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106 Unidade II 5 SERVIÇO SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE 5.1 Perspectiva de análise Os assistentes sociais são desafiados em tempos de divisas e de cortes no trabalho, quando é difícil obter meios de sobrevivência. Nesses períodos de crise, é que cresce o desemprego, o subemprego e a luta para se sobreviver no campo e na cidade. É neste contexto da globalização mundial sobre a hegemonia do grande capital bancário e do capital industrial que se testemunha a revolução técnico‑científica, instaurando novos padrões de produzir e gerir o trabalho, ampliando‑se a população excedente, fazendo crescer a exclusão social, econômica, política e cultural entre jovens e crianças, tornando‑os alvo da violência institucionalizada, e tornando a exclusão social contraditoriamente o produto do desenvolvimento do trabalho coletivo. Observa‑se assim que a pauperização e a exclusão são a outra face do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, da ciência e tecnologia e do mercado focalizado. Com esses novos tempos, temos a confirmação de que a acumulação de capital não é parceira da equidade, nem da igualdade, e que causa o agravamento das múltiplas expressões da questão social – a base sócio‑histórica da requisição social da profissão. É possível atestar o crescimento da demanda por serviços sociais nos locais de trabalho, ocorrendo um aumento no âmbito das políticas sociais. O trabalho atravessa e conforma o cotidiano do exercício profissional do assistente social, afetando suas condições e as relações desse trabalho, assim como as condições de vida da população usuária dos serviços sociais. Para enfrentar estes desafios serão recuperados alguns recursos e forças teóricas e ético‑politicas, acumulados a partir da década de 1980, focando o processo de trabalho em que se insere o assistente social – ou seja, a prática do Serviço Social – e as alternativas ético‑politicas que se colocam hoje ao exercício e à formação profissional crítica e competente. Para pensar no Serviço Social na contemporaneidade, é necessária muita atenção sobre o mundo atual, para decifrá‑lo e participar de sua recriação. Isso é preciso para garantir uma sintonia do Serviço Social com os termos atuais e romper com uma visão endógena e focalista. Deve‑se alargar os horizontes, olhar os movimentos das classes sociais e do Estado. Por esse motivo, um dos maiores desafios do assistente social que vive no presente é desenvolver a capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas, sendo capaz de preservar e efetivar direitos a partir das demandas. Enfim, ser um profissional propositivo e não apenas executivo. O assistente social não é apenas um trabalhador burocrático que cumpre horários. Seu exercício profissional requer muito mais, sendo necessário que esse profissional tenha competências para propor, Unidade II 107 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL negociar e defender seus projetos e seu campo de trabalho. Porém, toda ação do assistente social precisa estar embasada, cabendo aos profissionais se apropriarem das possibilidades e desenvolvê‑las, transformando seus projetos e frentes de trabalho. Desta forma a conjuntura não condiciona unidirecionalmente as perspectivas profissionais, mais impõe limites e possibilidades, sempre existentes no campo de ação dos sujeitos, para a apropriação das possibilidades. Essa compreensão é muito importante para se evitar uma atitude fatalista do processo histórico. É preciso também evitar outra perspectiva: o messianismo profissional, uma visão heroica do Serviço Social que reforça unilateralmente a subjetividade dos sujeitos e a sua vontade política sem confrontá‑la com as possibilidades e limites da realidade social. Olhar para fora do Serviço Social é necessário para se romper com uma visão rotineira, que acaba por impedir que se vislumbrem possibilidades inovadoras para a ação, tendo assim uma visão ilusória e desfocada da realidade que conduz às ações inócuas. O segundo pressuposto é entender a profissão hoje como tipo de trabalho na sociedade, pois desde 1980 o Serviço Social vem se afirmando como uma profissão particular inscrita na divisão social e técnica do trabalho coletivo da sociedade. As mudanças históricas acabam hoje alterando tanto a divisão do trabalho na sociedade quanto sua divisão técnica no interior das estruturas produtivas. Lembrete Como o Serviço Social se apresenta como uma especialização do trabalho na sociedade, não foge aos determinantes, exigindo apreender os processos macroscópicos que atravessam todas as especializações. O Serviço Social como trabalho supõe o aprendizado da chamada “prática profissional”, que pode estar ligada pelas relações entre o Estado e a sociedade civil, ou seja, pelas relações entre as classes de tal sociedade. Aceita‑se que a profissionalização do Serviço Social surge por meio de uma tecnificação de filantropia, a partir do discurso de alguns pioneiros e de algumas literaturas especializadas, ocorrida mesmo durante a época da reconceituação. Porém, o Serviço Social torna‑se profissão a partir do momento em que se atribui a ele uma base técnico‑científica das atividades de ajuda e filantropia. A Constituição é institucionalização do Serviço Social como profissão na sociedade, dependendo de uma ação progressiva do Estado na regulamentação da vida social, quando ela passa a administrar e gerir os conflitos de classe e pressupondo, assim, a relação entre capital e trabalho. Embora disponha de um Código de Ética e sua regulamentação seja a de um profissional liberal, o profissional do Serviço Social é um trabalhador especializado que vende a sua força de trabalho, ocorrendo compra e venda de seu serviço especializado, fazendo assim com que o Serviço Social ingresse para o universo da mercantilização. 108 Unidade II A reprodução deste trabalho especializado na sociedade atendendo às necessidades sociais tem o valor de uso de uma utilidade social. Porém, como os assistentes sociais participam também como trabalhadores assalariados do processo de produção e redistribuição da riqueza social, seu trabalho tem um efeito na redistribuição da mais‑valia. 5.2 A globalização e sua influência no contexto social Desde os primórdios, a natureza humana tem passado por inúmeras transformações no que se refere ao seu desenvolvimento. O que podemos perceber é que essas transformações não são isoladas, estando agregadas a fatores que cercam o homem, pois devemos lembrar que o ser humano é biopsicossocial6, e também procuram atender às respostas vislumbradas pelo coletivo; no entanto, algumas vezes essas respostas não atingem a maioria, atendendo a interesses particulares. A espécie humana vive em constante transformação, caracterizando‑se por isso como ser não estático, e as mudanças que nela ocorrem são as contrapartidas das necessidades humanas. Este retorno provoca o desenvolvimento da espécie e de suas relações em uma forma geral. É importante ressaltar que quando se fala em desenvolvimento não podemos colocá‑lo como verdade absoluta a todos, visto que cada um pode entender de maneira diferente o mesmo objeto, e pode também perceber os resultados de uma forma peculiar. O que se pode afirmar de modo geral é o fato de que todos os grupos ou grande parte deles agem para suprir e melhorar as condições de seu dia a dia. Toda transformação é precedida por ideias, pois o homem é um ser teleológico7, sendo que primeiro nasce a ideia e depois a concretização da ação. Segundo Dupas (2006, p. 29), “as ideias apresentam anseios humanos e exercem um poder decisivo na história”. Um aspecto que altera significadamente o cotidiano do homem é a globalização. Ela não pode ser vista isoladamente ou de forma temporária, mas como um fenômeno acrescido de muitos acontecimentos e sempre fundamentado no capitalismo; em linhas gerais, os fatores sócio‑históricos influenciam diretamente a globalização. Há muitos fatores que colaboram para o seu crescente desenvolvimento,e o mais marcante está sustentado na economia, que por sua vez é refletido na política, na cultura e principalmente no aspecto social. Outra característica da globalização é a interação global, marcada pela quebra de fronteiras, unificação econômica, acentuação das desigualdades, avanço da tecnologia, pesquisas e uma economia pautada no capitalismo desenfreado e na lógica do lucro. É considerada um fenômeno capitalista e complexo que começou na época dos descobrimentos e se desenvolveu a partir da Revolução Industrial. Mas o seu conteúdo não foi notado por muito tempo, e hoje muitos economistas analisam a globalização como resultado do pós Segunda Guerra e reflexo da consolidação do capitalismo. 6 Relativo aos fatores biológicos, psicológicos e sociais. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/default. aspx?pal=biopsicossocial>. Acesso em: 18 set. 2012. 7 “1 Teleologia: Filos. Teoria das causas finais; conjunto de especulações que têm em vista o conhecimento da finalidade, encarada de modo abstrato, pela consideração dos seres, quanto ao fim a que se destinam. 2 Dir. Estudo especulativo da causa, da essência, alcance ou fim das normas legais. 3 Biol. Interpretação das estruturas dos seres em termos de finalidade e utilidade. 109 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL Considera‑se que foi durante o período mercantilista, entre os séculos XV e XVIII, que se deu a origem da globalização. Foi quando ocorreu a queda dos custos de transporte marítimo e a burocracia das relações políticas europeias. O grande aumento no fluxo de força de trabalho entre os países e continentes foi também um dos marcos do período. Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, houve o primeiro indício da globalização das comunicações: o pacote cultural ideológico dos Estados Unidos incluía várias edições diárias de “O Repórter Esso”, uma síntese noticiosa de cinco minutos rigidamente cronometrados, a primeira de caráter global, transmitido em 14 países do continente americano. Alguns economistas defendem o fato de que os principais beneficiários da globalização são os grandes países emergentes, com importantes economias de exportação, grande mercado interno e cada vez maior presença mundial. Na atual conjuntura, a globalização é a mais pura expansão capitalista e uma ordem mundial que está mais do que solidificada. Embora ainda seja vista por uma maioria como algo prejudicial, possui também muitos aspectos positivos. Podemos citar as novas tecnologias – como a internet, que nos permite uma maior facilidade comunicativa entre os indivíduos de todo o mundo – e a inclusão de mercadorias, serviços, tecnologias e pessoas, a expansão do mercado, os avanços na medicina, as pesquisas científicas etc. Tudo isso ocorre de forma globalizada, como o próprio nome já diz, e de forma simultânea Além disso, essa quebra de fronteiras da economia está intensificando o comércio internacional. Contudo, não podemos deixar de destacar que a globalização também acentuou um crescimento desigual, por procurar atender principalmente aos interesses capitalistas. Os hábitos de consumo de quase todos os povos do mundo estão sendo profundamente alterados, consequentemente levando o governo a rever suas políticas econômicas. Nesse cenário globalizado, os países não podem se limitar ao mercado interno, pois precisam alavancar seu desenvolvimento econômico. Tal constatação é hoje admitida inclusive na China, que até pouco tempo atrás foi o maior exemplo de economia fechada no mundo e é hoje campeã de captação de investimentos estrangeiros, em busca de um mercado de 1 bilhão de consumidores exacerbados e que, por características peculiares nem sempre elogiáveis, pode lançar produtos com grande poder de competição no mercado externo. Tal expansão visa aumentar os mercados e, portanto, os lucros, que é o que move a arena dos mercados. A guerra é cada vez mais econômica e o campo de batalha é o mercado mundial, altamente globalizado. A invasão atual muitas vezes se dá instantaneamente, on‑line, pelas redes mundiais de computadores. Segundo alguns cientistas políticos, a globalização é o movimento sob o qual se constrói o processo de ampliação da hegemonia econômica, política e cultural ocidental sobre as nações. As consequências da globalização colocam em segundo plano questões relacionadas ao coletivo. Não é permitida uma participação consciente do indivíduo no interior das suas sociedades, pois é visto como consumidor, como lucro certo, e não como cidadão ativo, consciente de seus direitos e 110 Unidade II deveres. Tal perspectiva fere diretamente os direitos da cidadania em um Estado Democrático de Direito, intensificando a exclusão social de uma maneira geral. Diante de tudo que foi colocado, resta‑nos uma questão: em um mundo globalizado, no qual se busca uma unidade sedimentada no mercado, com especificidades que não são consideradas, que se desregulamenta e não se governa, e principalmente, onde os sujeitos de direito não são reconhecidos como polos ativos nas decisões, é ainda possível reconstruir e organizar uma cidadania plena e participativa? Os impactos sociais da globalização econômica no âmbito brasileiro têm como significado: • a redução de despesas públicas que seriam destinadas a setores como saúde e previdência; • a flexibilização de direitos trabalhistas; • o desemprego estrutural e tecnológico; • o aumento da desigualdade entre aqueles que estão em situação de riqueza e pobreza. Nos é imposta uma lógica de globalização competitiva; logo, temos uma cidadania competitiva. Há um excesso de acumulação de riquezas em choque com os excessos de pobreza e miséria, e as consequências desse contexto dizem respeito à violência generalizada em todas as sociedades humanas. Mesmo com a criação de mecanismos que permitam a subsistência humana, é visível que quanto mais se produz e o mercado cresce, mais se gera especulação, tráfico de drogas e armas, produção de morte, corrupção etc. O que temos, é a real necessidade de urgentes reformas. Estas deverão ser coerentes e equilibradas para um desenvolvimento científico e tecnológico favorecedor do desenvolvimento social da humanidade em geral. Observação A educação tem um importante papel nessa tarefa, a de adequar esta realidade que chamamos de globalização às necessidades humanas, não anulando o cidadão, mas promovendo‑o e compreendendo sua real importância diante desse cenário. Diante do problema da formação da cidadania em um ambiente globalizado, é importante trabalhar abordagens que não sejam apenas voltadas para as trocas comerciais, já que todas as estruturas das sociedades são atingidas, configurando‑se novos padrões de comportamento social – o que acaba inevitavelmente influenciando a formação e participação da cidadania em um Estado Democrático de Direito. Essa nova arquitetura do Estado‑Nação tem sido muito influenciada e moldada por uma outra consequência vinda do crescimento tecnológico da modernidade globalizada: a falta completa de parâmetros conceituais para explicar os acontecimentos vivenciados no presente, pois o significado de 111 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL conceitos clássicos, como liberdade, igualdade, soberania, entre outros, já não é mais algo absoluto ou estático, por terem sido relativizados em uma época de insegurança e incerteza permanente, visto que fomos “lançados num vasto mar aberto, sem cartas de navegação e com todas as boias de sinalização submersas e mal‑visíveis” (BAUMAN, 1994, p.94). A globalização está associada diretamente à questão do progresso. Mas fica uma pergunta: o que é exatamente progresso? Dentro de uma visão capitalista, progresso é o mercado gerando produtos para consumo, não se preocupando com as questões sociais e sim com o lucro. Mas o que é o progresso quando compromete a cidadania, a identidade e o próprio ser humano? Devemos lembrar que uma nação justa se faz de estruturas bem solidificadas, nos níveis social e econômico e nos campos da saúde, educação,segurança, lazer e cidadania, que juntos formam o que chamamos de dignidade humana. Embora não se trate de um fenômeno recente, a globalização foi instituída mais fortemente com a visão capitalista; porém, como profissionais, não podemos perceber este fenômeno sem trabalharmos na melhora das necessidades humanas de forma geral, de modo a garantir os direitos e promover o bem‑estar a todos. 5.3 Cidadania e ideologia Para o estudioso Milton Santos (2006), a cidadania sempre esteve fortemente ligada à noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado e participar de modo direto ou indireto na formação do governo e na sua administração, seja ao votar (direto), seja ao concorrer a cargo público (indireto). Após um período de vinte anos de ditadura no Brasil, foi instaurada a “Constituição Cidadã”, com a finalidade de restaurar o Estado Democrático de Direito. Em outubro de 1988 a atual constituição foi sancionada, representando os direitos humanos e de cidadania. De acordo com o autor Paulo Martinez (1996), em seu livro Direitos de cidadania: um lugar ao sol, nos termos da Lei Maior, o princípio da cidadania foi erigido à condição de um dos mais altos valores da sociedade. É fato que o homem, ao nascer, já é dotado de direitos fundamentais políticos e sociais, tornando‑o assim um agente da vida social muito além de mero instrumento de produção e objeto. No decorrer das relações humanas, o homem foi se transformando em “coisa”, por meio do trabalho assalariado e da escravidão. Para que se estabelecesse o conceito de aplicação universal, foram superadas profundas diferenças. Durante a Revolução Francesa, o problema foi resolvido teoricamente com a separação dos direitos humanos daqueles de cidadania, como aparece expressamente no título do documento “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, aprovado em 1789. Diante de tal documento, identifica‑se o conceito atual de que todos os homens são iguais perante a lei, ainda que sejam legítimas algumas diferenças. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi estabelecida pela ONU, porém, a maior dificuldade ainda é a concretização desses direitos, ou seja, converter a teoria em prática. 112 Unidade II Para Covre (2003, p. 32) “cidadania é um processo em constante movimento na sociedade, portanto não é estática. Ela só pode ser compreendida em seu todo se estiver vinculada aos níveis econômicos, políticos, sociais e culturais”. Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem de todas as potencialidades da realização humana aberta pela vida social em cada contexto histórico determinado (COUTINHO, 2005, p. 41). A burguesia (capitalistas) era e ainda é privilegiada, o que dá abertura para o desequilíbrio social e, portanto, a desigualdade. Dessa forma, somente usufruiriam de plena cidadania aqueles que possuíssem fortunas. Já aos menos favorecidos restaria a submissão à sociedade, sendo excluída dela. Aos operários caberia apenas o próprio corpo como propriedade. Fica muito visível nas ideias de Locke o pensamento liberal, a exploração e a elitização mediante as relações sociais. Já Rousseau (apud COVRE, 2003, p. 52) se opôs à Locke no que diz respeito a cidadania, especialmente por não se referir ao exercício da cidadania restritamente a aspectos políticos e econômicos. Afirma que o contexto social seria legitimado desde que fosse unânime, considerando que cada indivíduo deveria abrir mão de seus direitos individuais em favor do coletivo, abdicando da liberdade, porém fazendo parte do todo social. Rousseau também argumenta sobre a democracia direta e participativa, afirmando que como soberano, o povo ativo era cidadão e os que exerciam a soberania passiva eram considerados súditos. Kant (1727–1804) foi um dos intelectuais que abordou o conceito, localizando o Estado de Direito e posteriormente a cidadania. Para ele, o desenvolvimento da sociedade estava associado à área jurídica como legitimadora dos direitos dos cidadãos. Ainda expunha que diante do fato da história não ser estática, leis também deveriam acompanhar esse movimento, adequando‑se aos tempos e demandas dos cidadãos. No século XIX, Karl Marx (1818‑1883) criticou insistentemente o modo de produção capitalista. Questionou a exploração e a apropriação da classe burguesa em relação a outros grupos sociais. Narrou e denunciou a exploração dos trabalhadores frente ao capital. A teoria marxista, ainda hoje, contribui para a compreensão da sociedade burguesa e do modo capitalista. Marx resgatou a necessidade da tomada de consciência e da organização da classe operária, rompendo com a exploração e formando uma nova ordem social, na qual todos os indivíduos teriam os mesmos direitos, sendo finalmente reconhecidos como cidadãos. Podemos verificar que existem grandes diferenças entre os conceitos de cidadania apresentados pelos pensadores mencionados, o que clarifica o fato de que cidadania não é estática e acabada, pois segue o movimento histórico e em constante processo de reconstrução. Marshal, em sua teoria contemporânea (1967) define cidadania como o conjunto de Leis ordenadas pelo Estado. Nomeando a cidadania como “tipologia de direitos”, menciona que ela é composta por gerações de direitos: civis e políticos, de primeira geração; os sociais como os individuais de liberdade, 113 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL igualdade, propriedade, à vida e à segurança. Já os direitos políticos referem‑se a reuniões, encontros para organizações políticas, bem como as participações políticas e eleitorais. Quanto aos direitos sociais podemos citar trabalho, saúde, moradia, educação, enfim, acesso aos meios básicos de sobrevivência e bem‑estar social. Nota‑se então que a cidadania se dá pelo coletivo; contudo, sua efetivação é mediante os direitos políticos, que formulam as leis. Assim, enfatizamos o que relata Gonçalves (2006, p. 45): Implica a construção de novas relações e consciências, pois o processo de cidadania no mundo contemporâneo está relacionado diretamente à capacidade de desenvolvimento de uma sociedade, que perpassa a defesa dos direitos, isto conquistado através da emancipação dos sujeitos, refletindo no progresso democrático. Entendemos emancipação como tomada de consciência, com sentimento de pertencimento como sujeito da própria história, ou seja, construindo suas ações e efetivando (ibidem). Desta forma, se evidencia que não há cidadania sem reivindicações, lutas e espaços de conquistas. De acordo com a Constituição vinculada aos direitos sociais, a cidadania representa direito à vida, igualdade, respeito, dignidade, direitos civis e políticos assegurados. Esses são considerados requisitos básicos para o ser humano. A redemocratização (Nova República) teve início com a Constituição Cidadã de 1988. Foi eleito Fernando Collor de Mello, que representaria um recomeço para a democracia no país, mas devido à falta de governabilidade e à corrupção, sofreu o impedimento. Mobilizações populares surgiram, principalmente dos jovens das grandes cidades. Para Carvalho (2003, p. 25) “o impedimento foi sem dúvida uma história cívica importante”. Esse acontecimento deu a sensação de que era possível exercer algum controle sobre os governantes. A Constituição de 1988 legitimou o aumento dos direitos sociais; porém, na prática, ainda persistem as desigualdades. Embora na lei tenhamos, de um modo geral, definidos direitos e liberdades extensivos a todos os membros da sociedade brasileira, na prática temos cidadãos, de primeira, segunda e terceira classes e mesmo não cidadãos, isto é, indivíduos sem voz, sem espaço e sem nenhum respaldo real nas instituições vigentes (ibidem, p.146). Neste contexto podemos salientar as políticas públicas, que são obrigação do Estado. Vale ressaltar também que por meio da cidadania todo o coletivo sebeneficia, ou seja, seu foco principal é o bem‑estar geral. Não se pode restringir a cidadania apenas às questões de direitos e deveres, mas é preciso explicitar o real sentido da cidadania e o poder que ela exerce em toda a sociedade. Marx e Engels (1965, p. 21) ao conceituarem ideologia, partem de indivíduos reais e não de dogmas. Em uma crítica à ideologia alemã, acusam o sistema Hegeliano de relacionar diretamente a produção 114 Unidade II das ideias, da consciência, à atividade material, como uma linguagem na “vida real”, afirmando que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Atrás do corpo forte do jovem podem se esconder angústias e sofrimentos não imagináveis. No entanto, a ideologia da eterna juventude, da idade, da força e da beleza, do vigor e da coragem, do tempo de gozar e aproveitar a vida, alimentada pela mídia, oculta essa realidade de dor e sofrimento. O grande mercado aposta no jovem e provoca‑lhe apetite de consumo. Esta leitura ideológica da juventude encontra sua base psicológica e biológica no fato que, nesse período, o jovem está descobrindo o próprio corpo e outras implicações. As décadas de 1970 e 1980 trouxeram profundas modificações nessa ideologia, pois os jovens tiveram as portas fechadas para a política e pouco a pouco foram domados pelo regime militar. Já na década de 1990 despontou a ideologia do jovem pós‑moderno, com a ideia de que se deve viver o presente, indo na direção contrária das ideologias anteriores, que exigiam renúncia e luta para a construção de uma sociedade do futuro. A ideologia da década de 1990 renunciou à luta social, mas muito se investiu nos estudos, na fé, na tecnologia e no desenvolvimento. Segundo Libanio (2002, p. 21), ao contrário das décadas de 1960, 1970 e 1980, em que os jovens lutavam politicamente por seus ideais, a década de 1990 é marcada por uma minoria de jovens interessados e preocupados com mobilizações. A sociedade contemporânea é marcada pelo ideal do “ter” em detrimento do “ser”. Isso se impregnou na sociedade, principalmente no sistema educacional, em que há incentivos instrumentais para que se conquistem oportunidades de empregos, por exemplo. Desta forma, a atuação dos jovens no meio social é colocada em segundo plano, despindo‑se de reflexões críticas da realidade e permitindo a reprodução dos problemas existentes. 5.4 Pensando na contemporaneidade Desde o início dos anos 2000, de modo mais significativo, é evidenciado que a acumulação de capital não produz a equidade; pelo contrário, gera o aumento do abismo entre as classes socialmente instituídas, não podendo, portanto ser sinônimo de igualdade. Um dos fatores causados por esta intensificação das desigualdades é o agravamento das expressões da questão social, base para a atuação profissional. Por esse motivo é crescente o número de pessoas que recorrem aos serviços sociais de diferentes instituições e para diversas finalidades, visto que as necessidades tornam‑se múltiplas aos que se encontram na situação de excluído. Os desafios na atuação do assistente social são diversos, pois como discursado trabalha‑se na perspectiva de justiça social e igualdade não somente entre os pares, mas a todos os cidadãos. No entanto, para chegar a este grau de compreensão, inúmeros profissionais se mobilizaram, principalmente a partir da década de 1980, para discutir as fontes teóricas, metodologias e ações da profissão. 115 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL Para melhor compreensão é interessante pensar nestes movimentos como formas de recursos e forças teóricas e ético‑politicas acumulados a partir daquele momento, abordando especificamente o processo de trabalho no qual se insere o assistente social – ou seja, a prática do Serviço Social – e as alternativas ético‑politicas que se colocam ao exercício e à formação profissional crítica e competente. Não há como pensar e refletir a profissão de Serviço Social na contemporaneidade sem que o indivíduo esteja atento às transformações societárias, pois nosso foco de trabalho é o indivíduo que faz parte da sociedade, que por sua vez está em constante mudança, ou seja, recriação. Quando enfatizamos a questão da constante qualificação profissional, estamos falando em romper com a visão endógena, focalista e imediatista, alargando os horizontes; identificar os movimentos das classes sociais como ação legítima; ser um profissional que vise à efetivação dos direitos ao sujeito social e que não reproduza os interesses dos detentores de poder. Uma das maiores dificuldades enfrentadas atualmente pelo assistente social é desenvolver a capacidade de olhar criticamente para a realidade, pois ela é bastante vasta e particular, podendo mudar de acordo com quem olha. Em uma visita domiciliar, por exemplo, o profissional não pode se ater somente às “aparências”, devendo conhecer de fato o cotidiano dos sujeitos de sua ação e se afastar de percepções não técnicas. O que se pede a todas as profissões, não excluindo a nossa, é a construção de propostas de trabalho criativas, possibilitando preservar e efetivar direitos a partir das demandas. Em suma, ser um profissional propositivo e não apenas executivo, pois esta simples diferenciação faz uma incrível diferença na prática, favorecendo o sujeito e a profissão em si. O assistente social não é apenas um trabalhador burocrático, executor e acrítico, cumpridor de horários e protocolos. É um profissional que deve ter muito claras diversas noções: • quanto a projetos, deve saber: — elaborar; — gerenciar; — negociar; — implementar; — avaliar; — finalizar. 116 Unidade II • quanto à profissão, deve conhecer: — Código de Ética Profissional; — Lei de Regulamentação da Profissão; — deliberações e resoluções; — literaturas que promovam a criticidade. • quanto às legislações, deve conhecer: — Constituição Federal (ao menos os artigos pertinentes); — Estatuto da Criança e do Adolescente; — Estatuto do Idoso; — Sistema Único da Assistência Social; — Política Nacional da Assistência Social; — Lei Orgânica da Assistência Social; — Lei Orgânica da Saúde; — Sistema Único da Saúde; — Política Nacional do Idoso; — Leis direcionadas às pessoas com deficiência; — Lei Maria da Penha etc. Assim, não basta o profissional ter sido um aluno com notas excelentes, pois isso não garante sua prática com a mesma notoriedade. É de suma importância o período de estágio aos discentes, já que é neste momento que conseguirá colocar em prática seus estudos e observará como se dá a profissão em seu cotidiano, sendo necessária a interligação entre teoria e prática. Também espera‑se que o profissional tenha competências subjetivas como dinamismo e carisma, saiba atender a todos, tenha boa escrita e use expressões técnicas. Todos estes requisitos se fazem necessários para que o assistente social tenha subsídios científicos para sua atuação, reforçando a necessidade de haver a articulação técnica. Portanto, não deve existir a presença do “achismo”, imediatismo, pensamento comum etc.; seus argumentos devem estar embasados 117 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL e amparados legalmente/literalmente, cabendo aos profissionais se apropriar das possibilidades e com os sujeitos desenvolvê‑las, transformando seus projetos e frentes de trabalho para atender ao público de sua ação. Desta forma, a conjuntura não condiciona unidirecionalmente as perspectivas profissionais, mas impõe limites e possibilidades, sempre existentes no campo de ação dos sujeitos, para a apropriação dessas possibilidades. Essa compreensão é muito importante para se evitar uma atitude fatalista do processo histórico. Observemos o exemplo: • Empresa: o assistente social participa do processo de reprodução da força de trabalho e da criação da riqueza social, fazendo assim parte do trabalho coletivo e produtivo da mais‑valia; • Estado: o assistente social participa no campo da prestação de serviços, podendo também participar do processode redistribuição da mais‑valia, por meio do fundo público. Pode também atuar na realização de direitos sociais de cidadania e na gestão da ordem pública, contribuindo para o processo de democratização. Se indagarmos sobre o papel do Serviço Social no processo de produção e reprodução da vida social, temos um ponto de partida, a não priorização do mercado ou esfera privilegiada; para a compreensão da vida social temos também a visão da produção da riqueza, tida na era do capital como “natural”, por se assemelhar àquelas da natureza, de difícil possibilidade de alteração por parte da ação humana. Sendo assim, as desigualdades sociais sempre existiram, porém as manifestações extremas de pauperização podem ser minimizadas por meio de uma melhor distribuição dos produtos do trabalho. Trabalhando em outra perspectiva, observamos que os homens têm necessidades sociais e privações a satisfazer, buscando isso por meio do trabalho. Esses objetos que hoje se formam na sociedade burguesa são produtos e mercadorias do capital. Os homens procuram pela satisfação de suas necessidades, então trabalham e estabelecem relações entre si. Mas toda reprodução estabelece relações sociais de indivíduos, grupos e classes sociais, que envolvem poder, sendo relações de lutas e confrontos entre classes e segmentos sociais. 6 SERVIÇO SOCIAL E INSTRUMENTOS LEGAIS O debate sobre o trabalho do profissional de Serviço Social exige a retomada da Lei nº 8662/93 que dispõe sobre a profissão, e em particular dos artigos 4º e 5º. É necessário aqui diferenciar as competências das atribuições privativas do Serviço Social. Ao nos referirmos às competências de uma profissão, estamos demarcando ações que podem ser exercidas por determinado profissional, devido à sua qualificação, mas que não são exclusivas de seu campo de atuação. Já as atribuições se referem às atividades privativas que são exclusivas de certa profissão, tendo o poder e a prerrogativa de exercê‑las. 118 Unidade II Iamamoto (2001) ressalta que para compreender as atribuições privativas do Serviço Social pautadas na Lei, é necessário elucidar o que são unidade, matéria e área de Serviço Social, conceitos constantes no artigo 5º, incisos de I a IV. A autora afirma que o que determina a prerrogativa do profissional de Serviço Social em suas funções é o fato de estas se referirem à unidade, matéria ou área de Serviço Social. Pode‑se observar, por exemplo, o inciso II do artigo 5º – “planejar, organizar e administrar programas e projetos em Unidade de Serviço Social” são atividades que podem ser exercidas por qualquer profissional; o que marca a especificidade do Serviço Social é a referência a uma Unidade de Serviço Social (IAMAMOTO, 2001). A definição do que são unidade, matéria e área de Serviço Social é uma tarefa da categorial profissional e não do texto legal, remetendo à determinação do que seria o projeto profissional, já que o texto legal apenas o representa em termos jurídicos. Em termos etimológicos, unidade se refere a um conjunto de profissionais ou determinado órgão de uma entidade; matéria alude a certo assunto, objeto ou substância; e área diz respeito ao campo de atuação, no caso o do assistente social (ibidem). O exercício profissional e seu projeto profissional são determinados pelas características sócio‑históricas de cada época, e para pensar o Serviço Social é necessário compreender a construção e configuração da realidade brasileira. Estes são também constituídos pela atuação dos profissionais, que os determinam a partir de sua ação individual e coletiva (ibidem). Pensar o projeto profissional supõe articular essa dupla dimensão: de um lado, as condições macrossocietárias que estabelecem o terreno sócio‑histórico em que se exerce a profissão, seus limites e possibilidades; e, de outro lado, as respostas técnico‑profissionais e ético‑políticas dos agentes profissionais nesse contexto, que traduzem como esses limites e possibilidades são analisados, apropriados e projetados pelos assistentes sociais (ibidem. p. 11). Nosso contexto, marcado pela globalização dos mercados, da produção, e dos bens culturais; pela centralização da riqueza, do poder, da propriedade por países e grupos sociais; além de uma política neoliberal, de recuada do Estado, de perdas nas políticas e direitos sociais, determina o aprofundamento das desigualdades, da pauperização, das misérias sociais, da desregulação do mercado e das relações de trabalho. Como sujeito social coletivo, a categoria profissional, articulada em seu projeto ético‑político referente a um projeto societário, deve apresentar respostas ao contexto (ibidem). Iamamoto (ibidem) avalia que a categoria profissional apresentou resposta crítica ao tradicionalismo e conservadorismo historicamente vivido no Serviço Social. Observando‑se a produção teórica e a formação acadêmica, têm‑se avanços significativos nas últimas décadas, bem como na importante demarcação legal de princípios éticos com a redefinição do Código de Ética do Serviço Social na década de 1990, pela Resolução CFESS nº 273/93. A autora destaca alguns princípios como: • o reconhecimento da liberdade como valor ético central, que requer o reconhecimento da autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais e de seus direitos; • a defesa intransigente dos direitos humanos contra todo tipo de arbítrio e autoritarismo; 119 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL • a defesa, aprofundamento e consolidação da cidadania e da democracia – da socialização da participação política e da riqueza produzida. O Código de Ética de 1993 apresenta normatizações para a relação entre profissionais, com as instituições e usuários, pautando os direitos e responsabilidades do assistente social no âmbito dos valores de justiça social e liberdade, já iniciadas no Código de 1986. Determina ainda a democracia como valor ético‑político central, compreendendo‑a como possibilidade única de vivência da equidade e liberdade, além de espaço para conquista de direitos sociais e cidadania em uma sociedade burguesa (CFESS, 1993). O Código de Ética de 1986 já apresentava avanços ao determinar a não neutralidade do profissional e ainda outro perfil técnico, que extrapola o âmbito da execução, caracterizando competência técnica, teórica e política ao profissional (CFESS, 1993). Juntamente com a lei de regulamentação da profissão, já abordada, e as diretrizes curriculares propostas pela ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social), o Código de Ética forma os pilares legais do projeto profissional (IAMAMOTO, 2001). Conforme já exposto, estes instrumentos legais não dão conta de explicitar e aprofundar o projeto ético‑político profissional, não sendo nem esta a função que lhes cabe, pois os instrumentos legais garantem legitimidade ao projeto profissional. 6.1 Instrumentalidade com categoria para a atuação do Serviço Social É necessário que você, no seu processo de formação acadêmica, compreenda a categoria instrumentalidade e o que ela representa para o Serviço Social. O Serviço Social é uma profissão especializada na divisão sociotécnica do trabalho e desenvolve seu exercício profissional respondendo às demandas colocadas à profissão. A instrumentalidade, como você já sabe, não é um conjunto de instrumentos técnico‑operativos que o assistente social utiliza no cotidiano para desenvolver seu exercício profissional. Instrumentalidade é a capacidade adquirida pelo profissional de Serviço Social durante o processo de atuação de planejar e estabelecer objetivos com a finalidade de alcançar resultados, utilizando conhecimentos adquiridos: ético‑políticos, teórico‑metodológicos e técnico‑operativos. O Serviço Social é fruto do antagonismo e da divisão da classe burguesa e do proletariado. Sua gênese está inteiramente ligada ao quadro sócio‑histórico desenvolvido com o firmamento do capitalismo‑monopolista e do agravamento da questão social. Como forma de abrandar a questão social,foi instituída uma modalidade de atendimento, ou resposta do Estado, traduzida sob forma de políticas públicas e sociais. Assim se criou o espaço para a atuação do Serviço Social. 120 Unidade II Foi necessário um profissional que implementasse essas políticas sociais dentro da divisão sociotécnica do trabalho. Guerra (2005, p. 18) explica que: [...] com a complexificação da questão social e como decorrência do tratamento que o Estado atribui, recortando‑a como questões sociais a serem atendidas pelas políticas sociais, instituiu‑se um espaço na divisão sociotécnica do trabalho para um profissional que implementasse as políticas sociais, contribuindo para a produção e reprodução material e ideológica da força de trabalho (melhor dizendo, da sua subjetividade como força de trabalho). A instrumentalidade possibilita ao assistente social a mediação necessária para analisar sua trajetória sócio‑histórica de funcionalidade, vinculada à classe dominante e ao Estado, e modificar‑se dando sentido histórico ao seu exercício profissional. Para isso, ele busca a criticidade para romper com a concepção de instrumento de racionalização de conflitos. Mediante a apropriação dessa mediação, há uma busca da profissão por inserir‑se como um ramo na divisão do trabalho. É uma categoria que presta serviços especializados e que adquire condições de preparo técnico e intelectual por meio da instrumentalidade. Guerra (2005, p. 23) nos elucida sobre essa questão, ao dizer que: [...] nessa perspectiva pode‑se pensar a instrumentalidade do trabalho do assistente social como propriedades/capacidades historicamente construídas e reconstruídas pela profissão, como uma condição sócio‑histórica do Serviço Social, em três níveis: 1. no que diz respeito à sua funcionalidade ao projeto reformista da burguesia (reformar conservando); 2. no que se refere à sua peculiaridade operatória, ao aspecto instrumental‑operativo das respostas profissionais (ou nível de competência requerido) frente às demandas das classes, donde advém a legitimidade da profissão; 3. como uma mediação que permite a passagem das análises macroscópicas, genéricas e de caráter universalista às singularidades da intervenção profissional, em contextos, conjunturas e espaços historicamente determinados. A instrumentalidade pode ser utilizada como mediação. Ela permite ao assistente social compreender os contextos e as conjunturas sociais, visando à conscientização das massas e às transformações das relações sociais dos próprios homens. Contribui para desvendar as representações e as relações capital‑trabalho, rompendo com o processo conservador do exercício profissional e atuação do Serviço Social tradicional. A instrumentalidade possibilita ao assistente social evitar a dicotomia entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, colabora para que os profissionais não acreditem na falsa ilusão de que, no exercício profissional, a teoria é uma coisa e a prática, outra. 121 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL Para concluir, observemos que a instrumentalidade do Serviço Social não se limita ao desencadeamento de ações instrumentais, nem ao exercício de atividades imediatas: ela permite apreender a totalidade dos processos sociais e atuar sobre eles. 6.1.1 As competências do trabalhador assistente social e suas inserções em espaços socioinstitucionais Sem extrair o Serviço Social das condições e relações que lhe conforma – as relações capitalistas de produção, o que implicaria a sua desistorização – reconhece‑se que o trabalho profissional ocorre na concretização de um processo que tem como matéria as diferentes e múltiplas expressões da questão social. Um processo de trabalho exigente, portanto, de definição clara de objeto, objetivos, instrumentos e técnicas de atuação, além de referências teórico‑metodológicas e ético‑políticas, que dão sustentação aos elementos indicados. Em termos de sua finalidade na realidade brasileira, encontra‑se em acordo com seu projeto ético‑político profissional, a defesa, ampliação e consolidação dos direitos sociais, da democracia e da cidadania, cuja materialidade implica ações concretas, viabilizadoras do acesso dos sujeitos aos serviços e programas sociais (COFI/CFESS, 2008, s/p). Esta citação traz elementos importantes ao pensarmos o trabalho do assistente social. Observa‑se a necessidade do Serviço Social ter arrolado claramente seu objeto, seus objetivos, instrumentais, bem como sua referência teórico‑metodológica e ético‑política. Esses elementos ou dão sustentação ao projeto ético‑político, ou são os meios de materialização deste. É essencial, a priori, retomar o âmbito da inserção do assistente social na divisão social do trabalho. A constituição do projeto profissional e a determinação da prática profissional do assistente social devem passar pela compreensão da inserção deste profissional no mercado de trabalho, em sua divisão sócio‑técnica, o que compreende o assalariamento deste profissional e a existência de um contrato de trabalho, delimitando condições concretas de sua realização. Esta análise traz elementos históricos, e se distancia de reflexões que não compreendem os desafios cotidianos postos ao assistente social e/ou confundem prática profissional com militância política (IAMAMOTO, 2004). As condições de execução do trabalho profissional se dão no âmbito da compatibilidade dos objetivos da instituição, pública ou privada, com aqueles do projeto ético‑político do Serviço Social; os recursos disponíveis, salário, carga horária, contrato de trabalho, entre outras condições que inferem sobre a prática profissional e organizam o trabalho. Portanto, as condições objetivas e subjetivas, como espaço de intervenção, conjuntura histórica, capacitação teórico‑metodológica e escolhas determinam a prática do Serviço Social (GUERRA, 2005). Deve‑se ainda ter em mente as contradições decorrentes do surgimento do Serviço Social como resposta às demandas do capital. Assim, à medida que o Serviço Social afirma seu projeto ético‑político no âmbito da conquista de autonomia, liberdade, igualdade e direito dos trabalhadores, formam‑se tensões entre a legitimidade 122 Unidade II de sua existência e suas competências técnicas e o projeto ao qual se propõe. Será que a sociedade capitalista demandaria a existência de uma profissão que trabalhe contra suas bases fundantes? Designaria competências e atribuições a uma categoria profissional que teria por objetivo o fim real das desigualdades sociais? Sendo a sociedade formada por classes diversas e por projetos societários igualmente diversos, configura‑se um espaço de embates que permite outros traçados e objetivos para o projeto profissional e para definição do trabalho profissional. Entretanto, é essencial compreender a contradição entre o que a categoria profissional hegemonicamente vem propondo para o Serviço Social como prática e o que a sociedade hegemonicamente demanda do Serviço Social. O Serviço Social tem como objeto as múltiplas expressões decorrentes da questão social e vivenciadas no cotidiano, o que podemos compreender como vulnerabilidades. Seu trabalho se desenvolve por meio de programas, projetos, serviços, benefícios de enfrentamento às diversas vicissitudes da vida social – seja em virtude de classe, gênero, raça ou geração (mediações da questão social). Compreendendo o caráter contraditório da dinâmica social e consequentemente do espaço de intervenção do Serviço Social, torna‑se imprescindível o entendimento de que o trabalho do profissional pode contribuir para uma perspectiva que transforme a realidade ou que a mantenha. O simples delimitar de ações com as classes pauperizadas não indica que se está fazendo um trabalho que contribua efetivamente com estas classes, pois pode se estar reafirmando um trabalho de caráter assistencialista e moralista que delimita a pobreza como um problema individual e de valores, e a assistência como um favor. O atendimento às vulnerabilidadesse dá nos mais diversos espaços do setor público e privado, bem como no terceiro setor. Destacamos como maior campo de atuação do Serviço Social a área da saúde, embora outros campos também demonstrem expressividade, como a assistência social e o campo sócio‑jurídico, o universo das empresas, a áreas da educação, habitação e o poder legislativo. Outros espaços de inserção profissional são as assessorias, consultorias, pesquisas e planejamentos. A inserção nos espaços públicos municipais, estaduais e federal normalmente se dão por meio de concursos públicos e regimes estatutários. Já a entrada no setor privado se dá por meio de processos seletivos. Os regimes de contratação têm se alterado, mesmo no âmbito do Estado, devido à flexibilização do mundo do trabalho. Não é possível aqui nos atermos às particularidades de cada um destes espaços institucionais. Iremos pontuar, como exemplo, o postulado pelo CFESS como as competências para atuação do assistente social. Este documento apresenta um perfil necessário ao profissional, indicando que ele deve ser capaz de compreender os determinantes das desigualdades sociais, abrangendo os condicionantes socioeconômicos, culturais e políticos. Devem ser competências do profissional: a capacidade de compreender de maneira totalizante os processos de produção e reprodução das relações sociais; a compreensão da realidade brasileira, em suas particularidades; o entendimento dos significados sociais da profissão; e a identificação das demandas da sociedade, buscando o enfrentamento da questão social. (CFESS, 2009). Este perfil deve aglutinar ainda a: 123 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL [...] leitura crítica da realidade e capacidade de identificação das condições materiais de vida, identificação das respostas existentes no âmbito do Estado e da sociedade civil, reconhecimento e fortalecimento dos espaços e formas de luta e organização dos(as) trabalhadores(as) em defesa de seus direitos, formulação e construção coletiva, em conjunto com os(as) trabalhadores(as), de estratégias políticas e técnicas para modificação da realidade e formulação de formas de pressão sobre o Estado, com vistas a garantir os recursos financeiros, materiais, técnicos e humanos necessários à garantia e ampliação dos direitos (ibidem, p.17). Dentre as competências interventivas específicas do profissional na assistência social destacamos: • intervenção junto a indivíduos, famílias e grupos buscando o acesso destes aos bens, serviços, equipamentos e direitos, compreendendo o atendimento às necessidades básicas e aumento do acesso aos direitos sociais; • potencialização da participação popular, reivindicações e defesas dos direitos nos espaços de controle social e os demais espaços de participação popular (CFESS, 2009). Destaca‑se o papel crescente do assistente social nos processos de construção dos conselhos de saúde, assistência social, tutelares, de direitos (criança e adolescente, idoso, pessoa com deficiência etc.) (IAMAMOTO, 2001). Ele possui papel importante também na publicização, na divulgação de informações e na formação, inclusive técnica, no sentido de capacitar a população, em particular seu público usuário, para a participação nesses espaços. Deve‑se ressaltar que o papel do assistente social não pode se restringir aos conselhos quando abordamos a questão da participação. Os trabalhos de base, de fomento da organização e mobilização popular, de caráter educativo, devem ser essencialmente retomados. A participação popular por si só não delimita uma perspectiva progressista, pois os espaços de participação são espaços de disputa, o que pode representar, por exemplo, vícios populistas no trato da coisa pública (IAMAMOTO, 2001). É necessária uma prática que viabilize e potencialize a gestão de bens e serviços para os usuários, buscando atender a essas demandas e pautando uma gestão democrática e participativa, num âmbito intersetorial e interdisciplinar (CFESS, 2009). O profissional deve garantir em seu trabalho a aproximação com o usuário, não se relacionando com este como vítima, mas como sujeito com potencial transformador (IAMAMOTO, 2004). Deve estar atento às demandas dos usuários, não pautando ações impositivas, mas mediando o processo de compreensão das necessidades das classes empobrecidas por meio de um olhar crítico, o que significa trabalhar junto com a comunidade na reflexão e entendimento de sua realidade. O Código de Ética profissional pauta a liberdade, a defesa dos direitos humanos e a cidadania, indicando assim o rumo profissional a ser seguido, devendo ser materializado nas ações cotidianas do assistente social. Assumir a defesa intransigente dos direitos humanos traz, como contrapartida, a recusa a todas as formas de autoritarismo e arbítrio. Requer 124 Unidade II uma condução democrática do trabalho do Serviço Social, reforçando a democracia na vida social. Afirmar o compromisso com a cidadania exige a defesa dos direitos sociais tanto em sua expressão legal, preservando e ampliando conquistas da coletividade já legalizadas, quanto em sua realidade efetiva. À medida que os direitos se realizam, alteram o modo como as relações entre os indivíduos sociais se estruturam, contribuindo na criação de novas formas de sociabilidade, em que o outro passa a ser reconhecido como sujeito de valores, de interesses, de demandas legítimas, passíveis de serem negociadas e acordadas. Portanto, colocar os direitos sociais como foco do trabalho profissional é defendê‑lo tanto em sua normatividade legal, quanto traduzi‑los praticamente, viabilizando a sua efetivação social (IAMAMOTO, 2004, p. 78). O movimento de municipalização da política de assistência social, bem como sua consolidação por meio do PNAS (2004) que propõe o SUAS, e ainda outros instrumentos legais, NOB/SUAS; NOB/RH; Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, entre outros, configuram uma verdadeira revolução no âmbito da política pública de assistência, esta exige do profissional um perfil caracterizadamente de gestor, formulador e executor de políticas públicas. Iamamoto (2001, pp. 36‑37) sintetiza este perfil: O processo de descentralização das políticas sociais públicas – com ênfase na sua municipalização – requer dos assistentes sociais – como de outros profissionais – novas funções e competências. Estão sendo requisitos (sic) e devem dispor de competências para atuar na esfera da formulação e avaliação de políticas, assim como do planejamento e gestão, inscritos em equipes interdisciplinares que tensionam a identidade profissional. Os assistentes sociais ampliam seu espaço ocupacional para atividades relacionadas à implantação e orientação de conselhos de políticas públicas, à capacitação de conselheiros, à elaboração de planos de assistência social, acompanhamento e avaliação de programas e projetos. Tais inserções são acompanhadas de novas exigências de qualificação, tais como o domínio de conhecimentos para realizar diagnósticos socioeconômicos de municípios e para a leitura e análise dos orçamentos públicos identificando recursos disponíveis para projetar ações; o domínio do processo de planejamento; a competência no gerenciamento e avaliação de programas e projetos sociais, a capacidade de negociação, o conhecimento e o know‑how na área de recursos humanos e relações no trabalho, entre outros. A política neoliberal traz à tona também outro desafio à profissão, o corte em relação às políticas sociais sob justificativas orçamentárias. Coloca‑se, então, como desafio ao profissional e às instituições formativas, a aquisição de conhecimentos e habilidades necessários para negociar orçamentos que viabilizem a consecução do projeto ético‑político por meio dos serviços, programas, projetos sociais. (IAMAMOTO, 2001). 125 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL As competências técnicas do assistente social circulam em torno do atendimento individual e coletivo aos usuários, da formulação de projetos, programas,benefícios e serviços, da gestão de políticas sociais e outras ações nos setores público e privado – nas mais diversas instituições e abrangendo distintas áreas. Compreende‑se a necessidade de destacar aqui o compromisso com o projeto ético‑político da profissão, portador de ideais como justiça social, democracia e igualdade. O profissional, além de compreender os processos técnicos pelos quais intervém na realidade, deve essencialmente conseguir analisar se estes instrumentais e se sua intervenção de maneira geral vêm respondendo a seu projeto profissional. Para tanto, o aprofundamento teórico e a prática das pesquisas são essenciais. Para um compromisso com usuário é necessário romper as rotinas e a burocracia estéreis, potenciar as coletas de informações nos atendimentos, pensar a reorganização do plano de trabalho tendo em vista as reais condições de vida dos usuários. Em outros termos, identificar como a questão social vem forjando a vida material, a cultura, a sociabilidade, afetando a dignidade da população atendida. Enfim, é o conhecimento criterioso dos processos sociais e sua vivência pelos indivíduos sociais que poderá alimentar propostas inovadoras, capazes de propiciar o reconhecimento e atendimento às efetivas necessidades sociais dos segmentos subalternizados, alvos das ações institucionais (IAMAMOTO, 2001, p. 32). Iamamoto (2002, 2005) corrobora nesse sentido com o entendimento de que entre as atividades essenciais da prática profissional está a pesquisa, não como um momento separado, mas como atividade incorporada à prática. A compreensão da questão social e suas expressões no cotidiano do trabalho, nas relações das famílias, na economia regional etc., devem fazer parte essencial da atuação do assistente social, pois não há como planejar uma atuação efetiva sem o conhecimento da realidade. Diante desta constatação, indica‑se que o método do materialismo histórico‑dialético traz recursos profícuos para análise da realidade, visto que compreende os diversos determinantes dela, a realidade em sua totalidade, bem como suas singularidades e historicidade. Dá conta de apreender “as relações entre trabalho, questão social e o Serviço Social” possibilitando a elaboração de “estratégias que possam contrarrestar a programática neoliberal em favor das necessidades e interesses da coletividade” (IAMAMOTO, 2004, p. 30). Guerra (2005, p. 23) indica ainda que: [...] considerando a relativa fragilidade teórica e analítica da profissão, decorrente da insuficiência de pesquisa e de conhecimento sobre a realidade, sobre o próprio Serviço Social, sobre as demandas e usuários e sobre as novas funções assumidas pela profissão, o que aparece é uma certa ausência de “criatividade” e de instrumentos técnicos para intervir. Conclui‑se que é primordial na compreensão do trabalho do assistente social e em sua inserção em qualquer espaço sócio‑institucional o entendimento de que seu objeto de ação é a questão social e suas 126 Unidade II expressões, delimitadas em suas mediações e particularidades. Os objetivos e instrumentais devem ser construídos de acordo com a realidade a ser trabalhada, mas devem ter por horizonte certo o projeto ético‑político profissional. E, essencialmente, o profissional deve ter capacidade teórico‑analítica para pesquisar a realidade apresentada e determinar ações que efetivamente caminhem para a superação da desigualdade social e das vulnerabilidades dos usuários, numa perspectiva de ampliação de acessos, de direitos sociais e de participação popular. 6.2 Trabalho profissional: dilemas para reflexão Na atuação do profissional, diversos são os questionamentos, dificuldades e dilemas. Serão aqui destacados alguns deles. A prática terapêutica no âmbito do Serviço Social gera dúvidas, angústias e embates. As demandas atendidas no cotidiano profissional são, em geral, “recebidas” na individualidade de cada usuário atendido, sendo apreendidas ainda com as tristezas, ansiedades e alegrias particularizadas por cada um. A busca pelo atendimento efetivo destas demandas provoca a procura por diferentes referenciais teóricos e a criação de instrumentais e técnicas, o que acabou por resultar em algumas práticas, como as de cunho terapêutico. O texto “Práticas terapêuticas no âmbito do Serviço Social: subsídios para aprofundamento do estudo”, elaborado pelo CFESS (COFI) e aprovado pelo Conselho Pleno do CFESS em junho de 2008, debate as competências profissionais do assistente social, especificando suas delimitações em relação ao trabalho terapêutico e destacando a história deste debate, fazendo referência aos fatos ocorridos no âmbito da profissão na década de 1990, marcados pela regulamentação da profissão e pelas reflexões promovidas pelo conjunto CFESS/CRESS8. O texto faz parte do contexto de veto às práticas terapêuticas pelo assistente social promovido pelo CFESS. Essas práticas, segundo pesquisa realizada pelo CFESS, atuam no âmbito da reintegração social, agindo em favor de famílias e indivíduos em situação de sofrimento e crises referentes à depressão, estresse, alcoolismo etc. Seus objetivos são: trabalhar a autoestima, promover o autoconhecimento, auxiliar na superação de problemas, contribuir para a garantia de acesso aos recursos da comunidade etc. E quem fornece os fundamentos teórico‑metodológicos para isso são as áreas de psicanálise, antropologia cultural, teoria da comunicação, teoria construtivista, entre outras. A Resolução nº 569/2010 do CFESS veta o exercício de atividades de cunho terapêutico pelo profissional de Serviço Social, retomando as determinações do Código de Ética do Serviço Social para delimitar a irregularidade desta prática. O Código de Ética, bem como as diretrizes curriculares da ABEPSS, deixam clara a vinculação da prática profissional com um projeto societário regulado na superação da 8 A gestão do CFESS 1996‑1999 e 1999‑2000 produziu debates sistematizados pela COFI/CFESS e pela Profa. Dra. Marilda Iamamoto que em 2002 originaram a publicação de “As atribuições privativas do assistente social em questão”. O CRESS 7ª Região produziu debates em 2002 que resultaram em duas publicações, “Serviço Social Clínico e o projeto ético‑político profissional” e “Atribuições Privativas do assistente social e o ‘Serviço Social Clínico’”. Estas reflexões e suas sistematizações trazem referências fundamentais, segundo o texto, para a reflexão deste tema. 127 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL exploração de classe, gênero ou etnia. Questiona‑se, portanto, se as práticas terapêuticas e clínicas dão conta de compreender que as agruras individuais são expressões da questão social. É importante desenvolver a capacidade de ver, nas demandas individuais, as dimensões universais e particulares que elas contêm. O desvelamento das condições de vida dos sujeitos atendidos permite ao assistente social dispor um conjunto de informações que, iluminadas por uma perspectiva teórica crítica, lhe possibilita apreender e revelar as novas faces e os novos meandros da questão social que o desafia a cada momento no seu desempenho profissional diário. É da maior importância traduzir esta reflexão no “tempo miúdo do trabalho cotidiano”, como afirma Yazbek (apud IAMAMOTO, 2001, pp.27‑28): [...] pois a questão social está aí presente nas diversas situações que chegam ao profissional como necessidades e demandas dos usuários dos serviços: na falta de atendimento às suas necessidades na esfera da saúde, da habitação, da assistência, nas precárias condições de vida da famílias, na situação dos moradores de rua, na busca do reconhecimento dos direitos trabalhistas e previdenciários da parte dos trabalhadores rurais, na violência doméstica, entre inúmeros outros exemplos. Importa ter clareza que a análise macroscópica sobre a questão social [...] expressa uma realidade que se materializa na vida dos sujeitos. Este reconhecimento permite ampliar as possibilidades de atuação e atribuir dignidade ao trabalhodo assistente social, porque ele não trabalha com fragmentos da vida social, mas com indivíduos sociais que condensam a vida social. Iamamoto (2002) destaca ainda a ausência de uma formação para a prática terapêutica no âmbito do Serviço Social, inclusive nos marcos legais. O veto às práticas terapêuticas pelo profissional de Serviço Social é alvo de contestações por profissionais da área, como se verifica, por exemplo, na mídia virtual. Profissionais se reuniram para apresentar contraposição à resolução do CFESS por meio de manifestações como abaixo‑assinados. Estes profissionais argumentam que há assistentes sociais com especializações na área, e que deve ser garantida sua legitimidade profissional; que defender a prática terapêutica é defender o pluralismo na profissão; além de que o Serviço Social já possuiria caráter terapêutico ou que deveria buscar outras fundamentações para garantir o devido olhar à subjetividade; entre outros argumentos (COFI/CFESS, 2008). O perigo a se evitar é a não percepção da individualização de questões de caráter macrossocial vivenciadas pelos usuários do Serviço Social, como o fato de que a pobreza, a violência doméstica e a quimiodependência, por exemplo, têm determinantes macrossociais que se particularizam no cotidiano individual. A existência de classes sociais, a reestruturação do mercado e do caráter dado às políticas do Estado, a subordinação historicamente vivenciada pelas mulheres e a crise ética são condicionantes de uma realidade social; abordar estas questões como problemáticas vividas isoladamente pelo usuário x 128 Unidade II ou pela família y distorce a realidade, causando impacto nas políticas, programas ou projetos que são criados apenas para dar respostas paliativas. Não se está aqui negando a individualidade, a subjetividade, as questões de ordem psicológica presentes nestas problemáticas, ou mesmo o atendimento individual oferecido pelo Serviço Social; apenas busca‑se situar sua prática. Observação É importante destacar que cabe ao profissional de Serviço Social o acolhimento devido do usuário, compreendendo o estabelecimento de ambiência acolhedora, bem como o recebimento das demandas, necessidades e possibilidades do usuário. Alguns questionamentos podem ser feitos na contribuição desta reflexão: o profissional de Serviço Social possui formação e/ou competência técnica para trabalhar com abordagens terapêuticas? Caso o profissional não faça a leitura das questões de ordem macro, algum outro profissional o fará?9 A não compreensão da questão social e suas mediações possibilitam um entendimento concreto da realidade? Possibilita a busca de uma prática voltada para a conquista de direitos sociais, autonomia, superação de situações de exploração e discriminação, objetivos pautados em nosso projeto ético‑político? Esses questionamentos podem servir para guiar outras dúvidas referentes à prática profissional. No âmbito das empresas, a atuação do assistente social normalmente se vincula a outras áreas que não especificamente o Serviço Social, como a de recursos humanos. Por vezes o profissional não reconhece em sua atuação profissional as competências do assistente social, se identificando com os cargos que ocupam (como as coordenadorias) e não mais com sua formação profissional – o que indica falta de reflexão e identidade profissional (IAMAMOTO, 2002). O universo das empresas coloca o trabalhador numa relação mais direta com a contradição capital/trabalho, e neste espaço as relações de exploração e o papel de controle social demandado ao profissional são mais explicitados. Cabe destacar, retomando o pressuposto de que os processos de trabalho organizam o trabalho do assistente social, que as possibilidades de autonomia dadas ao profissional são de modo geral menores. Apesar de hegemonicamente pautar um projeto profissional transformador da realidade social, o caráter de inexorabilidade apresentado pelo contexto atual pode provocar apatia e descrença nos profissionais diante de novas propostas, mais democráticas, voltadas para uma perspectiva de direitos. 9 Esta abordagem deve pautar inclusive o atendimento individual, já no processo de acolhida, não se culpabilizando o sujeito individualmente pela vulnerabilidade apresentada, em que as reflexões a serem realizadas com este, bem como os encaminhamentos dados, expressam o entendimento da questão social e de suas mediações, obviamente de maneira pedagógica. 129 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL Pode‑se pensar nas dificuldades que se apresentam quando a proposta é um trabalho de desenvolvimento comunitário: a baixa adesão da população, as dificuldades e mesmo resistências à participação e o descrédito em relação ao proposto. As transformações societárias que aguçam a centralidade da racionalidade capitalista sob todas as relações, inclusive as das políticas sociais, e a não existência de propostas significativas que contraponham esta racionalidade impulsionam a descrença e as alternativas ao capitalismo, resultando na renovação e modernização das práticas conservadoras e as transvestindo‑as com uma nova roupagem, pois estas parecem as únicas possíveis (GUERRA, 2005). Ao se propor o novo, o alternativo, não podemos desconhecer as dificuldades que se apresentarão, sob pena de não resistirmos a elas ou retomarmos práticas antigas apenas revestindo‑as. A profissionalização do Serviço Social tem como um dos empecilhos para sua efetivação a predominância do “instinto e da experiência pessoal” no embasamento da prática em detrimento de um referencial teórico‑metodológico (GUERRA, 2005, p. 23). A falta de aprofundamento teórico durante a formação profissional e, posteriormente, a não continuidade desta, por meio da formação contínua, fragilizam o trabalho do assistente social, inclusive no que se refere à sua colocação diante das demais categorias. É necessário ter clara a importância da qualificação teórica, apesar do trabalho eminentemente prático do Serviço Social. Devem ser evitados também o teoricismo, o militantismo e o tecnicismo (IAMAMOTO, 2005). Embora a fundamentação teórico‑metodológica seja essencial para o exercício profissional, o descolamento deste embasamento teórico com a realidade provoca um “teoricismo estéril”, incapaz de possibilitar a análise de contexto que deve fundamentar a prática (IAMAMOTO, 2005). As particularidades vividas devem ser observadas, analisadas sob o referencial teórico; este será infértil se permanecer no nível da abstração, não possibilitando o conhecimento do concreto. Pesquisas e análises sobre as demandas da assistência social, os projetos, programas propostos etc. devem fazer parte do cotidiano de trabalho. O militantismo ou politicismo refere‑se às posturas de crítica e engajamento político que não se sustentam teoricamente nem em termos de competência profissional. As relações entre engajamento político e profissão foram fontes de inúmeros equívocos desde o movimento de reconceituação no âmbito do Serviço Social. Este, como profissão, tem uma necessária dimensão política por estar imbricado com as relações de poder da sociedade. O Serviço Social dispõe de um caráter contraditório que não deriva dele próprio, mas do caráter mesmo das relações sociais que presidem a sociedade capitalista. Nesta sociedade, o Serviço Social inscreve‑se em um campo minado por interesses antagônicos, isto é, interesses de classes distintos e em luta na sociedade (IAMAMOTO, 2005, p. 54). A atuação que abrange somente aspectos técnicos é insuficiente como prática profissional por ser descompromissada com seu caráter transformador, além de ser portadora de uma visão pouco crítica 130 Unidade II da realidade. A prática profissional, portanto, deve abranger os aspectos técnicos, políticos e teóricos de maneira integrada, objetivando o conhecimento profundo da realidade. Com o objetivo de analisar a compreensão dos conteúdos estudados, propomos a seguinte questão reflexiva: como o ServiçoSocial se situa na reprodução das relações sociais? É neste contexto que o Serviço Social atua, mas cabe ressaltar que hoje se faz necessário seu atrelamento com os movimentos sociais, com o projeto ético‑político e profissional, e também com um novo projeto societário. Desta forma, a principal conquista é a recusa do profissional em colocar‑se como “agente técnico puramente executivo”, passando a partir de então a pleitear atividades em níveis de gestão e planejamento das políticas públicas, obtendo assim o status de profissional intelectual e afastando‑se da subalternidade inculcada na gênese profissional. Em consonância com Iamamoto (2008) no que tange ao projeto profissional, contata‑se que sua origem é fruto da organização dos assistentes sociais atrelada à crescente qualificação teórica e do aprimoramento da sua dimensão política, construído no exercício do debate e participação política. Parafraseando Netto (2005), o projeto sinaliza um compromisso com a competência, cuja base só pode ser o aprimoramento intelectual, complementando ainda que o projeto prioriza uma nova relação sistemática com os usuários dos serviços oferecidos pelos AS: é o seu componente estrutural o compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população, incluída nesta qualidade a publicização dos recursos institucionais, instrumento indispensável para a sua democratização e universalização e, sobretudo, para abrir as decisões institucionais à participação dos usuários. Torna‑se portanto fundamental a articulação da categoria com outros segmentos profissionais que compartilhem os mesmos ideais societários, sobretudo aqueles que visem à diminuição das desigualdades sociais. Netto também observa que o PEPP traduz uma autoimagem da profissão, em que valores são elencados e constituem a legitimidade da profissão. O projeto ético‑político profissional delimita e prioriza funções, demanda prerrogativas ao exercício da profissão e constrói normas para a postura profissional entre os colegas de trabalho e os usuários de seus serviços. Desta forma, segundo Iamamoto (2008), o projeto profissional pressupõe uma dupla dimensão: de um lado as condições macrossocietárias, e, do outro, as respostas sócio‑históricas, ético‑políticas e técnicas. Assim, evidencia‑se a indissociabilidade de projetos societários dos profissionais, tendo na historicidade a identidade e força da intervenção profissional. Evidentemente que as implicações ético‑políticas conformam tais cenários profissionais, uma vez que o caráter interventivo pressupõe uma reflexão teórica capaz de concretizar os princípios do atual Código de Ética da profissão. Simões (2009), em seu livro Curso de Direito do Serviço Social, relata que com a regulamentação da profissão em 1993, a partir da Lei nº 8.662, o Serviço Social normatiza procedimentos e a natureza do exercício profissional, sendo‑lhe instituídos deveres e assegurando atribuições privativas, cabendo destacar as seguintes de atribuição exclusiva: 131 TEORIAS PARA O SERVIÇO SOCIAL • realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre a matéria do SS; • treinar, avaliar e supervisionar diretamente estagiários do SS; • fiscalizar o exercício profissional por meio dos conselhos regionais e federal. Salienta‑se aqui que o Código de Ética de 1993 ampliou politicamente a atuação profissional. Os valores éticos fundamentados no compromisso com o usuário, favorecendo a liberdade, contribuem para a consolidação da democracia, por meio da construção da cidadania, da ampliação da justiça e da diminuição da desigualdade social. Decorrente dos princípios firmados na Constituição de 1988, o Código de Ética normatiza o exercício profissional de modo a favorecer que as prerrogativas constitucionais alcancem aqueles a quem se destinam, vindo então a conceber a assistência social como direito subjetivo público. Cabe destacar, conforme Simões (2009), que o Código de Ética tem em seu pórtico a instituição de alguns princípios fundamentais de ordem democrática, expressando‑se desta forma no cotidiano profissional às múltiplas dimensões da assistência social, sobretudo a política, que objetiva estabelecer princípios como: liberdade, defesa dos direitos humanos, exclusão da arbitrariedade e do preconceito, equidade, justiça social e o favorecimento do pluralismo político. O autor ainda acrescenta que o presente código vai além de um instrumento corporativista, estabelecendo princípios constitucionais. Em sua estrutura, o Código de Ética retifica o exercício profissional mediado por três tipos de normas: • orgânicas (competências e poderes); • éticas (direitos e deveres); • procedimentais (procedimentos sobre enquadramentos, apuração e penalização). Portanto, o trabalho do assistente social requer atualmente retomar o debate e aprofundar a questão da profissão estar situada na divisão do trabalho coletivo, com foco em seu significado como um processo que reproduz as relações sociais. Por outro lado, depara‑se com a crescente mercantilização do trabalho do assistente social, a condição de trabalhador assalariado acaba por subordinar o exercício profissional aos “ditames do trabalho abstrato e os impregna dos dilemas da alienação”, fragilizando a implementação do projeto profissional. Assim, o dilema entre causalidade e teleologia determina ao profissional momentos de estrutura e de ação, tendo a capacidade de articulação, leitura histórica e singularidade do sujeito como quesitos fundamentais do assistente social na atualidade. 132 Unidade II 6.2.1 O Serviço Social e a prática institucionalizada As instituições figuram como elementos inseparáveis do Estado, pois ambos consubstanciam fortes elos que os vinculam, haja vista o aporte consensual que os legitimam. O Estado, em face das necessidades da sociedade, busca sua organização, controle e regulação por meio das instituições que representam aparelhos funcionais, cuja pretensão é dar respostas às necessidades sociais de uma determinada época, seguindo a dinâmica social existente. Nesse contexto, insere‑se a assistência social como prática institucionalizada e legitimada socialmente. Assim sendo, é pertinente e extremamente relevante e necessário que o assistente social conheça o espaço sócio‑ocupacional em que se insere. Conhecer como se configura a instituição, suas normas, hierarquia e rotinas propiciará ao profissional estabelecer critérios para sua atuação no sentido de viabilizar direitos sociais. Lembrete Lembre‑se, portanto, do caráter antagônico inerente às instituições, uma vez que elas se constituem instrumentos ou aparelhos de controle da sociedade. Daí ser imprescindível aguçar o entendimento nesse âmbito para que o assistente social, munido de conhecimento teórico‑metodológico, técnico‑operativo e ético‑político, possa contribuir no processo de superação das demandas dos usuários das instituições mediante construção de estratégias e táticas criativas e propositivas em uma perspectiva de direitos. Em relação à tríade de conhecimento teórico‑metodológico, técnico‑operativo e ético‑político, esta por si só resolveria a efetivação do exercício profissional na perspectiva de transformação da realidade? O conhecimento em si, somente ele, pode propiciar mudanças significativas no cotidiano profissional? Aventurar‑se pela literatura na área do Serviço Social, bem como de ciências como a Sociologia, filosofia, entre outras, pode contribuir para elucidação dessas questões, além de revelar novos caminhos. Nesse contexto, o assistente social direciona sua práxis profissional considerando sua relativa autonomia, pois esse profissional decide os meios como realizar as atividades, os instrumentos técnico‑operativos e as estratégias a serem implementadas, porém depende do aval das estruturas ou das instituições em que se insere para execução do seu trabalho. A título de ilustração, quando da construção de projetos, o assistente social depende da apreciação
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