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BfgviblioBiblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução.nda e a reprodução.Biblioteca online – sem valor comeBiblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução.rcial. Proibida a da e a reprodução. Relações de poder no cotidiano escolar Circulação interna Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 0 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. "Conhecer os outros é inteligência, conhecer-se a si próprio é verdadeira sabedoria. Controlar os outros é força, controlar-se a si próprio é verdadeiro poder." (Lao-Tsé) Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 1 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. INTRODUÇÃO................................................................................................................... 3 1. REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA................................................................................ 4 Atividades de Síntese........................................................................................................... 14 2. RELAÇÕES DE PODER: UMA ANÁLISE CONCEITUAL....................................... 15 3. TRAJETÓRIA METODOLÓGICA............................................................................... 27 4. DA PRÁTICA PENSADA Á PRÁTICA REALIZADA............................................... 37 5. ANÁLISES FINAIS ....................................................................................................... 72 Atividades de Síntese........................................................................................................... 82 REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 83 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 86 Sumário Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 2 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. Este módulo que ora apresentamos visa reunir o melhor do pensamento teórico e crítico sobre as relações de poder que se estabelecem na escola, expondo um leque de questões de grande relevância para o debate nacional sobre a Educação. A pluralidade e as necessidades de nossas escolas pressupõem dois aspectos básicos: a competência e a coragem de fazer. Ambos caminham juntos e se impulsionam mutuamente. E preciso criar espaços, na esfera da escola, para os profissionais se sentirem desconfortáveis com seu fazer, com a mesma intensidade como têm se sentido com as instituições e órgãos superiores. A insatisfação consigo mesmo propicia o (re)pensar, o (re)construir. Na medida em que este processo ocorrer em cadeia será possível pensar em construções de fato coletivas, em identidades de escola e finalmente em melhoria da qualidade de ensino. Por acreditar que os profissionais de educação podem alterar o rumo do processo ensino- aprendizagem com mais força e determinação que planos, leis, decretos e projetos construídos em instâncias muitas vezes distantes das possibilidades e dos limites da escola, é o objetivo deste estudo. Esperamos assim contribuir para a reflexão dos profissionais da área de educação, visto que nesse campo o questionamento é o primeiro passo na direção da melhoria da qualidade do ensino, o que afeta todos nós e o país. A todos, bons estudos! Introdução Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 3 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. Capítulo 1 Reflexões sobre a escola Sabe-se que a prisão é o único lugar onde o poder se manifesta sem nenhuma necessidade de se mascarar. Foucault 1989, p. 54 Analisando um determinada escola, podemos perceber a importância da construção coletiva do projeto político-pedagógico decorrente da necessidade de explicitação das ações já estava “plantada”, mas faltava uma ação que possibilitasse fazer germinar, desenvolver a construção. As questões da escola, em geral, não eram tratadas de forma articulada e ampla, ao contrário, podia-se perceber a formação de verdadeiros “feudos” na análise e na administração dos problemas. A comunicação oral e gestual, por exemplo, nem sempre era vista como relevante, uma vez que se destacava um caráter aparentemente neutro, oficioso e até secundário; no entanto, ocultavam-se ou explicitavam-se comportamentos compromissados com uma postura que se definia pela busca da manutenção das estruturas sociais vigentes e com formas de relação de poder autoritárias e contraditórias ao discurso. Além desse aspecto, a possibilidade de formas democráticas e mais transparentes na condução da escola impõe a participação qualificada de pessoas, grupos e instituições no funcionamento articulado de suas ações, não por áreas estanques, mas com a preocupação globalizadora. Mas, certamente, seria uma postura bastante ingênua imaginar que se estaria propondo a compreensão das relações fundamentais da prática educativa nas escolas em sua amplitude global, porém, questiono se seria esperar demais que os profissionais envolvidos buscassem, no mínimo, o exercício da leitura e da interpretação coletiva das formas diversas de expressão de poder de sua vida cotidiana. O uso do termo “vida cotidiana”, entendido segundo descreve Lefebvre,1 refere-se a níveis de realidade social, o que equivale dizer que estamos conectados à globalidade. A importância de se conhecer a vida cotidiana está, principalmente, no fato de que tudo aquilo que normalmente é determinado pelas esferas superiores, como orientações metodológicas, 1 Henri Lefebvre utiliza a expressão vida cotidiana para designar as características da vida sob o modo capitalista de produção. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 4 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. níveis de autonomia social e outras, produz-se e constrói-se do e no cotidiano. Em outras palavras, tudo que é criado deve vir do cotidiano e retornar a ele para ser confirmado e validado. Todos os estudos sobre a cotidianidade apontam a complexidade e a contraditoriedade de seu conteúdo. Isso porque sugere, entre outros aspectos, a reflexão sobre a vida dos gestos, das atividades rotineiras, do mundo privado de cada um, em todas as suas ambivalências. Atinge um modo de existência social que flui entre o fictício e o real, o abstrato e o concreto, o homogêneo e o heterogêneo. A relação do homem com a cotidianidade é direta, propiciando um processo de amadurecimento ao indivíduo, que se reproduz diretamente como indivíduo e indiretamente como complexo social. Segundo Heller:2 O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que no indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. (...) E adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade. (1972, p. 18) No que diz respeito à escola, é preciso que as decisões institucionais para se efetivarem emerjam da prática cotidiana, sendo, portanto, necessário conhecê-la, identificando suas características e formas de expressão. Reforçando, a vida cotidiana insere-se na história, modifica- se e modifica as relações sociais, e acrescenta Heller: “Mas a direção destas modificações depende estritamenteda consciência que os homens portam de sua essência e dos valores presentes ou não ao seu desenvolvimento.” (1972, p. 20) Segundo autores como Kosik (1988) e Lefebvre (1979), a escola, muitas vezes, é acusada pelo trabalho alienado de seus profissionais e dessa acusação infere-se que a vida cotidiana é atingida por uma das dimensões da alienação, que, segundo Marx, está associada ao caráter da objetivação. Nela, o trabalho deixa de ser vital, criador, prazeroso para se tornar apenas meio de subsistência. “O homem alienado de si mesmo é também o pensador alienado de sua essência (1978, p. 47) Nesta visão, a vida cotidiana passa a ser um espaço, também, de mediocridade, com alguns valores — como o individualismo, a neutralidade, a competição — intensificados pela estrutura capitalista de organização social. Ocorre uma insatisfação, que se manifesta na contestação ou na passividade, que mascara a mediocridade e impede a procura do “ser inteiro”. Assim, a cotidianidade será campo de desenvolvimento do poder criador e transformador e, também, da alienação. A questão da objetivação é vista por Heller como elemento básico do ser social. As objetivações mais características da vida cotidiana são as “objetivações em si”. Essa objetivação existe quando acontece o rompimento da heterogeneidade. O singular toma consciência da gene- ralidade por meio das objetivações privilegiadas, como o trabalho, a ciência e a arte, por exemplo, ou mesmo por meio de uma escolha moral. Historicamente essa passagem tem sido de acesso muito restrito aos seres singulares. O que não significa mudar a sua cotidianidade, pois essas experiências caracterizam a vida cotidiana. A requisição da generalidade é continuamente posta e reposta na vida cotidiana. O importante é a construção da individualidade, uma vez que nela está presente a dialética do universal, do particular, do singular. A individualidade é uma construção interminável, o que significa dizer que o ser singular passa a transcender uma particularidade, chegando à consciência. Neste trabalho, tomaremos os princípios de Heller, em que a dialética entre o genérico e o particular pertence ao processo de tomada de consciência da realidade como uma construção 2 Heller não identifica a vida cotidiana como alienação, em discordância de Lefebvre. Ela observa que a alienação não destaca a unidade entre ser genérico e ser singular, reforça que há oposição e não uma diferença. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 5 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. sempre presente no cotidiano. Para a autora, a vida cotidiana toma o homem inteiro, em todos os seus aspectos e, portanto, em sua individualidade e generalidade. Nem mesmo o fato de que todas as suas capacidades estejam em funcionamento garante a sua intensidade. O homem da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo, mas não tem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso não pode aguçá-los em toda sua intensidade. (1985, p. 18) A questão da relação de poder na escola é uma temática que há muito preocupa educadores. As pesquisas que têm privilegiado esse assunto buscam associar o poder a diferentes aspectos da realidade escolar. Meu trabalho buscará acrescentar algumas reflexões sobre essa temática, enfatizando a dificuldade da escola na identificação dos processos que resultam das e nas relações de poder. E, talvez, por tudo que existe de receio, polêmica e “sombra”,3 tive clareza de que esta é, sem dúvida, uma das “feridas” expostas da escola e que por isso mesmo merece que se assuma o desafio. Arendt refere-se à ilusão da percepção da realidade, afirmando que (...) toda a esfera dos assuntos humanos é vista do ponto de vista de uma filosofia que pressupõe que mesmo aqueles que habitam a caverna dos problemas humanos são humanos, na medida apenas em que também querem ver, embora permaneçam iludidos por sombras e imagens. (1972, p. 155) A escola entre o conservador e o emergente A qualidade da visão de mundo expressa-se não apenas na capacidade de participar da elaboração de um projeto comum. O discurso, freqüentemente progressista, que aflora dos textos e documentos nem sempre traduz o concreto pensado e vivido na escola. Ao contrário, reflete a própria crise de paradigmas que se pode observar nos mais diferentes níveis sociais. Quando abordamos o descompasso entre a fala e a postura, não nos referimos a questões conflitantes apenas perifericamente. Referimo-nos, sim, ao fato de que os paradigmas são elementos norteadores, entre outros aspectos, dos métodos e das questões definidoras da prática pedagógica dos profissionais da educação. Com base nesse raciocínio, as tendências pedagógicas explicitadas são conseqüentes de valores e princípios acumulados ao longo da experiência vivencial de cada profissional. Com isso não queremos dizer que seja impossível se alterar posturas pedagógicas, mas sem dúvida não serão as novas propostas, mesmo que bem elaboradas e produzidas pelas instâncias que “pensam” a escola, que promoverão essas mudanças. O que observamos é que, diante de uma nova proposta pedagógica, os professores adotam de forma mais acentuada duas condutas, quais sejam: rejeitam sem maiores reflexões, justificando que preferem manter-se na proposta que sempre tiveram e que sempre deu tão certo, como afirmam com freqüência; adotam o discurso de defesa da nova proposta, buscando com isso participar do grupo de educadores tidos como “progressistas” e atualizados sem, no entanto, viverem a proposta em suas salas de aula, pois estão distantes de sua concepção e de seu entendimento. Mas existem os profissionais que se preocupam em repensar suas práticas, fazendo uma análise crítica e buscando imprimir em seu cotidiano condutas compatíveis com o entrelaçamento da sua formação inicial e as experiências profissionais teóricas e práticas que caracterizam sua formação continuada. Infelizmente estes não se constituem na maioria, ao contrário, são vistos pelos próprios colegas como caxias e portanto, diferentes do grupo. Muitas vezes chegam a incomodar os menos interessados em fazer do processo ensino-aprendizagem um processo que não 3 O termo “sombra” traz a conotação dada por Platão na parábola da caverna, em que seus habitantes teriam que sair dela e embarcar numa aventura por si mesmos — este seria o caminho para a verdade. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 6 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. se limite ao achismo e à repetitividade impensada. Causam claro desconforto a alguns grupos que vivem o pacto da mediocridade no cotidiano das suas atividades profissionais. A interligação paradigma — relações de poder — proposta pedagógica curricular reflete componentes imbricados de um mesmo processo, retratando aspectos em seus pontos divergentes mais profundos, que vão desde princípios filosóficos até atividades em sala de aula. Na verdade, qualquer currículo se efetiva, no nível da sala de aula; é o currículo ensinado e que congrega uma grande pluralidade de concepções e princípios filosóficos. O descompasso entre o implícito e o explícito é um convite a uma reflexão mais detalhada sobre o real paradigma que direciona as relações de poder no cotidiano da escola. Não é simples captar a riqueza de aspectos que se colocam em torno das manifestações das pessoas e para tanto é necessário estar atento ao cotidiano como espaço de manifestação, também, do simbólico e do imaginário. Para melhor esclarecer o embate de paradigmas, que não é questão exclusiva da esfera escolar, mas, antes, constitui-se em aspecto socialmente mais amplo, farei uma abordagem partindo do conceito e das ligações com as teorias da ciênciaeducativa. A discussão sobre paradigma4 não é nova; no entanto, nos últimos anos tem se intensificado. Por este motivo existe o risco de transformar-se em mais um modismo, pela forma como o termo é utilizado, pelo enorme prestígio e por alguns abusos. A noção de paradigma pode ser entendida tanto numa acepção clássica, como em Platão, quanto segundo uma acepção contemporânea, como em Thomas Kuhn.5 Na primeira visão, um paradigma tem o caráter de modelo, um tipo exemplar, pertencente a um mundo abstrato. Apesar de possuir elementos comuns, no sentido de apresentar função normativa, a segunda visão possui diferenças no sentido da ampliação da concepção, pois busca a realidade captada, vivida e não apenas modelar. Outros conceitos poderiam ser apresentados, porém, destacamos três: Paradigmas são realizações científicas, universalmente reconhecidas, que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares aos praticantes de uma ciência. (Kuhn 1962, p. 18) O paradigma é uma concepção geral significando a intuição do mundo, uma filosofia ou uma ortodoxia intelectual. O paradigma propõe problemas, métodos de pesquisa e critérios para soluções aceitáveis por todos aqueles que fazem pesquisa. (Martins 1981, p. 47) Paradigma é o bloco de pensamento que articula um modelo ou uma teoria. Neste sentido é sinônimo de “metateoria”, pois, proporciona uma espécie de sintaxe que amarra a elaboração e reformulação das teorias pertinentes. (Molero 1991, p. 59) A essência dos conceitos diz respeito a uma rede de conceituações e metodologias que estão ligadas a valores e crenças com caráter exemplar. O paradigma exclui a investigação científica de problemas cujas soluções se antecipem a ele. Como exemplo, temos certas questões sociais que são afastadas da investigação por não se enquadrar à forma usual do paradigma dominante. Se por um lado o recorte paradigmático permite a investigação detalhada de uma dada parcela da realidade, por outro acaba por cercear outras possibilidades analíticas dessa mesma realidade, de forma que o novo, visto como anômalo, é afastado. No entanto, pelo próprio movimento dialético dos fatos esse “afastamento” provocado pelo 4 O termo grego “paradigma”, que significa modelo, epistemê, possui vários sentidos embora neste trabalho será tomado de forma mais enfática em seus sentidos sociológico e epistemológico. 5 Foi Thomas Kuhn quem trouxe para o centro da discussão a noção de paradigma em sua obra A estrutura das revoluções científicas. Destaca a estrutura de pressupostos como alicerce de uma comunidade científica. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 7 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. cerceamento paradigmático não tem como refrear a força da História. O papel desbravador dos novos paradigmas coloca os fenômenos tidos como não-científicos à mostra e muitos deles indicam novas perspectivas e completas revoluções epistemológicas como as produzidas, por exemplo, por Einstein, Marx e tantos outros. Os paradigmas são situados historicamente e representam a tendência dominante de cada época, o que significa dizer que ao longo do processo de desenvolvimento da humanidade eles vão se entrelaçando, se alterando, formando o que poderíamos chamar de malha referencial do comportamento. Esse movimento gera momentos de acomodação e também de crises. Um dos melhores exemplos é, provavelmente, a crise paradigmática da revolução científica dos séculos XVI e XVII, apontada como a responsável pelo desencadeamento do pensamento da Modernidade, tendo como referencial a matriz de racionalidade sobre as ciências naturais. Sem dúvida, o que se constatou foi o grande progresso científico e tecnológico que impera em nossos dias. Paralelamente, num movimento dialético, esse mesmo desenvolvimento fez emergir a superação do paradigma com o qual se desenvolveu. O novo traz o germe de um outro mundo, um outro homem, um outro episteme. A Modernidade caracteriza-se pela ruptura com a tradição que leva buscar no sujeito pensante a justificação do conhecimento. O século XVIII é conhecido como o “Século das Luzes”, visto que o real deve tornar-se claro em todos os seus aspectos e, portanto, transparente à razão. O conhecimento, a ciência e a educação são as armas para se desvelar o real, na medida em que os homens são dotados de luz natural, de racionalidade. A reflexão e a crítica sobre a realidade pressupõem a autonomia da consciência subjetiva de forma que o próprio modelo de conhecimento deriva da subjetividade. A ânsia do homem pelo progresso da ciência impediu-o de refletir, concomitantemente, sobre o caráter científico e social dos fenômenos. Cientistas que trabalham paradigmas emergentes buscam a superação da fragmentação da ciência e ainda suas conseqüências para o homem e a sociedade. As certezas dos sujeitos pensantes do modelo cartesiano já não conseguem manter-se na análise e no conhecimento da realidade. Hegel (1975) inicia um questionamento sobre o paradigma subjetivista, trazendo a noção de uma consciência historicamente determinada, sendo considerado por alguns como um dos precursores da “intersubjetividade”. Afirma, ainda, que a relação com a realidade não ocorre através da consciência subjetiva, mas pressupõe a existência da inserção mútua entre cultura e indivíduo. Marx (1979) reforçou as críticas à tradição racionalista por meio de noções como alienação e ideologia. A liberação humana pode ocorrer na medida em que a própria sociedade se transformar. O autor destaca que a noção de alienação como conceito crítico opõe-se à racionalidade iluminista. Esses são exemplos que ilustram a crise vivida pela Modernidade, no século XIX. As teorias científicas buscam outros caminhos, que já não se referem apenas à filosofia da consciência, ao formalismo e à própria lógica das teorias científicas do início desse paradigma, em detrimento ao sujeito do conhecimento. Uma análise mais profunda e séria sobre paradigma torna-se a cada momento mais importante para que se possa compreender as crises dos grandes sistemas interpretativos, que vêm perdendo a capacidade de explicar uma realidade cada vez mais complexa, plural e heterogênea. Em síntese, a falha da pretensão racionalista de organizar os vários aspectos do real acabou provocando o que alguns teóricos chamam de crise do paradigma dominante ou clássico. A exigência de um rigor científico deixou de fora tudo o que não pode ser explicado pela razão. Nesse sentido, têm surgido cada vez mais críticas ao paradigma clássico e, junto, a possibilidade de outros paradigmas que ainda estão se construindo. São os chamados paradigmas Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 8 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. emergentes,6 que abrem o caminho para a transdisciplinaridade que se opõe ao característico isolamento disciplinar do paradigma clássico. É importante, como lembra Carvalho (1986), que a crítica não seja feita ao paradigma propriamente dito mas ao seu expansionismo, que traz em seu bojo a pretensão do alcance universal dos fenômenos. Isso significa que um paradigma deve ser considerado, desde que reconduzido aos seus limites, levando em conta os princípios da recondução e da complementaridade entre paradigmas, sem, portanto, serem excludentes. Chamamos a atenção para a amplitude deste pensamento, pois não se resume a uma questão epistemológica na medida em que envolve tanto o pensamento da realidade como a sua natureza, que dizem respeito aos princípios fundamentais que regem os fenômenos e o próprio pensamento. Dessa maneira, a visão de mundo, de homem e de sociedade que norteia as concepções como verdadeiros lemes, dos quais nem sempre se tem consciência, transcende ao próprio discurso.Daí porque dizer-se que a revisão de paradigmas exige coragem pela falta de evidência sobre o acerto da mudança e também pelo fato de que valores podem ser dolorosamente desalojados e velhas certezas, postas à prova. Boaventura, de maneira muito apropriada, afirma que na desafiante busca, os educadores, (...) despedem-se, com alguma dor e muita insegurança, dos lugares conceituais, teóricos e epistemológicos ancestrais e últimos, mas não mais convincentes e securizantes. Partem em busca de paragens onde o otimismo seja mais fundamentado e a racionalidade, mais plural. (In: Pimentel 1992, p. 59) A História trilhou este caminho. Em certas épocas houve mais resistência à movimentação paradigmática, mas ela ocorreu. Atualmente a fragilidade da resistência foi conseqüência da rapidez com que o novo chega ao homem e este acaba por curvar-se, se quiser estar vivo no sentido amplo da palavra. Para se tomar o trem da História, que possui um ritmo próprio para cada época, é preciso nos abrirmos para a intuição do mundo através de elos que ligarão três elementos interligados: revisão-elaboração-reformulação. Algumas pessoas e mesmo grupos sofrem de um mal chamado “paralisia paradigmática”, que é a doença fatal da certeza absoluta, imutável e inquestionável. Um exemplo são os fabricantes de relógios suíços, que eram donos do mercado e que em 1968 não acreditaram e não aceitaram a invenção do relógio de “quartzo”. A idéia foi comprada pelos japoneses, que passaram a dominar o comércio de relógios. Mais recentemente, um empresário suíço, acreditando na interminável corrida tecnológica, investiu no relógio “Swatch”, que possui menos componentes e é mais barato. Atualmente, de cada dois relógios vendidos no mundo, um é fabricado na Suíça e, desses, a maioria é Swatch. Mas poderia um exemplo de uma área, aparentemente tão distante e tão manipulável como a comercialização de produtos, ser trazido à área da educação? Eu diria que, guardando as devidas proporções, é um exemplo que pode remeter-nos a uma análise bastante profunda. Os educadores muitas vezes tendem a cristalizar suas concepções originárias de teorias ligadas a paradigmas que foram “assimilados” ao longo de suas histórias de vida, que transcendem delas próprias e que podem estar superadas. Os fatos que ocorrem na realidade são profundamente dinâmicos e trazem para o seio da escola situações que não devem ser ignoradas, verdades que não podem ser encobertas, ao contrário, necessitam ser discutidas no bojo dos conteúdos de cada sala de aula, de acordo com o nível de seus alunos. Hoje a família é outra, o aluno é outro, os fatos são novos e em várias escolas, os professores são os mesmos, pois muitos são os que reproduzem em 6 Hanna Arendt usa o termo “natalidade” para expressar a idéia de emergente. Faz uma interessante análise sobre o confronto do instituído e o que “vem”, o que está para nascer. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 9 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. suas posturas e palavras o que seus mestres, há décadas, disseram. A escola necessita “oxigenar-se” para não ser sufocada pelo fechamento que ela própria está gerando. Estamos, basicamente, entre dois blocos paradigmáticos trincados pelo próprio processo histórico — o conservador e o emergente. Mas como toda crise, esta também traz em si o germe de sua própria superação, que aponta para uma nova inspiração paradigmática rumo a novos conceitos de relação de poder e descentralização, que se constituem em alternativas que deverão superar os modelos anteriores e que por sua vez não respondem a tais desafios. Os educadores, num momento indiscutível de transição, carecem do domínio do conhecimento como um espaço conceituai. Alguns poucos criticam posturas conservadoras, literalmente ancoradas em um paradigma ultrapassado, e buscam com muita criatividade a construção de novas formas de pensar a realidade, sem as conhecidas dicotomias em que o horizonte conceitual resume-se no ou e não no e. Conseguem ultrapassar a formação cultural que reforça o velho vício — pensar a contradição e não por contradição, como afirma Vieira Pinto (1969). Melhor explicando, as pessoas que conseguem a superação do ou abrem mão do dogmatismo, em detrimento de uma racionalidade mais plural, articulada, não-fragmentada. Em conseqüência, articulam-se com o poder de forma mais transparente e coerente. Pela não-superação, existem os educadores que, apesar dos questionamentos, não mudam de perspectiva, muitas vezes buscando restaurar o paradigma dominante, num movimento saudosista e limitado, valendo-se do poder como elemento de manutenção das relações vigentes. Não estou querendo classificar o novo como o indubitavelmente melhor. O empobrecedor está no fato de entendermos o horizonte do conhecimento como algo finito, limitado e acabado. Assim, as relações sociais em torno do poder transitam entre os dois pólos paradigmáticos, quais sejam, o conservador e o emergente ou da natalidade, como se refere Arendt (1979). Em uma extremidade encontram-se os educadores que consideram o conhecimento como transmissão de um saber pronto, e, na outra extremidade, os educadores que concebem o conhecimento como um processo de construção. Entre ambas, uma gama de combinações possíveis é gerada, pois a posição que os educadores explicitam não é estática, visto que é processual, ou seja, durante o percurso profissional vivem experiências que promovem alterações conceituais e práticas, mais ou menos lentas. O confronto dessas orientações teóricas reflete-se no cotidiano das escolas. Divergências ou até convergências acerca das posturas pedagógicas dos profissionais da educação não se evidenciam, em sua essência, nos exaustivos discursos repletos de jargões e modismos que podem ser percebidos em anfiteatros lotados nos grandes encontros nacionais ou mesmo nas discussões em salas de reuniões espalhadas por cada unidade escolar, mas sim no âmbito de cada sala de aula e, mais especificamente, na postura de cada educador no cotidiano da escola. A impotência diante dos problemas educacionais tem se constituído no sentimento mais freqüente entre os educadores que, corroídos pelo “cansaço pedagógico” e, principalmente, pela angústia exacerbada, anseiam chegar ao como, às receitas ou aos possíveis modelos de um paradigma que não foi “gestado” e, portanto, não absorvido. Em muitos dos casos esse descompasso não é percebido com nitidez e muito menos em suas causas, mas traz o embate entre o paradigma instalado e outro(s) que a realidade suscita. Além dessa dificuldade teórica, a escola luta contra outras mazelas, pois está inserida em uma sociedade não menos problemática. Entre tantas indefinições e incertezas com o processo educativo e, por que não dizer, decepções com os próprios poderes constituídos, a matriz teórica de cada educador acaba sendo descaracterizada, como a desesperança da maioria dos brasileiros com a melhoria da própria qualidade de vida. No Brasil, vive-se a “adolescência” de um processo político, no sentido pleno da palavra. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 10 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. São marcantes a revolta, a crítica, os descompassos provocados por ações repletas de incoerências. Muitas vezes se critica, de forma inconsistente, em outras instâncias mais amplas, aquilo que se reproduz no espaço menor. As análises acabam se limitando a questões periféricas do processo e relegam a um segundo plano os pontos essenciais. Uma escola autônoma e de qualidade, onde o saber veiculado oportunize a “todos” a capacidade de exercer com dignidade a cidadania, deve, sem dúvida, fazer parte de uma sociedade amadurecida em sua consciência social através da luta pelos direitosda cidadania coletiva. Esse desejo está vinculado a um determinado paradigma, ainda embrionário para muitos. Temos que admitir a existência do germe de um processo de amadurecimento social. Várias situações de organização social, mesmo que precárias, em alguns momentos podem ser notadas. E evidente que o impeachment de um presidente, a cassação de parlamentares, o processo de mobilização de algumas camadas da população para acompanhar as decisões do Congresso Nacional, por exemplo, não resumem e nem traduzem a capacidade de intervenção popular. Comparativamente, é o mesmo que uma criança das camadas populares conseguir um lugar na escola pública, porém, a grande questão é manter-se nela e, efetivamente aprender; como para o povo brasileiro é garantir condições de vida digna para a população, acompanhada pela luta consciente, constante e essencial por um governo transparente e democrático. Apesar dos indicativos de mudança, se o desejo dos educadores, explícito nos discursos, de uma escola mais democrática e de qualidade é consistente, por que suas ações reforçam uma estrutura de relação de poder semelhante à do Estado autoritário? E o embate dos paradigmas que se mostra no nível da escola. Com freqüência encontramos regimentos, planos globais, enfim as diretrizes que regem a escola repletas de nuanças democráticas, e no fluxo de poder das diversas esferas da organização pedagógico-administrativa em geral, ações antidemocráticas, conteúdos sem significado para os alunos e reforçadores de uma estrutura repressora. Por isso, não basta definir uma escola voltada para a maioria da população brasileira nas instâncias consultivas. E preciso oportunizar condições; é preciso o compromisso efetivo tanto das esferas mais altas de poder (macro), como também daqueles que atuam diretamente na escola (micro). Assim, não se trata mais de definir modelos normativos passivos e dicotomizados sobre situações absolutamente irreais. E necessário compatibilizar os pressupostos filosóficos e legais à concretude da escola pública. A crise da chamada “pedagogia científica”7 explicar-se-ia, fundamentalmente, pelo fato de que ela se ocupa mais com universos formativos desejáveis do que com universos escolares realmente possíveis, de maneira que em muitas oportunidades a escola pensa o processo de ensino- aprendizagem desconectado com as condições dos alunos. Não se pretende a sonegação dos conteúdos pela justificativa das condições sociais dos envolvidos, mas se ressalta a necessidade de uma proposta pedagógica que tenha como referencial básico o aluno, o professor, enfim, o grupo social concreto em interseção com o saber elaborado. Atualmente, temos um quadro social repleto de desigualdades, indefinições políticas e graves contradições socioculturais. Conseqüentemente, a educação vive um momento de crise de identidade, em que necessita clarificar o conceito de Homem, de estrutura social e de mundo. É complexo chegar à interpretação de como a escola trabalha os reflexos de um paradigma tido por muitos como superado, em que apenas uma face do poder é colocada como evidente, qual seja, a que enaltece os fatos isolados, as respostas reprodutoras, as escolhas forçadas e que acabam obstruindo a “história completa” da escola. A transparência de uma outra face do poder, que emerge das assimetrias dialógicas entre os 7 Este é um termo utilizado entre educadores que defendem postulados baseados no caráter ideal das teorias pedagógicas, em detrimento do real, o que acaba por relegar a um segundo plano as contradições sociais e culturais de forma geral. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 11 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. atores, poderá trazer implicações relevantes para a análise das relações de poder na escola. Assim, cada instituição e cada tipo de organização deveriam voltar seus olhos para as diversas faces do poder. Em outras palavras, a relação paradigma-proposta pedagógica tem sua definição, em geral, por órgãos superiores, através de uma proposta dita democrática e discutida com a participação e a representação de diferentes escolas, que na maioria das vezes são simbólicas e que não têm garantido determinadas posturas metodológicas, igualmente democráticas, nas escolas. A participação do grande grupo acaba sendo sucateada, destorcida e nada representativa. E, o que é provavelmente mais sério, sem o crédito dos docentes que não acreditam nem mesmo na necessi- dade e na validade de tais reflexões e definições, pois concretamente não alteram suas posturas metodológicas na esfera da sala de aula. Por isso, atualmente, a compreensão dos paradigmas é cada vez mais importante para que a crise dos grandes sistemas interpretativos seja mais bem avaliada, visto que gradualmente esses sistemas vêm perdendo a sua capacidade de contribuir na leitura da realidade. E premente a preocupação com o que há de mais profundo, que baliza e fornece os padrões de conduta aos educadores — suas próprias matrizes paradigmáticas educacionais, que parecem indiferentes às novas propostas, às vias criativas, enfim às possibilidades infinitas que possuem o ser humano e a própria História. Questionamentos que se fazem presentes De uma forma ou de outra, existem os educadores que têm buscado o caminho da coerência entre o pensar e o fazer, há tanto dicotomizados, porém, avançando pouco, mantendo-se desiludidos pela falta de perspectiva, inebriados pelo corporativismo e, finalmente, ofuscados pelas ideologias liberal e neoliberal que acabam por mascarar o sentido da realidade social, admitindo a desigualdade e desqualificando a idéia de luta de classe. Em conseqüência, percebemos a escola vivendo e disseminando uma de suas mais graves contradições, qual seja, aquela que contrapõe o desejo da vida digna à coisificação humana. Haveria saída? A escola teria condições de ultrapassar os entraves e cumprir sua função? Seria possível a abertura para um paradigma compatível com as situações emergenciais? Não há dúvida de que a ciência da educação carece de elementos teóricos mais consistentes e mais compatíveis com a realidade, mesmo que se escute em alguns discursos que o problema é de ordem prática; esta é uma análise, no mínimo, dicotomizada e ingênua. No entanto, já existem indicativos e elementos teóricos necessários, mesmo que em alguns aspectos parcializados, para desencadear uma alteração significativa no encaminhamento dos problemas da escola pública; é preciso viabilizar ações. Não devemos nos apegar a adaptações e verdadeiras leviandades metodológicas em nome da melhoria da qualidade de ensino. O próprio sucateamento da escola começa a ser repensado, não só pelos educadores preocupados com a valorização do homem e com a contra- cultura, como também por aqueles cuja prioridade é o lucro, o capital econômico. Daí a importância em ficarmos atentos como educadores, com posições extremadas e modismos que acabam por ameaçar e confundir a especificidade da escola. Está se falando muito em qualidade total, porém qualquer generalização é temerária. E preciso guardar as devidas diferenças da relação objetivos-processo/máquina-homem/produto final- ser em construção. Não vai aqui nenhum saudosismo ou conservadorismo que resulta em resistência à mudança. Registro aqui, sim, a preocupação de alguém que se propõe educadora, e que vislumbra a assustadora possibilidade de ver um espaço como a escola, que é tão rico, tão contraditoriamente mesclado entre o concreto, o subjetivo, o intersubjetivo, tão voltado a um tipo de lucro que na maioria das vezes se conflitua ao do capital econômico. É preciso produção, não há dúvida, é preciso também racionalidade, clareza, investimento, mas objetivando o Homem, a sua Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 12 Bibliotecaonline – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. qualidade de vida, a sua felicidade, que é o grande desafio e sentido da empreitada educativa. A educação não precisa buscar em outras fontes a melhoria de sua ação; isto pode ser gerido em seu próprio seio. É importante observar que a partir da década de 1980, o Brasil vem sofrendo influência de um movimento internacional que está preocupado em redefinir as bases de exploração da classe trabalhadora, através de novas formas de organização do trabalho (tecnologia de grupo, células de produção, qualidade total). Mesmo sob a ótica capitalista, coloca-se a necessidade de repensar a organização do Estado, do trabalhador e da própria escola. Segundo Freitas (1992), a qualidade da escola passa a interessar mais na medida em que a estrutura social necessita de mais habilidades do trabalhador, como capacidade de abstração, para certas decisões, raciocínio matemático e outras. Todas essas habilidades são típicas de ser desenvolvidas na escola, mas não no modelo que aí está. Por outro lado a educação é temida pelo grupo que detém o poder porque gera conscientização. A escola deve analisar muito bem os antagonismos que permeiam uma sociedade capitalista, para não prejudicar a classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, crescer na direção das necessidades da maioria da população. Quanto ao velho embate educar/explorar, não há dúvida de que não devemos recusar qualquer tipo de abertura. Mas fazer uso dela sem ter conhecimento do processo no qual está inserida é caminhar ingenuamente, como se a sociedade capitalista não contivesse em seu interior interesses antagônicos. Para um caminhar consciente, as relações de poder na escola, na extremidade, teriam que ser analisadas e repensadas, se é que em algum momento isso ocorreu de maneira séria e voltada para as necessidades dos alunos. Como se refere Foucault: (...) captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se toma capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras do direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violento. (Foucault 1979, p. 182) Numa leitura mais rápida alguém poderia indagar-se sobre a prioridade em se pensar a questão do poder e não especificamente questões de metodologia e conteúdo. Mas por tudo que já foi colocado, evidentemente, esses aspectos do processo educativo são indissociáveis. A opção por determinados encaminhamentos pedagógicos, conscientemente ou não, traz consigo os pressupostos que irão nortear os padrões de relação de poder do diretor, do vice-diretor, do orientador educacional, do professor, como também do próprio aluno, à revelia, inclusive, do que esteja registrado, formalmente, em documentos, como planos de ensino, projetos pedagógicos e qualquer proposta pedagógica mais ampla. Assim, analisar o projeto pedagógico, a valorização do aluno e do profissional da educação, enfim, a escola como um todo é analisar também as relações de poder que se efetivam em seu interior. Para definir o objeto de pesquisa, inicialmente fiz um levantamento bibliográfico relativo à produção teórica existente. Como a questão da relação de poder, dirigida especificamente para a escola, é um tema em certos aspectos novo, busquei, também, nas produções teóricas clássicas os elementos balizadores do estudo. Dentre os teóricos estudados, destaco as contribuições de Foucault e Gramsci, mesmo que num primeiro momento possam parecer, em alguns pontos, divergentes. Esse levantamento bibliográfico foi realizado com base em categorias, tais como poder, autoridade, dominação, paradigma e cotidianidade. As indagações preliminares deram origem a outros pontos, igualmente relevantes, e, no decorrer do estudo, começaram a ser mais bem configurados através de minha participação mais estreita na vida da escola selecionada. O objetivo mais amplo foi analisar o fluxo de poder que se estabelece nas séries iniciais do Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 13 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. lº grau de uma escola pública do Distrito Federal. Baseada nessa proposição geral, busquei, de forma mais específica, identificar como se estabelece a dinâmica de poder entre aluno-professor- especialistas de educação e diretor, analisando a matriz paradigmática norteadora e as conseqüências que esse paradigma traz ao processo de ensino-aprendizagem. Outros dois objetivos que destaco dizem respeito aos indícios de novas relações de poder junto à comunidade escolar e ainda aos subsídios para refletir, no nível dos cursos formadores dos novos professores. Fui, então, para a escola com minha experiência e algumas das representações de “professora primária” que se colocaram através dos anos de magistério, mas que pertenciam a um passado já quase distante; de professora universitária que mantém um contato com a escola de 1Q grau, segundo muitos desta mesma escola, distante o bastante e capaz de criar uma forte barreira para a credibilidade daqueles que estão com as “mãos na massa” e, finalmente, com as preocupações, os prazos e as ansiedades, até previstos mas não menos sofridos, de um aluno de pós-graduação. Iniciei, de peito aberto, um processo de pesquisa carregado de mitos, empirismo, leituras, pesquisas parciais, fatos e muito estudo, o que me permitiu analisar com mais clareza a revisão da referência primeira. No início da pesquisa, a presença dos “mitos” nas interpretações era ingenuamente afastada ou mesmo negada. Após leituras e muita reflexão pude compreender a importância do resgate do mito. Gudsdorf em Mito e metafísica discute a questão do mito afirmando: Desta mesma maneira, poderiam ser analisadas certas afirmações essenciais da “Ciência”, e mostrar que a Evolução e o Evolucionismo, o Materialismo, em suma, todas as concepções de conjunto fundadas sobre uma base pretensamente científica designam, na realidade, idéias preconcebidas. Opõem o dogmatismo a dogmatismo, e combatem mitos com outros mitos. Todos estes mitos confluem, de resto, num mito mais geral, que é o próprio mito da ciência, o cientificismo. (1979, p. 276) Qualquer tipo de análise do cotidiano só se desenvolve de forma mais rica e coerente se estiver iluminada por um respaldo teórico. Tendo esse raciocínio como referência busquei junto a alguns teóricos pistas que pudessem nortear a analítica das relações de poder. Este capítulo trouxe diversas reflexões sobre a escola. Faça uma síntese das principais idéias abordadas neste capítulo. _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ Atividades de Síntese Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 14 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução._______________________________________________________________________________ Capítulo 2 Relações de poder: uma análise conceitual Captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violento. Foucault 1979, p. 182 Retrospectiva histórica O poder sempre se coloca como um dos elementos da engrenagem social mais ampla, onde as pessoas ocupam lugares diferenciados, inclusive em instituições sociais como a escola. Mas como captar as relações de poder na escola? Como os indivíduos se constituem em verdadeiros efeitos de poder e em conseqüência seu reprodutor? Não há dúvida de que para nos aproximarmos dessa dinâmica será preciso não só uma análise do poder em seus mecanismos mais próximos como também em seus mecanismos gerais e em suas formas de dominação global. Outra questão que se coloca é -— como esses mecanismos foram filtrados pelas instituições menores e de que maneira se deslocam e expandem ao longo da história? Para subsidiar as reflexões sobre as relações de poder e restaurar as linhas originais da velha instituição escolar, faremos uma breve exposição desses elementos históricos, buscando principalmente em Ponce (1982) e Manacorda (1992) o referencial. Cabe destacar o fato de que para “perseguir” o processo educativo historicamente, é inevitável delimitar seu relacionamento com temas mais gerais da história da humanidade. Portanto, o discurso pedagógico é sempre social, no sentido de que tende, de um lado, a considerar como sujeitos da educação as várias figuras dos educandos, pelo menos nas duas determinações opostas de usuários e de produtores, e, de outro lado, a investigar a posição dos agentes da educação nas várias sociedades da história. Além disso, é um discurso político, que reflete as resistências conservadoras presentes no fato educativo e, afinal, a relação dominantes-dominados. (Manacorda 1992, p. 06) Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 15 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. Assim, os aspectos cotidianos, ligados ao desenvolvimento produtivo social e político, adquirem grande relevância, de forma que a educação reflete as relações sociais mais gerais, nos espaços educativos e, particularmente, na escola. Partindo das comunidades primitivas, identifiquei como características a coletividade pequena, a propriedade comum e um caráter democrático que se consolidava através de um conselho formado por adultos homens e mulheres. Mesmo nessa estrutura, o grupo se organizava através da troca de poderes. Quando certas tarefas deixaram de ser executadas individualmente ou por determinados indivíduos, surgiu o início da divisão do trabalho, no entanto, sem submissão de alguns, fossem homens ou mulheres. A economia doméstica destinada às mulheres tinha um caráter de função pública, socialmente necessária, assim como era função dos homens fornecer o alimento. A educação das crianças não era confiada a alguém em especial e sim à “vigilância” do próprio meio, pois, pouco a pouco, os pequenos amoldavam-se aos padrões que o grupo estabelecia. A criança percebia a vida da comunidade, ajustando-se às normas e ao ritmo próprios. Em outras palavras, a criança passava pela “primeira educação” sem o direcionamento específico de alguém, mas pelo poder do social que imprimia os princípios de vida e pela vida. A pressão e a imposição social registram a impossibilidade da eliminação das influências sociais. Ter poder e submeter-se a ele cobrem as preocupações e obsessões dos seres, do nascimento à morte, pois todo grupo social pode ser considerado como um feixe de relações de poder. E difícil pensar o homem sem um nível de relação de poder, por mais isolada que seja a estrutura social. “O homem enquanto homem é social, isto é, está moldado por um ambiente histórico de que não pode ser separado”. (Ponce 1982, p. 24) O ideal pedagógico de “ajustamento”, de dever ser, era sugerido ao homem primitivo pelo meio social. A finalidade educativa derivava-se da estrutura homogênea do ambiente social. Nessa estrutura, tanto o homem como a mulher se alternavam nas lideranças temporárias que as funções impunham. O ideal educativo com função homogênea deixou de existir com o princípio da divisão em classes, que foi lentamente transformando a sociedade. Essa transformação redundou em um novo vínculo, reforçado pelo caráter escravagista que impunha o poder do homem sobre o homem. Nesse momento, os fins educativos deixaram de estar explicitados na estrutura comunitária. O antagonismo grupai resultou na dicotomia “organizadores” e “executores”, o que originou a desigualdade das educações respectivas. Isso quer dizer que o grupo organizador educava seus sucessores para ocupar seus cargos. A educação nessa perspectiva difunde e reforça os privilégios próprios. Acompanhando as transformações experimentadas pela propriedade privada, a mulher também se modificou socialmente. De um matriarcado que se registrava em algumas comunidades fundadas na propriedade comum, a mulher foi relegada a um segundo plano, deixando de ter “função social” e afastando-se do trabalho social tido como produtivo para cuidar das funções apenas domésticas, que eram vistas como atividades de apoio. Sua figura passou a ser semelhante à das crianças. As conseqüências da propriedade privada para a vida social podem ser colocadas através de alguns pontos relevantes, como a religião personificada em deuses e não em elementos da natureza, a autoridade paterna, a submissão da mulher e dos filhos e a separação entre o trabalho físico e o intelectual. Com esses elementos o Estado surgiu para legitimar a nova estrutura social. O poder era respaldado pela educação imposta pela classe proprietária que, como explica Ponce (1982), deveria cumprir três finalidades: destruir os vestígios de qualquer tradição inimiga, consolidar e ampliar a condição de domínio e ainda prevenir uma possível rebelião das classes dominadas. Para tanto, o ideal pedagógico já não pode ser o mesmo para todos e tem a missão de Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 16 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. impingir aos dominados a aceitação da desigualdade. A mesma economia que assegurou a grandeza do mundo antigo, fundada no trabalho escravo, acabou por provocar o seu deterioramento. A miséria cresceu de tal forma que a exploração escrava já não produzia rendas compensatórias. O escravo passou a produzir menos do que custava a sua própria manutenção, forjando o enfraquecimento do sistema de exploração em grande escala. Nesse contexto, a “servidão” passou a representar vantagem sobre a “escravidão”, pois o servo custeava sua vida. Criou-se nesse momento uma relação social na qual, por um lado, o servo era a única fonte de provento para o patrão e, por outro, o patrão se constituía na única forma de sustento do servo. As transformações que a sociedade sofreu durante o feudalismo impuseram, do ponto de vista do domínio religioso, algumas alterações. O cristianismo canalizou para o mundo extraterreno as limitações, ressaltando que tanto o servo como os seus senhores eram iguais diante de Deus, o que implicava a manutenção do status quo terreno e da igualdade celestial. Na Idade Média, todos os que tinham interesses culturais e que não eram filhos de servos poderiam ir para o convento, ajudando a erguer o muro entre a sabedoria e a ignorância. Preocupados em aumentar suas riquezas, os senhores feudais desprezavam a instrução e a cultura, utilizando para tanto a violência e o saque. A nobreza nãoparticipava de “escolas”, mas tinha garantida a educação por meio dos serviços da figura materna e do “pajem” até os sete anos. O ponto central da educação era a arte militar, pois a guerra era a profissão dos nobres. Os senhores feudais que não eram produtores, mas parasitas, aos poucos foram abrindo mão, por necessidade, de seus privilégios; em conseqüência, os súditos deram origem a uma nova classe social conquistando a liberdade e passaram a ocupar-se, basicamente, do artesanato e do comércio. Lentamente as “cidades” transformaram-se em centros de comercialização implicando a transformação da fortaleza para o comércio. Paralelo à economia mercantil um novo processo se introduz — o aparecimento dos mestres livres que, sendo cléricos ou leigos, passam, também, a ensinar aos leigos. As atividades desenvolviam-se fora das escolas episcopais e acabavam por satisfazer as exigências culturais das novas classes sociais. Esse pode ser considerado o embrião de um mundo moderno, visto que novos conteúdos são introduzidos, refletindo as necessidades e os interesses das classes emergentes. Os chamados burgueses, que nessa época não tinham nenhuma intenção revolucionária, levaram a Igreja a deslocar o centro do ensino, que até então se concentrava nos monastérios, para o clero secular. A preocupação pedagógica de então era a teologia. Essas escolas foram o cerne das atividades e permitiram à burguesia vantagens das quais só a nobreza e o clero dispunham. A estrutura orgânica da sociedade assentava-se basicamente em duas autoridades: Aristóteles e a Igreja. Com o passar do tempo a Igreja viu-se ameaçada de perder o controle que há muito tempo exercia sobre a cultura; assim, investiu nos “pregadores”8 de forma organizada. Foi uma estratégia para acalmar as “heresias” e as inovações; no entanto, a economia do século XI e todas as questões circundantes, como a razão, o nominalismo e a experimentação, já não eram contidas. A igreja católica, progressivamente excluída de seus tradicionais domínios geográficos e ideais, isto é, do Estado pontifício e da função da assistência e da instrução, ficou freqüentemente conduzindo uma batalha de defesa. (Manacorda 1992, p. 292) 8 A figura dos jesuítas no Brasil foi uma ação que se deu no sentido de instalar e fixar o catolicismo. Não entrarei, neste trabalho, em aspectos mais detalhados dessa atuação por entender que já existe farto material sobre o assunto e, ainda, pelo fato de que o importante é situar histórica e politicamente a presença da Igreja no processo educativo. No decorrer do texto alguns esclarecimentos serão apresentados. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 17 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. A essa altura quatro correntes pedagógicas que vão desde o século XVI até o século XVIII já estavam diante dos olhos — a que expressava os interesses da nobreza, a que servia à Igreja feudal, a que refletia os princípios da burguesia protestante e a que traduzia tímidas afirmações da burguesia não-religiosa. O modelo moral que caracterizou a escolarização vinculou-se primeiramente à Igreja, desde a catequização até seu desenvolvimento a partir do século XVII, especialmente na França. Nesse modelo, os pressupostos pedagógicos que concebem a escola um ambiente organizado moralmente baseiam-se na importância atribuída à disciplina na formação dos alunos. Essa disciplina é aplicada tanto no trabalho com os conteúdos como na regulação da vontade. Para tanto caberá ao professor o papel central no processo, dissociando ensino de aprendizagem, aluno de professor. Por sua vez a Companhia de Jesus saiu a campo para fortalecer o poder da Igreja e no lado estritamente pedagógico deu aos colégios um grande e brilhante verniz cultural. Não havia preocupação com a educação popular, mas sim com a educação dos nobres e dos burgueses ricos. Em pouco tempo estavam à frente do ensino. No “Novo Mundo”, os objetivos da ação jesuítica estavam voltados para o recrutamento de fiéis e servidores. A conversão dos indígenas foi assegurada pela catequese que se deu via escolas elementares e que aos poucos se estendeu aos filhos dos colonos. Romanelli (1983) caracteriza a ação pedagógica dos jesuítas como apegada às formas dogmáticas do pensamento contra o pensamento crítico, reafirmativa da autoridade da Igreja e dos mais velhos, privilegiando os exercícios da memória e a concentração do esforço intelectual nas atividades literárias e acadêmicas. Mas as relações de poder que se basearam por tanto tempo na dominação feudal fizeram com que a burguesia afirmasse os direitos do indivíduo como ponto central de seus princípios. Aspiravam à liberdade de contratar, comerciar, crer, pensar. Até então nunca se falara tanto de cultura, razão e luzes; aos poucos consolidava-se novo paradigma. A burguesia acabava assumindo diante da nobreza o papel de defensora dos direitos gerais da sociedade. Mas se por algum tempo ela vislumbrou a esperança de um Homem Total, pleno e livre, a história encarregou-se de evidenciar que a situação das massas piorou e os novos “amos” pareciam não se importar com isso. A burguesia triunfante interessava o indivíduo apto à competição do mercado. O mesmo poder que dividia a sociedade continuou dividindo a educação. Ensino e métodos eram diferenciados para as duas classes sociais. Os trabalhos manuais, que eram o eixo das escolas da classe mais explorada, apareciam também nas escolas dos ricos, mas apenas como um exercício ou distração. Mais uma vez a escola reforçava a dicotomia entre o pensar e o fazer. Apesar de tudo, a burguesia não podia recusar a instrução ao povo, assim como na Antiguidade e no feudalismo. As máquinas sofisticadas exigiam alguma qualificação. O capitalismo carecia de modificações constantes de técnicas de produção e de novas invenções. Trabalho científico e livre investigação estão para o capitalismo assim como religião e dogmatismo estão para o feudalismo. Dessa forma, as escolas tradicionais já não satisfaziam, restando à burguesia a exigência de uma educação primária para as massas e uma educação superior para os técnicos. Aos filhos burgueses era reservado o ensino livresco e divorciado da vida real, sem intenção utilitária; era o chamado ócio digno, restrito a uma classe apenas. Ao final do século XIX houve o advento da escola laica, entre outros aspectos, por pressão e por conquista. A Igreja perdeu o controle do ensino. Do ponto de vista pedagógico, duas correntes podem ser destacadas: a metodológica, que devota respeito à atividade livre e espontânea da criança, isto é, a criança educa-se a si própria através de um trabalho coletivo; a doutrinária, que entende a escola como um meio de transformação social, estruturada na reação ao Estado. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 18 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. Essas duas correntes caminharam algum tempo lado a lado. Já no século XX, em que a divisão da sociedade em classes mostra-se de forma mais clara para a maioria, a educação tem, de um lado, preparado as novas gerações para condições fundamentais da própria existência do capita- lismo, e, por outro, equilibrado os valores contra-hegemônicos que surgem desta mesma educação. Se o fato educativo é um politikum e um social, conseqüentemente, é também verdadeiro que toda situação política e social determina sensivelmente a educação: portanto, nenhuma batalha pedagógica pode ser separada da batalha política e social. (Manacorda 1992, p. 360) A educação e todo o “jogo” de poder que a cerca são aquilo que a organização social indica e não se pode pensar em reforma pedagógica fundamental sem que antes se imponha à classe revolucionária que a gerou. Autoridade e poder: Questões conceituaisPensar a educação no bojo das transformações sociais é também pensar as amplas formas de legitimação da sociedade capitalista brasileira. É sob a égide de todo um poder político e econômico mais amplo que se pretende pensar o fluxo de poder entre alunos, professores, especialistas de educação e diretor, em particular. Com uma análise mais ampla, produto também de um referencial teórico sobre a questão do poder, será possível uma aproximação mais significativa sobre os papéis desempenhados na instituição escolar, que, com sua estrutura burocrática, reflete e reproduz as contradições da estrutura educacional brasileira mais geral. A “categoria” poder é o suporte teórico básico deste estudo. Utilizando o referencial de alguns estudiosos que abordam a questão do poder, farei uma exposição sobre parte dos conceitos apresentados por eles, indispensáveis a esta pesquisa, mesmo que alguns deles tenham tratado do assunto fora da perspectiva da sala de aula e do fluxo de poder que acontece na escola. A discussão sobre autoridade e poder passa, necessariamente, por Weber, considerado o fundador das disciplinas Sociologia Política ou do Poder, Sociologia do Direito e Sociologia da Religião. Para Weber, o poder é a “probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências” (1991, p. 33). Intrinsecamente ligado ao conceito de poder, Weber coloca o de dominação, entendida como “a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis”. Por sua vez, considera a disciplina como a “probabilidade de encontrar obediência pronta, automática e esquemática a uma ordem” (1991, p. 33), mediante treino, sem crítica ou resistência. Para Weber, sociologicamente, o conceito de poder é amorfo, enquanto no caso da dominação existe alguém mandando em outras pessoas, não podendo prescindir de um quadro administrativo ou de uma associação. Uma associação de dominação pressupõe um quadro administrativo e pode se constituir de forma legítima. Pode ser política, considerada dentro de um quadro geográfico, quando é garantida pela ameaça e até aplicação de coação física por parte do quadro administrativo. A coação física é apenas um dos meios e é empregada quando falham outros meios. Ação social politicamente orientada? que influencia a direção de uma associação política de forma não-violenta, pode evitar a coação física. Estado, na perspectiva weberiana, é uma empresa caracterizada como instituição política, uma vez que seu quadro administrativo possui legitimidade para o uso da coação física, se necessário; enquanto a Igreja, por exemplo, é uma associação de dominação do tipo hierocrática, uma vez que aplica a coação psíquica e pretende o monopólio da legítima coação hierocrática. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 19 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. Com base no exposto, podemos pensar a escola também como uma instituição do tipo hierocrático, cabendo a reflexão no sentido de que em diversas situações enquadra-se como instituição política. Weber, ao estudar a burocracia, identifica-a com a disciplina racional, através de mecanismos próprios da instituição burocrática, que por sua vez se fundamenta na racionalização, nos métodos, no treinamento rotinizado, na disciplina, de forma a tender o comportamento à obediência uniforme e impessoal Embora sem abordar especificamente a escola, o autor acaba deixando evidente sua forma de estruturar-se. A dominação ou autoridade não significa, necessariamente, a possibilidade de exercer poder ou influência sobre outras pessoas, pois, para que ela seja exercida, é preciso haver um mínimo da vontade de obedecer e o interesse na obediência. Pode basear-se em vários tipos de submissão, inclusive a de ordem racional. Toda forma de dominação procura legitimar-se; a obediência e o quadro administrativo podem variar de acordo com a natureza da legitimidade. Weber considera três tipos “puros” de dominação legítima, a saber: • de caráter racional ou dominação legal: baseia-se na crença, na legitimidade das ordens estatuídas e no direito de mando daqueles que estão nomeados para exercer a dominação; a obediência decorre de uma ordem impessoal, de “direito”, limitada pela competência dessa ordem que se caracteriza por regras técnicas e normas; o tipo mais puro é o exercido pela dominação burocrática decorrente do conhecimento; • de caráter tradicional ou dominação tradicional: baseia-se na crença, nas tradições e na legitimidade daqueles que simbolizam a autoridade como representantes dessas tradições; deve-se obediência à pessoa do senhor ou à indicada por ele; as ordens são legitimadas pela tradição ou pelo livre-arbítrio do senhor; a dominação acontece com ou sem quadro administrativo; • de caráter carismático ou dominação carismática: baseia-se na veneração da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa ou das ordens dela emanadas; a obediência decorre da confiança pessoal, que pode se desvanecer, caso deixem de existir os motivos que levaram à veneração. Na associação dos adeptos existe uma relação comunitária de caráter emocional que pode se rotinizar se houver interesse dos membros da comunidade, quando, então, a escolha do novo líder se dá por certas características, por revelação ou por designação. Enquanto Weber preocupa-se em analisar o poder, a dominação e a obediência do ponto de vista exclusivamente sociológico, o interesse de Mannheim concentra-se em situar o poder dentro de um contexto democrático. A democracia, para Mannheim, implica uma teoria do poder de forma concreta, como ele se distribui e como pode ser controlado. “Nenhuma sociedade pode existir sem alguma forma de poder” (1972, p. 67). E uma teoria de conjunto e refere-se à economia, à administração, à persuasão pela religião, pela educação e pelos meios de comunicação. 0 poder manifesta-se sempre que a pressão social é exercida pelo domínio ou pela manipulação. Este conceito de poder ajuda na planificação da sociedade, onde a política não é estanque, sendo necessário o equilíbrio das forças sociais. As pressões ou as formas de poder alteram- se de acordo com a natureza das ações e os meios de controle sobre esse poder. O autor distingue três formas de poder cujas manifestações diferenciam- se, conforme o controle exercido: Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 20 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. • livre desafogo, quando o descontrole da violência de indivíduos ou grupos pode conduzir ao caos, à anarquia e até a anomia; caracteriza-se pelo contágio da emoção e pelo desaparecimento de controle social e autodomínio; • destruição organizada: guerras, revoluções; • poder canalizado: concentra-se nas instituições e é regulado por princípios, regras e normas; controla, ao mesmo tempo, o comportamento. Mannheim coloca que o “arquétipo da sensação de poder é o sentimento pessoal de força ao conseguirmos que outra pessoa se curve a nossa vontade”, (1972, p. 71), daí toda a discussão sobre o poder estar associado ao controle. Das relações pessoais, nas quais o controle é mútuo, o poder institucionaliza-se até chegar à sua forma mais adiantada que é a lei, sendo significativa essa passagem por retificar as relações pessoais do processo social. É interessante verificar como o poder passa de um homem para uma instituição ou organização para chegar ao controle do homem pelo homem. O poder passa de um indivíduo para uma função e aí ele pode se tornar impessoal, pode ser transmitido, exercido de forma coletiva e padronizar-se para diferentes culturas. O poder, no contexto democrático, deve ser contido de forma total, deve se valer de uma estrutura legal e organizacional e deum preparo individual, além de se submeter a uma avaliação funcional para não se tornar arbitrário. O poder concentra-se ao redor de funções, de grupos funcionais ou associações e também em torno de grupos orgânicos do tipo das comunidades que desenvolvem seu próprio sentido de solidariedade. Há toda uma “cultura” grupai, no sentido de fortalecer e criar elos entre os membros. A noção de comunidade aqui apontada não se contém em fronteiras, podendo se ligar a ação e reação históricas; o importante é o sentimento de pertencer, o sentimento do “nós”. O poder funcional é mais racional que o poder centrado na comunidade. O poder que se origina dos sentimentos tribais, do regionalismo, do nacionalismo desperta geralmente mais temor que o que se desenvolve por meio de interesses meramente econômicos; este está localizado e é racionalmente calculável; o primeiro é difuso e imprevisível, (Mannheim 1972, p. 80) O poder inerente ao “nós” comunitário possui algumas características. Nem sempre é expansivo e agressivo, apresenta necessidades psicológicas que podem ser bastante influenciadas pela educação, resulta de processos históricos e não é imposto; pode ser influenciado por vários fatores; pode sofrer o processo chamado de “desarraigamento” capaz de levar à desintegração do caráter e à fácil manipulação por pessoas ou organizações ou, por outro lado, à emancipação progressista (pensamento independente e desenvolvimento pessoal). O processo de emancipação pode conduzir a outro tipo de poder: o dos intelectuais chamados, atualmente, de “formadores de opinião”, em condições de desenvolver motivações, as quais podem ou não ser influenciadas por um plano — em toda sociedade há sempre indivíduos motivados e motivadores e as idéias tendem a sobreviver aos seus divulgadores. O poder funcional, sendo mais racional que o poder concentrado em grupos, pode ser utilizado para neutralizar e controlar as emoções desses grupos. O poder deve ser controlado democraticamente e seu abuso estabelece alguns riscos: excessiva concentração de poder; falta de defesa (física e mental) do cidadão levando-o à apatia ou à agonia; incerteza e desconfiança mútua diante da vida social desordenada; extremismo. Por outro lado, existem pontos favoráveis que podem contrabalançar o abuso do poder, como a garantia de liberdades civis; a possibilidade de usar princípios democráticos; a visão de Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 21 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. totalidade em relação à humanidade e a responsabilidade coletiva. A questão do poder nas sociedades capitalistas, tratada por Foucault9 por meio de seu método genealógico, pretende deslocar o eixo do problema, até então posto pela ciência política ou pelo direito. Para ele, o poder não pode ser explicado por sua função repressiva ou por inspiração do modelo econômico que o considera como mercadoria. Na sua análise, procura fazer uma aproximação entre a concepção jurídica ou liberal de poder político, encontrada, principalmente, entre os filósofos do século XVIII, e a concepção marxista, no que se refere ao economicismo presente nessas teorias do poder. Para a teoria jurídico-clássica o poder é considerado como um direito possuído, assim como se possui um bem qualquer, podendo ser transferido ou alienado por um ato jurídico, parcial ou totalmente. A teoria jurídico-política da soberania desempenhou historicamente quatro papéis, a saber: • em primeiro lugar, referiu-se a um mecanismo de poder efetivo, consubstanciado na monarquia; • depois, serviu de instrumento e até de justificativa para a existência das grandes monarquias administrativas, com característica autoritária ou absoluta; • foi também usada como arma tanto para limitar como para reforçar o poder real; • serviu de base para a construção de um modelo alternativo, contra as monarquias administrativas, principalmente com base em Rousseau e seus contemporâneos, proporcionando o surgimento das democracias parlamentares. Por outro lado, a visão marxista trata da funcionalidade do poder, ou seja, do papel que se desempenha na manutenção e na reprodução das relações de produção, assim como na dominação de classes. Nesse sentido, o poder político encontra na economia a sua razão histórica. No sistema jurídico-político, o poder é tratado como direito originário que se cede constituindo-se, assim, na soberania que tem no contrato a sua matriz política. Quando há excessos ou rompimento do contrato, o poder corre riscos de se tornar opressivo. A análise do poder nesse caso baseia-se, principalmente, no esquema: contrato opressão. Já no segundo caso, busca analisá-lo com base no esquema: guerra opressão ou dominação repressão. Por esse esquema a oposição faz-se entre luta e submissão, enquanto no primeiro faz-se entre o legítimo e o ilegítimo. O discurso de Foucault visa inverter a lógica desses discursos ao fazer sobressair o aspecto da dominação que está embutido nas relações de soberania. Entende que dominação não significa: (...) o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre outro grupo, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social. (1979, p. 181) A questão central do direito passa a ser entendida como a da dominação e da sujeição, em oposição à questão da soberania e da obediência, até então posta pela ciência política e do direito. Nessa perspectiva faz-se necessário, na visão de Foucault, levar em consideração algumas preocupações metodológicas, a saber: • em primeiro lugar, deve-se captar o poder em suas extremidades, em suas ramificações, no seu aspecto micro, dialeticamente relacionado com o aspecto macro; 9 Foucault não apresenta uma teoria sobre o poder, ele faz uma “analítica do poder”, considerando a necessidade de tomar o poder como algo que surgiu em um determinado ponto, de onde se deverá fazer a gênese e depois a dedução. Textos extraídos do livro: Relações de Poder no Cotidiano Escolar, de Lúcia Maria Gonçalves de Resende 22 Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. • em segundo lugar, deve-se estudar o poder em sua intenção, em sua prática real e efetiva, em sua face externa, onde ele se implanta e produz efeitos; • em terceiro lugar, deve-se observar que o poder é algo indivisível; é algo que circula, funciona em cadeia e se exerce em redes; • em quarto lugar, deve-se analisá-lo de forma ascendente e, como se refere Foucault, (...) a partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois de examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc. por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global. (1979, p. 184) • em quinto lugar, o poder, para exercer-se fora dos mecanismos ideológicos, necessita formar, organizar e pôr em circulação um saber ou mesmo aparelhos de saber, que não são construções ideológicas. Em resumo, Foucault sugere que para se estudar o poder é necessário estudá-lo fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. E preciso estudá-lo com base em técnicas e táticas de dominação. Nessas preocupações metodológicas, Foucault procura desmistificar as teorias que apontam o exercício do poder, partindo do centro para a periferia, do macro para o micro e que são absorvidas pelos aparelhos do Estado. Contudo, não desconsidera a relação com o macrossistema uma vez que a existência do micro ocorre numa relação contraditória e dialética. A ênfase aqui
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