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1 SUMÁRIO 1 ASSISTÊNCIA SOCIAL .............................................................................. 2 1.1 Princípios e diretrizes ........................................................................... 3 2 BREVE HISTÓRICO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL ...................................... 4 2.1 A assistência como beneficência privada ............................................. 4 2.2 A assistência como benemerência estatal (1930-1988) ....................... 6 3 A ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS 1988 ......................................................... 8 3.1 A assistência social na Constituição Federal de 1988 ......................... 8 3.2 A assistência como direito social e suas implicações jurídicas .......... 10 3.3 A organização da assistência social – a Lei no. 8.742/1993 (LOAS) . 12 4 Estado Democrático de Direito ................................................................. 14 4.1 Origem Histórica ................................................................................. 17 4.2 O Surgimento do Estado .................................................................... 19 4.3 Estado de Direito e seus Fundamentos.............................................. 20 5 O SISTEMA DE JUSTIÇA ......................................................................... 25 5.1 O acesso à justiça .............................................................................. 25 5.2 O sistema de justiça ........................................................................... 34 6 Segurança pública .................................................................................... 46 6.1 Quem é responsável pela segurança pública? ................................... 46 6.2 Governo Federal ................................................................................ 47 6.3 Governos Estaduais ........................................................................... 47 6.4 Governos Municipais .......................................................................... 47 6.5 A segurança pública no brasil ............................................................ 47 6.6 O direito à segurança pública como direito fundamental .................... 49 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 52 2 1 ASSISTÊNCIA SOCIAL A Assistência Social está garantida no art. 203 da CF: “será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”. Deve ser prestada independentemente de contribuição, o que afasta o cumprimento de carências. Fonte: www.pma.es.gov.br São objetivos da Assistência Social (art. 203 da CF): a proteção à família, à maternidade, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Pelos objetivos enumerados, constata-se que a Assistência Social não é, na verdade, meramente assistencialista, porque não se destina apenas a dar socorro provisório e momentâneo ao necessitado. O que pretende a Constituição é que a Assistência Social seja um fator de transformação social. Deve promover a integração e a inclusão do assistido na vida comunitária, fazer com que, a partir do recebimento 3 das prestações assistenciais, seja “menos desigual” e possa exercer atividades que lhe garantam a subsistência. A Lei n. 8.742, de 7-12-1993, denominada Lei Orgânica da Assistência Social — LOAS, regulamentou o art. 203 da CF e definiu a assistência social como Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. Provê os mínimos sociais, ou seja, deve garantir ao assistido o necessário para a sua existência com dignidade. Destina-se ao enfrentamento da pobreza, ao provimento de condições para atender a contingências sociais e à universalização dos direitos sociais. Realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade (art. 2º, parágrafo único, da LOAS). A LOAS foi regulamentada pelo Decreto n. 1.744, de 8-121995, revogado pelo Decreto n. 6.214, de 26-9-2007. A participação da comunidade se dá por entidades e organizações de assistência social, que surgem na sociedade atendendo a demandas específicas da comunidade carente: são as Organizações Não Governamentais — ONGs. O art. 3º da LOAS as define como “aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de seus direitos”. 1.1 Princípios e diretrizes Os princípios regentes da assistência social, além daqueles que a CF elencou, estão previstos no art. 4º da LOAS. São normas que devem orientar as políticas públicas destinadas à cobertura pela assistência social. Os incisos I a V do art. 4º são, a nosso ver, desdobramentos dos princípios próprios da seguridade social, bem como do respeito à dignidade da pessoa humana. É de extrema importância o disposto no inciso III, que determina o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade. Quis o legislador que a assistência social não seja imposta, mas, sim, prestada em razão da vontade manifestada do necessitado, quando suas condições 4 pessoais o permitirem. A prestação da assistência não pode se tornar discriminatória, mas, sim, tem que ser redutora das desigualdades sociais. Também por isso o mesmo inciso proíbe qualquer comprovação vexatória de necessidade. A transparência da utilização dos recursos destinados ao financiamento da assistência social está prevista no inciso V, que impõe a ampla divulgação dos benefícios, serviços e projetos assistenciais e dos critérios para sua concessão. As diretrizes da organização da assistência social estão no art. 5º da LOAS: descentralização político-administrativa, participação da população e primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social. 2 BREVE HISTÓRICO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL 2.1 A assistência como beneficência privada A prática da assistência ao outro está presente na história da humanidade desde os tempos mais remotos, não se limitando nem à civilização judaico-cristã, nem às sociedades capitalistas. Sob a ótica da solidariedade social, pobres, viajantes, incapazes e doentes eram alvos de ações que assumiram formas variadas nas diferentes sociedades, sempre motivadas pela compreensão de que entre os homens nunca deixarão de existir os mais frágeis, carecedores de ajuda alheia. Na Grécia e Roma antigas já havia registros de ações de assistência social estatal, com a distribuição de trigo aos necessitados. Com a civilização judaico-cristã, a ajuda toma a expressão de caridade e benemerência ao próximo, como força moral de conduta. No intuito de conformar as práticas de ajuda e apoio aos aflitos, grupos filantrópicos e religiosos começaram a se organizar, dando origem às instituições de caridade (Sposati et al., 2007, p. 40). Na Idade Média, a forte influência do Cristianismo, através da doutrina da fraternidade, incentivou a prática assistencial com a difusão das confrarias que apoiavam às viúvas, os órfãos, os velhos e os doentes (Carvalho, 2006, p. 15). Com a expansão do capital e a precarização do trabalho, a pobreza se torna visível, incômoda e passa a ser reconhecida como um risco social. A benemerência,como um ato de solidariedade, passa a se constituir em práticas de dominação, que destituem o alvo das ações de caridade da condição de sujeito de direitos. 5 A caridade e a beneficência acabavam por despir o público alvo da assistência social da condição de cidadão, de indivíduo capaz, ou seja, sujeito de direitos, transformando-o em incapaz, carente e necessitado da benevolência dos mais abastados da sociedade. A pobreza era considerada um atributo individual daqueles que não se esforçavam para superá-la e que, portanto, eram tidos como responsáveis pela situação de miséria em que se encontravam. Nesse contexto, a assistência será incorporada pelo Estado sob duas formas: “uma que se insinua como privilegiada para enfrentar politicamente a questão social; outra, para dar conta de condições agudizadas de pauperização da força de trabalho” (Sposati et al., 2007, p. 41). Contudo, essa apropriação da prática assistencial pelo Estado se dará como expressão de benemerência, lançando-se para a seara das instituições privadas de fins sociais, em especial os organismos atrelados às igrejas de diferentes credos, as ações assistenciais. Ao Poder Público caberia somente catalisar e direcionar os esforços de solidariedade social da sociedade civil. No Brasil, até 1930 não se apreendia a pobreza enquanto expressão da questão social, mas sim como uma disfunção pessoal dos indivíduos. Tal fato é revelado pelo atendimento social dado aos indivíduos, os quais eram encaminhados para o asilamento ou internação. A pobreza era tratada como doença. Como afirma Sposati, “(...) os pobres eram considerados como grupos especiais, párias da sociedade, frágeis ou doentes. A assistência se mesclava com as necessidades de saúde, caracterizando o que se poderia chamar de binômio de ajuda médico-social. Isto irá se refletir na própria constituição dos organismos prestadores de serviços assistenciais, que manifestarão as duas faces: a assistência à saúde e a assistência social. O resgate da história dos órgãos estatais de promoção, bem-estar, assistência social, traz, via de regra, esta trajetória inicial unificada” (Sposati et al., 2007, p. 42). Ressalte-se, inclusive, que o primeiro hospital construído no Brasil e na América Latina foi a Santa Casa da Misericórdia de Santos, em 1543. Como se sabe, os hospitais das Santas Casas de Misericórdia foram referência no acolhimento dos pobres. As organizações de beneficência mantinham a compreensão da assistência como um gesto de benevolência e caridade para com o próximo. 6 A partir da crise mundial do capitalismo (1929), o Estado se reposiciona frente a sociedade, inserindo-se na relação capital-trabalho, o que será fundamental para a acumulação, consolidação e expansão do capital. No caso brasileiro em especial, o Estado passa progressivamente a reconhecer a pobreza como questão social e, portanto, questão política a ser resolvida sob sua direção (Sposati et al., 2007, p. 42), conforme abordado posteriormente. 2.2 A assistência como benemerência estatal (1930-1988) Fonte: www.michelteixeira.com.br Os anos de 1930 e 1943 podem ser caracterizados como os anos de introdução da política social no Brasil. Conforme afirma Behring & Boschetti, o Movimento de 1930, que culminou com a assunção de Getúlio Vargas ao governo, embora não tenha sido a Revolução Burguesa no Brasil, foi sem dúvida “um momento de inflexão no longo processo de constituição de relações sociais tipicamente capitalistas no Brasil” (Behring & Boschetti, 2006, p. 105). Iniciou-se com Vargas um processo de regulamentação das relações de trabalho no país, cujo objetivo principal era transformar a luta de classes em colaboração de classes, apontando uma estratégia legalista na tentativa de interferir autoritariamente, ainda que via legislação, a fim de se evitar conflitos sociais. 7 Paralelamente à ação estatal, desenvolve-se a saúde privada e filantrópica, no que se refere ao atendimento médico hospitalar (Bravo apud Behring e Boschetti, 2006, p. 107). Deste modo, boa parte dos benefícios sociais – saúde, previdência, etc. - giravam em torno do trabalho (emprego). Conforme afirma Sposati (2007, p.12) “no pensamento idealizado liberal permanecia a ideia moral pela qual atribuir benefícios ao trabalhador formal era um modo de disciplinar e incentivar a trabalhar o trabalhador informal, tido por vadio”. Assim, uma vez que a maior parte da população não possuía vínculo empregatício, restringia-se a poucos o acesso aos direitos sociais. Aos desempregados restava a caridade das instituições filantrópicas. Além disso, é importante ressaltar que o acesso às políticas sociais da época só era proporcionado aos trabalhadores urbanos, encontrando-se em posição desprivilegiada os trabalhadores rurais. A assistência social, até esse momento, não possuía qualquer visibilidade, inexistindo no campo de atuação governamental. Em 1º. de julho de 1938, por meio do Decreto-lei no. 525, Getúlio Vargas instituiu o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), vinculado ao Ministério de Educação e Saúde, chefiado pelo então Ministro Gustavo Capanema. Este conselho era composto por sete membros “notáveis”, tendo como funções primordiais a elaboração de inquéritos sociais, a análise das adequações de entidades sociais e de seus pedidos de subvenções e isenções, além de dizer das demandas dos mais desfavorecidos. Nesse contexto, os usuários da assistência social não possuíam voz ou qualquer direito de participação na consecução de eventuais projetos/ programas de enfrentamento à pobreza. Entretanto o CNSS tampouco chegou a ser um organismo atuante, caracterizando-se mais pela manipulação de verbas e subvenções, como mecanismo de clientelismo político. Anos depois, suas funções passariam a ser exercidas na prática pela Legião Brasileira de Assistência (LBA). Criada em 1942, sob a coordenação da primeira dama Darcy Vargas, a LBA seria a primeira grande instituição nacional de assistência social. 8 Instalada em nível federal e registrada no Ministério da Justiça e Negócios Interiores como entidade civil de finalidades não econômicas, a LBA terá como objetivos básicos: “1. executar seu programa, pela fórmula do trabalho em colaboração com o poder público e a iniciativa privada; 2. congregar os brasileiros de boa vontade, coordenando-lhes a ação no empenho de se promover, por todas as formas, serviços de assistência social; 3. prestar, dentro do esforço nacional pela vitória, decidido concurso ao governo; 4. trabalhar em favor do progresso do serviço social no Brasil.” (Iamamoto & Carvalho, 2007, p. 250) Com o passar dos anos e as sucessivas mudanças políticas do país, a situação da assistência social permanece a mesma: práticas clientelistas, assistemáticas, de caráter focalizado e com traços conservadores, sendo operado por sujeitos institucionais desarticulados, com programas sociais estruturados na lógica da concessão e da dádiva, contrapondo-se ao direito (Couto, 2006, p. 71, 107, 108). As heranças clientelista e patrimonialista estatais impediam que se rompesse com a natureza assistencialista das políticas sociais. 3 A ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS 1988 3.1 A assistência social na Constituição Federal de 1988 A Carta Magna de 1988 é considerada um divisor de águas no campo dos direitos de cidadania. Conforme expresso em seu preâmbulo, a nova ordem constitucional será destinada a assegurar o exercício dos direitos sociais como um de seus valores supremos. A cidadania passa a ser um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º., II, CRFB). Esta terá ainda como objetivo fundamental, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. Nesse contexto, o constituinte originárioinovou ao destinar um capítulo próprio aos direitos sociais e ao estabelecer um sistema de proteção social, por meio da seguridade social. Mais do que isso: atribuiu à assistência social, até então, “parente pobre” das políticas sociais, sempre relegada à benemerência dos seus agentes, o 9 status de direito social: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. ” (CRFB, 1988). A assistência passa a integrar o tripé seguridade social, juntamente com os direitos à saúde e à previdência social, deixando para trás seu caráter subsidiário, de política complementar: “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I – universalidade da cobertura e do atendimento; II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – irredutibilidade do valor dos benefícios; V – equidade na forma de participação no custeio; VI – diversidade da base de financiamento; VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.” (CRFB, 1988) Como se vê, a seguridade social assumiu, como sistema de proteção social brasileiro, duas vertentes: uma contributiva (contrapartida dos rendimentos do trabalho assalariado para sua garantia) e outra não contributiva (para todos os cidadãos que dela necessitem). A esta última vertente, vincula-se o direito social à assistência. A noção de seguridade social supõe um conjunto de certezas e seguranças que cubram, reduzam ou previnam situações de risco ou vulnerabilidade sociais, as quais qualquer indivíduo pode ser submetido. “Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.” (CRFB, 1988) 10 Uma vez filiada pela Carta Magna ao grupo dos direitos sociais, a assistência social assume diversas características que nunca antes lhe foram atribuídas. Para entendermos melhor a importância de tal realização, passaremos agora ao breve estudo acerca do significado e das implicações jurídicas de sua definição como direito social. 3.2 A assistência como direito social e suas implicações jurídicas Segundo Silva, os direitos sociais são, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais” (2005, p. 286). Os direitos sociais diferenciam-se dos direitos individuais, uma vez que estes, tratando-se de “direitos de liberdade”, nascem contra o superpoder do Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder --, enquanto que aqueles exigem, para sua realização prática (passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva), precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado (Bobbio, 2004, p. 72). Tradicionalmente, os direitos sociais se dirigiam como exigências ao Estado. Assim, voltavam-se não a uma abstenção estatal, mas a uma ação, assumindo a característica de prestações positivas. Contudo, tais direitos possuem duas dimensões: uma defensiva, identificada pela exigência de abster-se de condutas que possam lesionar ou ameaçar os bens jurídicos por ele tutelados, e uma prestacional, correspondente a deveres comissivos atribuídos ao polo passivo da relação (Sarmento, 2006, p. 292). Como se sabe, os direitos sociais se prestam a realizar a “equalização” de situações desiguais. Uma das essências das normas que os expressam é o fato delas conterem elementos sócioideológicos que revelam o compromisso das constituições contemporâneas na edificação do Estado Democrático de Direito; são elas garantidoras da dignidade humana, consolidando, dessa forma a liberdade, igualdade e fraternidade. 11 Deste modo, representam verdadeiros pressupostos de gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais para exercício dos mesmos. Como se falar em garantia de direito à vida diante da ausência de condições que possibilitem uma vida digna? “Não é livre quem não detém autossuficiência material. Não há garantia do direito à vida enquanto não se figura juridicamente a fome como uma negação do sistema constitucional organizador da vida política no Estado. (...) Não é livre o homem ausente de nome que a sua própria mão desenhe. Como saber de seu direito sem letra, ou sinal conhecido, o homem sem nome de gente? Não há direito para o qual a cegueira analfabeta ofereça luz (...).” (Rocha, 1999, p. 6 e 7) Nesse contexto, encontra-se hoje o direito à assistência. Seu principal objetivo é a efetivação do Estado Democrático de Direito, por meio da promoção dos direitos sociais, contribuindo para a redução da exclusão social ao propiciar oportunidades de emancipação àqueles que, sem tal assistência, não os alcançariam. Ao ser consagrada pela CRFB como direito social, a assistência será retirada do campo da caridade ou mera liberalidade para alçar a condição de direito subjetivo público e, agora sim, proporcionar a emancipação dos indivíduos. Afirma Reale que direito subjetivo é “a possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio” (2001, p. 262). Dizia nosso Código Civil de 1916, em seu art.75: “A cada direito corresponde uma ação, que o assegura”. Direito subjetivo é, pois, direito de ação. A falta de tutela, ou a falta de ação disponível, significa de fato a inexistência ou a inexigibilidade do direito subjetivo. As normas jurídicas de conduta caracterizam-se por sua bilateralidade, dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir da outra determinado comportamento. Forma-se, desse modo, um vínculo, uma relação jurídica, que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito subjetivo, a possibilidade de exigir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir. Quando a exigibilidade de uma conduta se verifica em favor do particular em face do Estado, diz-se existir um direito subjetivo público. 12 Fonte: jatv.com.br Os direitos tidos como subjetivos possuem algumas características: a eles correspondem sempre deveres jurídicos; eles são violáveis, ou seja, existe a possibilidade de que a parte contrária deixe de cumprir o seu dever; a ordem jurídica coloca a disposição de seu titular um meio jurídico – que é ação judicial – para exigir- lhes o cumprimento, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado (Nader, 2003, p. 302). Como direito subjetivo, a assistência social enquadra-se nesse esquema conceitual, a saber: deverjurídico, violabilidade e pretensão. Dela resulta, portanto, para os seus beneficiários – os titulares do direito – situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem materializadas em prestações positivas ou negativas. Tais prestações são exigíveis do Estado ou de qualquer outro eventual destinatário da norma (dever jurídico) e, se não forem entregues espontaneamente (violação do direito), conferem ao titular do direito a possibilidade de postular-lhes o cumprimento (pretensão), inclusive e especialmente por meio de uma ação judicial. 3.3 A organização da assistência social – a Lei no. 8.742/1993 (LOAS) Os anos que seguiram a promulgação da Carta Constitucional de 1988 foram marcados por um amplo processo de debates e lutas para que se regulamentasse os direitos prenunciados pela Constituição. Somente em 1990 é que se reiniciará o que 13 Sposati denomina de “contrações pré-parto para consolidar a democracia social” (2007, p. 44), com a aprovação pelo novo Congresso eleito de várias leis regulamentadoras, dentre as quais a Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e Lei 8.142/1990 (Sistema Único de Saúde). A assistência social será a última área da seguridade social a ser regulamentada. Segundo Zucco, “(...) seu processo de regulamentação demonstrou o movimento de afirmação e negação que permeia a assistência. Ao ser encaminhado o Projeto de Lei no. 48 de 1990, que dispunha sobre a Lei Orgânica de Assistência Social, à Câmara Federal sofreu vários embates e críticas, o que o levou a ser vetado pelo Presidente Fernando Collor de Mello, em 17 de setembro de 1990, com a alegação de vícios de inconstitucionalidade e de sustentação financeira para sua implantação” (1997, p. 43) Enfim, em 7 de dezembro de 1993 será aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, que vem regulamentar o disposto nos arts. 203 e 204 da CRFB. Em 42 artigos, a referida Lei dispõe sobre a organização da assistência social, no que diz respeito, dentre outros assuntos: I – aos seus princípios e diretrizes; II – à forma de organização e gestão das ações; III – às competências das esferas de governo; IV – ao caráter e composição das instâncias deliberativas; V – à instituição e competências do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); VI – às competências do órgão nacional gestor da Política Nacional de Assistência Social (PNAS); VII – ao conceito de benefícios, serviços, programas e projetos; VIII – ao financiamento da política. Em consonância aos preceitos constitucionais, a LOAS define em seu artigo 1º. a assistência social como direito do cidadão e dever do Estado, Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. A fim de conformar as ações assistenciais à nova realidade de “direito do cidadão”, optou o legislador por regê-las por alguns princípios, dispostos no art. 4º. da 14 referida lei, dentre os quais, a universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas. Nesse sentido, seria o direito à assistência um mecanismo de distribuição de todas as políticas; mais do que isso, mecanismo de deselitização e consequente democratização das políticas sociais. Para tanto, o legislador estabelecerá como base da organização assistencial a descentralização político-administrativa para os entes federados; a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação e controle das políticas de assistência e a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo (art. 5º.), o que será de extrema relevância para a já mencionada finalidade colimada não só pela LOAS, mas também pelo constituinte originário. 4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O termo "Estado democrático de direito" conjuga dois conceitos distintos que, juntos, definem a forma de mecanismos tipicamente assumidos pelo Estado de inspiração ocidental. Cada um destes termos possui sua própria definição técnica, mas, neste contexto, referem-se especificamente a parâmetros de funcionamento do Estado Ocidental moderno. Em sua origem grega, "democracia" quer dizer "governo do povo". No sistema moderno, no entanto, não é possível que o povo governe propriamente (o que significaria uma democracia direta). Assim, os atos de governo são exercidos por membros do povo ditos "politicamente constituídos", por meio de eleição. No Estado Democrático Brasileiro, as funções típicas e indelegáveis do Estado são exercidas por 15 indivíduos eleitos pelo povo para tanto, de acordo com regras preestabelecidas que regerão o pleito eleitoral. Fonte: www.filoinfo.net O aspecto do termo "de Direito" refere-se a que tipo de direito exercerá o papel de limitar o exercício do poder estatal. No Estado democrático de direito, apenas o direito positivo (isto é, aquele que foi codificado e aprovado pelos órgãos estatais competentes, como o Poder Legislativo) poderá limitar a ação estatal, e somente ele poderá ser invocado nos tribunais para garantir o chamado "império da lei". Todas as outras fontes de direito, como o Direito Canônico ou o Direito natural, ficam excluídas, a não ser que o direito positivo lhes atribua esta eficácia, e apenas nos limites estabelecidos pelo último. Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição. Nela delineiam- se os limites e as regras para o exercício do poder estatal (onde se inscrevem os chamados "Direitos e Garantias fundamentais"), e, a partir dela, e sempre a tendo como baliza, redige-se o restante do chamado "ordenamento jurídico", isto é, o conjunto das leis que regem uma sociedade. O Estado democrático de direito não pode prescindir da existência de uma Constituição. No entanto, toda a conceitualização não deverá restringir o elemento democrático à limitação do poder estatal e a democracia ao instituto da representação política. Esta, em virtude de seus inúmeros defeitos, não pode fundamentar o Estado Democrático de Direito, pelo menos não como ele deveria ser, já que o princípio 16 democrático não se reduz a um método de escolha dos governantes pelos governados. O Estado Democrático envolve necessariamente, a soberania popular. Conforme expõe José Afonso da Silva, o Estado Democrático se funda no princípio da soberania popular que ‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. Assim, a substância da soberania popular deve ser representada pela autêntica, efetiva e legítima participação democrática do povo nos mecanismos de produção e controle das decisões políticas, em todos os aspectos, funções e variantes do poder estatal. Friedrich Müller apregoa que, a ideia fundamental da democracia é a determinação normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o autogoverno na prática quase inexequível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político Para José Joaquim Gomes Canotilho, o esquema racional da estadualidade encontra expressão jurídico–política adequada num sistema político normativamente conformado por uma constituição e democraticamente legitimado. Por outras palavras: o Estado concebe-se hoje como Estado Constitucional Democrático, porque ele é conformado por uma Lei fundamental escrita (= constituição juridicamente constituída das estruturas básicas da justiça) e pressupõe um modelo de legitimação tendencialmente reconduzível à legitimação democrática. O Estado Democrático deve ser transformador da realidade, ultrapassando o aspecto material de concretização de uma vida digna para o homem. Este Estado age como fomentador da participação pública em vários seguimentos. O Estado deve sempre ter presente a ideia de que a democracia implica necessariamente a questão da solução do problema das condições materiais de existência. Portanto, foi criado para ultrapassar a ideia utópica de transformação social, assumindo o objetivo da igualdade, a lei aparece como instrumento de reestruturação social, não devendo atrelar-se a outros fins como à sanção ou à promoção. 17 A democracia como realização de valores de convivência humana de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa é conceito mais abrangente do que “Estado Democrático de Direito” que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. Além disso, é certo que o Estado Democrático deve aparecer com a função de reduzir antíteses econômicas e sociais e isto se torna possível com a devida aplicação da Constituição Federal (colocada no ápice de uma pirâmide jurídica escalonada), que representa o interesse da maioria. Em suma, após essa reflexão pode-se elencar os elementos que julgamos essenciais no Estado Democrático de Direito, sendo o seu fundamento e principal aspecto a soberania popular: 1 - A necessidade de providenciar mecanismos de apuração e de efetivação da vontade do povo; 2 – Ser um Estado Constitucional, ou seja, dotado de uma constituição material legítima, rígida, emanada da vontade do povo; 3 - A existência de um órgão guardião da Constituição e dos valores fundamentais da sociedade, que tenha atuação livre e desimpedida, constitucionalmente garantida; 4 - A existência de um sistema de garantia dos direitos humanos, em todas as suas expressões; 5 - Realização da democracia com a consequente promoção da justiça social; 6 - Observância do princípio da igualdade; 7 - existência de órgãos judiciais, livres e independentes, para a solução dos conflitos entre a sociedade, entre os indivíduos e destes com o Estado. 4.1 Origem Histórica A ideia de Estado Democrático tem raízes no séc. XVIII, e está ligado a ideia de certos valores da dignidade humana, organização e funcionamento do Estado e a participação popular. No entanto, na antiguidade, o indivíduo tinha valor relativo; só alguns participavam das decisões, ou seja, apenas os cidadãos, aqueles que eram homens e tinham bens; ou segundo Aristóteles (384 – 322 a. C), no seu livro III, de “A Política”, cidadão era aquele que tivesse autoridade deliberativa ou judiciária, jamais 18 um artesão ou mercenário, isso porque a virtude política, que é a sabedoria para mandar e obedecer, só pertence àquele que não tem necessidade de trabalhar para viver. Percebe-se que a ideia de povo é restrita a cidadão, não sendo compatível com a ideia de povo do século XVIII, época em que “...a burguesia, economicamente poderosa, estava às vésperas de suplantar a monarquia e a nobreza no domínio do poder político.” Dalmo de Abreu Dallari destaca ainda que a base do conceito de Estado Democrático, está na noção de governo do povo, e que tal locução deriva etimologicamente do termo democracia. Ainda, faz menção aos três grandes movimentos político-sociais responsáveis pela condução ao Estado Democrático, quais seriam: a Revolução Inglesa, com a influência de John Locke e expressão mais significativa no Bill of Rights de 1689; a Revolução Americana com seus princípios expressos na Declaração de Independência das treze colônias americanas em 1776, e a Revolução Francesa, com influência de Rousseau, dando universalidade aos seus princípios, devidamente expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Com relação à Revolução Inglesa, aludido autor ressalta dois pontos básicos, tinham por objetivo assegurar a proteção dos direitos naturais dos indivíduos; a intenção de estabelecer limites ao poder absoluto do monarca e a influência do protestantismo. Quanto à Declaração da Independência, o autor destaca a garantia de supremacia da vontade do povo, a liberdade de associação e a possibilidade de manter um permanente controle sobre o governo. No tocante à Revolução Francesa, afirma ser um movimento consagrador das aspirações democráticas. Este movimento evidencia a sociedade política que tem por fim a preservação da liberdade do homem e a inexistência da imposição de limites que não seja decorrentes de lei (expressão da vontade geral), bem como o direito dos cidadãos de concorrer, pessoalmente ou através de seus representantes, para a formação da vontade geral. 19 4.2 O Surgimento do Estado De acordo com Dalmo de Abreu Dallari, a origem do Estado Moderno remonta ao Absolutismo e a ideia de Estado Democrático aparece no século XVIII, através dos valores fundamentais da pessoa humana, a exigência de organização e funcionamento do Estado enquanto órgão protetivo daqueles valores. A doutrina diverge sobre as origens e surgimento do Estado. Dalmo de Abreu Dallari registra que existem três teorias básicas a respeito da época do aparecimento do Estado. Pela primeira, o Estado, assim como a sociedade, sempre teria existido, considerando que o Estado seria uma organização social, dotada de poder e com autoridade para determinar o comportamento de todo o grupo. Pela segunda, a sociedade humana teria inicialmente existido sem o Estado, tendo este sido constituído gradual e localmente para atender as necessidades ou as conveniências dos grupos sociais. E, finalmente, pela terceira teoria, somente se pode falar em Estado como uma sociedade política dotada de certas características bem definidas, como conceito histórico concreto, com a ideia e a prática da soberania, o que somente ocorreu no século XVII, existindo autores que apontam o ano de 1648, como a data oficial em que o mundo ocidental se apresenta organizado em Estados. Assim se descrevem os princípios que passaram a nortear os Estados, como exigência e cumprimento da democracia: 1) a supremacia da vontade popular (a participação popular no governo); 2) a preservação da liberdade (o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem interferência do Estado; 3) a igualdade de direitos (a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais). Hodiernamente, podemos compreender o Estado como sendo um agrupamento social politicamente organizado, gerido por objetivos em comum, obviamente segundo determinadas normas jurídicas em um território certo e definido, sob a total tutela de um poder soberano, representado por um governo independente. Assim sendo, a consolidação do Estado surge à medida em que coexistem interesses similares de uma coletividade e o devido ânimo de colocá-los em prática. 20 Consoante o pensamento de Jean Dabin, que expressa a essência primordial do Estado: chegou um momento em que os homens sentiram o desejo, vago e indeterminado, de um bem que ultrapassa o seu bem particular e imediato e que ao mesmo tempofosse capaz de garanti-lo e promovê-lo. Esse bem é o bem comum ou bem público e consiste num regime de ordem, de coordenação de esforços e intercooperação organizada. Por isso o homem se deu conta de que o meio de realizar tal regime era a reunião de todos em um grupo específico, tendo por finalidade o bem público. Assim, a causa primária da sociedade política reside na natureza humana, racional e perfectível. No entanto, a tendência deve tornar-se um ato; é a natureza que impele o homem a instituir a sociedade política, mas foi a vontade do homem que instituiu as diversas sociedades políticas de outrora e de hoje. O instinto natural não era suficiente, foi preciso a arte humana. Assim, conclui-se que os objetivos do Estado são a ordem e a defesa social, em suma, o bem estar social, o bem público; sendo os seus três elementos precípuos o povo, o território e o poder político. No dizer de Darcy Azambuja, "Estado é a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado”. Dalmo de Abreu Dallari entende o Estado como sendo "organização jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território". Importante ressaltar que na correta acepção do termo Estado, mister se faz ressaltar que "o fenômeno estatal revela-se no elemento pessoal (Estado–Comunidade) como no elemento poder (Estado-aparelho ou Estado-poder)" nos dizeres de Kildare Carvalho. O conceito de Estado moderno, portanto, assenta-se sobre quatro elementos básicos: a soberania, o território, o povo e a finalidade. Ele é definido como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território. 4.3 Estado de Direito e seus Fundamentos Para alcançar uma compreensão do Estado de Direito, não se pode prescindir uma análise da distinção entre direito natural e direito positivo, considerando que essa é uma dicotomia estabelecida pelo pensamento jurídico ocidental, e que influenciou e ainda influencia fortemente as relações sociedade-Estado e Estado-indivíduo, sendo 21 que não se pode falar da instituição Estado sem falar no Direito. Dessa divisão teórica resultam vários questionamentos quando se perquire da relação do Estado com o Direito. Norberto Bobbio esclarece que a distinção entre direito natural e direito positivo já havia sido identificada até mesmo na antiguidade, com Platão e Aristóteles. Este último utilizou-se de dois critérios para chegar a tal diferenciação: 1 - O direito natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia, enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto; 2 - O direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas ou más a outros. Prescreve ações cuja bondade é objetiva. O direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: é correto e necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei. Os filósofos da Idade Média também discorreram sobre o assunto, deixando assente que existe uma clara distinção entre direito natural e direito positivo, tendo este a característica de ser posto pelos homens, em contraste com o primeiro que não é posto por esses, mas por algo (ou alguém) que está além desses, como a natureza (ou o próprio Deus). Essa distinção, que perdura até hoje, ganha importância no tocante à questão do exame do Estado de Direito e, em última análise, do Estado Democrático de Direito, quando se sabe que o positivismo jurídico reduziu todo o Direito a direito positivo, afastando o direito natural da categoria do Direito, pois essa corrente doutrinária não considera Direito, outro que não seja aquele posto pelo Estado, sendo este o único detentor do poder de estabelecer as normas jurídicas que irão reger a sociedade. Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Vale acrescentar que Hans Kelsen, o precursor máximo do positivismo jurídico, defende que o Direito é um sistema de normas jurídicas, postas pelo Estado, num 22 escalonamento de autoridade legal hierárquica, em que a Constituição de um Estado se encontra na camada jurídico-positiva mais alta. Portanto, concluímos que o Estado de direito é aquele em que vigora o chamado "império da lei", porém este termo engloba alguns aspectos significados: primeiro aspecto é o de que, neste tipo de Estado, as leis são criadas pelo próprio Estado, através de seus representantes politicamente constituídos; o segundo aspecto é que, uma vez criadas pelo Estado, as leis passam a serem eficazes, isto é, aplicáveis, o próprio Estado fica adstrito ao cumprimento das regras e dos limites por ele mesmo impostos; o terceiro aspecto, que se liga diretamente ao segundo, é a característica de que, no Estado de direito, o poder estatal é limitado pela lei, não sendo absoluto, e o controle desta limitação se dá através do acesso de todos ao Poder Judiciário, que deve possuir autoridade e autonomia para garantir que as leis existentes cumpram o seu papel de impor regras e limites ao exercício do poder estatal. Na origem, o Estado de Direito tinha um conceito tipicamente liberal, daí falar- se Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: a) a submissão ao império da lei, lei esta emanada do Poder Legislativo, composto por representantes do povo; b) a divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes legislativo, judiciário e executivo; c) um enunciado de direitos fundamentais. Daí a importância do chamado Estado de Direito, pois após os movimentos liberalistas, o Estado revestiu-se de outras características marcadas principalmente pela divisão dos poderes, como técnica que assegure a produção das leis ao Legislativo e a independência e a imparcialidade do Judiciário em face aos demais poderes e dos interesses particulares de toda sociedade. Segundo ensinamentos de José Afonso da Silva: a superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade Democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega agora o ‘Estado Democrático de Direito’ que a constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado. O conceito de “Estado de Direito” foi ganhando “sinônimos” com o tempo e muitos desses foram concepções deformadoras. Com a superação do liberalismo, a expressão Estado de Direito, que inicialmente convertia os súditos em cidadão livres, 23 tornou-se insuficiente, pois, segundo Carl Schmitt: “Estado de Direito pode ter tantos significados distintos como a própria palavra ‘Direito’ e designar tantas organizações quanto as que se aplica a palavra ‘Estado’”. Assim, acrescenta ele, há um Estado de Direito feudal, outro burguês, outro nacional, além de outros conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico. Entende-se, portanto, que o Estado de Direito é sinônimo de Estado de Justiça, que por sua vez, nada tem a ver com o estado submetido ao poder judiciário, sendo este apenas um elemento que compõe o Estado de Direito. Estado submetido ao juiz é Estado cujos atos legislativos, administrativos e também judiciais ficam sujeitos ao controle jurisdicional no que tange à legitimidade constitucional e legal Na concepçãojurídica de Hans Kelsen, o conceito de Estado de Direito também é “deformado”. Para ele, Estado e Direito são conceitos idênticos. Na medida em que ele confunde Estado e ordem jurídica, todo Estado, para ele, há de ser Estado de Direito. Como, na sua concepção, só é Direito o Direito positivo, como norma pura, desvinculada de qualquer conteúdo, tem-se uma ideia formalista do Estado de Direito ou Estado Formal de Direito que serve também a interesses ditatoriais, pois, se o Direito acaba se confundindo com o mero enunciado formal da lei, destituído de qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade política, social, econômica e ideológica, todo Estado acaba sendo Estado de Direito. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho: os três grandes princípios encontráveis num Estado submetido ao Direito são: o princípio da legalidade, o princípio da igualdade e o princípio da justicialidade. O princípio da legalidade, que contém a afirmação da liberdade do indivíduo como regra geral, seria a fonte única de todas as obrigações dentro de um Estado de Direito. A lei vincula o Poder Executivo, que não pode exigir condutas que não estejam previstas em lei, submete a função do Judiciário, que não pode impor sanção sem que esta esteja definida em lei, e embasa a atuação do Legislativo, que nada pode prescrever senão por meio de uma lei. A igualdade é princípio informador do conceito de lei no Estado de Direito, posto que suas formulações legais devem ser iguais para todos, proibindo o arbítrio, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida em que se desigualam. A justicialidade, vista como princípio também, é o controle dos atos do Estado de Direito, que deve conter um procedimento contencioso para decidir os litígios, sejam estes entre as autoridades superiores do Estado, ou entre autoridades 24 e particulares, ou, num Estado federal, entre a Federação e um Estado-membro, ou entre Estados-membros etc. Portanto, o reconhecimento e a institucionalização do Estado de Direito tende a produzir, de forma geral, a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos, a submissão do poder ao império do direito e o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, que são, em última análise, a materialização de uma ideia de justiça presente na constituição de um Estado. Por isso, podemos afirmar que o Estado de direito possui várias dimensões essenciais. A primeira dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado subordinado ao direito. Isso significa, mais concretamente, três coisas: a) o Estado está sujeito ao direito, em especial a uma Constituição (por isso, que constituição é, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, o estatuto jurídico do político); b) o Estado atua através do direito; c) o Estado está sujeito a uma ideia de justiça. As demais dimensões essenciais são, resumidamente, que o Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, ou seja, com um conjunto de normas constitucionais superiores, que obrigam o legislador a respeitá-las, observando o seu núcleo fundamental, sob pena de nulidade das próprias leis e da declaração de sua inconstitucionalidade; além disso, deve observar o princípio da razoabilidade, ou seja, é um Estado de justa medida porque se estrutura em torno do princípio material normalmente chamado de princípio da proibição de excesso. Além disso, destacamos que o Estado de Direito é um Estado que estabelece o princípio da legalidade da administração pública, isto é, um Estado que estabelece a ideia de subordinação à lei dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado que responde pelos seus atos, ou seja, é um Estado que civilmente é responsável por danos incidentes na esfera jurídica dos particulares. O Estado de Direito é um Estado que garante a via judiciária, ou seja, o acesso ao poder judiciário no caso de ameaça ou de lesão de direito. Esse princípio é complementado, entre outros pressupostos, pela garantia de um juízo regular e independente, pela observância do princípio do contraditório e da ampla defesa, pela institucionalização do direito de escolher um defensor e pelo reconhecimento do cidadão ter a assistência obrigatória de um advogado quando processado pelo Estado. Outro ponto fundamental e essencial do Estado de Direito é um Estado estruturado a partir da divisão de poderes, isto é, do fracionamento do Poder do 25 Estado e da independência de seus três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Nesse sentido, o Estado de Direito é também, como regra, um Estado descentralizado, mesmo quando se configura como um Estado unitário. 5 O SISTEMA DE JUSTIÇA Fonte: blog.projetoexamedeordem.com.br 5.1 O acesso à justiça Tem se tornado lugar comum na literatura e no noticiário sobre a sociedade brasileira o alto potencial de conflito existente. Cenas de violência têm habitado o cotidiano, ao lado de um sem número de comportamentos vistos como destoantes de uma vida minimamente civilizada. As causas são inúmeras e entre elas, as mais repetidas, tanto nas análises acadêmicas como pelos meios de comunicação, são aquelas provocadas por questões estruturais. Ainda que não haja evidência empírica que apoie a hipótese segundo a qual a pobreza, a crise econômica, o desemprego estejam diretamente relacionados a taxas de criminalidade, não há como negar que formam um terreno propício à ebulição de conflitos. De fato, a complexidade da sociedade brasileira e, sobretudo, a sua má distribuição da renda, têm sido fatores que estimulam o alto potencial de conflito e a escalada da violência, mesmo que não expliquem nem comportamentos que 26 dificultam o convívio social e menos ainda a descrença nas instituições. O quadro social é dramático, marcado por profundas desigualdades. Segundo dados oficiais, os pobres chegam à casa dos milhões, representando cerca de 30% da população. A distância entre ricos e pobres é abismal e tem aumentado nos últimos anos (em 1960, os 10% mais ricos tinham renda 34 vezes superior à dos mais pobres; em 1990, a diferença mais do que duplicou, passando a ser de 78 vezes; e em 1998, segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento, os 10% mais ricos possuíam quase a metade – 47% – de toda a renda nacional). Por outro lado, houve uma significativa mudança no que se refere aos indicadores de urbanização. Enquanto em 1940 a população urbana representava 31%, em 1970 atingiu a casa dos 68% e em 1990 passou a 79%. Entre os anos 40 e 80 surgiram no país mais de 400 novas cidades (em 1950 o Brasil contava com 96 cidades com mais de 20 mil habitantes, em 1985 já eram 500). Ou seja, em um intervalo de menos de 30 anos, a população brasileira transformou-se de predominantemente rural em urbana. O ritmo e a forma como este processo se verificou provocou desenraizamento, desagregações de famílias, perda de laços primários e a consequente atomização de indivíduos em cidades grandes, inchadas, desordenadas, com cinturões de miséria e gritantes deficiências na prestação de serviços. Ao lado desses traços, outras características não estruturais poderiam ser igualmente listadas como responsáveis pela magnitude dos indicadores relativos à criminalidade e a toda sorte de conflitos: a corrupção, a impunidade, os baixos índices de escolaridade, práticas ilegais perpetradas por agentes estatais, a descrença nas instituições e nas leis. Diante deste quadro, marcado por uma excessiva potencialidade de explosão de conflitos, seria de se supor que a instituição encarregada de resolvê-los ocupasse um lugar central tanto no cotidiano dos cidadãos quanto nas preocupações dos acadêmicos em geral. No entanto, não é isto o que ocorre. No que diz respeito aos estudos de cientistas sociais ainda é bastante reduzido o número de pesquisas e de textos traduzindo esforços de investigação e análisessobre o Judiciário ou sobre o sistema de justiça como um todo. No que se refere à população, os dados indicam uma forte 27 descrença tanto nas leis quanto nas instituições encarregadas de sua aplicação. Assim, tanto o Judiciário como as demais instituições de justiça – Ministério Público, Polícia, Defensoria Pública – têm recebido avaliações muito negativas. Por outro lado, as leis não são vistas como universais, como balizadoras de comportamentos, mas, sobretudo, como instrumentos para punir os “fracos” e redimir os poderosos. A despeito da existência de explicações díspares sobre as causas do conflito, o fato concreto e inquestionável é que são expressivos os números de relatos referentes a comportamentos que colocam em xeque a convivência pacífica. Apesar disso, dados revelam que apenas um percentual reduzido – cerca de 33% – entre aqueles que se envolveram em conflitos procuram a justiça e reconhecem nesta instituição a chave para a solução de seus problemas. Observemos com mais detalhe estes números: Segundo pesquisa, realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, no período entre outubro de 1983 a setembro de 1988 registrou-se um total de 10.665.046 conflitos. Destes, 9.119.810 ocorreram na área urbana e 1.545.236 na área rural. A distribuição do total de conflitos por sexo indica que os homens estiveram mais envolvidos em conflitos (60%) do que as mulheres (40%). O diferencial entre o montante de conflitos nas áreas urbana e rural é, acompanhado por diferentes padrões no tipo preponderante de conflito. Enquanto na área urbana prevaleceu o conflito conjugal (18.9%), seguido de perto pelo trabalhista (18.3%) e por crimes (17.1%), na área rural o principal tipo de conflito foi com vizinho (17.7%), em seguida aparece o que envolvia herança (13.7%), e o trabalhista (12.4%). Na área rural os conflitos conjugais representaram apenas 1.7% do total de conflitos e os problemas criminais 1.3%. Trata-se, como estes percentuais indicam, de duas realidades bastante distintas, não apenas pelo número total de conflitos produzido, mas, sobretudo, pelo tipo prevalecente de litígio. Também no que se relaciona ao gênero, nota-se diferenças no padrão de conflito. Os homens envolveram-se principalmente em questões trabalhistas (21.5%), em problemas criminais (19.5%), em separações conjugais (13.1%) e cobranças de dívidas (11.9%). Já para as mulheres, o tipo mais frequente de conflito foi o de separação conjugal (26.1%), seguido, mas com certa distância, de questões criminais (12.5%), de herança (12.3%) e problemas de vizinhança (12.1%). 28 O levantamento feito pelo IBGE preocupou-se também em focalizar com mais detalhes o último conflito em que as pessoas estiveram envolvidas. Chegou-se a um total de 8.641.761 indivíduos, ou seja, um pouco menos de 10% da população brasileira. Alguns comentários podem ser feitos em relação a este primeiro conjunto de dados. Dada a reconhecida potencialidade de conflitos da sociedade, de um lado, e abundantes relatos transmitidos pelos meios de comunicação, de outro, os percentuais relativos ao número total de conflitos parecem ser bastante inferiores àqueles que a intuição sugeriria. Não se trata de colocar em questão os números oficiais, mas de chamar a atenção para algumas variáveis que poderiam explicar o aparentemente pequeno número de indivíduos que assumiram ter estado envolvidos em algum tipo de conflito. Para isso podem contribuir desde o superdimensionamento dos conflitos em geral e da violência em particular realizado pela mídia; o esquecimento e a vergonha dos envolvidos; e até o que poderíamos identificar como a banalização do conflito. De fato, os meios de comunicação têm dado um espaço crescente aos conflitos, sobretudo à violência. Diariamente toda sorte de crimes compõem a pauta tanto de jornais como da mídia eletrônica, chegando a haver, inclusive, programas centrados neste tema, divulgando atos violentos, não poupando o espectador ou o ouvinte das mais cruéis perversidades. Holofotes buscam o crime, onde quer que ele esteja, nem que, para isso, tenham que forjar um bandido. As complexas relações entre o delito e os meios de comunicação, sem dúvida, mereceriam ser exploradas. Por outra parte, deve-se acentuar também a importância do esquecimento e da vergonha nos depoimentos dos entrevistados. Como se sabe, diante do pesquisador muitos entrevistados vacilam em registrar suas respostas. Culturalmente, o conflito é visto de forma bastante negativa. Assim, não seria surpreendente a deliberada ou inconsciente omissão de envolvimento em situações desta natureza. Some-se a estas ponderações o que poderia ser caracterizado como banalização da violência, isto é, o fato de que cenas de violência passaram a habitar com tanta frequência o cotidiano, que só são registradas quando ultrapassam determinados limites, limites estes cada vez mais amplos. Saliente-se, ainda, que dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), publicada em 1988, indicam que, do total de pessoas envolvidas em algum 29 tipo de conflito no ano anterior, mais do que a metade não procurou a justiça estatal – apenas 45% dos entrevistados o fizeram. Isto é, 55% dos que sofreram algum tipo de problema sequer chegaram às portas do judiciário. O fato de um grande número de pessoas não procurar a justiça formal deve ser sublinhado, na medida em que indica tanto que muitos problemas não vêm sendo resolvidos pela instituição encarregada de fazê-lo, como que outros canais podem estar ocupando este espaço. A resolução pacífica de conflitos pode ser atingida por mais de um mecanismo: por técnicas extrajudiciais, organizações da sociedade civil ou por decisão judicial. As técnicas extrajudiciais de solução de controvérsias são: a mediação, a conciliação e a arbitragem. As organizações da sociedade civil resolvem problemas quer através da intervenção direta de suas lideranças quer em assembleias, nas quais se busca o consenso ou o predomínio da vontade da maioria dos associados. Por fim, o último mecanismo – decisão judicial – supõe, antes de mais nada, o império da lei, a crença nas instituições judiciárias e um mínimo de conhecimento a respeito delas, das leis e de sua aplicabilidade. No linguajar comum este conhecimento aparece nas expressões: “eu sei dos meus direitos”, “vou procurar os meus direitos”, ou “vou até um tribunal”. Quando “direitos” não são entendidos como tais, ou quando são vistos como “favores” não constituem pauta para reivindicações. Ou ainda, quando se sabe que, apesar de haver um direito, de nada adianta o recurso aos canais estatais, porque a apelação estará fadada a não provocar efeitos, configura-se uma situação na qual seria pouco “racional” o apelo aos órgãos do sistema de justiça. Desta forma, deve-se indagar por que grande parte da população não procura um árbitro, pago pelo poder público, para dirimir conflitos. Ou ainda, como e quais são os mecanismos alternativos que vêm sendo utilizados. Estas questões são fundamentais, já que da resposta obtida podem-se configurar duas situações polares: uma caracterizada pelo apelo à lei do “mais forte”, dada a descrença e/ou inoperância das instituições estatais que deveriam distribuir justiça e, no outro extremo, a presença de organizações públicas, não estatais, com legitimidade para dirimir conflitos de forma pacífica, indicadoras de uma sociedade civil bastante organizada. No primeiro caso têm-se os linchamentos, os massacres, os extermínios, as matanças, a justiça feita com as próprias mãos e um vasto número de mecanismos que operam à margem e contra a lei; no outro, há entidades públicas, mas não estatais, que operam resolvendo disputas. Os exemplos mais típicos, nesta 30 última situação, são aqueles nos quais igrejas, clubes, sociedades de amigos debairro, enfim, entidades da sociedade civil têm a legitimidade de seus membros para arbitrar conflitos. Em ambas as situações o sistema de justiça estatal não é ativado, mas as consequências para a sociedade, em um ou outro extremo, são muito distintas. Enquanto uma configura a ausência total de civilidade e praticamente traduz a “guerra de todos contra todos” hobbesiana, a outra propicia, tanto padrões de comportamento comunitários, como de guetos, com baixa integração societal. Caberia discutir em qual destes extremos seria possível enquadrar a sociedade brasileira. Os dados indicam que estamos distantes de uma situação caracterizada pela presença de fortes organizações da sociedade civil, muito embora não se possa negar a existência de tais instituições. Tem sido mais frequente do que normalmente se admite a atuação de lideranças comunitárias, de sociedades de amigos de bairro, de igrejas, de associações voluntárias, na solução de certos conflitos. Neste sentido, é particularmente comum que membros de certas igrejas, em especial as evangélicas, busquem a resolução de seus problemas junto às suas respectivas lideranças. Este canal faz com que os conflitos vivenciados por membros destas comunidades não ultrapassem as suas fronteiras. Por outro lado, a incapacidade do sistema estatal de impor-se e de dar respostas rápidas e eficientes aos inúmeros conflitos tem estimulado a proliferação de organizações para- estatais, que têm imposto sua própria “lei”, tornando a vida, em certos centros urbanos, muito próxima da suposição descrita por Hobbes, da situação em que se encontrariam os homens antes da presença do Estado, de um quadro de barbárie e de guerra selvagem. Esses dois extremos descrevem situações polares, “típico-ideais” na terminologia weberiana, nas quais as pessoas preferem ou são levadas a buscar a resolução de suas controvérsias totalmente fora do sistema de justiça estatal. Há, contudo, uma parte considerável da população que recorre ao sistema estatal, sem, contudo percorrer todos os passos que compõem um processo judicial. Nesta alternativa, têm se destacado as figuras do delegado de polícia e do promotor público, que acabam exercendo também as funções de conselheiro e árbitro, solucionando muitos dos problemas que chegam até eles. De fato, uma pesquisa feita em Recife, relatada por Joaquim Falcão, conclui que uma vara de justiça penal resolve apenas 13% do número de casos penais que um comissário resolve. Da mesma forma, pudemos observar em várias das comarcas visitadas que muitas desavenças são 31 resolvidas “extrajudicialmente”, quer por delegados, quer por promotores, ou mesmo por funcionários qualificados de fóruns como, por exemplo, assistentes sociais. Ou seja, muito embora alguns milhares de problemas não cheguem até a justiça formal, entendendo por isto todo o percurso que termina com a sentença final proferida por um integrante do poder judiciário, isto não significa que sejam inteiramente “expulsos” do sistema. Pode significar que muitos conflitos encontraram solução através da intervenção de agentes do sistema, sem, no entanto, sujeitaram-se a todas as formalidades que caracterizam um processo judicial. Assim, o fato de um problema não chegar até o juiz não quer dizer, necessariamente, que não foi de alguma forma processado pelo sistema de justiça. Fonte: editoraboreal.com.br Enfocando-se exclusivamente o total de pessoas que entraram com ação judicial, “verifica-se que a utilização da justiça preponderou nos conflitos por pensão alimentícia (73.4%), nas questões trabalhistas (66.6%), nas separações conjugais (53.7%) e nos conflitos pela posse da terra (51.3%). Entretanto, em relação aos conflitos de vizinhança (85.1%), aos problemas criminais (72%) e às cobranças de dívida (71.5%) foi alta a proporção de pessoas que não se utilizou da justiça para a solução de seus problemas” (FIBGE, Participação Político-Social 1988, volume 1, Justiça e Vitimização, pag. XXXI). 32 Como se depreende desses percentuais, a busca por uma solução judicial deu- se em maior proporção exatamente nos tipos de problemas em que são mais concretas, mais rápidas e efetivas as consequências da sentença judicial. Assim, o estabelecimento de uma pensão alimentícia redunda compulsoriamente em um montante a ser pago a uma das partes, daí a necessidade imperiosa de uma decisão judicial. Por outro lado, em relação aos problemas criminais, por exemplo, grande parte das vítimas sequer recorre à justiça porque sabe das dificuldades em se encontrar o criminoso e que, na eventualidade dele vir a ser encontrado, são amplas as possibilidades de que não venha a ser punido, especialmente se possuir recursos financeiros. Estas dificuldades são sintetizadas nas expressões: “É mais fácil encontrar um ladrão de galinha na prisão do que alguém que provocou danos maiores”; “a polícia prende e a justiça solta”; “a polícia quando quer, acha o criminoso, o problema é querer”. Em outras palavras e resumindo: os dados oficiais revelam que o Judiciário é mais procurado exatamente para arbitrar aquelas questões em que sabidamente sua resposta é mais eficiente e mesmo imprescindível; e é menos procurado precisamente quando se trata de solucionar problemas para os quais sua eficiência tem sido muito baixa. Esta hipótese é confirmada quando se examina a distribuição das pessoas que moveram ação judicial, por ano de estudo. Nas questões em que as respostas da justiça têm sido mais eficientes, não apenas há um maior número de ações como a distribuição por escolaridade dos que entraram na justiça praticamente reproduz a da população como um todo. Ou seja, o ideal de uma justiça eficiente e igual para todos está menos distante da realidade quando se trata de questões para as quais o judiciário está mais equipado e vem demonstrando maior eficiência. Explicando: pode-se sustentar que a distribuição da população por escolaridade desenha uma curva semelhante à da distribuição por renda. Quando a procura por justiça se dá em torno de médias que reproduzem a da população significa que a sua credibilidade é mais alta e perpassa de forma semelhante todos os estratos sociais. Supondo-se que um determinado problema não é exclusivo de nenhum segmento social e que o acesso à justiça é igual para todos, todos deveriam procurá- la em igual proporção. É exatamente isto o que acontece no que se refere à pensão 33 alimentícia. Observa-se, em relação a este problema, que há, de fato, uma maior proporção de pessoas com os níveis mais baixos de escolaridade. Esta distribuição reproduz a da população. A única exceção diz respeito àqueles que não têm instrução e que são exatamente os que não teriam o que reclamar na justiça, por ausência de renda. Nas questões em que o Judiciário é mais deficiente, ocorre o inverso: é menor o percentual de pessoas que o procuram e, quando o fazem, as causas encaminhadas concentram-se em parcelas especificas da população. Por fim, não se pode descartar a hipótese segundo a qual para alguns setores da população é exatamente a falta de eficiência da justiça que estimula a sua procura. Isto é, como se sabe que a justiça é lenta, muitos preferem transferir para o judiciário a solução de suas disputas, uma vez que, desta forma, ganham tempo. Questões que envolvem dívidas e trabalhistas representam os melhores exemplos para o exame desta hipótese. A variável renda coloca outro problema igualmente importante quando se examina a procura por justiça. O acesso à justiça é, teoricamente, igual para todos. Entretanto, diferenciais de recursos econômicos podem explicar distintas motivações para ingressar na justiça. Parece ser exatamente isto o que vem ocorrendo. Segundo dados do FIBGE, do total de pessoas que se envolveram em ações judiciais 62% pagaram pelo serviço de justiça enquanto 38% o utilizaramgratuitamente. Os conflitos de vizinhança e as ações por pensão alimentícia foram as questões em que mais se recorreu ao serviço gratuito de justiça. Em todos os outros tipos de conflito preponderaram os serviços pagos, especialmente aqueles que envolveram a posse de bens, como cobrança de dívida, herança, desocupação de imóvel e posse da terra. O reduzido percentual daqueles que se utilizaram gratuitamente da prestação jurisdicional contribui para propagar a imagem popular que se tem da justiça – uma justiça cara, elitista, feita para os ricos, para os que têm posse. Esta representação de uma justiça desigual é ainda agravada pelo fato inquestionável de que é muito diferente o empenho dos advogados contratados daquele dos advogados dativos (nomeados pelo Estado) ou da defensoria pública na defesa dos interesses de seus representados. Daí a crença de que rico não fica na cadeia, que presídios foram construídos para os pobres, para aqueles que não têm condições de pagar seus próprios advogados. 34 Ora, um dos supostos do Estado democrático é a igualdade de direitos. As desigualdades no acesso e na utilização da justiça acentuam as desigualdades econômicas e sociais. A democratização no acesso à justiça constitui-se em pauta fundamental para a efetivação dos direitos que formam a cidadania. Desta forma, o sistema de justiça opera não apenas como garantidor de direitos, mas também como um espaço no qual há a possibilidade de redução das iniquidades decorrentes das desigualdades de renda e prestígio. 5.2 O sistema de justiça Como afirmado, o sistema de justiça é mais amplo do que o poder judiciário. A rigor, o juiz é apenas uma peça de um todo maior. O sistema de justiça envolve diferentes agentes: o advogado, pago ou dativo; o delegado de polícia; funcionários de cartório; o promotor público e, por fim, o juiz. Uma controvérsia para transformar- se em uma ação judicial percorre um caminho que tem início ou na delegacia de polícia, ou na promotoria, ou por meio de um advogado. Cabe ao juiz examinar esta questão quando ela deixou de ser uma disputa entre particulares, ou entre particulares e órgãos públicos, ou entre diferentes órgãos públicos e transformou-se em uma ação. Daí a expressão: o juiz pronuncia-se sobre os autos e não sobre o que está fora deles. Este sistema possui uma organização espacial. O critério territorial define as comarcas, que são a menor unidade judicial. As comarcas, por sua vez, classificam- se pelo volume de feitos que abrigam, variando da menor para a maior. Este critério determinará se se trata de uma comarca de primeira entrância ou inicial, de segunda ou intermediária, de terceira ou final, e ainda especial. Esta designação varia de estado para estado, mas todas as unidades da federação distinguem as entrâncias menores das maiores. Há ainda um critério processual, que definirá o tipo de vara. Caso as questões sejam criminais – vara criminal, caso cíveis – vara cível. Teoricamente, uma comarca do interior, de primeira entrância (ou entrância inicial, como é designada em alguns estados da federação), abrigando uma ou mais cidades de pequeno porte, possui uma demanda judicial relativamente menor. Esta comarca tem apenas um juiz que deve julgar todos os tipos de processo – civil ou criminal. 35 As comarcas maiores, ou seja, aquelas que possuem um maior número de feitos são divididas em pelo menos duas varas: uma cível e outra criminal, a cada uma correspondendo um juiz. Nas comarcas de terceira entrância e nas especiais estas varas desdobram-se em outras, formando a 1ª, a 2ª, a 3ª vara cível; e o mesmo podendo ocorrer no que se refere às questões criminais. Além dessa multiplicação de varas cíveis e criminais, nas entrâncias finais têm-se varas especializadas, como a da família, da infância etc. A organização do judiciário prevê ainda uma instância de recurso, designada segunda instância, ou os Tribunais estaduais. Esta organização judicial é acompanhada pelas organizações do Ministério Público e parcialmente pelas Delegacias de Polícia. Esse complexo sistema judicial é bastante desconhecido da população. O público, em geral, desconhece não apenas o seu funcionamento como também é incapaz de distinguir os papéis e as funções de cada um de seus agentes. Pode-se afirmar que o grau de desconhecimento é universal, não havendo correlação positiva entre escolaridade e conhecimento. Ou seja, mesmo pessoas com grau universitário não possuem conhecimentos mínimos sobre o sistema de justiça e seus diferentes operadores. Não é raro que ignorem a existência de dois agentes inteiramente distintos como o são o juiz e o promotor. O delegado de polícia sequer é visto como pertencente ao sistema de justiça. Tal desconhecimento por parte da população é reconhecido, com certo desconforto, por juízes, promotores e delegados. Assim, inúmeras vezes, durante a pesquisa, ouvimos promotores queixarem-se de que eram constantemente indagados sobre quando seriam promovidos, tornando-se um juiz. Ou, mesmo um juiz, entre indignado e surpreso, relatando que era cobrado por não ter saído de seu gabinete e prendido um criminoso. E, ainda, um delegado referindo-se à expectativa de que proferisse uma sentença, determinando a pena de um suposto culpado. Em contraste com a ausência de correlação entre grau de escolaridade e conhecimento sobre o sistema de justiça, verificou-se, durante a pesquisa, que quanto menor o município maior a probabilidade de que seus habitantes conhecessem minimamente as diferenças entre os vários integrantes do sistema de justiça. Efetivamente, nas cidades pequenas, além de ser comum a distinção entre as figuras do juiz, do promotor e do delegado, há noções razoavelmente claras sobre as funções 36 de cada um. Nas comarcas maiores, ao contrário, o mundo da justiça tende a se distanciar de tal forma do cotidiano do cidadão, que dificilmente escapa de apreciações negativas, nas quais todos os seus agentes e atribuições encontram-se misturados. Para a maior parte da população a figura do juiz resume todo o sistema de justiça. O judiciário é percebido não apenas como o poder que profere sentenças, julgando, mas, também, como uma instituição responsável por fornecer respostas às mais variadas demandas por justiça. Atribui-se ao juiz amplas funções: iniciar uma questão, identificar o culpado, prendê-lo, puni-lo e reparar o mal. E, mais ainda, sua sentença deveria obedecer aos cânones de uma justiça rápida, independente das provas, sensível à opinião pública. Fonte: 1.bp.blogspot.com Enfim, espera-se do judiciário, justiça no sentido mais amplo do termo, como se coubesse ao juiz pronunciar-se tanto sobre questões que constam dos autos como sobre toda e qualquer iniquidade social. Ignora-se, quase inteiramente, que o juiz é um agente passivo, que só opera quando provocado (quer pela promotoria, quer por advogados), baseia-se em provas que constem do processo, e que só pode agir segundo os ditames da lei. Em questões criminais, o judiciário, além de ser ativado, depende de investigações que têm origem em uma delegacia de polícia e de 37 informações colhidas por um cartório. Estes constrangimentos, contudo, são normalmente desconsiderados. Entre os agentes do sistema de justiça, o mais conhecido da população é o delegado de polícia, menos por suas competências formais e mais por encontrar-se mais próximo do cotidiano do homem comum. Um respeito recheado de medo confere-lhe autoridade. Delegados, com frequência, sobretudo em cidades pequenas, extrapolam suas atribuições: agem arbitrando conflitos, sendo procurados até mesmo para dissuadir a continuidade de disputas. O promotor, em contraste com as figuras do delegado e do juiz, é do ponto de vista de suas atribuições, o mais desconhecido, principalmente nas cidades de porte médio e
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