começar, ninguém poderia 
possivelmente propor nada, e ninguém poderia tornar-se convencido de qualquer proposta 
por meios argumentativos, se o direito de uma pessoa de fazer uso exclusivo de seu corpo 
físico não tivesse sido pressuposto. É esse reconhecimento mútuo do controle exclusivo 
sobre o próprio corpo que explica o carácter distintivo das trocas proposicionais que, 
enquanto podem discordar sobre o que foi dito, ainda é possível concordar pelo menos com 
o fato de que há desacordo. Também é óbvio que tal direito de propriedade sobre o próprio 
corpo deve justificar-se um priori, quem tentar justificar qualquer norma seja ela qual for já 
terá que pressupor o direito exclusivo de controle sobre o corpo como uma norma válida, 
simplesmente para dizer, "Proponho tal e tal". Qualquer um contestando esse direito iria 
ficar preso em uma contradição prática já que discutir já implicaria na aceitação da própria 
norma que ele estava disputando. 
Além disso, seria igualmente impossível sustentar a argumentação para qualquer 
comprimento de tempo e depender da força proposicional do argumento de alguém se esse 
alguém não for autorizado a se apropriar, além do próprio corpo, de outros meios escassos 
através da ação homesteading (se utilizar deles antes que outro alguém o faça), e também 
se tais meios e os direitos de controle exclusivo sobre eles não forem definidos em termos 
físicos objetivos. Se ninguém tivesse o direito de controlar qualquer coisa de qualquer modo 
além do seu próprio corpo, então todos nós deixaríamos de existir e o problema de justificar 
normas simplesmente não existiria. Portanto, pela virtude do fato de estarmos vivos, direitos 
de propriedade sobre outras coisas devem ser pressupostos válidos. Caso contrário, 
ninguém que está vivo poderia argumentar. 
Além disso, se uma pessoa não adquirisse o direito de uso exclusivo sobre tais bens por 
apropriação original, i.e., por estabelecer um link objetivo entre uma pessoa em particular e 
um recurso escasso em particular antes que qualquer outro tenha feito, mas, pelo contrário, 
se "atrasados" fossem assumidos como tendo reivindicado a propriedade sobre esses bens, 
então ninguém poderia ter permissão de fazer algo com qualquer coisa já que o indivíduo 
precisaria do consentimento de todos os "atrasados" antes do indivíduo sequer chegar a 
fazer o que queria fazer. Nem nós, nem nossos antepassados, nem nossos descendentes 
poderíamos fazer algo ou sobreviveríamos se quiséssemos seguir esta regra. Para que 
qualquer pessoa — no passado, presente ou futuro — possa argumentar qualquer coisa 
deve ser possível sobreviver, antes e agora, e para que isso ocorra os direitos de 
propriedade não podem ser concebidos eternos e sem especificação quanto ao número de 
pessoas envolvidas. Pelo contrário, os direitos de propriedade devem ser pensados como 
originários de um resultado específico de indivíduos agindo em pontos definidos no tempo. 
Caso contrário, seria impossível que alguém falasse algo em um ponto definido no tempo e 
outro indivíduo conseguisse responder. Simplesmente dizer que a regra 
primeiro-usuário-primeiro-proprietário do libertárianismo pode ser ignorada ou é injustificada 
implica em uma contradição, para que alguém possa dizer isso é necessário pressupor a 
existência desse alguém como uma unidade independente de tomada de decisões em um 
determinado ponto no tempo. 
Finalmente, agir e fazer proposições também seria impossível se as coisas adquiridas 
através de apropriação original não fossem definidas em termos físicos objetivos (e se, 
correspondentemente, agressão não fosse definida como uma invasão da integridade física 
da propriedade de outra pessoa), mas em termos de valores e avaliações subjetivas. 
Enquanto cada pessoa pode ter controle sobre suas ações no que diz respeito a causar a 
mudança da integridade física de alguém, o controle sobre as ações de outros no que diz 
respeito aos valores da propriedade de alguém reside com as outras pessoas e suas 
avaliações. Seria preciso interrogar e chegar a um acordo com a população do mundo todo 
para ter certeza de que a ação planejada de alguém não mudaria a avaliação de outra 
pessoa sobre sua propriedade. Certamente, todos estariam mortos há um bom tempo antes 
que isso fosse concretizado. Além disso, a ideia que os valores da propriedade devem ser 
protegidos é argumentativamente indefensável, mesmo para argumentar deve ser 
pressuposto que ações devem ser permitidas antes de qualquer acordo real. (Se não 
fossem, um indivíduo não poderia sequer fazer esta proposta.) Se eles são permitidos, no 
entanto, isso só é possível por causa das fronteiras objetivas da propriedade, ou seja, as 
fronteiras que cada pessoa pode reconhecer como tal por si mesmo sem ter que concordar 
primeiro com alguém em relação a um sistema de valores e avaliações. 
Por estar vivo e formular qualquer proposta, um indivíduo demonstra que qualquer ética 
exceto a ética libertária de propriedade privada é inválida. Se não fosse assim, e 
"atrasados" tivessem reivindicações legítimas à coisas ou coisas já apropriadas fossem 
definidas em termos subjetivos, ninguém poderia possivelmente sobreviver como uma 
unidade de decisão fisicamente independente em qualquer instante no tempo. Portanto, 
ninguém jamais poderia dar origem a qualquer proposição dita válida. 
Isso conclui minha justificativa apriorística da ética de propriedade privada. Alguns 
comentários sobre um tópico já abordado anteriormente, a relação entre esta prova 
"praxeológica" do libertarianismo, a utilitarista e a posição de direitos naturais, completará a 
discussão. 
 No que tange a posição utilitarista, a prova contém sua refutação final. 
Se demonstra que para simplesmente propor a posição utilitária, o direito de controle 
exclusivo sobre o próprio corpo e os bens de apropriação original já devem ser 
pressupostos válidos. Mais especificamente, no que se refere ao aspecto consequencialista 
do libertárianismo, a prova mostra sua impossibilidade praxeológica: a atribuição de direitos 
de controle exclusivo não podem ser dependentes de certos resultados. Um indivíduo nunca 
poderia agir e propor alguma coisa, a menos que os direitos de propriedade privada 
existiam antes de um resultado posterior. Uma ética consequencialista é um absurdo 
praxeológico. Qualquer ética deve preferivelmente ser apriorística ou instantânea para que 
seja possível que um possa agir aqui e agora e propor isso ou aquilo ao invés de ter que 
suspender sua ação até mais tarde. Ninguém está defendendo que uma ética de 
esperar-para-o-resultado estaria por perto para dizer qualquer coisa se ele levasse a sério o 
seu próprio conselho. Além disso, na medida em que os proponentes utilitaristas ainda 
estiverem por perto, eles demonstram através de suas ações que sua doutrina 
consequencialista é e deve ser considerada como falsa. Agir e fazer proposiçõesnecessita 
de direitos de propriedade privada no mesmo instante e não pode esperar para que eles 
sejam atribuídos posteriormente. 
No que diz respeito à posição dos direitos naturais, a prova praxeológica, geralmente 
favorável à posição anterior no que tange a possibilidade de uma ética racional e está em 
total concordância com as conclusões alcançadas nessa tradição (especificamente, por 
Murray N. Rothbard), tem pelo menos duas vantagens diferentes. Por um lado, tem sido 
uma discussão comum com a posição de direitos naturais, mesmo por parte dos, de certo 
modo, simpáticos observadores, que o conceito de natureza humana é muito difuso para 
permitir a derivação de um determinado conjunto de regras de conduta. A abordagem 
praxeológica resolve este problema, reconhecendo que não é o amplo conceito de natureza 
humana, mas o mais específico de trocas proposicionais e argumentação que deve servir 
como ponto de partida na derivação de uma ética. Além disso, existe uma justificativa a 
priori para esta escolha, na medida em que, como o problema de verdadeiro e falso, de 
certo e errado, não surge independente de trocas proposicionais. Ninguém, então, 
possivelmente poderia desafiar tal ponto de partida sem contradição. Finalmente, é a 
argumentação que requer o reconhecimento da propriedade privada, portanto, um desafio 
argumentativo da validade da ética da propriedade privada é praxeologicamente impossível. 
Em segundo lugar, há uma lacuna lógica entre declarações de "ser" e "dever" que os 
defensores de direitos naturais falharam em ligar com êxito — exceto para avançar algumas 
observações críticas gerais sobre a validade final da dicotomia fato-valor. Aqui a prova 
praxeológica do libertarianismo tem a vantagem de oferecer uma justificativa 
completamente livre de valor da propriedade privada. Ela permanece inteiramente no Reino 
das declarações de ser e nunca tenta derivar um "dever" de um "ser". A estrutura do 
argumento é este: (a) justificação é justificação proposicional — declaração de fato 
verdadeira a priori; (b) a argumentação pressupõe a propriedade sobre o próprio corpo e o 
princípio de apropriação original — declaração de fato verdadeira a priori; e (c) então, 
nenhum desvio dessa ética pode ser justificado argumentativamente — declaração de fato 
verdadeira a priori. A prova também oferece a chave para uma compreensão da natureza 
da dicotomia fato-valor: declarações de dever não podem ser derivadas de declarações de 
ser. Eles pertencem a diferentes reinos lógicos. Também é evidente, no entanto, que não se 
pode sequer alegar que há fatos e valores se não existirem trocas proposicionais, e que 
esta prática de trocas proposicionais por sua vez pressupõe a aceitação da ética da 
propriedade privada como válida. Em outras palavras, cognição e busca pela verdade como 
tal tem uma fundação normativa, e a fundação normativa em que a cognição e a verdade 
residem é o reconhecimento dos direitos de propriedade privada.

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