Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SADEK, MT., org. Reforma do judiciário [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, 164 p. ISBN: 978-85-7982-033-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Reforma do judiciário Maria Tereza Sadek (org.) BIBLIOTECA VIRTUAL DE CIÊNCIAS HUMANAS REFORMA DO JUDICIÁRIO Maria Tereza Sadek (organizadora BIBLIOTECA VIRTUAL DE CIÊNCIAS HUMANAS UDICIÁRIO Maria Tereza Sadek organizadora) Maria Tereza Sadek (organizadora) Reforma do judiciário Rio de Janeiro 2010 Reforma do judiciário Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais – www.bvce.org Copyright © 2010, Maria Tereza Sadek Copyright © 2010 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da última edição: 2005, Programa de Estudos Judaicos Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser reproduzidas para propósito não comercial na medida em que a origem da publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN: 978-85-7982-033-5 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Pirajá, 330/1205 Ipanema – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: bvce@centroedelstein.org.br I SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................1 Maria Thereza Sadek Rogério Bastos Arantes CAPÍTULO 1 ................................................................................................13 Jurisdição Política Constitucional Rogério Bastos Arantes CAPÍTULO 2 ................................................................................................66 Controle Externo do Poder Judiciário Maria Tereza Sadek CAPÍTULO 3 ..............................................................................................134 Acesso à Justiça Alvino Oliveira Sanches Filho REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................163 1 INTRODUÇÃO Maria Thereza Sadek Rogério Bastos Arantes A importância da reforma judiciária A proposta de emenda constitucional relativa à reforma do Poder Judiciário (PEC 96/1992), aprovada na Câmara dos Deputados em 7 de junho de 2000 (em segundo turno), está tramitando no Congresso Nacional há quase uma década, a partir do projeto apresentado pelo deputado Hélio Bicudo (PT-SP), em março de 1992. O texto encontra-se hoje (fevereiro de 2001) na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (PEC 29/ 2000), aguardando parecer do relator Bernardo Cabral (PFL-AM). Apesar de discutida há três legislaturas, nem por isso é possível afirmar que o desfecho da reforma esteja próximo. Dois aspectos da reforma judiciária merecem destaque inicial: a importância assumida por essa questão no debate público e, ao mesmo tempo, a dificuldade de construir acordos suficientes para a implementação de mudanças. A agenda política brasileira dos anos 90 foi marcada pelas propostas de reforma constitucional e infraconstitucional que modificaram o perfil do Estado e sua relação com a economia e a sociedade. Nesse contexto, era previsível a inclusão da questão judiciária na pauta de discussões, uma vez que a prestação de justiça constitui-se importante função estatal. Todavia, a reforma judiciária logo ganhou contornos mais complexos, superando os limites estreitos do paradigma da eficiência administrativa, que tentara equacionar o problema da prestação jurisdicional no que se refere a custos de funcionamento e desempenho do sistema judiciário. Na verdade, desde que foi incorporado à agenda de reformas, o poder Judiciário vem sendo objeto de intenso debate, não só em função dos aspectos materiais de seu funcionamento, mas principalmente em função do papel político que tem exercido na democracia brasileira, em especial o de confrontar decisões dos demais Poderes de Estado. Esse papel político se 2 viu realçado pelo confronto de dois princípios: de um lado, o processo de modernização econômica, fortemente marcado pelo intervencionismo do governo no ordenamento jurídico (notadamente por intermédio das tão criticadas medidas provisórias); de outro lado, a vigência de uma nova Constituição, repleta de novos direitos substantivos e garantias processuais individuais e de ordem coletiva. Nesse contexto, o Judiciário tornou-se palco de conflitos de grande intensidade, envolvendo setores sociais ou grandes agrupamentos de indivíduos descontentes ou prejudicados pelas ações do governo. Junte-se a isso o fato de a Constituição de 1988 ter ampliado sensivelmente as formas individuais e coletivas de acesso ao Judiciário, entregando-lhe ao mesmo tempo a difícil missão de zelar pelos direitos constitucionais do cidadão. Perguntas aparentemente ingênuas poderiam ajudar a compreender a importância assumida pela questão judiciária no Brasil e as dificuldades de implementar a reforma: por que razões, numa agenda constitucional de reformas, a modernização do Judiciário dividiria espaço com a privatização de estatais, o fim dos monopólios, a reforma tributária ou a reforma política? É fato que a lentidão da prestação jurisdicional representa um grande problema para a sociedade, mas teria ela o mesmo impacto econômico, social ou político que os monopólios estatais do petróleo ou das telecomunicações, o sistema presidencialista multipartidário ou as empresas públicas deficitárias? Se vista pelo ângulo exclusivo da movimentação processual – reconhecidamente deficitária – a reforma do Judiciário impor- se-ia como algo importante, mas não tanto a ponto de ganhar status constitucional e prioridade, nem seria marcada por um grau tão elevado de dissenso. Nossa hipótese é que a importância assumida pela reforma judiciária decorre da posição institucional do Poder Judiciário no âmbito do sistema político pós-1988. Assim, as propostas de mudanças da máquina judiciária não se enquadrariam em alterações meramente técnicas e passariam a ter fortes consequências sociais e políticas, dividindo opiniões dentro e fora do sistema de justiça. Nesse sentido, o status de mudança constitucional adquirido pela reforma judiciária, bem como as dificuldades de sua implementação, só ganham inteligibilidade à luz do papel político que o Judiciário brasileiro assumiu nos últimos anos. 3 Histórico da reforma Dizer hoje que a PEC 96/92, aprovada na Câmara dos Deputados em 2000, tem como autor original o então deputado federal Hélio Bicudo (PT- SP) é mera formalidade. Uma análise da evolução da proposta apresentada por Bicudo em 1992 até a que se encontra tramitando hoje no Senado Federal demonstra que muito pouco do projeto original remanesceu ao longo das sucessivas versões discutidas e votadas na Câmara dos Deputados. A rigor, o primeiro ponto de inflexão desse processo pode ser localizado na tentativa de revisão constitucional de 1993-94, quando o então deputado e relator Nelson Jobim (PMDB-RS) ampliou o debatesobre a crise do Judiciário, introduzindo uma série de novas propostas de reforma que não tinham sido anteriormente cogitadas. De fato, pode-se dizer que as versões posteriores da PEC 96/ 92 foram balizadas muito mais pelas linhas gerais adotadas no projeto de Nelson Jobim do que pelas da proposta original. O processo de revisão da Constituição previsto pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi inaugurado em 13 de outubro de 1993 e encerrou-se em 31 de maio de 1994.1 Reconhecidamente um fracasso (diante das amplas possibilidades que encerrava), a revisão logrou no máximo aprovar cinco emendas constitucionais, dentre elas a do Fundo Social de Emergência e a da redução do mandato presidencial para quatro anos.2 No que diz respeito ao Judiciário – embora nenhuma proposta revisional tenha sido sequer submetida à votação – pode- se afirmar que o relatório de Nelson Jobim conseguiu pelo menos estabelecer os parâmetros básicos da reforma judiciária, em torno dos quais girariam os relatórios subsequentes de comissões especiais da Câmara dos Deputados. Nelson Jobim procedeu a um amplo exame da questão e, a partir de um número também excepcional de emendas apresentadas por parlamentares, tentou construir um projeto global de reforma do Judiciário. No entanto, Jobim 1 Nessa fase especial, o Congresso Nacional, reunido em sessão unicameral, poderia aprovar mudanças na Comissão pelo voto da maioria absoluta de seus membros. Um processo normal de emendas à Constituição teria de respeitar a regra da votação em dois turnos, nas duas casas legislativas, por meio de maioria qualificada de 3/5, nas quatro votações. 2 O processo de revisão constitucional ficou emparedado entre a CPI do Orçamento (que abalou a legitimidade de um Congresso que já se encontrava em fim de mandato, atingindo automaticamente sua autoridade para mudar a Constituição) e o início da disputa eleitoral para a Presidência da República, em 1994. 4 incendiou o debate ao propor, entre outras mudanças polêmicas, a criação das súmulas de efeito vinculante dos tribunais superiores, bem como de novas formas de controle e responsabilização da atividade dos magistrados. A retomada da discussão sobre a reforma judiciária ocorreu em agosto de 1995, com a instalação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados para analisar a PEC 96/92. Para o cargo de relator da comissão foi escolhido o deputado Jairo Carneiro (PFL-BA) que, após 10 meses de audiências públicas e sessões de discussão, apresentou seu parecer sugerindo uma série de mudanças constitucionais, com destaque para 4 pontos principais: 1)súmulas de efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores; 2) criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão que exerceria o controle externo do Judiciário; 3) extinção do poder normativo da Justiça do Trabalho bem como dos chamados juízes classistas; 4) mudanças relativas ao pagamento dos precatórios judiciais.3 O projeto de Jairo Carneiro foi duramente criticado. As principais críticas apontaram uma tendência de centralização do sistema judicial e de redução do acesso à Justiça. Os mais indignados com a proposta chegaram a compará-la ao Pacote de Abril de 1977, por meio do qual o governo Geisel introduziu a avocatória, mecanismo que concentrava poder no Supremo Tribunal Federal, em detrimento das instâncias inferiores do Judiciário. O próprio autor da PEC 96/92, Hélio Bicudo (PT-SP), foi um dos que estabeleceram essa associação, advertindo que o texto de Carneiro fugia completamente do espírito da proposta original por ele apresentada em 1992. Outro deputado do PT de São Paulo, José Genoino, numa Declaração de Voto em Separado, em outubro de 1997,4 fez duras críticas ao projeto de Jairo Carneiro. Genoino apontou vício de inconstitucionalidade formal no substitutivo do relator, por ferir cláusula do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e criticou as propostas de centralização de poder nos tribunais superiores, em detrimento das instâncias inferiores do Judiciário. 3 Durante a fase Jairo Carneiro foram apensadas à proposta original de Hélio Bicudo, outras quatro, relativas: 1) ao Controle Externo do Judiciário (PEC n.° 112-A, de 1995, deputado José Genoino), 2) à idade para aposentadoria compulsória dos magistrados (PEC n.° 127-A, de 1995, deputado Ricardo Barros), 3) à competência da Justiça Federal para julgar os crimes praticados contra os Direitos Humanos (PEC n.° 368-A, de 1996, do Poder Executivo) e 4) ao efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal (PEC n.° 500-A, de 1997, do Senado Federal). 4 GENOÍNO, 1999. 5 O deputado petista também fez críticas à proposta de Carneiro sobre o Conselho Nacional de Justiça, relacionando-a a estratégia neoliberal de reforma do Estado do governo Fernando Henrique Cardoso.5 A falta de consenso mínimo entre os parlamentares da comissão especial, quanto às propostas de Jairo Carneiro, impediu que seu parecer fosse submetido à votação pelo plenário da comissão, que acabou encerrando seus trabalhos em 1998, sem conseguir dar encaminhamento efetivo ao processo de reforma. No primeiro semestre de 1999, a comissão especial de reforma do Judiciário foi reativada, paradoxalmente, como reação da Câmara dos Deputados à iniciativa, do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), de instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar irregularidades no Poder Judiciário. Desde que passou a ocupar uma cadeira no Senado Federal, Antonio Carlos Magalhães fez do Judiciário um de seus principais alvos, desferindo duras críticas contra a magistratura e o mau funcionamento da Justiça. No início de 1999, num contexto de reforma ministerial e crise da aliança governista, ACM ocupou a cena política para dar início a uma campanha contra a corrupção que dizia existir na justiça brasileira. Coincidência ou não, o alvo principal de seus ataques foi a Justiça trabalhista, cujos juízes e tribunais ameaçavam conceder reajustes salariais para corrigir perdas inflacionárias, podendo precipitar um movimento de reindexação geral da economia, num contexto delicado de mudança da política cambial e de desvalorização da moeda. Segundo argumentava o senador, a Justiça trabalhista era o pior ramo do Judiciário quanto ao desempenho processual e sobre ela recaíam as principais denúncias de nepotismo e malversação dos recursos públicos.6 5 Segundo José Genoino, o projeto feria ainda as cláusulas constitucionais pétreas do federalismo e da separação de Poderes e, refletindo uma “concepção concentracionista e autoritária”, ameaçava as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos juízes, “pressupostos para a existência de uma magistratura independente e digna, única capaz de exercer a atividade jurisdicional com eficiência e imparcialidade” (GENOÍNO, 1999:59). 6 ACM chegou a visitar, à época, o prédio em construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, naquilo que viria a se transformar no maior escândalo de corrupção dos últimos anos no Brasil. ACM também se envolveu em troca de insultos com o ministro Almir Pazzianoto, do Tribunal Superior do Trabalho, depois de defender a exibição do TST. Pazzianoto rebateu 6 Durante o mês de março de 1999, ACM empenhou-se na instalação de uma CPI para investigar irregularidades no Judiciário,7 especialmente depois de ter sido interpelado judicialmente pela Associação dos Magistrados Brasileiros, perante o Supremo Tribunal Federal, por suas declarações à imprensa contra o Judiciário. Reagindo à investida do senador baiano, o ministro Carlos Velloso, então vice-presidente do STF, acenou com a retomada das discussões sobre a reforma judiciária, como maneira de evitar a execração da justiça por uma comissão parlamentar de inquérito: O PoderJudiciário precisa de reformas, e os juízes são os primeiros a fazer essa afirmativa. Reformas que deverão ser feitas a partir da análise das necessidades do Judiciário. Pesquisas de opinião têm indicado que o problema básico é a lentidão, que pode levar à de prestação jurisdicional. Então temos de estabelecer as causas e equacionar as soluções. Uma CPI desse tipo, generalizando acusações contra juízes, simplesmente expõe o Judiciário à execração pública, levando o descrédito às suas decisões. E isso não é bom para a nação. As pessoas precisam do Judiciário para resolver os seus conflitos. Se o Judiciário ficar desacreditado, podem ocorrer, inclusive, casos de desobediência civil. Como bem disse o editorial da Folha, a proposta é extemporânea. No fundo ela reflete o desejo de um Poder tutelar o outro. Poder Quero fazer um apelo ao senador Antonio Carlos Magalhães, presidente do Congresso, para que reflita quais são os problemas da justiça brasileira para que caminhemos juntos, se for o caso, para darmos solução ao angustiante problema da justiça que é a lentidão.8 Apesar dos apelos da magistratura, a CPI foi aprovada em 25 de março, iniciando seus trabalhos em 8 de abril de 1999. A iniciativa de ACM foi vista com desconfiança pela oposição parlamentar e foi fortemente repudiada pela maior parte da comunidade jurídica. Reginaldo de Castro, presidente da OAB e autor de fortes analogias, considerou-a um verdadeiro tribunal de exceção: “Março é sempre um mês perigosíssimo para o Brasil. as críticas de ACM afirmando que o senador não tinha estabilidade emocional para exercer o cargo de presidente do Congresso Nacional. 7 É importante lembrar a “corrida” pela instalação de CPIs que aconteceu nesse período: de um lado, ACM empenhava-se pela CPI do Judiciário; de outro, seu adversário político, o senador Jader Barbalho (PMDB-PA), liderava a proposta de instalação de CPI dos Bancos. A disputa entre os dois senadores, associada a outros conflitos na base governista, chegou a ser interpretada à época como início extemporâneo da corrida rumo à sucessão presidencial. 8 Folha de São Paulo, 23/3/99, p. 1-4. 7 Tivemos março de 64 e agora temos março de 99. É algo preocupante. Está se criando no Brasil um tribunal de exceção”.9 A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação Paulista dos Magistrados viram na iniciativa de ACM uma clara tentativa de intimidação do Judiciário. Alguns juristas e parlamentares afirmaram até que a CPI seria inconstitucional por não ter um fato específico para investigar, e 26 dos 27 presidentes de Tribunais de Justiça estaduais lançaram um manifesto repudiando a instalação da CPI. A oposição à iniciativa de ACM teve o efeito de reunir esses diversos setores em torno da ideia de retomar a reforma do Judiciário, buscando imprimir um sentido positivo ao debate sobre o problema da Justiça e neutralizar eventuais ações de intimidação ou perseguição da CPI contra a magistratura. Foi assim que ganhou força a proposta de reinstalação da comissão especial de reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados, que contou com o apoio direto do presidente da casa, deputado Michel Temer (PMDB-SP), interessado em contrabalançar o movimento liderado pelo presidente do Senado. Em 30 de março, dia da instalação da comissão destinada a retomar a análise da PEC 96/92, a AMB organizou uma caminhada do prédio do STF até a Câmara dos Deputados, como ato político contrário à CPI e de apoio à comissão especial de reforma do Judiciário. Estiveram presentes à sessão o presidente do STF, o ministro Celso de Mello, o procurador geral da República, Geraldo Brindeiro, o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo de Castro, os presidentes do STJ e TST, os presidentes de Tribunais Regionais e de Subseções da OAB, além de representantes dos ministérios públicos estaduais. Entretanto, a aglutinação de diversos setores do sistema de justiça a favor da retomada da reforma não significaria maior grau de consenso sobre as propostas que vinham sendo discutidas desde 1992. Tão logo a comissão foi instalada, no dia seguinte, surgiu o primeiro impasse em torno da escolha dos deputados para os cargos de presidente e relator. O PFL, alegando haver acordo com o PMDB sobre os dois cargos mais importantes da mesa, indicou a deputada Nair Xavier Lobo (PMDB-GO) para presidente e o deputado Jairo Carneiro (PFL-BA) para relator. O deputado Jutahy Júnior (PSDB-BA), mencionando o comportamento do PFL no Senado quanto à CPI do Judiciário, manifestou-se contra a indicação de Jairo 9 Folha de São Paulo, 27/3/99, p. 1-5. 8 Carneiro e defendeu a escolha de um nome do PSDB para o cargo de relator. Diante do impasse, José Genoino (PT-SP) defendeu a necessidade de construir um amplo consenso sobre o preenchimento dos cargos de direção da comissão, como forma de evitar o isolamento da relatoria, como havia ocorrido na comissão anterior. Jairo Carneiro, reconhecendo que seu relatório não fora submetido à votação na época em função de divergências entre os partidos, passou a admitir a criação de relatores-adjuntos, em número de 2 a 4 deputados. Uma semana depois, os partidos chegaram a um acordo e escolheram Jairo Carneiro (PFL-BA) para presidir a comissão, e Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) para o cargo de relator. Na sessão em que a escolha foi formalizada, José Genoino saudou o consenso produzido pelos partidos em torno dos dois deputados, mas reapresentou o problema da relação dos relatores-adjuntos com o relator- geral. Geddel Vieira Lima, líder do PMDB, explicou que cedera a presidência para tornar viável o acordo, mas deixava claro que o PMDB só tomara essa decisão porque haveria uma distribuição de poder entre os partidos, por meio das sub-relatorias. Com efeito, respeitada a proporcionalidade partidária, foram escolhidos os seguintes relatores adjuntos bem como os respectivos temas para apreciação: Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP) para a questão das súmulas vinculantes; Nair Xavier Lobo (PMDB-GO) para as justiças especializadas; Renato Vianna (PMDB- SC) para estrutura e competência do Supremo Tribunal Federal e da Justiça Federal; Marcelo Déda (PT-SE) para controle e fiscalização; José Roberto Batochio (PDT-SP) para acesso à justiça e direito à sentença e, finalmente, Ibrahim Abi-Ackel (PPBMG) para direitos, garantias e disciplinas dos Magistrados e Tribunais e Juízes Estaduais. As divergências a respeito da reforma judiciária apareceram logo nas primeiras sessões da comissão especial e a divisão dos temas entre os relatores parciais apenas cristalizaria essa falta de consenso. Durante a primeira fase de trabalhos da comissão – entre abril e junho de 1999 –, a relação dos sub- relatores com o relator não ficou claramente estabelecida, apesar de ter sido discutida diversas vezes: afinal, o relatório parcial teria de ser necessariamente incorporado pelo relator geral? Caso não atendidos, os relatores adjuntos poderiam recorrer ao plenário da comissão? Os relatores parciais teriam de se restringir a seu tema ou poderiam avançar sobre os demais? Tais questões nunca foram totalmente esclarecidas no âmbito da comissão. 9 Tabela 1 Audiências públicas realizadas pela comissão especial de reforma do Judiciário (de 15/4/99 a 6/5/99). Data Convidado Setor/cargo/função 15/4/99 Bolívar Lamounier Pesquisadores especialistas Armando Castelar Pinheiro João Paulo dos Reis Velloso João Geraldo Piquet Carneiro 20/4/99 Representantes da: Ericson Crivelli Central Única dos Trabalhadores Canindé Pegado Confederação Geral dos Trabalhadores Enilson Simões de Moura Social Democracia Sindical Antonio Carlos Navarro Confederação Nacional da Indústria 27/4/99 Presidentes da: Fernando Tourinho Neto Associação Nacionaldos Juízes Federais Achiles de Jesus Siquara Filho Confederação Nacional do Ministério Público Reginaldo de Castro Conselho Federal da OAB Dyrceu Aguiar Cintra Júnior Associação dos Juízes para a Democracia Luiz Fernando R. de Carvalho Associação dos Magistrados Brasileiros Ela Wiecko Volkmer de Castilho Associação Nacional dos Procuradores da República 28/4/99 José Néri da Silveira Ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral Antonio de Pádua Ribeiro Presidente do Superior Tribunal de Justiça Wagner Antonio Pimenta Presidente do Tribunal Superior do Trabalho Carlos de Almeida Baptista Presidente do Superior Tribunal Militar José Fernandes Filho Desembargador Presidente da Comissão Executiva do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça 29/4/99 Getúlio Correa Presidente da Associação dos Magistrados das Justiças Militares estaduais Beatriz de Lima Pereira Presidente da Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho Mário dos Santos Paulo Juiz Corregedor Regional Eleitoral no Rio de Janeiro Ramon Castro Touron Presidente da Associação Nacional dos Juízes Classistas 4/5/99 Renan Calheiros Ministro da Justiça José Celso de Mello Filho Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal 5/5/99 Roberto de Freitas Filho Presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Ulysses Riedel Diretor do DIAP Luiz Flávio Gomes Ex-Juiz de Direito Ricardo Cunha Chimenti Representante dos Juizados Especiais 6/5/99 Geraldo Brindeiro Procurador Geral da República Entre 15 de abril e 6 de maio, a comissão realizou uma série de audiências públicas, com representantes dos mais diversos setores, dentro e fora do sistema de justiça. As audiências consistiam em exposições dos convidados, seguidas de intensos debates com os parlamentares. A relação apresentada na tabela 1 dá uma medida da diversidade de convidados e opiniões apresentados à comissão nessas sessões públicas. 10 No início de junho, Aloysio Nunes Ferreira apresentou seu polêmico relatório sobre a PEC 96/92. Como ele mesmo fez questão de destacar, seu projeto estava baseado em três grandes eixos: 1) A criação de um órgão de controle externo do Judiciário, com funções administrativas e correcionais. 2) A criação da súmula vinculante, do incidente de inconstitucionalidade e da arguição de relevância como medidas de concentração de competências e de centralização da máquina judiciária. 3) Mudanças no âmbito das justiças especializadas, com destaque para a proposta radical de extinção da Justiça trabalhista. Na semana seguinte à apresentação do relatório, começaram os acalorados debates em torno da proposta de Aloysio Nunes. Tiveram início, nada mais nada menos, pela exposição detalhada dos projetos elaborados pelos relatores adjuntos, ou seja, os relatórios parciais que deveriam subsidiar o geral foram apresentados à comissão depois deste, marcando e reafirmando as divergências entre os deputados na comissão. Mais do que isso, alguns relatores adjuntos não ficaram restritos a seus temas, aumentando o grau de discordância a respeito de quase todos os pontos importantes da reforma. O projeto de Aloysio Nunes Ferreira foi criticado por atender principalmente aos interesses do Executivo federal quanto à reforma judiciária. Por essa razão foi também duramente rejeitado pelos partidos de oposição, pela OAB e pela magistratura das instâncias inferiores do Judiciário, que se viu ameaçada pelas propostas concentradoras e centralizadoras do projeto. O relatório foi bastante discutido durante a segunda quinzena de junho, mas não chegou a ser votado na comissão porque o deputado Aloysio Nunes seria convidado por Fernando Henrique Cardoso para assumir a Secretaria Geral da Presidência da República, em meio ao recesso parlamentar do mês de julho daquele ano. Com a retomada dos trabalhos em agosto de 1999, a comissão escolheu a deputada Zulaiê Cobra Ribeiro (PSDB-SP) para o cargo de relatora. Em pouco mais de um mês, em 14/9/99, Zulaiê Cobra apresentou seu relatório sobre a PEC 96/92, que divergia francamente do texto anterior de Aloysio Nunes, apesar de serem ambos deputados do PSDB paulista. Zulaiê resistiu às propostas de reforma do sistema de justiça que atendiam 11 aos interesses do governo e fez repercutir em seu projeto a reivindicação por mecanismos mais duros de controle e de responsabilização da magistratura. Do mesmo modo que Aloysio Nunes, mas provenientes de direção oposta, Zulaiê Cobra sofreu diversas críticas e pressões para modificar seu relatório. Em 19/10/99, uma nova versão elaborada por ela foi votada e aprovada, mas a comissão levaria ainda mais um mês apreciando destaques de pontos específicos dessa versão, encerrando seus trabalhos apenas em meados de novembro. Enfim, depois de quase oito anos de tramitação e de três relatórios terem sido elaborados e exaustivamente debatidos, a comissão especial de reforma do Judiciário chegava a um texto definitivo, encaminhando-o ao plenário da Câmara dos Deputados para votação em dois turnos. Em janeiro de 2000, a PEC 96/92 foi votada pela Câmara em primeiro turno, não sem antes sofrer mais alterações significativas, resultantes da negociação entre os partidos, destinada a viabilizar a votação do projeto. O texto modificado foi aprovado em 19 de janeiro de 2000, ressalvados os destaques, cuja votação ocupou, com quase exclusividade, a agenda da Câmara durante os meses de março a junho, quando o projeto de emenda constitucional foi finalmente aprovado em votação em segundo turno. Desde esse momento, ele se encontra no Senado Federal para ser discutido e votado, também em dois turnos. As dimensões da reforma judiciária Uma análise dos sucessivos relatórios elaborados sobre a PEC 96/92 nos permitiu identificar três dimensões principais da reforma judiciária. Há, em primeiro lugar, o problema da jurisdição política constitucional, que diz respeito ao sistema de controle da constitucionalidade das leis, adotado em 1988, e tem propiciado um amplo e às vezes contraditório intervencionismo judicial no processo político. A Carta de 1988 adotou um sistema híbrido de revisão judicial das leis e dos atos normativos, combinando características dos modelos difuso e concentrado. Desde essa época, propostas como a introdução das súmulas vinculantes ou do incidente de inconstitucionalidade têm sido feitas com a intenção de concentrar a competência de controle constitucional no Supremo Tribunal Federal, em detrimento das demais instâncias do Judiciário. A segunda dimensão da reforma trata da existência e efetividade de mecanismos de controle e fiscalização dos órgãos do sistema de justiça, especialmente por meio da criação do polêmico 12 Conselho Nacional de Justiça. Por fim, a terceira dimensão contempla os aspectos organizacionais e estruturais segundo sua capacidade de ampliar ou reduzir o acesso à Justiça e a democratização do Judiciário. Os capítulos a seguir têm por objetivo elaborar uma reflexão sobre alguns dos problemas suscitados por estas três dimensões, oferecendo ainda um rico levantamento a respeito das propostas de reforma do Judiciário e também do debate que vem se desenvolvendo no interior do Legislativo. 13 CAPÍTULO 1 JURISDIÇÃO POLÍTICA CONSTITUCIONAL Rogério Bastos Arantes a perspectiva de concentrar o controle de constitucionalidade das leis no Supremo Tribunal Federal, o relator da revisão constitucional de 1993-94, deputado Nelson Jobim, defendeu a inclusão do efeito vinculante das decisões do STF, tomadas a partir das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIN). Na verdade, o parecer do relator pretendia completar a reforma iniciada com a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade em 1993, para a qual fora previsto o efeito vinculante. Tratava-se então, segundo Jobim, de estender essa regra para as ADINs, pois não se justificava o tratamento diferenciado entre os dois tipos de ação,“porquanto as ações de constitucionalidade e de inconstitucionalidade se prestam, em verdade, a um mesmo objetivo: a investigação da compatibilidade da norma infraconstitucional com o texto da Lei Maior”.10 Além dessa modificação, o parecer do relator propunha que as súmulas editadas pelo STF passassem a ter efeito vinculante sobre as instâncias inferiores do Judiciário e sobre os órgãos da administração pública em todos os níveis da federação.11 Saindo da esfera constitucional, Nelson Jobim propôs que os demais tribunais superiores pudessem também sumular decisões com efeito vinculante, no âmbito de suas respectivas jurisdições. Dessa forma, mais do que uma concentração do sistema de controle constitucional via súmulas de efeito vinculante do STF, teríamos com a proposta do relator uma centralização geral da máquina judiciária, abrangendo também os processos 10 Congresso Nacional. Revisão da Constituição Federal. Parecer n.° 27, de 1994- RCF (arts. 101 a 103). Poder Judiciário: Supremo Tribunal Federal. p. 17. 11 A Súmula da Jurisprudência Dominante foi criada pelo STF em 1963, por sugestão do então ministro da Corte, Victor Nunes Leal. Na origem, as súmulas foram instituídas para dar estabilidade à jurisprudência do Supre mo e auxiliar na simplificação dos julgamentos de causas idênticas sem, entretanto, caráter impositivo e obrigatório para as instâncias inferiores do Judiciário. N 14 judiciais comuns ou infraconstitucionais.12 Como afirmou o relator, “as súmulas dos tribunais superiores, portanto, teriam força de lei”.13 A instituição da súmula de efeito vinculante (SEV) foi justificada como forma de resolver a chamada “crise dos tribunais superiores”, caracterizada pela sobrecarga de processos que, segundo os mais pessimistas, poderia levar ao colapso desses tribunais. A SEV viria dar conta principalmente dos processos repetitivos, na medida em que obrigaria as instâncias inferiores do Judiciário, a se orientarem pelas decisões dos tribunais superiores, em casos semelhantes. Com isso, boa parte dos processos deixaria de galgar a estrutura judiciária, o que aliviaria o trabalho de cortes como o STF e o STJ. Além de evitar a repetição desnecessária, a SEV poderia ser útil nos casos de ampla repercussão pelo país, decorrentes de origem comum, que poderiam receber tratamento uniforme a partir de decisões firmadas pelos tribunais superiores. De fato, o crescimento do número de processos nos tribunais superiores pode ser avaliado pelos gráficos 1 e 2, relativos aos dois principais tipos de recursos recebidos pelo STJ e STF. É por intermédio do Recurso Extraordinário (REx) que chegam ao Supremo as causas envolvendo questões constitucionais decididas em instâncias inferiores do Judiciário. Por essa via, o STF atua como grau de recurso da parte difusa do sistema de controle de constitucionalidade e nele deságuam processos relativos a casos concretos, nos quais a questão constitucional aparece incidentalmente. O Recurso Especial (REs) está para o STJ aproximadamente como o REx está para o STF, isto é, pela via do REs ascendem ao Superior Tribunal de Justiça processos que questionam a interpretação da lei federal, dada por instâncias inferiores, e que apelam por uma revisão da sentença à corte responsável pela última palavra sobre o direito federal infraconstitucional. 12 Nesse texto, a expressão concentração será utilizada quando estiver em discussão propostas de mudança no sistema de controle constitucional stricto senso, especialmente no que diz respeito às funções do Supremo Tribunal Federal. A expressão centralização será utilizada quando estiver em questão propostas de mudança na jurisdição ordinária ou comum, notadamente no que diz respeito às funções dos demais tribunais superiores. 13 Congresso Nacional. Revisão da Constituição Federal. Parecer n.° 26, de 1994-RCF (arts. 93 a 98). Poder Judiciário: Disposições Gerais, p. 35. 15 Os gráficos 1 e 2 mostram a tendência de crescimento, embora descontínua, dos REx e REs distribuídos para julgamento nos últimos anos, mas demonstram também que as respectivas cortes se esforçaram para reagir na mesma proporção desse crescimento. A litigiosidade difusa em torno da interpretação da Constituição (REx) quase triplicou entre 1990 e 2000 (taxa de 2.7), enquanto a litigiosidade em torno da uniformização e aplicação da legislação federal (REs) quase duplicou entre 1995 e 1999 (taxa de 1.7). Não obstante seu objetivo de reduzir o excesso de processos nas altas cortes de justiça, a proposta da súmula de efeito vinculante (SEV) foi duramente combatida desde o início do debate sobre a reforma do Judiciário, justamente por seu caráter de centralização do sistema de justiça. A introdução desse mecanismo no nível superior da pirâmide judiciária atingiria não só a jurisdição constitucional, mas também a ordinária, com a possibilidade de tribunais comuns ou especializados como o STJ, TST e STM sumularem suas decisões, emprestando-lhes força vinculante. Nesse caso, a jurisprudência firmada pelos tribunais de cúpula do judiciário seria obrigatória para as instâncias inferiores, na totalidade dos ramos do Direito e nos mais variados tipos de processos, e não só os que envolvessem interpretação constitucional. A extensão do efeito vinculante das súmulas aos órgãos públicos chamava a atenção para a cota de responsabilidade da administração pública na sobrecarga de processos existentes no topo da pirâmide judiciária: boa parte desses processos seria de recursos interpostos por órgãos estatais que insistem em levar os processos até as instâncias superiores do Judiciário, mesmo sabendo que sairão de lá derrotados. No caso do STF, um levantamento da Assessoria Judiciária da corte sobre recursos extraordinários e agravos de instrumento no período 1991-1997 revelou que a União Federal era parte em 26,9% do total desses processos e o INSS aparecia em outros 21,3%. Ou seja, somados, União e INSS foram responsáveis por quase metade da movimentação processual do STF – naquelas duas formas recursais – entre 1991 e 1997. O levantamento mostrou ainda que nada menos do que 84% desses processos eram sobre causas repetidas, sobre as quais o Supremo já havia se manifestado numerosas vezes. A questão é que, a rigor, a inclusão da administração pública na regra da SEV seria desnecessária, pois ela é parte no processo e não órgão julgador. Sua submissão à súmula não precisaria se dar diretamente, mas sim pela via da própria manifestação judicial, e só isso deveria ser suficiente para reparar atos lesivos, além de impedir a prática da interposição de recursos em causas 16 perdidas. Seja como for, essa regra juridicamente inócua pode ser considerada apenas uma forma de pressionar os órgãos estatais a acatar e responder mais rapidamente às decisões judiciais. Gráfico 1 Recursos Extraordinários. Supremo Tribunal Federal (1920-2000*). Gráfico 2 Recursos Especiais – Superior Tribunal de Justiça (1995-1999). Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, Supremo Tribunal Federal. 10780 29196 10680 28804 0 5000 10000 15000 20000 25000 30000 35000 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 Distribuídos Julgados 25147 43264 19584 42954 0 10000 20000 30000 40000 50000 1995 1996 1997 1998 1999 Distribuídos Julgados 17 No fundo, o problema que a SEV se propõe a resolver é que, no Brasil, as decisões dos tribunais ditos superiores não são superiores em relação às demais instâncias do Judiciário. No que diz respeito à função de controle constitucional, o hibridismo do nosso sistema faz com que os juízes e tribunais inferiores não sejam obrigados a seguir as decisões do Supremo Tribunal Federal que, nesse sentido, está mais longe do modelo das Cortes Constitucionais europeias do que a Suprema Corte norte-americana – quefunciona como última instância de um sistema exclusivamente difuso- incidental, mas que produz uma jurisprudência vinculante.14 No que diz respeito às causas ordinárias, a descentralização do sistema judiciário brasileiro – decorrente da organização federativa do Estado, da existência de Justiças especializadas e do juízo monocrático no primeiro grau – tensiona sobremaneira a tarefa dos tribunais superiores de uniformizar a interpretação do Direito em nível nacional, por meio da produção de uma jurisprudência capaz de vincular as demais esferas do Judiciário. O fato de serem superiores só no nome reduz o alcance prático das decisões dos tribunais sediados em Brasília, agravando a situação dos que saem vitoriosos na primeira instância, mas que são arrastados pelos derrotados (que muitas vezes é o próprio Estado) até a última instância, para receberem uma decisão cujo conteúdo todos já conheciam de antemão. Fosse a proposta da SEV encarada com essa obviedade – de que tribunais superiores deveriam existir para tomar decisões superiores –, sua inclusão no ordenamento constitucional já teria sido realizada há muito tempo, para corrigir um desses “erros” institucionais sem cabimento e cuja origem ninguém sabe explicar precisamente. Mas o debate em torno da 14 Em trabalho anterior, demonstrei como o Brasil construiu um sistema híbrido de controle da constitucionalidade das leis. Embora a primeira constituição republicana (1891) tenha copiado o modelo difuso norte-americano, várias mudanças inspiradas no sistema concentrado europeu foram feitas pelas constituições posteriores, a ponto de transformar nosso sistema de controle constitucional em algo sem similar no mundo. No Brasil, todo e qualquer juiz pode apreciar a constitucionalidade das leis e atos normativos no julgamento de casos concretos (característica do sistema difuso) e há a possibilidade de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei em si, perante o Supremo Tribunal Federal, que funciona assim como quase corte constitucional (característica do sistema concentrado). O modelo adotado em 1988 não é totalmente concentrado porque o STF não detém o monopólio da declaração de (in) constitucionalidade, dividindo essa competência com os juízes e tribunais de todo o país, nem suas sentenças são capazes de vincular decisões dos órgãos judiciários inferiores. Ver Arantes (1997). 18 SEV (e de outras medidas de centralização que veremos adiante) acabou assumindo contornos de uma disputa entre governo e oposição, que foi levada rapidamente a um impasse. Para o governo, a reforma do Judiciário ganhou importância como linha auxiliar de reforço da governabilidade enquanto para a oposição o mais importante tem sido garantir e ampliar o acesso à Justiça. No que diz respeito à jurisdição política constitucional, tais objetivos são totalmente antagônicos, o que explica em grande medida a dificuldade de implementação de uma reforma cujo primeiro projeto foi apresentado há oito anos e já está sendo discutido pela terceira legislatura consecutiva. A resistência da oposição a propostas como a da SEV decorre das vantagens que partidos políticos e setores da sociedade têm tirado do hibridismo de nosso sistema de controle constitucional e da descentralização judiciária como espaços extremamente favoráveis à luta política contra medidas do governo, especialmente na área econômica. Derrotados na esfera político-representativa, os partidos de oposição encontram na judicialização da política a possibilidade de reverter ou no mínimo adiar a implementação de medidas de interesse do governo. Os setores da sociedade, contrariados por decisões políticas, também têm fácil acesso ao Judiciário e usam desse recurso para escapar de decisões políticas majoritárias ou pelo menos para adiar seu impacto imediato. Como defendem Vianna [et al.]: a judicialização da política, entre nós, longe de enfraquecer o sistema de partidos, em especial os da esquerda e da oposição, tende a reforçá-lo, na medida em que propicia – é verdade que no campo predominantemente do Direito e de seus procedimentos – uma conexão entre a democracia representativa e a participativa, para o que concorrem as ações públicas, em que a cidadania se encontra legitimada para deflagrar o processo judicial contra as instâncias do poder (VIANNA et al., 1999:43). Embora exista grande distância entre a judicialização da política e o ideal de democracia participativa, a oposição esforça- se por manter o modelo judiciário e de controle constitucional adotado em 1988, não só pela possibilidade de simples particulares poderem levar o governo às barras da justiça, em todos os cantos do país, mas também porque o hibridismo do nosso sistema impede que o STF exerça alguma dominação sobre as 19 instâncias inferiores do Judiciário. A crença dos setores da oposição é a de que a suprema corte é suscetível às pressões da maioria política que governa, pelo fato de que seus ministros são indicados pelo presidente da República, com aprovação do Senado Federal. O gráfico 3 mostra como a judicialização da política, iniciada pela base da pirâmide judiciária, assumiu enormes proporções nos anos 1990. É na Justiça Federal de primeiro grau que esse fenômeno aparece de modo mais claro, pois é nela que União e particulares se encontram para resolver seus litígios, frequentemente com o governo e seus órgãos administrativos no banco dos réus. No gráfico 3 é demonstrado, por exemplo, como houve, logo após o primeiro ano do governo Collor, uma explosão de conflitos envolvendo a União, certamente em decorrência de suas medidas econômicas, tributárias e administrativas. E ao contrário do que se poderia imaginar, a relativa estabilidade política e econômica dos anos posteriores à instituição do Plano Real (em 1994) não significou um arrefecimento dessa luta judicial entre a sociedade e o governo. Ao invés disso, após um leve declínio entre 1992 e 1994, o número de ações veio crescendo linearmente até ultrapassar a barreira de um milhão de processos distribuídos em 1999. Em 1989, tínhamos, na Justiça Federal de primeiro grau, um processo distribuído para cada 604 habitantes. Dez anos depois, essa relação mudou para um processo a cada 151 habitantes. Em outras palavras, enquanto a população brasileira cresceu cerca de 15% entre 1989 e 1999, o número de processos movidos contra a União e a administração pública federal cresceu 360%. Para complicar a situação, a proporção do número de processos julgados em relação aos distribuídos vem sendo de aproximadamente 50%, desde 1995. Ou seja, é como se estivéssemos diante de uma bola de neve que agrega por ano o dobro de gelo que o sol consegue dissolver no mesmo período de tempo. 20 Gráfico 3 Movimentação processual na Justiça Federal de 1° grau (1989-1999). Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, Supremo Tribunal Federal. Os opositores da SEV sustentam que essa explosão de litigiosidade de particulares contra o governo seria sufocada autoritariamente pela centralização da máquina judiciária e pela supressão da independência dos juízes de primeiro grau. Embora tenham certa dose de razão nessa crítica, o que os defensores do status quo constitucional têm dificuldade de explicar é que muitas vezes, se não a descentralização do acesso à justiça, pelo menos a falta de efeito vinculante das decisões dos tribunais superiores beneficia justamente o governo e suas medidas inconstitucionais ou ilegais. Esse modelo contraditório – que frequentemente obriga os particulares a percorrer uma longa via crucis pelas instâncias judiciárias, ao mesmo tempo em que permite ao governo adiar ao máximo acertos de contas desfavoráveis – tornou-se mais evidente com a estabilização econômica pós-94. Com o fim da inflação, deixou de ser vantajoso para o governo protelar o pagamento de dívidas ou insistir na cobrança de impostos indevidos.Nesse sentido, em alguns casos recentes, o próprio governo surpreendeu a todos ao mandar seus advogados deixarem de interpor recurso em causas já decididas em última instância contra a União e seus 234301 724129 1079158 129896 552990 0 100000 200000 300000 400000 500000 600000 700000 800000 900000 1000000 1100000 1200000 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 Distribuídos Julgados 21 órgãos, mesmo que isso pudesse significar perdas para o Tesouro Nacional e até mesmo o desrespeito ao princípio que obriga a administração pública a esgotar todos os esforços para defender o interesse público. Um dos exemplos reveladores da irracionalidade do sistema judicial ocorreu em agosto de 1995 quando os ministros da Justiça, Nelson Jobim, e da Fazenda, Pedro Malan, ordenaram à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional desistir da interposição de recursos em alguns casos sobre os quais o STF e o STJ já haviam se manifestado reiteradamente no mesmo sentido. O decreto dos ministros mencionava concretamente os processos relativos aos empréstimos compulsórios do governo Sarney (1986), ao Finsocial no período 1988-1990, à Cofins entre 1988 e 1989, ao IPMF de 1993 e ao ICMS na importação de mercadorias, além de outros casos. O que poderia parecer uma atitude isolada, diante de causas estigmatizadas e há muito perdidas pelo governo, transformou-se em regra geral por meio da Medida Provisória 1561-06, convertida em lei pelo Congresso Nacional em 10 de julho de 1997 (lei 9469) e posteriormente regulamentada pelo decreto 2.346 (de 10 de outubro de 1997). Por meio desse conjunto de normas, a Advocacia Geral da União, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e o INSS ficaram autorizados a desistir da propositura de ações e da interposição de recursos nos casos decididos pelo STF de modo “inequívoco e definitivo”. Um exemplo mais recente dessa abstenção judicial do governo ocorreu em janeiro de 2001, com a decisão do ministro da Previdência Social, Waldeck Ornélas, determinando ao INSS que desistisse de interpor recurso perante o STF e o STJ, em algumas matérias já pacificadas nessas duas cortes. Em carta ao presidente do STJ, Waldeck Ornélas afirmou que “O Ministério da Previdência e Assistência Social está empenhado em participar do esforço que Vossa Excelência está empreendendo no sentido de desafogar e agilizar o andamento dos processos em tramitação no Superior Tribunal de Justiça”.15 Segundo dados do próprio tribunal, o INSS figurou em 10,6% dos 150.738 processos recebidos pela corte em 2000. Esses casos indicam que os custos de funcionamento de uma pirâmide judiciária, na qual as decisões tomadas no topo não têm efeito vinculante sobre os casos que ainda se encontram na base, podem ser 15 Ver http://www.detalhes_noticias.asp?seq_noticia=3126 22 maiores para a sociedade e os indivíduos particulares do que os benefícios decorrentes da organização do Judiciário em mônadas. Outro exemplo nesse sentido, mais grave do que os anteriores, foi o caso recente do FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Trabalhadores de vários estados entraram com ações na Justiça Federal pedindo a correção dos saldos do FGTS, em função dos índices inflacionários expurgados pelos Planos Bresser (julho de 1987), Verão (janeiro de 1989), Collor I (meses de abril e maio de 1990) e Collor II (fevereiro de 1991). A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez, por intermédio do recurso extraordinário interposto em nome de dez metalúrgicos do Rio Grande do Sul.16 O STF levou cinco meses para julgar o recurso, entre adiamentos, pedidos de vista e férias forenses.17 Ao final, o tribunal reconheceu que as contas do FGTS daqueles dez trabalhadores gaúchos deveriam ser corrigidas somente em função dos planos Verão e Collor I (apenas para o mês de abril de 1990), negando a correção pedida em relação aos demais.18 Com esse resultado, o Supremo confirmou em parte decisão do STJ, que já havia determinado a utilização dos índices de 16,65% (relativo ao Plano Verão) e de 44,8% (relativo ao Plano Collor I. mês de abril) para a correção dos saldos do Fundo de Garantia. Segundo o Banco Central, se todas as contas do FGTS fossem automaticamente corrigidas de acordo com a decisão do STF, o valor global da correção poderia custar cerca de R$ 38 bilhões, algo próximo do valor de toda a exportação brasileira no período de um ano, como fez questão de frisar, na época, o presidente Fernando Henrique Cardoso.19 Por outro lado, a decisão do STF não teria esse impacto global imediato, pois seu alcance era restrito às partes constantes no processo. Os demais trabalhadores teriam de pleitear na Justiça o mesmo benefício e o governo poderia arrastar essas causas por um bom tempo, levando-as todas ao STF. Para se ter uma ideia, apenas o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio 16 Recurso Extraordinário 226855-RS, Supremo Tribunal Federal. Relator: ministro Moreira Alves. 17 A primeira sessão de julgamento ocorreu em 12/4/2000 e a última em 31/8/20000. 18 Segundo o STF A Caixa Econômica Federal havia agido corretamente nos casos dos Planos Bresser, Collor I (mês de maio de 1990) e Collor II. 19 Na primeira sessão do STF que examinou o pedido dos trabalhadores, em abril de 2000, a Bolsa de Valores de São Paulo despencou 5,03%, sob o receio de que o pagamento dos valores devidos do FGTS levasse a um rombo nas contas públicas e comprometesse a estabilidade fiscal (VOTO, 2000). 23 Grande do Sul, patrocinador da ação que se sagrou parcialmente vitoriosa no Supremo, está movendo outras para beneficiar cerca de 35 mil a 40 mil trabalhadores. Estimativas feitas por lideranças sindicais indicaram que o total de trabalhadores com direito à correção do FGTS poderia ultrapassar os 50 milhões.20 Diante da resistência do governo, o advogado do sindicato gaúcho ameaçou recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA para pressionar o governo brasileiro a estender a todos os trabalhadores o efeito da decisão do STF. Ou seja, uma vez que o sistema judicial brasileiro não o promove mesmo esse efeito, apelar-se-ia para a uma corte internacional a fim de obrigar o governo a reconhecer e pagar a dívida. Por outro lado, o Executivo havia pedido ao STJ que revisasse os percentuais definidos para a correção e seria prudente aguardar o julgamento desse recurso. Para se ter um ideia, o governo chegou a pagar R$ 120 milhões em decorrência de 15 mil ações julgadas procedentes em relação aos outros planos econômicos que o STF depois viria excluir do cálculo do reajuste do FGTS devido. Se o governo tivesse desistido da causa logo após as primeiras decisões do STJ, a quantia a ser finalmente despendida teria sido muito maior do que os 38 bilhões de reais. Entretanto, para surpresa de todos, em 21 de setembro de 2000, o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou que o governo admitia a derrota e pagaria a diferença a todos os trabalhadores, sem que estes tivessem de acionar a justiça para isso.21 Ministros do STJ e do STF disseram estar aliviados com a decisão do presidente, pois ela livraria a Justiça de uma avalanche de processos e do risco de um verdadeiro colapso. Desde essa época, o governo e as centrais sindicais CUT, CGT e Força Sindical têm debatido fórmulas de correção do FGTS que reparem o direito lesado dos trabalhadores, mas que não comprometam o equilíbrio fiscal da União – objetivos mostrados até aqui incompatíveis diante do montante de dinheiro público em jogo. Até janeiro de 2001 e passados seis 20 O presidente do STJ, ministro Paulo Costa Leite, afirmou que “se não houver acordo, 90% dos trabalhadores brasileiros vão entrar na Justiça e nós vamos ter um colapso na Justiça Federal”. Folha de São Paulo, 2/9/ 2000, p. B7. 21 Nessa época, a estimativado Superior Tribunal de Justiça era de que haveria pelo menos 600 mil processos semelhantes na primeira instância da Justiça Federal. Em outubro de 2000, havia 30 mil recursos relativos a essa questão no STJ. 24 meses da decisão do STF, nenhuma solução tinha sido encontrada para o problema, que está sendo considerado o “maior contencioso do mundo”.22 Caso houvesse o instrumento da SEV, o Supremo poderia após julgamentos reiterados a favor da correção, resolver a questão de uma vez por todas, editando a súmula que obrigaria as instâncias inferiores do Judiciário e a própria administração pública a adotar e cumprir a determinação do STF em casos semelhantes. O exemplo do FGTS veio se somar a outros anteriores, revelando a lógica perversa do funcionamento do sistema de recursos judiciais no Brasil, que muitas vezes impede a reparação rápida e generalizada de direitos lesados pelo governo. Todavia, nem sob o impacto de casos graves como os mencionados acima, os que se opõem a mecanismos de concentração como a SEV aceitam sua implementação. Na verdade, embora saibam que a sociedade poderia ser beneficiada com a SEV – nos conflitos judiciais com o governo –, os opositores da concentração do sistema de controle constitucional parecem preferir o status quo institucional pelas oportunidades que ele oferece quanto à litigância difusa contra o governo, além do receio que manifestam sobre o baixo grau de independência do STF em relação ao Poder Executivo federal. Diante dessa encruzilhada, muitos saem pela tangente, afirmando que o problema seria resolvido se o absenteísmo judicial do governo se tornasse regra nos casos decididos e confirmados reiteradamente pelo Supremo contra a administração pública. Como disse o jurista Dalmo Dallari, que é contrário à SEV: “se quem comete o excesso são as Procuradorias da Fazenda Nacional, que pertencem ao Poder Executivo, por que impor a limitação ao Judiciário, tirando a independência dos juízes?” E citando instrumentos legais que hoje autorizam o governo a desistir de causas consideradas perdidas, Dallari afirmou que “bastam que sejam utilizados, e será reduzido substancialmente o volume de trabalho de juízes e tribunais, sem tirar a independência dos juízes” (DALLARI, 1997). Mas houve quem, dentre os opositores das propostas de concentração, percebeu a irracionalidade do sistema e buscou alternativas de mudança que diminuíssem seus efeitos perversos, sem entregar-se ao objetivo de favorecer o governo e reforçar a governabilidade. Essa parece ser a orientação 22 PRESIDENTE, 2000. 25 da proposta do Partido dos Trabalhadores que acatou a adoção do efeito “automático, geral e subordinante” da declaração de inconstitucionalidade pelo STF em decisões definitivas de mérito, em ação direta ou – o que é mais radical – incidentalmente.23 Note-se que a proposta não fala em uma decisão qualquer do Tribunal, mas apenas das que declaras sem leis a atos normativos inconstitucionais. Em outras palavras, se a decisão do STF fosse contrária à vontade da maioria política, ela poderia ter efeito vinculante. Se não, os juízes e tribunais poderiam continuar decidindo contra o STF, que ratificou a vontade da maioria política. Trata-se, portanto, de uma clara aposta na instância judicial como lugar de obstrução da maioria política pela minoria política, que assim sempre teria uma segunda chance para defender seus interesses, independentemente de sua maior ou menor representatividade social. 1.1 As súmulas de efeito vinculante O projeto de Jairo Carneiro retomou a proposta de Nelson Jobim, que previa também a necessidade de aprovação da SEV por 3/5 dos membros do tribunal e a possibilidade de cancelamento ou alteração dela, mediante provocação de alguns agentes legitima dos para isso (ver quadro 1). A exigência de quórum mínimo para aprovação e a possibilidade de revisão da súmula foram introduzidas como formas de controle dessa atividade excepcional do tribunal. Jairo Carneiro arriscou-se a definir detalhes nesse sentido, mas, a partir do projeto de Aloysio Nunes, as questões de edição, cancelamento e modificação das súmulas foram jogadas para lei complementar, adiando definições específicas importantes em relação às quais era difícil produzir consensos. Como resultado das críticas dirigidas à SEV, o projeto de Aloysio Nunes veio com exigência de quórum mais elevado para aprovação (2/3 dos membros do tribunal), mas também foi menos duro quanto a seu descumprimento por parte dos administradores públicos. Na versão de Jairo Carneiro, o reiterado descumprimento da SEV configuraria crime de responsabilidade para o agente político e acarretaria a perda do cargo para o agente da Administração, independente de outras sanções cabíveis. Aloysio Nunes não levou a nova regra judicial a esse ponto. 23 Sobre essa parte e outras da proposta global de reforma do Judiciário feita pelo PT, ver Genoino (1999). 26 Tabela 2. Súmulas de efeito vinculante Jairo Carneiro (PFL-BA) Do STF e Tribunais Superiores. Mediante voto de 3/5 dos membros. Com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e da administração pública. Aprovação, alteração ou cancelamento da súmula poderiam ocorrer de ofício ou por proposta de qualquer tribunal competente na matéria; pelo Ministério Público da União ou dos Estados; pela União, os Estados ou o Distrito Federal; pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela entidade máxima representativa da magistratura nacional, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Sim Aloysio N. Ferreira (PSDB-SP) Do STF e Tribunais Superiores. Mediante voto de 2/3 dos membros. Com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e da administração pública. Revisão ou cancelamento das súmulas seriam definidos por lei complementar Sim Zulaiê Cobra (PSDB-SP) Súmula impeditiva de recurso, editada pelo STF e Tribunais Superiores, depois das decisões reiteradas sobre matéria constitucional previdenciária, acidentária, tributária e econômica, desde que aprovadas por 2/3 dos ministros. Não seria admitido recurso interposto contra decisão baseada na súmula, ressalvada hipótese de argumentação jurídica razoável ainda não apreciada pelo STF e Tribunais Superiores Não Texto aprovado na Comissão Especial Texto aprovado em 1º e 2º turnos na Câmara Sim Sim Do STF e Tribunais Superiores. Mediante voto de 2/3 dos membros. Com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e da administração pública. Revisão ou cancelamento das súmulas seriam definidos por lei complementar Do STF. Mediante voto de 2/3 dos membros. Com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e d administração pública. Revisão ou cancelamento das súmulas seriam definidos por lei complementar Em linhas gerais, o que se pode perceber é que o núcleo da proposta de centralização do sistema de justiça (tanto na jurisdição constitucional quanto na ordinária), lançado primeiramente por Nelson Jobim, em 1994, permaneceu nos projetos de Jairo Carneiro e Aloysio Nunes Ferreira, indo desaguar no texto aprovado em dois turnos na Câmara dos Deputados (salvo pequenas diferenças entre eles). Os demais mecanismos da centralização que veremos adiante também fizeram parte desse núcleo e seguiram mais ou menos a mesma trajetória. 27 Houve um momento de inflexão nesse processo, no qual a proposta centralizadora foi rejeitada em nome da manutenção do poder das instâncias inferiores do Judiciário: quando o primeiro projeto de Zulaiê Cobra foi apresentado à comissão em setembro de 1999. Durante a fase de Zulaiê Cobra como relatora da comissão especial, os partidos de oposição encontraram espaço para suas propostas e os governistas viram suas ideias de centralização do sistema de justiça serem rejeitadas pela deputadatucana. Zulaiê opôs-se a quase todas as propostas nesse sentido, admitindo em seu relatório apenas a extensão do efeito vinculante às ações diretas de inconstitucionalidade, como propôs o Partido dos Trabalhadores. Especificamente sobre a SEV, Zulaiê Cobra afirmou em uma das reuniões da comissão especial: “sou contra a súmula vinculante, por isso não a coloquei no texto. Sei que o governo é a favor. Sou contra, porque vamos ser contra o juiz de primeira instância. O juiz de primeira instância, que é o que vai julgar, que vai inovar, é a única coisa boa que temos nessa vida.24 No lugar das súmulas propostas por Jairo Carneiro e Aloysio Nunes, Zulaiê sugeriu a chamada súmula impeditiva de recursos (SIR). Na verdade, a ideia da SIR foi concebida por magistrados da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul em 1995 e levada pelo Partido dos Trabalhadores ao Congresso Nacional, no âmbito de sua proposta global de reforma do Judiciário. No modelo idealizado pelos juízes gaúchos, não caberia recurso contra sentenças judiciais que aplicassem as súmulas editadas pelo STF e pelos tribunais superiores, mas apenas contra as que rejeitassem a aplicação das decisões sumuladas. Com isso, argumentaram os defensores da proposta, a SIR contribuiria para desafogar a cúpula do Judiciário de processos idênticos e repetitivos, ao mesmo tempo em que preservaria a independência do juiz inferior, permitindo-lhe divergir da orientação da cúpula do Judiciário. Zulaiê Cobra adotou essa proposta, contrariando a orientação majoritária de seu partido e do governo e, além do princípio geral da SIR, restringiu as matérias passíveis de serem sumuladas às áreas previdenciária, acidentária, 24 Reunião ordinária da comissão especial da reforma do poder Judiciário (PEC 96-A/92), em 19/10/99. Departamento de taquigrafia, revisão e redação da Câmara dos Deputados, nº 1050/99. P.7. 28 tributária e econômica. Não por coincidência, essas são áreas nas quais o governo acumula enorme soma de derrotas nos tribunais superiores.25 Para justificar sua oposição à proposta da SEV, Zulaiê Cobra invocou os argumentos do ex-juiz paulista Luiz Flávio Gomes. Fundados numa generosa interpretação dos princípios constitucionais, esses argumentos bem demonstram a fertilidade que às vezes caracteriza o pensamento jurídico. Diz o relatório de Zulaiê Cobra: cabe transcrever as críticas desse magistrado acerca da introdução das súmulas vinculantes em nosso ordenamento jurídico: ‘Fazem tabula rasa do princípio da tipicidade das leis, assim como do juiz natural imparcial (que inexiste nos sistemas de jurisprudência superior vinculante). Iludem o princípio do pluralismo político (art. 10, inciso V), que é a base de várias interpretações válidas do mesmo texto normativo. Ofendem o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.0, inciso III), à medida que retiram do juiz o que existe de essencial na atividade judicial, que é autodeterminação (tratar o juiz como incapaz de se autodeterminar, aniquilando sua criatividade, resulta em ofensa à sua dignidade).26 Se a primeira crítica de Luiz Flávio Gomes estivesse correta, não seria possível falar em juiz natural nos Estados Unidos, onde a jurisprudência da Suprema Corte tem força vinculante sobre as instâncias inferiores do Judiciário. A segunda crítica, por sua vez, confunde pluralismo político (garantido pela Constituição, no art. 1º, inciso III) com pluralismo jurídico. A terceira, a mais criativa de todas, afirma que a SEV desrespeita o princípio da dignidade humana do juiz, como se a função institucional de um órgão judiciário pudesse ser reduzida a uma questão de ordem pessoal. A proposta da SIR foi apoiada pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pela Associação Nacional dos Juízes Federais como fórmula 25 É importante registrar o apoio do então ministro da Justiça, o advogado José Carlos Dias, ao projeto de Zulaiê Cobra. No dia seguinte à apresentação do relatório de Zulaiê Cobra, José Carlos Dias publicou artigo na Folha de São Paulo manifestando sua concordância com o “tom geral” do projeto. Sobre a recusa da deputada em adotar a SEV, afirmou o ex-ministro: “(...) a súmula vinculante teria por consequência restringir perversamente a criatividade dos juízes brasileiros. Mais do que isso, suprimiria o pleno exercício do direito fundamental do acesso à Justiça”. Folha de São Paulo, 15/9/99, p. 1-3. 26 Relatório da deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, apresentado à Comissão Especial de Reforma do Judiciário em 14/09/99. 29 alternativa ao remédio mais duro representado pela SEV. De certo modo, a proposta encampada por Zulaiê Cobra significou um recuo dos setores resistentes à centralização do sistema de justiça, na medida em que reconhece a necessidade de algum mecanismo redutor do excesso de recursos que sobrecarrega os tribunais superiores. Por outro lado, a SIR não obriga os juízes e tribunais inferiores a seguirem o entendimento dos tribunais superiores em causas semelhantes, mas apenas impede que a parte possa recorrer quando o juiz, livre e autonomamente, decide seguir a súmula editada pelos tribunais de cúpula do Judiciário. A aceitação da SIR, pelos opositores da centralização do sistema judicial, levou o debate sobre a instituição das súmulas a superar a questão mais simples do excesso de processos no topo da pirâmide judiciária. Com efeito, tornou-se evidente a partir daí que a questão fundamental recaía sobre a própria natureza dos tribunais de cúpula do Judiciário e sua legitimidade ou não para dar a última palavra sobre determinados tipos de causas. Apesar de contar com o apoio de setores importantes da própria magistratura e ter sido encampada por alguns partidos de oposição no Congresso, a ideia da SIR não convenceu os governistas, que se articularam para derrotar a proposta ainda no âmbito da comissão especial, na votação do relatório de Zulaiê Cobra. A SEV acabou voltando ao texto por meio do destaque apresentado pelo deputado Luiz Antonio Fleury (PTB-SP), apesar da inconsistência de sua argumentação perante o plenário da comissão. Fleury afirmou que a proposta de Zulaiê feria o princípio do duplo grau de jurisdição, ao permitir a interposição de recursos em alguns casos e impedi- Ia em outros. Independente da necessidade de haver ou não duplo grau de jurisdição em questões constitucionais ou em causas repetidas, sobre as quais já exista manifestação clara do tribunal superior, o fato é que a proposta de Fleury significaria uma ofensa ainda maior a esse mesmo princípio, uma vez que contra a SEV não caberia nenhum tipo de recurso. Além disso, Fleury dedicou boa parte de sua argumentação à defesa da SEV como forma de produzir segurança jurídica, embora tenha falado longamente sobre os mecanismos de revisão e cancelamento das súmulas para evitar o enrijecimento excessivo da interpretação judicial das normas legais e dos princípios constitucionais. No fim, nem Fleury nem ninguém favorável à SEV foi capaz de falar francamente sobre as consequências da sua introdução no ordenamento 30 constitucional. Uma defesa coerente da SEV não poderia deixar de destacar a parte da proposta que estabelecia, como objetivo da súmula, “a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. Ou seja, o próprio texto proposto reconhecia que a finalidade da SEV não era consolidar posições já pacificadas pela jurisprudência, porém “pacificar à força” controvérsias judiciais existentes e ameaçadoras da segurança jurídica. Zulaiê Cobra manifestou-se contra o destaque de Fleury, argumentando que o acúmulo de processos no STF não seria justificativa suficiente para introduzira SEV, emendando: Todos os argumentos da súmula são contra o juiz de primeira instância. São argumentos contra o povo. Porque, de repente, o povo não pode mais reclamar nada, porque lá em cima está fechado. O povo não vai poder mais se colocar. Essa é a verdade. Não sei como podemos nesta Casa defender algo contra o povo, mas estamos defendendo. Só se defendem os tribunais, e os superiores.27 José Roberto Batochio (PDT-SP) também falou contra a SEV, relacionando-a ao imperialismo e à luta de classes: O Banco Mundial abriu uma linha de crédito para a reforma do Poder Judiciário em países da América Latina – Venezuela, Peru e Colômbia. Que interesse teria o Banco Mundial ou o Primeiro Mundo, que se localiza acima do Equador, em reformular as nossas Justiças? Qual é o interesse? Será que eles querem que o nosso miserável, o nosso pobre tenha acesso à Justiça? Ou outros interesses estão animando as forças do capital? [...] O que se quer é fazer uma justiça de primeira classe, a Justiça das causas importantes, a Justiça do Governo, a Justiça dos banqueiros, do capital internacional. Decide-se nos Tribunais Superiores com força de lei para toda a pirâmide judiciária, para toda a administração e para todo o povo brasileiro. [...] Estamos castrando sim o poder Judiciário. Essa é uma medida profundamente antidemocrática. 28 27 Reunião ordinária da Comissão Especial da Reforma do Poder Judiciário (PEC 96-92/A), em 3/11/99. Departamento de taquigrafia, revisão e redação da Câmara dos Deputados, nº 1154/99. p. 21. 28 Idem, p.42-43. 31 Segundo Batochio, o que resolveria o problema do acúmulo de processos no Judiciário e sua consequente lentidão seria a multiplicação do número de juízes e não a diminuição do acesso à justiça. No discurso do ex- presidente da OAB federal e de outros parlamentares de esquerda, a descentralização que caracteriza o sistema judiciário atual é uma de suas principais virtudes, dado que permite aos cidadãos escaparem do cumprimento de normas federais, estaduais e municipais tidas como inconstitucionais. Em casos de ampla repercussão, a soma das ações individuais pode mesmo comprometer políticas gerais. Nesse sentido, num quadro político marcado por uma aliança majoritária quase sempre vitoriosa nas disputas parlamentares, não é de espantar que a minoria política encontre no judiciário descentralizado e no sistema híbrido de controle constitucional, fortes aliados na luta política. Mesmo que conjunturalmente isso faça sentido, não deixa de ser surpreendente ver partidos de esquerda associarem-se à tradição liberal, responsável pela invenção do controle judicial dos poderes políticos, para corrigir os desvios do governo popular, especialmente os ataques frequentes ao direito de propriedade privada. Os representantes do PSDB, PMDB e PFL encaminharam voto favorável ao destaque de Luiz Antonio Fleury, introduzindo novamente a SEV no texto da reforma, enquanto PT e PDT recomendaram o voto “não”, em defesa da descentralização do Judiciário. Ao final, os partidos governistas ganharam a votação no plenário da comissão por 16 a 9. No retomo da SEV ao projeto, acrescentou-se a regra de que, “sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade”. Ou seja, ficaria estabelecido desde a emenda constitucional que, pelo menos no caso do STF, os nove agentes legitimados a propor ADIN poderiam também provocar o tribunal para editar e/ou rever suas súmulas de efeito vinculante. Essa redação foi aprovada pela Câmara dos Deputados. O efetivo cumprimento das súmulas por parte dos órgãos do Judiciário e da administração pública foi outro ponto que preocupou os relatores Jairo Carneiro e Aloysio Nunes. Ambos fizeram constar em seus textos que, do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação para o Tribunal que a houver editado, o qual, julgando-a procedente, anulará 32 o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. Desse modo, garantir-se-ia a força vinculante das súmulas, contra qualquer comportamento rebelde por parte das instâncias inferiores do Judiciário e mesmo da administração pública. No fundo, a introdução desse mecanismo de enforcement das súmulas (que também consta no texto aprovado pela Câmara dos Deputados) revela a temeridade dos autores quanto à real capacidade de os tribunais superiores conseguirem impor suas decisões sumuladas. Em outras palavras, a simples atribuição de efeito vinculante às súmulas deveria ser suficiente para torná-las obrigatórias, mas os mentores da SEV indiretamente admitiram que órgãos judiciários e administrativos podem eventualmente desrespeitar uma ordem judicial superior e, por esse motivo, criaram mais um tipo de recurso judicial: a reclamação pela autoridade da súmula de efeito vinculante. De fato, a hipótese de as instâncias inferiores não se deixarem vincular pelas súmulas não é tão descabida, havendo hoje no Brasil um exemplo claro a alimentá-la. Em exposição feita à comissão especial da reforma do Judiciário, em 4/5/99, o então presidente do STF, ministro Celso de Mello, revelou que o julgamento de uma ação declaratória de constitucionalidade (que tem efeito vinculante) tinha levado a um expressivo aumento do número de reclamações dirigidas ao Tribunal, contra decisões de órgãos inferiores que se negaram a seguir o Supremo Tribunal. Mello se referia à Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 4, patrocinada pelo presidente da República e pelas Mesas do Senado e da Câmara em favor da lei 9.494/97, que disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Segundo o presidente do STF, magistrados e tribunais de vários pontos do país discordaram da decisão do Supremo (que confirmou a constitucionalidade da lei) e concederam tutela antecipada a funcionários públicos que estavam pedindo reajuste de salários na justiça. Ou seja, esses juízes decidiram contra a lei e contra a decisão do STF. Nos catorze meses anteriores à decisão do Supremo, o Tribunal havia recebido 94 reclamações de preservação de competência e/ou de autoridade de seus julgados. Após a decisão que teve efeito vinculante sobre as instâncias inferiores do Judiciário, o número de reclamações chegou a 224 nos catorze meses posteriores à decisão. Celso de Mello – que falava na 33 ocasião contra a SEV – argumentou então que o efeito vinculante traiu sua finalidade de diminuir o número de processos na corte suprema, pois acabou criando outros novos. Segundo o ministro, vale dizer: o efeito vinculante gerou uma consequência diametralmente oposta àquela que se pretendia. Pretendia-se, com essa medida, a supressão, ou pelo menos a redução substancial, do volume de processos do Supremo Tribunal Federal. Mas nessa primeira experiência com o efeito vinculante o que ocorreu foi exatamente uma consequência oposta. Houve, na verdade, a triplicação do número de reclamações ao Tribunal por alegado desrespeito precisamente à autoridade da decisão do Tribunal, que se revestia do efeito vinculante, autorizado pela Emenda Constitucional n.° 3.29 O exemplo discutido por Celso de Mello revela a força do lado difuso do sistema de controle constitucional, que resiste em aceitar que decisões do STF possam predeterminar o entendimento de juízes de primeiro e segundo graus sobre casos semelhantes. A rigor, nenhuma das tantas propostas de concentração do controle de constitucionalidade seria necessária se simplesmente fosse suspenso o princípio difuso, entregando ao STF ou a uma corte constitucional o monopólio dessa tarefa, a exemplo do que ocorre nos países que adotam o modelo concentrado. Mas mesmo os mais
Compartilhar