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O Bom Selvagem

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Pesquisa de Filosofia
O Bom Selvagem – Jean-Jacques Rousseau
Ninguém pode deixar de reconhecer a influência da teoria do bom selvagem na consciência contemporânea. Ela é vista no presente respeito por tudo o que é natural (alimentos naturais, remédios naturais, parto natural) e na desconfiança diante do que é feito pelo homem, no desuso dos estilos autoritários de criação de filhos e na concepção dos problemas sociais como defeitos reparáveis em nossas instituições, e não como tragédias inerentes à condição humana. 
(Steven Pinker. Tábula rasa – a negação contemporânea da natureza humana, 2004. Adaptado.)
Recentemente, a Funai (Fundação Nacional do Índio) mapeou 39 grupos indígenas que vivem isolados na Amazônia e que, em tese, nunca tiveram qualquer contato com o "homem branco". 
Neste estado "primitivo", o homem viveria em harmonia com seus semelhantes, livre da violência que aflige as grandes cidades? E, no caso do "homem civilizado", a ciência que o tornou dependente de tecnologias como luz elétrica e aparelhos celulares também contribuiu, de alguma forma, para sua evolução moral? 
Para o filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que viveu numa época em que não existia luz elétrica e, muito menos, aparelhos celulares, as respostas a estas perguntas podem ser respondidas da seguinte forma: "O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros". Com isso, ele quer dizer que o homem possui uma natureza boa que é corrompida pelo processo civilizador. 
Neste caso, bastaria irmos para a floresta e viver como nossos antepassados para sermos felizes? Não é essa a proposta de Rousseau. Em sua obra "Do Contrato Social" (1757/ 1762) ele reflete sobre como deveriam ser as instituições para que possamos ter uma organização social mais justa, que preserve a liberdade, bem supremo do homem.
Existente desde a Antiguidade, o moderno aparecimento do mito do bom selvagem coincidiu com o período das grandes navegações. É oportuno, portanto, rastrear sua gênese e refazer seu itinerário.
Foi sem dúvida Colombo o primeiro a relançar o antigo mito, ao reencontrar o bom selvagem no Novo Mundo. Num cenário paradisíaco, com árvores luxuriantes, mel em abundância e revoadas de pássaros canoros, entre os quais ele reconheceu o rouxinol europeu, Colombo encontrou homens naturalmente bons. São simples e honestos, generosos ao extremo, porque dão tudo o que lhes pedem, amam o próximo mais do que eles mesmos; em suma, trata-se de um povo “amável e sem cobiça […] a melhor gente em toda a terra […] com sua fala suave, mansa e risonha. Tanto homens e mulheres andam nus”.
Como a famosa carta de Caminha permaneceu inédita até 1817, há que se destacar Américo Vespúcio, cuja obra foi publicada, em numerosas edições, desde o século XVI. Em 1502, escreve o navegador que os índios “são desprovidos de fé e lei, vivem segundo a natureza, desconhecem a imortalidade da alma, não carregam com eles bens próprios, pois tudo é comum. Desconhecem também fronteiras de reinos ou províncias, o poder de um rei ou qualquer forma de obediência; assim, cada qual é senhor de si mesmo”.
Mas o mito do bom selvagem só se consolidou mesmo graças ao franciscano André Thévet e ao calvinista Jean de Léry, que escreveram livros baseados em suas experiências na França Antártica, colônia francesa fundada por Villegagnon no Rio de Janeiro.
Em Singularidades da França Antártica, publicada em 1557, Thévet enxergou nos índios, junto a muitos defeitos, grande virtudes, como a hospitalidade e a coragem, que inspirava nos condenados à morte um estoicismo admirável. Foi, aliás, Thévet que inaugurou a tradição de criticar a cultura europeia comparando-a com os costumes indígenas. No que se refere, por exemplo, à fé, os índios ao menos acreditam na imortalidade da alma e na existência de um ser supremo – Tupã –, motivo pelo qual “essa pobre gente, por maior que seja o seu erro ou ignorância, é, sem comparação, muito mais tolerável do que os condenáveis ateístas dos tempos atuais”. A comparação com hábitos do Velho Mundo e da Antiguidade clássica é especialmente frequente quando Thévet descreve práticas indígenas chocantes, como a antropofagia e a promiscuidade sexual. A intenção de inocentar os índios ou de relativizar sua culpa é evidente. Por abominável que seja – escreve ele –, não se deve esquecer que “os antigos turcos, mouros e árabes eram também canibais”, assim como os citas. É certo, também, que o hábito do indígena de entregar sua filha ao primeiro que aparecer é muito censurável. Mas nisso não é o único, já que Sêneca e Estrabão nos informam que os lídios e armênios tinham o costume de enviar suas filhas às praias, para que se entregassem aos primeiros passantes. “Possivelmente existem, em França, muitas moças, tidas como pias e virtuosas, que procedem do mesmo modo, ou ainda pior, e ademais sem permuta de oferendas ou votos” – encerra Thévet.
Também Jean de Léry, em sua História da viagem à terra do Brasil (1578), desculpa o que parecia chocante nos costumes indígenas. A antropofagia, por exemplo, não é pior do que a prática da usura, na Europa, já que os usurários “sugam o sangue e a medula, e por conseguinte comem vivos as viúvas, os órfãos e outros infelizes. Seria melhor lhes cortar a garganta de uma vez do que os abandonar a uma morte lenta. Esses agiotas são portanto mais cruéis do que os selvagens”. Depois, há antropofagia também entre os civilizados. O próprio Léry assistiu a uma cena de canibalismo durante o cerco de Sancerre, na época das Guerras de Religião, quando uma jovem foi devorada pelos pais. Além disso, em sua viagem de volta à França, os víveres faltaram tão completamente que por pouco os tripulantes do navio escaparam da necessidade de recorrer ao canibalismo.
Mas não se trata apenas de desculpar os costumes indígenas, mostrando que os costumes europeus são iguais ou piores. É preciso reconhecer que sob vários aspectos a cultura indígena é superior à europeia, e que desse ponto de vista é a Europa que precisa se justificar diante da América.
Exemplar, nesse sentido, é um velho Tupinambá que pergunta a Léry por que os europeus querem ficar ricos. Para legar essa riqueza aos seus filhos, responde Léry. O velho ri da resposta, porque os índios sabem que a mesma terra que os alimentou alimentará também os seus descendentes.

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