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~DE- IFCH 1 MAO~CI..2..: 1 . _E . 53(/-1- 33 025 A.;J. '1/ o 3 ----rO[KJ 1<$cro yg :>/) 08/0g '~~j=01'} _ Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor Aloisio Teixeira Vice-Reitora Sylvia Vargas Forum de Ciência e Cultura Coordenador Carlos Antonio Kalil Tannus Editora UFRJ Diretor Carlos Nelson Courinho Editora Executiva Cecília Moreira Coordenadora de Produção Janise Duarte Conselho Editorial Carlos Nelson Courinho (presidente) Charles Pessanha Diana Maul de Carvalho José Luis Fiori José Paulo Nerro Leandro Konder Virgínia Fontes ~ MARSHALL SAHLINS (> (> (> CULTURA NA PRATICA .• (> (> (> Tradução Vera Ribeiro ~G-- ~ ~ ~ EDITORA UFRJ 2004 UNICAMP Biblioteca - IFCH 13 COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO: o setor transpacífico do "sistema mundial" * A economia do desenvolvi-gente 1 Em 20 de novembro de 1839, o reverendo John Williams, da London Missionary Sociery, foi morto pouco depois de desembarcar na baía de Dil- lon, em Eromanga, uma das ilhas do arquipélago das Novas Hébridas (a atual Van uata). Já famoso como "o Apóstolo da Polinésia", Williams foi des- ta forma abruptamente transformado em mártir por alguns melanésios, numa vingança cega motivada pelas ofensas que lhes teriam sido infligidas ante- riormente por comerciantes brancos de sândalo - ou pelo menos assim reza a descrição piedosa do evento, a qual, tanto ao charná-lo de "assassinato" quanto ao qualificar os melanésios de "selvagens", inscreve caracteristica- mente os atos dos ilhéus nas noções dos ocidentais. A tradição historiográfica de tais incidentes melhorou desde então, mas não a ponto de se livrar da vir- tude cristã de compreender os melanésios com base na alegação de que não teriam atirado a primeira pedra. Como se eles não pudessem ter suas próprias razões nem sua própria violência. Não vem ao caso que o significado indígena " * Originalmente publicado em Proceedings o/ the British Academy, n. 74, 1988. o CULTURA NA PRÁTICA da morte de Williams - que, em seus detalhes cerimoniais, faz lembrar estra- nharnente a queda do capitão Cook no Havaí -, não vem ao caso que esse si- gnificado local pareça ter sido o de um deicídio.ê Em quase todos os relatos europeus desses acontecimentos, os ilhéus nada têm a fazer senão reagir à presença determinante do estrangeiro." Naturalmente, estou evocando a sina do missionário em termos me- tafóricos, a fim de me integrar ao coro antropológico de protestos contra a idéia de que a expansão global do capitalismo ocidental, ou do chamado sistema mundial, transformou os povos colonizados e "periféricos" em objetos passivos de sua própria história, e não em seus autores, e de que, por meio de relações econômicas tributárias, transformou da mesma maneira suas cul- turas em bens adulterados. Em Europe and the People Without History, Eric Wolf é impelido a dizer que é preciso prestar atenção a essas pessoas, que elas de fato são seres históricos, e são mais do que as "vítimas e testemunhas silenciosas" de sua própria subjugação (1982, p. x). Wolf foi levado a dizê-lo porque, nos tempos mais embriagantes da teoria do sistema mundial, nada parecia restar à antropologia senão fazer a etnografia global do capitalismo. A antropologia seria o destino manifesto. Outras sociedades eram vistas como . já não possuindo suas próprias "leis de movimento"; tampouco haveria nelas qualquer "estrutura" ou "sistema", exceto os fornecidos pela dominação capi- talista-ocidental." Mas, não seriam porventura essas idéias a forma acadê- mica da mesma dominação? É como se o Ocidente, depois de haver invadido materialmente a vida de outras sociedades, agora se dispusesse a lhes negar intelectualmente qualquer integridade cultural. A teoria do sistema mun- dial converte-se na expressão superestrutural do próprio imperialismo que ela despreza - na autoconsciência do próprio sistema mundial. No entanto, por que acontece o mesmo tipo de coisa no livro magistral de Wolf? Em vão buscaríamos nele uma análise sistemática de como os povos locais tentam organizar aquilo que os aflige em seus próprios termos cultu- rais. Wolf nos convida a ver os mundurucu e os meo como agentes históricos, mas o que de fato ele nos mostra é como "foram arrastados para o sistema mais amplo, para sofrer seu impacto e se tornar agentes dele' (1982, p. 23. Grifo meu). Um problema evidente é a nostalgia que Wolf parece sentir da <:> 446 <:> COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o teoria marxista-utilitarista favorecida por muitos teóricos do sistema mundial. Refiro-me à idéia da cultura como reflexo do "modo de produção", um con- junto de aparências sociais assumidas por forças materiais que, de algum mo- do, possuem sua própria racionalidade e necessidade instrumentais.? Daí pro- vém a contradição que neutraliza todas as boas intenções antropológicas. Por um lado, Wolf defende o papel histórico ativo das pessoas, o que só pode sig- nificar sua maneira de moldar as circunstâncias materiais que lhes são im- postas de acordo com suas próprias concepções; por outro lado, ele advoga uma teoria cultural que presume que as concepções das pessoas são uma função de suas circunstâncias materiais. Entretanto, precisamos levar mais a sério o entendimento marxista da produção como apropriação da natureza no interior e através de uma forma determinada de sociedade. Decorre daí que, em si mesmo, um modo de pro- dução não especifica nenhuma ordem cultural- a menos e até que sua própria ordem, como produção, seja culturalmente especificada. A produção, es- creveu Marx, é a reprodução de "um modo de vida definido" (Marx e Engels, 1970, p. 32). Um sistema de produção é a forma relativa de uma necessidade absoluta, um modo histórico particular de atender às exigências humanas. Por isso, a apropriação cultural que as pessoas fazem de condições externas que elas não criam, e das quais não podem escapar, constitui o próprio prin- cípio de sua ação histórica. Construídos em relação às forças da natureza - e, em geral, também em relação às pressões provenientes de outras socieda- des -, todos os esquemas culturais conhecidos pela história foram produto, justamente, desse circunstância pragmática. Não se trata de sugerir, por- tanto, que desconheçamos as forças devastadoras modernas, mas apenas que seu curso histórico deve ser visto como um processo cultural. O capitalis- mo ocidental pôs à solta no mundo imensas forças de produção, coerção e destruição. Todavia, precisamente por serem irresistíveis, relações e bens do sistema mais amplo também passam a ocupar lugares dotados de significado na ordem local das coisas. Em conseqüência, as mudanças históricas na so- ciedade local também estão em continuidade com o esquema cultural su- plantado, enquanto a nova situação vai adquirindo uma coerência cultural de natureza distinta. Assim, teremos de examinar como os povos indígenas <> 447 <> Ó CULTURA NA PRÁTICA lutam por integrar sua experiência do sistema mundial em algo que é mais lógico e ontologicamente inclusivo: seu próprio sistema do mundo. O problema está em como evitar a redução costumeira do contato intercultural a uma espécie de física, por um lado, ou de teleologia, por outro. Refiro-me à percepção comum da economia global, em termos simples e me- cânicos, como forças materiais, e ao corolário constituído pelas descrições das histórias locais como crônicas enfadonhas de corrupção cultural. É verda- de que, menos de um século depois da "descoberta" das ilhas Sandwich pelo ca- pitão Cook, empreendedores norte-americanos estavam apoderando-se das terras e transformando os havaianos num proletariado rural. Mas não é ver- dade que o curso da história havaiana, desde 1778, tenha sido regido por esse resultado, ou que tenha consistido meramente na substituição das relações polinésias por relações burguesas. Ao contrário, o arquipélago assistira a um período significativo de desenvolvimento indígena quando os chefes go- vernantes se apropriaram das mercadorias ocidentais para seus própriospro- jetos hegemônicos - ou seja, para as concepções tradicionais de sua própria divindade. Em 1810, as ilhas foram unificadas pela primeira vez, num reino governado por Kamehameha L Se, depois disso, o Havaí sucumbiu às pres- sões imperialistas, foi precisamente por que os efeitos do comércio exterior foram ampliados pela sua inclusão em uma competição polinésia por pode- res celestiais. Isso acontece repetidamente na história do mundo moderno: as forças capitalistas materializam-se em outras formas e finalidades, em ló- gicas culturais exóticas muito distantes do fetichismo da mercadoria na- tivo dos europeus (cf Simmons, 1988).6 Portanto, o sistema mundial não é uma física de relações proporcionais entre "impactos" econômicos e "reações" culturais. Os efeitos específicos das forças material-globais dependem das várias maneiras pelas quais elas são mediadas nos esquemas culturais locais. Mais do que uma física planetária, esta é uma história do capitalismo mundial - a qual, além disso, atestará duplamente a autenticidade de ou- tros modos de vida. Primeiro, pelo fato de que a ordem global moderna foi decisivamente moldada pelos chamados povos periféricos, pelas diversas ma- neiras segundo as quais esses povos articularam culturalmente o que lhes es- tava acontecendo. Segundo, e a despeito das terríveis perdas sofridas, a diversi- ó 448 ó ~ COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO Ó dade não está morta. Ela persiste na esteira da dominação ocidental. Aliás, estudiosos respeitáveis afirmam agora que a história mundial mo- derna, desde aproximadamente 1860, foi marcada pelo desenvolvimento simultâneo de uma integração global e de uma diferenciação 10caU Durante muito tempo, antropólogos e historiadores foram iludidos por uma certa mística da dominação ocidental: a idéia pretensiosa de que a expansão mun- dial do capitalismo levaria ao fim de todas as outras formas de história cul- tural. Seria mais sensato, como sugere John Kelly, acrescentar o conceito de "pós-ocidentalismo" à atual moda pós-modernista dos "pós-isrnos" (1988).8 Mas pretendo concentrar-me aqui numa etapa anterior, de meados do século XVIII a meados do século XIX, no intuito de ilustrar como os povos das ilhas do Pacífico e das terras continentais asiáticas e americanas adjacen- tes moldaram reciprocamente o "impacto" do capitalismo e, com isso, o curso da história mundial. Em parte, o título "Cosmologias do capitalismo" provém da observação de que, muitas vezes, nessas ilhas, numa espécie de ho- menagem neolítica à Revolução Industrial, os produtos e até as pessoas do Ocidente foram incorporados como potências nativas. As mercadorias eu- ropéias aparecem aqui como signos de benefícios divinos e dádivas míticas, negociados em trocas e exibições cerimoniais, que são também sacrifícios costumeiros." Daí o interesse local por certos produtos europeus que, por uma lógica motivada do concreto, puderam ser assimilados a idéias nativas de "objetos de valor" sociais ou espécies sagradas. Em contraste com os mercados relativamente restritos no que diz respeito aos meios de produ- ção, ou com os breves booms de mosquetes e outros meios de destruição, os comerciantes europeus no Pacífico freqüentemente constatavam ser essa demanda de artigos de luxo insaciável (Fisher, 1977; M. Sahlins, 1992; Salisbury, 1962; Shineberg, 1967). Observe-se que, do ponto de vista da população nativa, a exploração pelo sistema mundial pode muito bem constituir um enriquecimento do sis- tema local. Mesmo havendo uma clara transferência da força de trabalho para a metrópole, por meio de taxas de câmbio desiguais, os povos do inte- rior passam a adquirir mais produtos de valor social extraordinário com me- nos esforço do que jamais puderam fazer na época de seus ancestrais. Disso Ó 449 Ó <> CULTURA NA PRÁTICA decorrem os maiores banquetes, trocas e sing-sings 10 de que já se teve notícia (cf. Gregory, 1982; Lederman, 1986a; A. Strathern, 1979). E, como isso significa uma acumulação maior de benefícios divinos combinados com poderes sociais humanos, o proc~sso inteiro é um desenvolvimento, nos ter- mos culturais do povo em questão. Não se trata de "atraso" - exceto de um ponto de vista burguês ocidental. Tampouco é apenas "conservadorismo", Não há dúvida de que existe uma continuidade cultural. Mas continuidade não é sinônimo de imobilidade; a rigor, a mais rigorosa continuidade pode consistir na lógica da mudança cultural: "Desenvolvimento neotradicional" talvez fosse o termo apropriado, dados os paradoxos evidentes de atrelar os costumes ao comércio, mas prefiro o neomelanésio improvisado que entreouvi na Universidade do Pacífico Sul, onde a inserção do termo inglês" deuelopmeni' numa frase em pidgin terminou soando (para mim) em algo como "desenvolvi-gente" [develop-manJ. Do ponto de vista do que as pessoas consideram digno dos seres humanos, isso é, de fato, desenvolvi-gente. É uma auto-realização cultural, numa escala e em formas materiais jamais conhecidas até então, mas nem por isso corres- pondentes à simples penetração das relações capitalistas de mercado. É claro que a dependência da economia mundial, que tem suas próprias razões e seu curso, pode vulnerabilizar o desenvolvi-gente local, a mais longo prazo. Mas, outra vez, destino não é história. Nem é sempre tragédia. Os antro- pólogos relatam algumas formas espetaculares de mudança cultural indí- gena que se transformaram em modos de resistência política - em nome da persistência cultural. I 1 Portanto, em resposta a vários impulsos do desenvolvi-gente, os comer- ciantes ocidentais que vasculhavam o Pacífico em busca de valor de troca foram obrigados a anuir às demandas locais de valor de prestígio. Mas isso ocorreu, em última instância, por causa de certos valores de prestígio chineses, dos quais a totalidade do comércio mundial tornara-se refém. Desde a aber- tura do intercâmbio comercial direto com o Ocidente, no início do século XVI, os chineses mostraram-se completamente indiferentes aos produtos europeus, inclusive às maravilhas mais recentes da Revolução Industrial, e recebiam uma quantidade pequena mas preciosa de prata em troca de seus <> 450 <> COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o próprios produtos. Durante o século XVIII, além disso, essa alergia chinesa às mercadorias ocidentais somou-se a uma demanda rapidamente crescente de chá na Grã-Bretanha e nas colônias anglófonas, o que resultou numa enxurrada de prata fluindo para o Oriente - com efeitos reverberantes nas minas de Potosi e, portanto, no tráfico de escravos africanos. 12 Como todos sabem, a Grã- Bretanha só conseguiu superar a balança comercial desfavorável resultante de seu vício em chá, ao infligir aos chineses um vício ainda maior, o ópio importado da índia - um tráfico ilegal que, em 1839, foi respaldado. por uma guerra infame. Dispondo de poucos recursos como esses para em- purrar aos chineses e não tendo muita prata, os americanos e os australianos percorreram o Pacífico à procura de produtos aceitáveis na China. Daí o comércio marítimo de peles do Noroeste da América (no qual os norte-ame- ricanos seguiram os ingleses) e o comércio do sândalo e do pepino-do-mar nas ilhas dos Mares do Sul. Shineberg observou que, embora os australianos "gostassem de criticar a natureza supersticiosa dos chineses, que se dispunham a comprar sândalo a um preço elevado para queimá-Io diante de seus altares", a considerarmos sua própria balança comercial, "o hábito colonial de tomar chá não era menos extravagante" (1967, p. 6). Acrescentemos a isso o tabaco e os artigos de luxo que os ilhéus, por sua vez, gostavam de receber nessa his- tória toda, e o comércio do Pacífico revelará, como disse Shineberg, "que a fraqueza humana desconhece raças" (ibid., p. 151). Enunciada em termos mais positivos e antropológicos, essa é também a: tese mais geral deste capítulo. A idéia geral é que o sistema mundial é a ex- pressão racional de uma lógica cultural relativa, entenda-se, sua expressão em termos devalor de troca. Na condição de sistema de diferenças culturais or- ganizado como divisão do trabalho, ele é um mercado global de fraquezas humanas no qual todas podem ser comercializadas lucrativamente num meio pecuniário comum. Assim como Galileu achou que a matemática era a linguagem do mundo físico, a burguesia tem-se comprazido em acreditar que o universo cultural é redutfvel a um discurso sobre o preço - a despeito do fato de que outros povos resistiriam tanto a uma idéia quanto à outra, povoando sua existência com outras considerações. O fetichismo, portanto, é o costume da economia mundial capitalista, uma vez que é precisamente <> 451 <> CULTURA NA PRATICA . le que traduz essas cosmologias e ontologias real-históricas, essas várias rela- ões de pessoas e sistemas de objetos, nos termos de uma análise de custo e ,enefício: uma simples linguagem pidgin crematística por meio da qual tarn- érn nos habilitamos a adquirir entendimentos sociocientíficos a preço de .anana, É claro que a capacidade de reduzir as propriedades sociais a valo- es de mercado é exatamente o que permite ao capitalismo dominar a ordem ultural. No entanto, pelo menos algumas vezes, essa mesma capacidade ransforma o capitalismo mundial em escravo de conceitos locais de status, neios locais de controle da mão-de-obra e preferências locais de consumo, lue ele não tem nenhuma vontade de obliterar, na medida em que isso não eria lucrativo. Assim, uma história do sistema mundial precisa descobrir no :apitalismo a cultura mistificada. Como um famoso teatro histórico da :xploração ocidental, o Pacífico parece ser um bom lugar para começar. o comércio com a China Nous ne plierons jamais cette nation à nos goúts & à nos idées. CIBOT, 1782a, p. 267 Em setembro de 1793, o visconde lorde George Macarmey, emissário io governante bárbaro do Oceano Ocidental, George III, tendo vindo oferecer ributos ao Imperador Celestial e ser "convertido para a civilização" pela virtude mperial - ou, segundo sua própria visão, Embaixador Plenipotenciário e ~xtraordinário de Sua Majestade Britânica, instruído a estabelecer relações iiplornáricas com a China, com vistas a liberar o comércio de Cantão e, ao nesmo tempo, abrir novos mercados para os produtos britânicos, dos quais evava alguns belos exemplares para presentear o imperador Quianlong por rcasiâo de seu octogésimo terceiro aniversário -, em setembro de 1793, dizia eu, Macartney recebeu a resposta imperial à mensagem de seu rei. Endereçado 1 um monarca subalterno, esse famoso édito diz, em parte: Nós, Imperador pela Graça Celestial, instruímos o Rei da Inglaterra a tomar nota de nossa recomendação. v 52 v ~ COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO v Embora vosso país, ó Majestade, situe-se nos oceanos longínquos, vós, inclinando vosso coração para a civilização, haveis mandado um emissário especial para entregar respeitosamente uma mensa- gem de Estado, e ele, navegando pelos mares, chegou a nossa Corte para ajoelhar-se em sinal de reverência e apresentar congra- tulações pelo aniversário Imperial, assim como para oferecer pro- dutos locais, com isso demonstrando vossa sinceridade. Examinamos o texto de vossa mensagem de Estado, cuja formula- ção expressa vossa seriedade. Dela transparecem com clareza vossa sincera humildade e obediência. (... ) O Império Celestial, que tudo governa dentro dos quatro mares (ou seja, do mundo), concentra-se tão-somente em exercer com propriedade as funções de Governo e não valoriza coisas raras e preciosas. (... ) Na realidade, a virtude e o poder da Dinastia ce- lestial penetraram numa miríade de reinos longínquos, que têm vindo render suas homenagens, e, sendo assim, toda sorte de obje- tos preciosos de "além-montanhas e mares" foi aqui reunida, objetos esses que vosso emissário principal e outros puderam ver eles pró- prios. Não obstante, nunca valorizamos artigos engenhosos nem temos a menor necessidade dos produtos manufaturados em vosso país." (Cranmer-Byng, 1962, p. 337, 340) Já houve quem dissesse (ninguém menos do que Bertrand Russell), a propósito do édito de Quianlong, que é impossível compreender a China enquanto esse documento não deixar de parecer absurdo (idem, 1957-1958, p. 182). Eu não teria a pretensão de desfazer essa estranheza; ao contrário, começo por generalizá-Ia. O imperador Quianlong não foi o primeiro nem o último governante do Império Celestial a descartar as coisas do Ociden te. Em 1816, seu sucessor, recusando-se a receber outro embaixador inglês (lorde Amherst), expressou a mesma indiferença imperial: "Minha dinastia não valoriza produtos vindos do exterior; os utensílios estranhos e engenhosamente produzidos de vossa nação não têm para mim o menor atrativo" (Malone, 1934, p. 173). Esse desinteresse pelos produtos europeus tampouco foi unicamente um senti- mento dos imperadores manchus. Existia desde a dinastia anterior, a dos Ming, remontando a mais de trezentos anos, e, no que concerne aos ingleses, v 453 v o CULTURA NA PRÁTICA desde 1699, quando a Honorável Companhia das índias Orientais se estabelecera em Cantão. Desde o começo, a Companhia ficou embaraçada pela inexistência de qualquer produto inglês que pudesse incluir em seus negócios. 14 Além disso, o comércio era cada vez mais controlado e hostilizado pelas regulamentações chinesas. Em meados do século XVIII, havia-se acomodado nos arranjos clássicos de um "porto de comércio" isolado (cf. Polanyi et al., 1957). A navegação britânica limitava-se a Cantão, onde os comissários da companhia, encarregados das vendas, eram obrigados a negociar exclusivamente com comerciantes chineses licenciados - que repassavam os numerosos impostos e extorsões dos funcionários imperiais de baixo e alto escalão como pesados ônus sobre os termos das transações. Os ocidentais também ficavam sujeitos a uma quarentena social e não eram muito apreciados culturalmente. Dermigny assim resumiu a situação dos comerciantes euro- peus em Cantão: Relegados a seus trezentos metros de cais - um simples guichê no flanco desta imensa China pelo qual só passavam a prata e as mer- cadorias, mas de modo algum a língua ou as idéias -, eles (os eu- ropeus) permaneceram quase completamente marginais em relação a uma civilização que não tinham a menor esperança de compreen- der. Respondiam ao desdém manifestado em relação a eles, na condição de bárbaros, com um desdém redobrado pelo país bárbaro que era, a seus olhos, a China." (1964, v. 2, p. 512) Ainda assim, os ingleses tinham de suportar tudo isso, a fim de obter seda, nanquim e artigos de porcelana, e depois, cada vez mais, por causa do chá. Em meados do século XVIII, o hábito de tomar chá havia-se dissemi- nado por todas as classes sociais da Grã-Bretanha e se tornara, como disse lorde Macartney, não apenas "um luxo indispensável", como outras cbinoi- series, mas "uma necessidade vital indispensável" (Cranrner-Byng, 1962, p. 212). Se a Inglaterra viesse a ser repentinamente privada de chá, observou o secretário da missão Macartney, Sir George Staunton, o efeito seria uma "calamidade" nacional (1799, v. 1, p. 12). No entanto, em termos históricos, o chá só havia aparecido na Grã-Bretanha na véspera, por volta de 1650 ô 4!'l4 ., COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o (Milburn, 1813, v. 2, p. 527 ss.; Repplier, 1932; Ukers, 1935). O primeiro lote de chá levado pela Companhia das índias Orientais fora de 143 libras e 8 onças (aproximadamente 65 quilos), em 1669. Na década de 1740, en- tretanto, as importações anuais da Companhia chegavam a mais de dois milhões de libras (907 quilos) e, em 1800, a mais de vinte milhões (9,07 toneladas) (Morse, 1966; Pritchard, 1929).16 Portanto, se o statusde Filho Celestial do imperador chinês estava implícito em seu desprezo pelas mercadorias estrangeiras bárbaras, do lado dos britânicos, em seu próprio esquema cósmico, "o chá era (... ) o deus a que tudo o mais era sacrificado" (Pritchard, 1936, p. 163). Notavelmente sacrificados foram os famosos artigos de lã britânicos,oferecidos no mercado de Cantão com prejuízos significativos, a fim de financiar a compra de chás. (Deve ser essa a origem da piada da indústria de confecções (nova-iorquina) que diz que eles compensavam seus prejuízos no volume - pois o chá, é claro, trazia grandes lucros para a Grã-Bretanha.) Durante a última década do século XVIII, o dumpingdos artigos de lã teve um aumento substancial, o que ajudou a reduzir os gastos em prata (idem, 1929, p. 155). Em 1820, os diretores da Companhia informaram ter tido um prejuízo líquido de 1.685.103 libras esterlinas com os produtos britâni- cos nos vinte e três anos anteriores, por "forçar o comércio para além da demanda" (Morse, 1966, v. 1, p. 75).17 A essa altura, a Revolução Industrial já ia bem avançada e, à parte os produtores de roupas de lã, os fabricantes e comerciantes de produtos de aço e ferro, de navios e equipamento naval e de tecidos de algodão todos clamavam pela abertura de novos mercados - especialmente os reis do algodão, depois que a liberação da patente de Arkwright, em 1785, provocou uma crise de superprodução. Esse clamor foi uma das boas razões pelas quais o governo resolveu enviar a missão Macartney - que custou mais 78 mil libras esterlinas à Companhia das índias Orientais. Todavia, tal como antes da missão, os comerciantes chineses continuaram, depois dela, indispostos a correr riscos com essa miscelânea de produtos britânicos." A única coisa permanentemente aceitável eram as moedas de prata. Quanto aos ocidentais, entretanto, essa drenagem contínua do metal precioso não apetecia nem um pouco a seu paladar mercantilista . ., 455 ., o CULTURA NA PRÁTICA Até o início do século XIX, ou durante quase três séculos, a China foi o túmulo da prata européia - um túmulo de onde nenhuma prata jamais voltava. Assim, mais de 150 milhões de dólares espanhóis (reales) desapareceram no Império Celestial somente durante o século XVIII. Os britânicos (mas não os norte-americanos e outros ocidentais) logo se livrariam desse problema, graças não apenas às importações de artigos de lã, mas especialmente ao "comércio local" particular de ópio e algodão cru indianos, que funcionava sob licença da Companhia das Índias Orientais. Os procedimentos de crédi- to permitiam que a Companhia incorporasse os lucros do comércio interiora- no de Cantão em sua contabilidade. Ainda assim, durante os duzentos e cin- qüenta anos que antecederam a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), esti- ma-se que 350 milhões (de reales) em prata tenham sido exportados para a China pelos mercadores ocidentais (Mancall, 1984, p. 100). E, embora o comércio europeu na Ásia fosse, portanto, claramente complementar a seu comércio na América - de onde vinha a prata que comprava o chá bebido pelos britânicos -, Wallerstein julgou toda essa história "sumamente estranha", levando em conta o "entesouramento apaixonado de metais preciosos" por parte da Europa, e propôs excluí-la do sistema mundial capitalista, apa- rentemente por ela se organizar em termos asiáticos (1974-1980, p. 330; mas ver Axtell, 1982, p. 89-90). Esses termos se evidenciam não apenas na resposta do imperador Quianlong ao rei George III, mas em quase todos os incidentes ocorridos com a missão Macartney, razão pela qual concentro nela minha atenção.'? Enviado para "negociar" um tratado entre soberanos iguais de Estados independentes, tal como concebia lorde Macarrney, viu-se cara a cara - e isso por uma concessão especial, uma vez que deveria ter ficado com o rosto cola- do no chão - com o Homem Ímpar, cujo governo benevolente era o único meio de manter a ordem no mundo humano. O ilustríssimo lorde, que que- ria impressionar a corte chinesa com os poderes de sua própria civiliza- ção, apresentada como uma extensão das virtudes de seu próprio rei, foi rece- bido pelo Senhor Supremo cuja virtude (te) era a condição de possibilidade de qualquer civilização. Com um poder universal dessa ordem, não poderia haver tratativas ou negociações, apenas submissão ou o "vir a ser transfor- -_..o.....- 1I1:!..~ __ ~ _ COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o mado". Transformado, entenda-se bem, em cultura, saindo do indiferencia- do e desordenado estado de barbarismo que os ingleses compartilhavam, em regiões distantes como a Europa, com as mais selvagens monstruosidades da natureza. Por seus préstimos sacrificiais e pelo exemplo de seu comportamento sábio, pela virtude de sua pessoa, tal como disseminada pela conduta de seus funcionários, o Filho Celestial era o único mediador entre a humanidade e a transcendente fonte celestial do bem-estar terreno. Seus poderes eram os clássicos poderes da hierarquia - inclusive politicamente, uma vez que eram culturalmente absolutos." Na antiga tradição imperial, o fundador da dinastia, que recebia um novo mandato celestial, promulgava um novo calendário, novos pesos e medidas e uma nova escala musical. Com isso, instituía o tempo e o espaço humanos, a economia e a harmonia - tudo como extensão da pessoa do im- perador: "'Sua voz era o padrão dos sons"', escreveu um famoso historiador Han sobre o lendário fundador da dinastia Xia, '''seu corpo era o padrão das medidas de comprimento'. Assim, ele podia determinar os Números que servem para regular o Tempo e o Espaço, bem como a Música que cria a har- monia universal" (Granet, 1930, p. 16). O primeiro imperador manchu não hesitou em empregar um astrônomo jesuíta para formular o sistema de calendários da dinastia (Fu, 1966, v. 1, p. 3-4; Spence, 1980, p. 3 ss.). Nem ele nem seus sucessores esqueceram-se de harmonizar as ocupações da hu- manidade com a passagem celestial das estações: mediante os sacrifícios corretos, é claro, mas também por meio da distribuição exclusiva, no dia de Ano Novo, do calendário anual- cuja alteração constituía um delito pe- nal e cuja falsificação era um crime capital." Essas dádivas de tempo estavam entre os benefícios que os bárbaros poderiam receber em troca da oferta de tributos, juntamente com os selos a serem apostos em seus éditos datados, as patentes de cargos e os títulos de nobreza no sistema chinês, além de presentes valiosos do imperador e, muitas vezes, o direito de negociar a compra de produtos chineses." O comércio enquadrava-se no sistema de pagamento de tributos, nor- malmente como conseqüência, visto que o "sistema tributário", em seu sen- tido mais geral, referia-se ao modo de integração material na civilização. Os o 457 o I IIII o CULTURA NA PRÁTICA tributos dos bárbaros eram sinais do poder de atração da virtude imperial, objetificações dos poderes civilizadores do imperador. "Os reis de épocas anteriores", relata um documento oficial da dinastia Ming, "cultivavam seu refinamento e virtude a fim de subjugar pessoas à distância, de modo que os bárbaros (do Leste e do Norte) vinham à Corte pedir audiências" (citado em Fairbank, 1942, p. 132). Daí a seguinte percepção do império carolíngio, extraída de um relato do período Qing: Em meados da dinastia Tang (618 a 906 da era cristã), Carlos Magno, um homem sábio e culto, dotado de talentos civis e mi- litares, tornou-se imperador dos germânicos e dos franceses. Sua fama e virtude disseminaram-se por vastas regiões e todos os bár- baros a ele se submeteram. (Citado em Schurmann e Schell, 1967, p. 123) Os tributos dos bárbaros eram, obrigatoriamente, produtos especiais de seus próprios países. Assim, em certos aspectos simbólicos, quanto mais bizarros fossem, melhor: isso significava, ao mesmo tempo, a abrangência da virtude imperial, sua capacidade de abarcar uma diversidade universal e a capacidade do imperador de impor ordem às oscilações do mundo para além do âmbito chinês, por meio do controle dos monstros e das maravilhas que havia nele (cf Mancall, 1984, p. 16). Consideremos este encômio floreado, redigido em 1419 por um literato confuciano para comemorar a chegada de uma girafa oferecida como tributo, isto é, um "unicórnio" (ch'i-lin): Quando a virtude do Governante Imperial atinge no alto aGrande Pureza, embaixo, a Grande Serenidade, e, no meio, a Miríade de Espíritos, surge então uma ch'i-lin (girafa). (...) Diz-se também: quando a virtude do Governante penetra nas águas escuras do caos e sua influência transformadora estende-se a todos os seres vivos, então aparece uma cb'i-lin. (Citado em Walker, 1956, p. 24) Entregues principalmente no solstício de inverno e no aniversário do imperador, os tributos dos bárbaros eram assim ligados a renascimentos mun- diais, o que lhes garantia os benefícios materiais da intercessão do gover- nante aos Céus. A prosperidade também estava implícita nos presentes valiosos A~O COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o recebidos do imperador pelo emissário portador do tributo, mostran- do que o imperador sabia "valorizar os homens que vêm de longe". O comércio também fazia parte do mesmo conjunto de concepções: era oficialmente considerado um "obséquio" concedido aos bárbaros, como explica Fairbank, constituindo "o meio necessário para que eles partilhassem da generosidade da China" (1942, p. 139). Assim, a intenção, por parte de lorde Macartney, de liberar o comércio por meio do oferecimento de presentes de aniver- sário ao imperador, não era ininteligível para os chineses, ou, pelo menos, prestava-se a um equívoco operacional.P Tais concepções não implicavam o desinteresse chinês no comércio, nem impediam seus usos funcionais na política ou na geração de lucro. Na longa história das fronteiras chinesas, notoriamente no Norte, o comércio era, muitas vezes, um instrumento político - quer estimulado como parte de uma política avançada de expansão, quer permitido num esforço para neutralizar uma ameaça bárbara (cf Lattimore, 1940; Fairbank e Têng, 1941). Como eu disse, essas estruturas aparecem como eventos nas crônicas da missão Macar.mey. Mas não posso senão referir-me, por exemplo, à recusa do excelentíssimo lorde em praticar o ko-tow diante do imperador, sobre a qual, num espírito orientalista, talvez já se tenha feito demasiado alarde (cf. Pritchard, 1943). Basta assinalar que Macartney, insistindo ser preciso distinguir entre a homenagem dos príncipes sob tributo e o respeito de "um soberano grandioso e independente" .como o dele, propôs-se praticar o ko- tow se uma autoridade chinesa de posição igual a sua fizesse o mesmo diante de um retrato de George III (Cranmer-Byng, 1962, p. 100, 119 e passim), Essa proposta, disseram os documentos da Corte Imperial, "demonstrou ignorância" (idem, 1957-1958, p. 156-158). Havia também o desejo reiterado de Macartney de passar às negociações, uma vez cerimoniosamente recebida a missão pelo imperador e trocados os presentes. Esse desejo nunca chegou a se realizar, porque, no que concernia aos chineses, a negociação já estava concluída - as cerimônias eram a negociação (idem, 1962, p. 137, 148; cf. Hevia, 1986) . Neste ponto, parece importante assinalar que, durante os primeiros cinqüenta anos da existência da Companhia das Índias Orientais na China, ela não teve um único empregado (ocidental) que soubesse falar ô 4SQ ô Ó CULTURA NA PRATICA chinês (Pritchard, 1929, p. 39). O chamado astrônomo da missão Macartney, dr. Dinwiddie, queixou-se repetidamente da incapacidade dos ingleses de compreender o que estava acontecendo. "Com que cara voltará lorde Macartney à Europa, depois deste tratamento vergonhoso?", perguntou ele. "Nenhuma desculpa será satisfatória, Voltaremos para casa e nos perguntarão o que fi- zemos. Nossa resposta: não podíamos falar com as pessoas" (citado em Proudfoot, 1868, p. 87; cf. p. 71).24 Todavia, lorde Macartney estava ciente de que as bandeiras desfralda- das na flotilha de juncos fluviais chineses que o levou a Pequim diziam: "O embaixador inglês levando tributos ao Imperador da China". Sabia disso, mas optou diplomaticamente por ignorá-Io, como uma tática no contexto da contra-argumentação contínua que os britânicos também estavam fazen- do na linguagem dos bens. Da maneira como os entendiam, os chamados tributos eram "exemplos da melhor manufatura britânica e de todas as inven- ções mais recentes que contribuem para a conveniência e a comodidade da vida social", cuidadosamente escolhidos para atender ao "duplo propósito de satisfazer aqueles a quem forem presenteados e de provocar uma demanda mais geral de compra de artigos similares" (Staunton, 1799, v. 2, p. 23).25 Assim, nos vários incidentes em que foi explicitamente traça da uma distin- ção entre "presentes" (como os chamavam os britânicos) e "tributos" (como os chamavam os chineses), nunca se poderia adivinhar o que os argutos ocidentais estavam realmente pensando. Seus "presentes" eram, na verdade, amostras de seus produtos; mais até, eram exemplosde engenhosidade industrial, destinados a expressar a "superioridade" da civilização britânica e a majestade de George IH. Incluindo instrumentos para experiências científicas, um globo com as rotas das descobertas do capitão Cook, belos coches e lâminas de espada capazes de cortar ferro sem perder o gume, esses presentes, como disse SirGeorge Staunron, tinham sido cuidadosamente escolhidos para "denotar" o progresso da ciência ocidental e "transmitir informações" ao imperador (ibid., p. 243). "O objetivo era surpreender os chineses com o poder, o conhecimento e a engenhos idade do povo britânico", diz Dinwiddie, "e, para esse fim, havia um esplêndido sortimento de aparelhos astronômicos e cien- tíficos entre os presentes enviados a sua Majestade Celestial", entre eles se ó 460 ó C o S M o L o G I A S o o C A P I TA-L-I-S-M-O incluía um planetário que levara trinta anos para ser produzido "e era reconhecido como o mais esplêndido mecanismo jamais saído das mãos humanas" (citado em Proudfoot, 1868, p. 26). Para os britânicos, portanto, seus presentes eram signos auto-evidentes de uma lógica industrial do concre- to - os signos de "nossa preeminência" (Cranmer-Byng, 1962, p. 191). Esperava-se que transmitissem uma cultura política, intelectual e moral intei- ra (Hevia, 1986, p. 135 ss.). No entanto, se houve algum dia quem tentasse ensinar a missa ao vigário, este foi o povo britânico ao levar signos de civilização para os chineses. Em seu diário, Macartney mostra-se repetidamente indignado com a recusa dos manda rins em se mostrarem humilhados. Do ponto de vista dos mandarins, no entanto, se os "presentes" eram de fato "tributos" que expres- savam o sincero desejo dos bárbaros de se voltarem para a civilização, era patente que não podiam ser superiores às coisas chinesas. Quando muito, eram o que deviam ser: esquisitices raras e estranhas, vindas de um mundo externo em que categorias eram cruzadas, borradas, invertidas e confundidas. Foi desse modo que os "presentes" britânicos foram interpretados nas ruas de Pequim, como descobriu Staunton: Entre as histórias que, nesse momento, captavam a imaginação do povo, diz-se que uma parcela nada desprezível foi fornecida pela chegada da missão. Afirmou-se que os presentes trazidos por ela ao imperador incluíam tudo o que havia de raro em outros países, ou ainda não conhecido pelos chineses. Dentre os animais trazidos, mencionou-se com gravidade, havia um elefante do ta- manho de um macaco e feroz como um leão, e um galo que comia carvão. Tudo diferia, supostamente, do que já fora visto em Pequim até então, e possuía qualidades diferentes das que ali tinham sido experimentadas nas mesmas substâncias.P (Staunton, 1799, v. 2, p. 21; cf. Cranmer-Byng, 1962, p. 114; Proudfoot, 1868, p. 51) . N um maravilhoso texto orientalista escrito cerca de meio século depois, o sinólogo inglês Thomas Meadows explica que o povo chinês, ao ver uma maravilha técnica como um ~avio inglês, simplesmente não captava a men- sagem de que o país em que ele fora produzido "devia necessariamente' ser habitado por uma população ativa e rica, "livre para gozar dos frutos de seu ó 461 v o CULTURA NA PRÁTICA próprio trabalho", e de que" devia necessariamente" ter um governo poderoso e uma boa legislação "e encontrar-se, demodo geral, num estado de civilização elevado" (1847, p. 235; Meadows soa como um moderno arqueólogo funcionalista, embora não mais equivocado). Os chineses dispunham- se a admitir, acrescentou ele, que os ingleses eram capazes de fazer algu- mas coisas extraordinárias, mas os elefantes e outros animais selvagens tam- bém faziam. Aliás, Dinwiddie registrou justamente esse tipo de reação con- temporânea à missão de Macartney, inclusive a incapacidade chinesa de apreciar a teoria ocidental nativa da relação sistemática entre tecnologia e civilização: Os preconceitos deles são imbatíveis. Basta perguntar-Ihes se os inventores e produtores dessas máquinas curiosas e elegantes não devem ser homens de inteligência e pessoas superiores, e eles res- pondem: "Essas coisas são curiosas, mas, qual é sua serventia? Os europeus entendem que a arte do governo é igualmente refinada?" (Citado em Proudfoot, 1868, p. 50) Tudo isso ajuda a explicar o fracasso de lorde Macartney em promover uma demanda geral de produtos britânicos - a razão, por exemplo, de não ter feito os chineses jogarem fora seus pauzinhos, como estava convencido de que fariam, quando ele lhes demonstrasse a "comodidade" das facas, garfos e colheres de Sheffield (Cranmer-Byng, 1962, p. 225-226).27 Quando o imperador disse a lorde Macartney que não tinha necessidade das engenhocas da Grã-Bretanha, não estava mentindo. Ele as possuía, todas, e em maior magnificência do que Macartney jamais poderia oferecer, embora as guardasse sobretudo em seus parques de caça e palácios de veraneio afas- tados - em Jehol, para lá da Grande Muralha, onde recebeu o embaixador inglês, e no "Jardim do Brilho Perfeito", Yuan Ming Yuan, também fora de Pequim. Se aqui o imperador exibia sua universalidade, a inclusão que fazia dos bárbaros se dava a uma certa distância das harmonias chinesas, que, por contraste, destacavam-se da capital e do Império do Meio como um todo. Esse contraste simbólico, como pretendo mostrar, é uma chave da política comercial do império.é" COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o Em Jehol, onde o imperador caçava, estavam armazenadas riquezas incontáveis das terras dos bárbaros - que eram igualmente caçadas e co- lecionadas. Em numerosos pavilhões, decorados com cenas dos progressos do imperador e façanhas imperiais de caça (onde ele era "sempre visto a pleno galope, disparando flechas em animais selvagens"; Staunton, 1799, v. 2, p. 82), lorde Macartney pôde ver com seus próprios olhos (...) toda sorte de brinquedos e caixas de música europeus, com esferas, planetários, relógios e autômatos musicais de acabamento tão requintado, e em tamanha profusão, que comparados a eles nossos presentes deviam empalidecer e "esconder suas cabeças di- minuídas". Ainda assim, fui informado de que os belos objetos que vimos eram ultrapassados em muito por outros da mesma na- tureza, guardados nos aposentos das senhoras e no depósito euro- peu de Yuan-ming Yuan. (Cranmer-Byng, 1962, p. 125-126) Os ingleses nunca chegaram a ver o "depósito europeu" - o impres- sionante conjunto de palácios de estilo barroco italianizado em Yuan Ming Yuan, projetado para o imperador por missionários jesuítas e abarrotado de toda sorte de riquezas européias. Um missionário francês que vira esses palácios achou "inacreditável a riqueza desse soberano em curiosidades e toda sorte de objetos magníficos vindos do Ocidente" (citado em Malone, 1934, p. 160).29 Mas os tesouros estrangeiros eram apenas parte de uma coleção que alme- java suprir os refúgios imperiais de todo tipo imaginável de criação' da na- tureza e do homem. Como disse Granet,até mesmo coisas que nenhum co- lecionador seria capaz de encontrar figuravam ali, esculpidas ou desenha- das: era uma coleção universal de "singularidades evocativas" (1968, p. 274). Essa diversidade estava diretamente ligada ao poder do governa~te. De fato, se o imperador Quianlong transformou Jehol num museu de suas façanhas, ele o fez seguindo a tradição do conquistador original, Qin Shi Huangdi (reinado: 221-210 a.Ci), que, "para desfrutar de uma só vez e minuciosa- mente de todas as suas vitórias", mandara construir em seus jardins grandiosos tantos palácios quantos havia destruído nos principados estrangeiros, cada edifício reproduzindo a residência de um governante derrotado (Cibot, 1782b; cf Yang e Yang, 1974, p. 168). I •• 483 .o o CULTURA NA PRATICA A síntese de diversidade e conquista fazia desses refúgios imperiais microcosmos perfeitos: eles representavam o mundo inteiro como obra do imperador e subjugado a seu poder. "Todos os animais do ar, da água e da terra aglomeravam-se em seus lagos e parques. Em seu jardim botânico não faltava espécie alguma; podia-se ver as ondas de seus lagos quebrarem con- tra as terras distantes em que era possível reconhecer as misteriosas ilhas dos imortais" (Granet, 1930, p. 394). Escrita a respeito do grande imperador Wu, da dinastia Han, essa descrição resume igualmente bem o relato em- basbacado que lorde Macartney fez do Jardim Oriental do imperador QuianlongemJehol (Cranmer-Byng, 1962, p. 124ss.; cf. Malone, 1934).30 Para o imperador manchu, seria preciso acrescentar apenas as coleções con- densadas da vida humana: as aldeias e mosteiros, as bibliotecas e templos, e também os campos lavrados com toda sorte de culturas. As bibliotecas abri- gavam coleções exaustivas de conhecimento, resultado da busca dos livros mais raros e valiosos do reino iniciada pelo imperador em 1771 (Guy, 1987). No entanto, pela mera contemplação de seu jardim, o sábio rei podia cultivar seus poderes de governo, uma vez que, num ambiente como esse, a meditação equivalia à absorção do universo.ê! Em Yuan Ming Yuan, havia até uma cidade murada em miniatura, com ruas, praças, templos, mercados, lojas e prédios públicos (Figura 13.1). Se, em Versalhes, Maria Antonieta brincava de pastora em idílios campestres, em Yuan Ming Yuan, a imperatriz, as damas da corte e o imperador vestiam-se como cidadãos urbanos, para se unir a uma multidão de eunucos que, por sua vez, representavam comerciantes, artesâos, mascates, carregadores, soldados e até batedores de carteira, em cenas que reprodu- ziam "toda a azáfama, as idas e vindas, e até as falcatruas das cidades grandes" (Attiret, 1843, p. 790). O pintor jesuíta Attirer, a quem devemos essa descrição setecentista, contrasta em seguida a aparente desordem dos jardins de verão com os arranjos equilibrados do palácio imperial em Pequim. A "bela ordem" deste último é por ele assemelhada a nossas idéias ocidentais de simetria e uniformidade, onde não há nada que não tenha seu equivalente ou esteja fora de lugar, e tudo corresponde exatamente ao que está enfacee em contraposição (Figura 13.2). Em Yuan Ming Yuan, entretanto, reinava uma "bela desordem", que <:> 464 <:> ) COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o poderia até ser chamada de "anti-sirnetria". As fontes chinesas confirmam que essa aparente desordem - além de evitar a submissão a "uma simetria ainda mais cansativa do que fria e monótona" - pretendia também imitar a natureza (Cibot, 1782b, p. 318). As conotações interligadas da heteroge- heidade natural e do poder imperial são resumidas pela observação de Attiret de que nenhum dos pavilhões pastorais se assemelhava a outro; ao contrário, "dir-se-ia que cada um foi feito de acordo com as idéias e o modelo de algum país estrangeiro" (1843, p. 791). Estendendo-se aos mínimos detalhes arqui- tetônicos, a diversidade evoca repetidamente, no artista jesuíta, o sentimento da maestria humana de uma plenitude universal: "Antes de chegar aqui, eu nunca vira portas e janelas com tamanha variedade de formas e desenhos- círculos, ovais, quadrados e polígonos de todos os tipos, ou em forma de le- ques, flores, vasos, pássaros, animais, peixes - em suma, todas as formas re- gulares ou irregulares" (idem, p. 792). Todavia, é notável, comenta Granet, que, enquanto os chineses acolhiam "lendas ou técnicas,jongleriesou idéias com umtoque de exotismo, nunca as admitiam dentro de casa". Desde tempos remotos, imperou nessas habitações domésticas um elegante sistema de clas- sificação, uma equilibrada ordem das coisas chinesas. Já nos parques reser- vados "a suas caçadas, suas fites e seus jogos", os governan tes recebiam "tudo o que lhes é trazido: idéias ou deuses, exóticos ou novos, astrólogos, poetas e bufões" (Granet, 1968, p. 295-296).32 E também, poderíamos acrescentar, lordes ingleses e seus presentes curiosos, como as belas carruagens levadas por Macartney, que nunca foram usadas e foram consignadas, em vez disso, a um lugar indigno num dos palácios rococós de Yuan Ming Yuan (Barrow, 1805, p. 145; Swinhoe, 1861, p. 331).33 O ponto que quero frisar é que esses jardins e pavilhões de caça imperiais significavam uma política cultural, englobando uma economia igualmente inclusiva e exclusiva, que, portanto, podia adaptar-se adequadamente à situa- ção prática. A oposição entre as casas de campo do imperador e a cidade imperial recapitulava toda uma cosmografia da civilização - às vezes chama- da "separação interno-externo" (Wang, 1968) - que os chineses também representaram de outras maneiras. Joseph Needham reproduz um antigo mapa-múndi chinês, desenhado como uma série de retângulos inclusivos em <:> 465 <:> I o CULTURA NA PRÁTICA ~-~~ FIGURA 13.1 - SHE WEI CH'ENG, EM YUAN MING YUAN. RUA LADEADA DE LOJAS, LEVANDO A UM PORTÃO AO FUNDO. DE SíREN (1949); QUADRO ORIGINAL DE TANG TAl E SHEN YUAN, BlBLlOTHEQUE NATlONALE, PARIS. ••.• 4RR ó COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o torno de um domínio real no centro (Figura 13.3). Estendendo-se para fora a partir do centro imperial, epítome da ordem estruturada, ficam as zonas bárbaras de civilização e pacificação decrescentes, que terminam nos confins distantes de uma "selvageria sem cultura" (1959, p. 502). Ao isolar a China, ao mesmo tempo que faz dela a fonte central da ordem do mundo, essa teo- ria da civilização presta-se igualmente a projetos de expansão imperialista e de retraimento cultural, a inclusões hegemônicas ou exclusões xenofóbicas, conforme as contingências da situação. É bem possível que isso constitua um ciclo dinástico normal, que com- preende a oscilação entre uma política econômica avançada e um período de retraimento xenofóbico, coincidindo com uma expansão territorial que reve- la, em última instância, os limites e fraquezas do império chinês. As conquis- tas dinásticas das fases ascendentes incentivariam justamente os processos que Lattimore identifica como fontes de declínio, em especial o desenvolvimen- to do poder da aristocracia e a riqueza mercantil (1940). Ao desviar a receita do governo central e impor a ruína aos camponeses, a ascensão dessas forças privadas resulta em uma crise do regime imperial. O governo mostra-se cada vez menos apto a lidar com as ameaças gêmeas de rebelião interna e incursões bárbaras que agora irrompem, fruto indesejado de seus próprios sucessos. Daí a estreita correlação entre a conquista do império mundial e a inauguração de uma economia política de exclusão, em contraste com uma relação inclu- siva, anterior, com a periferia bárbara, quando a nova dinastia estava pro- vando seu direito ao Mandato Celestial. Os sinólogos defenderam essa tese em relação ao período Ming (Fletcher, 1968) e também à dinastia Qing aqui discutida (Dermigny, 1964, v. 2, p. 468 ss., esp. p. 487-495). A espetacular expansão Ming no reinado do im- perador Yung-lo (reinado: 1403-1434) é bem conhecida, em especial as gran- des viagens do almirante eunuco Zheng He, que estenderam a dominação da China desde o leste da África até as Índias Orientais. Em imensas frotas, com tripulações que chegavam a dezenas de milhares de homens, Zheng He na- vegou até o golfo Pérsico e a costa africana, "colecionando vassalos como se fossem souuenirs' (Cameron, 1970, p. 124; Lo, 1958; Needham, 1971, p. 487 ss.; Fairbank, 1942, p. 40-41; Dermigny, 1964, v. 1, p. 30055.). Em ó 4R7 ó v C;ULTUKA NA PRATICA ~ """,., IL~'& __ i~'~ '-',a- f'*,--=,J~- -- ~ ~.rr...~ ~__ ~ )j l~jf •.- db *' ~ -y-- ~ U Hg ,~," ~ nIJ, 1 ~ \J__lL...fi~r.~,l_ ";J~:1l:n: ~ ~ ~ jt11 .d ~rt ~;-""t' .•.• <ii. FIGURA 13.2 - A CIDADE IMPERIAL, PEQUIM, DO ÁLBUM DO MANUSCRITO HOLANDÊS ORIGINAL DE A. E. VAN BRAAM, MEMORfAAL WEGENS DE AMBASSADE DER NEDERLANDSCHE OOST-INDISCHE COMPAGNfE VOOR DEN KYZER VAN CHINA IN DE JAREN 1794/95, V. 4, CONFORME REPRODUZIDO EM JAN JULIUS LODEWIJK DUYVENDAK, "THE LAST DUTCH EMBASSY TO THE CHINESE COURT (1794-1795)", T'OUNGPAOARCHfVES, N. 34,1938. <) 468 <) COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o ~~ 4:-*.•. FIGURA 13.3 - CONCEPÇÃO TRADICIONAL DA IRRADIAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO CHINESA (1. NEEDHAM, 1959, P. 502). PARTINDO DO CENTRO METROPOLITANO, ESCREVE NEEDHAM, "TEMOS, EM RETÂNGULOS CONCÊNTRICOS, (A) OS DOMÍNIOS REAIS, (B) AS TERRAS DOS PRÍNCIPES E SENHORES FEUDAIS SOB TRIBUTO, (C) A 'ZONA DE PACIFICAÇÃO', ISTO É, OS CHARCOS, ONDE A CIVILIZAÇÂO CHINESA ESTAVA EM PROCESSO DE SER ADOTADA, (D) A ZONA DOS BÁRBAROS ALIADOS E (E) A ZONA DE SELVAGERIA SEM CULTURA". <) 469 <) II IIII Y CULTURA NA PRÁTICA contraste, o período posterior da dinastia Ming assistiu a um declínio radical das missões de tributo estrangeiras, bem como a um desinteresse imperial pelo comércio exterior- justamente quando chegaram os europeus (Fairbank e Têng, 1941).34 Um retraimento semelhante havia marcado o final da dinastia Tang (depois do século VIII), quando se impuseram rigorosas restrições co- merciais em nome da integridade ética do Império do Meio. Um século an- tes, no entanto, nobres chineses vestidos à ta Turque haviam acampado em tendas de feltro nas ruas de Pequim. Na precedente "plenitude de Tang", a paixão pelo exótico em todos os tamanhos e formas - desde dançarinas de olhos verdes, provenientes do interior da Ásia, até o sândalo da Índia ou as especiarias das ilhas Molucas - havia-se apoderado de todas as classes da so- ciedade chinesa (Schafer, 1963).35 Ainda assim, esse tipo de oscilação, como observa Joseph Fletcher sobre o ciclo Ming, não acarretou nenhuma mudança na teoria chinesa do império. As políticas de inclusão e exclusão eram moda- lidades práticas alternativas do mesmo conceito de hierarquia. No fim da era Ming, escreve Fletcher, os imperadores (... ) começaram a cumprir seus mandatos mais passivamente. A China mostrava-se cada vez mais altiva, desprezava o comércio e encarava a aceitação dos tributos da Ásia Central como uma con- cessão; no entanto, seria uma distorção considerar as primeiras explorações Ming simplesmente como eventos de um episódio isolado. O fato de os Ming terem tentado aproximar mais o mundo durante a história inicial da dinastia, e não em épocas posteriores, reflete a força inicial dos Ming e sua fraqueza subseqüente. Não reflete uma mudança de doutrina ou uma abdicação da supremacia mundial do imperador. A iniciativa do início e o retraimento da fase posterior ocorreram no contexto das mesmas instituições e reivindicações imperiais. As expedições estrangeiras e as concessões diplomáticas dos períodos de Hung-wu e Yung-lo representam valores Ming numa época de força, ao passo que o antiestrangei- rismo e o anticomercialismo da fase posterior dos Ming são a ex- pressão desses valores num período de fraqueza. (Fletcher, 1968, p. 215; cf Dermigny, 1964, v. 1, p. 296) Vemos como é inadequada a idéia da "auto-suficiência" chinesa, que os estudiosos ocidentais vêm há muito tempo repetindo tautologicamente para <) 470 <) COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO Y explicar a indiferença dos Ming e dos Qing aos produtos europeus (Cranmer- Byng, 1962, p. 12; Fairbank, 1942, p. 139; Greenberg, 1979, p. 5). Mesmo no início da era Qing, houve mais do que indícios de uma revivescência do ciclo comercial, complementada pelo interesse do imperador Kangxi, du- rante seu longo reinado (1662-1722), pelas artes e ciências européias (Mancall, 1984, p. 60-63, 84 ss.; Spence, 1975; Pritchard, 1929, p. 104 ss.; Wills, 1979). Mas, a essaaltura, havia novos fatores em jogo, inclusive a incapacidade dos manchus de controlar um comércio privado que se de- senvolvia no Sudeste, no qual também estavam empenhadas forças bárba- ras de um tipo sem precedentes (cf. Fu, 1966, p. 122-123; FairbankeTêng, 1941). Fora da órbita da civilização chinesa, essas forças ocidentais eram excêntricas ao ritmo dessa civilização. Ao contrário dos povos e vassalos tra- dicionais de fronteira, os europeus nunca puderam ser controlados nem com- prados (cf Lattimore, 1940). Na verdade, suas exigências à China em geral aumentavam com o tempo, de acordo com seus próprios ritmos empresariais. Os dinastas manchus consideraram a prata ocidental muito útil para seus próprios projetos de sistema mundial. Mas, durante o reinado do imperador Quianlong, exatamente na época de maior amplitude das conquistas dos manchus e no auge de seus poderes imperiais, o Filho Celestial preferiu satis- fazer seu interesse pelas coisas estrangeiras por meio da contemplação de seus próprios jardins. Pelo que ele via neles, sempre poderia ter certeza de sua pró- pria virtude constituinte-de-mundo. As ilhas Sandwich Se o Imperador Celestial não tinha necessidade dos produtos britânicos, os reis e aspirantes a reis das ilhas Sandwich, em razão de seu próprio status celestial, nunca tinham o bastante. Sua avidez tampouco se restringia aos bens materiais europeus, que em geral consideravam superiores aos seus; eles queriam a identidade dos europeus ilustres, cujos nomes e hábitos adotavam como sinais de sua própria dignidade. Em 1793, o mesmo ano em que o im- perador Quianlong elogiou o rei inglês que lhe prestara homenagens por lhe manifestar a devida reverência, os três governantes havaianos mais poderosos gostavam de dar a seus filhos varões e herdeiros o nome de "rei George" <) 471 <) Y L U L I U K J"\ 1'IJ J"\ t' K A 1 1 C A COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o (Bell, 1929, v. 1, n. 5, p. 64).36 Um representante da empresa American Pur assim descreveu o panorama desportivo de Honolulu em 1812: No hipódromo, observei Billy Pitt, George Washington e Billy Cobbet caminhando juntos com extrema familiaridade e, ao que parece, travando uma conversa confidencial; enquanto isso, no centro de outro grupo, Charley Fox, Thomas ]efferson, ]ames Madison, Bonnepart e Tom Paine podiam ser vistos num convívio igualmente amistoso. (Cox, 1832, p. 144) eles se confrontavam como rivais perpétuos que, em sua própria divindade, eram duplos virtuais (cf V Valeri, 1972, 1981; M. Sahlins, 1985b). Tradicionalmente, os chefes governantes havaianos disputavam ascen- dência genealógica e status, em termos do sistema de tabu, através de casa- mentos estratégicos com mulheres da nobreza e de sacrifícios violentos de adversários reais. Tais façanhas podiam representar, na prática social, a teoria da soberania codificada nos mitos e encenada nos ritos anuais: a teoria da usurpação pelo guerreiro arrivista, que é arquetipicamente um estranho e eu- ja vitória sobre o deus ou rei da linhagem antiga implicava também a toma- da da esposa sagrada de seu predecessor. O campo do político, portanto, apa- rece como uma versão prática do cosmológico: uma transposição do esque- ma polinésio da apropriação da terra gera triz (= esposa sagrada) do deus (= rei governante) pela e para a espécie humana (= guerreiro usurpador). Assim transposta para a prática, entretanto, a competição pelas honrarias divinas torna-se permanente e indecidida. Em virtude de uma longa história de in- tercasamentos estratégicos, todos os chefes rivais podem fazer sua linhagem remontar, de um modo ou de outro (isto é, bilateralmente), às mesmas fontes divinas. A genealogia transforma-se mais num argumento do que numa habi- litação ao título; e uma espécie de entropia surge no sistema de posições, uma tendência a um estado indiferenciado, uma vez que, por tal ou qual li- nha de descendência, um chefe ambicioso podia aspirar à precedência sobre os rivais políticos que, com base em alegações semelhantes, supunham-se su- periores a ele. Nos tempos tradicionais, um chefe que fosse rico em terras e seguidores sempre podia ter a esperança de transformar esses trunfos numa reivindicação legítima de distinção. Daí o papel assumido pelas visitações de Kahiki, no fim do século XVIII: de maneiras análogas, os chefes buscavam a distinção nas relações e nas mercadorias do comércio ocidental. Toda essa história parece ter sua epítome num incidente de 1793, quando Kamehameha, que logo seria o conquistador do arquipélago, saudou formalmente o co- mandante britânico Vancouver usando uma requintada túnica chinesa, que ele considerava "a peça mais valiosa de seu guarda-roupa", uma vez que seu predecessor (Kalaniopu'u) a recebera de presente do capitão Cook (Manby, 1929, p. 40).37 Em menos de dez anos, de fato, o "Billy Pitt" havaiano, também co- nhecido como Kalanimoku, viria a ser "primeiro-ministro" de um reino uni- ficado das ilhas Sandwich, com seus irmãos classificatórios Ke' eaumoku "Cox" e Kuakini "[ohn Adams" exercendo, respectivamente, as funções de governador de Mauí e da ilha do Havaí. É claro que esses estrangeiros por meio dos quais os chefes dirigentes havaianos se conscientizavam deles mesmos não eram bárbaros desordei- ros, vindos dos confins da Terra. Provinham, antes, da região celeste para além do horizonte: da Kahiki mítica, pátria celestial e ultramarina dos deu- ses, dos chefes sagrados e das boas coisas culturais. Tal como os ancestrais que de lá trouxeram alimentos, ritos e tabus - os meios da vida humana e as distinções da ordem social -, os homens brancos ou haole eram percebi- dos como portadores de poderes civilizadores e divinos (cf M. Sahlins, 1981, 1985a, 1992). Pelo século XIX adentro, a história das ilhas foi moldada por essa correlação entre os poderes estrangeiros e polinésios existentes. Desde os tempos de Cook, que buscava uma passagem a noroeste para o Oriente, os ocidentais tinham vindo ao Havaí por causa do comércio com a China. Mas quase tudo nesse encontro intercultural foi o inverso de sua experiência chinesa. Macartney recusara-se a fazer o ko-tow perante o impera- dor chinês, porque isso conspurcaria a dignidade de seu próprio rei; já quando Cook pôs os pés na ilha de Kaua'i pela primeira vez, os havaianos prostra- ram-se imediatamente diante dele, como faziam com os chefes supremos a quem chamavam de akua, "deuses" (Malo, 1951, p. 54). E, se os grandes chefes havaianos competiam por distinção assumindo identidades euro- péias, era porque, diferentemente do Imperador Celestial, o Homem Único, --------~.~~~~--~----------------------------------~------~------------~----~ <) 473 <) <:> CULTURA NA PRÁTICA Entretanto, o relato da presença de alguns americanos ao lado dos ingle- ses e franceses entre o tout Honolulu de 1812 reflete uma mudança importante na ordem internacional do comércio transpacífico. Na virada do século XIX, empreendedores ianques haviam dominado o comércio de peles entre a Costa Noroeste e Cantão, cujas possibilidades tinham sido originalmente reveladas pela terceira viagem de Cook e inicialmente exploradas pela navegação britânica." Isolados das Índias Ocidentais Britânicas depois da Revolução, os mercadores da recém-surgida nação norte-americana voltaram-se para os mercados do Extremo Oriente. O problema é que tinham pouquíssima prata a oferecer pelas mercadorias chinesas. "Descobrir alguma coisa vendável em Cantão era o enigma do comércio com a China", observou Samuel Eliot Morison, mas "Boston e Salem o decifraram" (1961, P: 46).39 Isso talvez seja um exagero de Morison, uma vez que o couro das lontras marinhas do Pacífico e outras peles refinadas nunca deram aos norte-americanos mais do que aproximadamente um sexto do capital que eles necessitavam para pagar pelas mercadorias chinesas (Pitkin, 1835, p. 245 ss.). O restante tinha de ser coberto em espécie, tanto quanto podiam obter com o transporte comercial neutro que faziam na Europa durante asguerras da Revolução Francesa e napoleô- nicas." Essa drenagem contínua da prata gerou nos comerciantes norte- americanos um interesse igualmente persistente por produtos das ilhas do Pacífico que pudessem adequar-se às categorias dos consumidores chineses. Daí a procura do sândalo, do tipo que os chineses haviam importado da Índia e das Índias desde a dinastia Tang, para ser usado na arquitetura nobre e em objetos de arte, bem como para disseminar o sopro de um budismo cada vez mais influente. Como incenso e como imagem, "o odor divinamente doce do sândalo expressava para os sentidos as propriedades antidernonía- cas que se ocultavam em seu corpo deiforme" (Schafer, 1963, p. 137). Mil anos depois, em virtude de poderes não sonhados por essa filosofia, as pro- priedades ocultas das árvores de sândalo das Novas Hébridas, do Havaí e das ilhas Fiji, usadas para expulsar demônios chineses, puderam então ser transfor- madas em chás que, por sua vez, geraram lucros pecuniários para os empreen- dedores norte-americanos, qualquer que fosse o custo para os interessados. v 474 v COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o No Havaí, o comércio do sândalo suplantou um comércio anterior de "amenidades" que já havia transformado as ilhas num "grande caravançará" na rota do comércio de peles entre a Costa Noroeste e Cantão (Fleurieu, ci- tado em Bradley, 1968, p. 22). A localização estratégica do arquipélago foi uma das razões do comércio de amenidades. Outra foi a capacidade superior dos chefes havaianos, comparados aos índios do Noroeste, de fornecer manti- mentos para a navegação (Howay, 1930). Falo em "chefes" porque (como já documentei noutros textos) eles assumiram o controle principal desse comér- cio, usando privilégios tradicionais, como seus poderes de estabelecer tabus, para organizá-Io de acordo com seus próprios interesses (cf M. Sahlins, 1981). Basta assinalar aqui que os chefes conseguiram impor suas exigências - ao mesmo tempo de armamentos, feitas aos ocidentais, e de mão-de-obra e produtos, feitas à população havaiana, quase sempre sem pagamento. Em 1810, Kamehameha, o governante da ilha do Havaí, mediante um acesso superior ao comércio europeu - alicerçado numa reação privilegiada à cabeleira do capitão Cook -, havia unificado o grupo num reino de conquista. O sân- dalo havaiano estava prestes a se transformar no principal interesse comercial das ilhas. Para os mercadores americanos, ele se tornou ainda mais interessante por volta de 1820, à medida que declinaram os lucros do comércio marítimo de peles - ao passo que, entre os havaianos, o comércio de sândalo literalmente enriqueceu os conflitos de praxe entre o rei e os chefes principais, que cada vez mais apareciam como demonstrações do mana nativo nas formas suma- mente apropriadas de riqueza estrangeira. As rivalidades tornaram-se tão graves que os informantes secretos Haole previam uma partilha do reino entre "os grandes" depois da morte de Kamehameha, uma espécie de descentralização que já havia acontecido antes (Whitman, 1979, p. 89; Chamisso, 1981, p. 431-432; Rocquefeuil, 1823, v. 2, p. 342 ss.; cf. M. Sahlins, 1972, p. 144 ss.). Desta vez, no entanto, o rei morreu em 1819, conjugando assim o ciclo político polinésio com um ciclo econômico capitalista igualmente carac- terístico - e lançando os grandes nobres havaianos em suas brilhantes car- reiras de consumo conspícuo. A América de 1818-1819 estava em meio a uma crise financeira. Entre os comerciantes da Nova Inglaterra, a escassez de moeda em espécie valoriza- v 475 v IIII o CULTURA NA PRÁTICA va O sândalo havaiano como meio de dar continuidade ao comércio com a China. Assim, os americanos (...) baixaram aos enxames nas ilhas, levando consigo tudo, desde alfinetes, tesouras, roupas e utensílios de cozinha até coches, mesas de bilhar, armações para a construção de casas e navios à vela, e fa- zendo tudo o que podiam para manter febril o espírito de especula- ção entre os chefes havaianos. E os chefes não demoravam a com- prar; quando não dispunham de sândalo para pagar pelas mercado- rias, davam notas promissórias. (Kuykendall, 1968, p. 69) Eles não demoravam a comprar - apenas a pagar. Os documentos da época dão a impressão de uma opéra boujfe, encenada em ingênuos cenários tropicais ricamente guarnecidos por uma divisão internacional do trabalho: aqueles imensos nobres polinésios, cobertos de roupas variegadas de fina seda chinesa e casimira inglesa, sendo conduzidos pelas ruas poeirentas de Ho- nolulu em seges puxadas por pôneis ou em carrinhos empurrados por esfal- fados lacaios de tanga; ou então, encenando jantares europeus em casas de sapê, sentados a mesas de teca adornadas com prataria e cristais ingleses - com todos os confortos importados a fundo perdido. As pessoas comuns entravam apenas como personagens de apoio: um trabalho árduo, dada a simples massa dos chefes governantes. Embora muitos dos chefes agora se professassem cristãos, eles nunca aprenderiam a mortificar a própria carne. A família que governou de fato as ilhas, depois da morte de Kamehameha (o povo de Ka' ahumanu), incluía cinco irmãos e irmãs que pesavam, segundo estimativas contemporâneas, 113 a 160 quilos cada um (Bloxam, A Narra- tive... 15,28 de maio de 1825; Dampier, 1971, p. 48). Significando o controle da terra, do alimento e da população, e os meios de sua produtividade - todos poderes divinos -, o gordo era belo no sistema havaiano. Mas, como recompensa pelo esforço prolongado no trabalho com o sândalo, os subal- ternos eram mal alimentados, quando eram alimentados; e também não parti- cipavam dos lucros comerciais. Seu trabalho era exigido como uma espécie de aluguel devido ao nobre "senhor da terra" (haku'aina) (cf Mathison, 1825, p.384-385). Enquanto isso, a febre de consumo da elite era alimentada por dois sistemas de rivalidade que se cruzavam: de um lado, os mercadores americanos, ô 471'\ ô COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO o que competiam entre si por vantagens aduaneiras (custom), e de outro, os chefes havaianos, que tinham o costume de competir entre si." E, enquanto solapavam uns aos outros - por exemplo, promovendo produtos cada vez mais elegantes, ao mesmo tempo em que denegriam os dos competido- res -, os comerciantes apelavam para o espírito competitivo de auto-estima dos chefes. Como disse um historiador havaiano, "todos os chefes, nessa época, estavam empenhados em conseguir honrarias para si mesmos" (Ka- makau, 1961, p. 265). No fim de 1821, diz-se que o rei e os chefes possuíam "dez Brigues grandes e elegantes, além de um grande número de Chalupas e Escunas, todos os quais haviam adquirido dos americanos" (John C. Jones, United States Consular Dispatches, Honolulu, 31 de dezembro de 1821). Isso incluía o Cleopatra's Barge, uma embarcação luxuosamente equipada e cheia de vazamentos, enviada por uma empresa de Boston para deslum- brar a nobreza local, que o rei Liholiho (Kamehameha II) concordou em comprar por noventa mil dólares em sândalo - que Bullard, o agente da empresa em Honolulu, não conseguiu cobrar (Bullard, Letterbook ...). Mesmo assim, Bullard comunicou otimisticamente a Boston: "Se vocês quiserem saber como é a religião nas ilhas, posso dizer-lhes: todas as seitas são tolera- das e o rei cultua a Balsa" (idem, 1Q de novembro de 1821). A essa altura, na verdade, o rei havia abolido formalmente a antiga reli- gião, mas ele e os outros chefes governantes continuavam a atestar, em sua própria natureza, uma divindade de tempos imemoriais. Daí sua apropriação das distinções ocidentais entre produtos "simples" e "sofisticados" e sua apre- ciação, em particular, dos artigos requintados cujo lustro, refletindo o brilho celestial, combinava com suas idéias convencionais de brilhantismo aristo- crático. "Mandem artigos de natureza vistos à', escreveu o comerciante John C. Jones a seus fornecedores (MaL, 9 de março de 1823); "tudo o que é novo e elegante vende-se com lucro, peças rústicas não servem para nada" (ibid., 31 de maiode 1823); "os tecidos finos têm saída por qualquer preço" (10 de outubro de 1822).42 Os produtos comerciais eram gloriosas extensões artificiais do corpo sagrado dos chefes, já esticado até seus limites orgânicos. Aliás, do mesmo modo que no caso do sistema de pesos e medidas chefes, rodos os seus prazeres pareciam destinar-se a ampliar a pessoa deles, incluindo- Ô 477 Ô I[--- o CULTURA NA PRÁTICA COSMOLOGIAS DO CAPITALISMO .:. se nisso os gastos com os grandes séquitos de criados domésticos mantidos para cuidar de suas necessidades e prazeres corporais (Stewart, 1830, p. 138; Corney, 1896, p. 105; L. F. Judd, 1966, p. 21). O séquito do chefe era uma espécie de superser cujos membros numerosos funcionavam para manter aquela vida única com a qual todos se identificavam. Ao mesmo tempo, dadas as indeterminações tradicionais das honras dos chefes, a entro pia do sistema de posições sociais, cada chefe empenhava-se em provar, no novo meio de proeza comercial, que era igualou melhor do que os outros, ao mesmo tempo que diferente deles. A economia da elite era uma arena de diferenciação na qual se encenavam as distinções rancorosas entre os poderes instituídos e os que apenas aspiravam a sê-lo. Daí algumas outras características desse mercado polinésio: a busca interminável da novidade, a mania pelo que estava na última moda em Boston, e a acumulação de produtos estrangeiros vistos como signos e pro- jeções da pessoa "civilizada". Outro comerciante escreveu a seus fornecedo- res bostonianos para informar que, tendo vendido quinze armações de ca- mas, havia esgotado o mercado de Honolulu, uma vez que "todas elas são iguais". Acrescentou que "há pouca procura para suas melhores sedas", por- que haviam chegado, antes, no navio de um concorrente, tecidos do mesmo tipo, "e eles (os havaianos) querem estampas que nunca tenham visto" (Hunnewell, Letters, 30 de dezembro de 1829). Essa busca de distinção indi- vidual corria à solta desde a morte de Kamehameha - "Todos os que aqui chegam trazem produtos cada vez melhores, e os que eles nunca viram são vendidos, enquanto os comuns não têm saída" (Bullard, Letterbook ... , 4 de julho de 1821). E, exatamente por contribuírem para a distinção pessoal, os produtos comerciais não se destinavam à distribuição geral. Eram ostensi- vamente acumulados, um entesouramento conspícuo: amontoados a ponto de chegar ao desperdício, como se qualquer redução das mercadorias estran- geiras acumuladas fosse sinal de uma diminuição pessoal. Os chefes não se dispunham a fazer nenhuma incursão em seus estoques disponíveis, mesmo quando eram necessários para algum objetivo cerimonial. Nesse caso, prefe- riam comprar mais daquilo que já tinham em abundância: o 478 o Essas pessoas têm uma relutância incurável em se separar do que quer que tenham armazenado. Existe hoje uma enorme quantidade de bens guardados em caixotes e armazéns, que estão se estragando, mas que os chefes se recusam a retirar de seus depósitos até mesmo para seu uso pessoal. Algum tempo atrás, o rei (Liholiho) estava precisando de uma espécie de brim, que andava escasso, e comprou alguns rolos por um preço altíssirno, quando, ao mesmo tempo, tinha duzentos ou trezentos guardados se estragando. (Hammatt, journaf ... , 18 de agosto de 1823) Ligada à produção por esses interesses de consumo, a nobreza havaiana não tardou a se mostrar incapaz de competir com as crescentes formas capi- talistas de exploração dos recursos das ilhas. Como disse Adam Smith, "É raro um grande proprietário ser um grande introdutor de melhorias" (I 991, v. 3, p. 2). Os chefes governantes tinham mais capacidade de acumular bens do que fazer os outros pagarem por eles. Ainda que se inclinassem a fazer investimentos produtivos, tudo o que tinham eram dívidas comerciais - que as pessoas comuns foram perdendo o interesse em liquidar pelo trabalho forçado talvez mais depressa do que se reduzia o contingente populacional necessário para fazê-lo. Além disso, os chefes também estavam morrendo - mortalidade esta que costuma ser vista como a razão de terem transferido a autoridade para os homens brancos. Mas essa explicação inverte a questão. Os chefes estavam obsoletos como classe dominante e simplesmente não souberam servir-se dos recursos sociais disponíveis para se reproduzirem co- mo tais." Numa situação de infortúnio similar, os índios kwakiutl recruta- ram mulheres e plebeus para posições de nobreza, com isso preservando du- rante quase dois séculos o célebre sistema do potlatch. E, quando um chefe kwakiutl não tinha uma filha por meio de cujo casamento pudesse transferir nomes e privilégios ancestrais, e com isso constituir alianças duradouras com outras linhagens, ele podia casar o lado esquerdo de seu filho, ou fazer para alguém uma esposa de seu próprio pé esquerdo (F. Boas, 1966a, p. 55). o 479 (. o CULTURA NA PRATICA Kwakiutl .As histórias dos primórdios do contato na Colúmbia Britânica e nas ilhas Sandwich são ligadas entre si pelos mesmos sobrenomes europeus _ Cook e Vancouver, Pordock e Dixon, Meares, Colnett, Ebenezer Townsend, Peter Corney -, mas a relação que os kwakiud estabeleceram com esses ocidentais, nessa época e depois, foi diferente da experiência havaiana. Uma coisa era idêntica: também para os índios, a riqueza e o poder eram tradi- cionalmente obtidos longe da sociedade, especialmente além dos mares e do céu; assim, de maneira análoga, alguns produtos ocidentais foram sub- sumidos como valores indígenas. No entanto, para mencionar apenas a dife- rença mais marcante, os kwakiud adquiriam poderes cósmicos não por meio do consumo das riquezas da economia de mercado, a despeito de envaidecer suas próprias pessoas, mas mediante a dádiva ostensiva de bens, de um modo que significava a incorporação de outras pessoas. O comércio ocidental havia possibilitado um processo espetacular de desenvolvi-gente na Costa Noroeste, a elaboração do famoso sistema do potlatch (cf F. Boas, 1920, 1921, 1930, 1935, 1966a).44 Cerimonial e estético, tanto quanto político, esse foi um desenvolvimento cultural total que resis- tiu por mais de cento e cinqüenta anos ao ataque igualmente amplo do im- perialismo ocidental, fosse sob a forma da ação de missionários cristãos, de sanções legais do governo canadense ou das relações de produção capitalista nas indústrias da madeira, da pesca, do enlatamento de conservas e da pros- tituição. Não havia o que censurar nos kwakiud no que diz respeito a suas qualificações como trabalhadores assalariados, ou mesmo como empresários, mas os homens brancos enervavarn-se freqüentemente com o que os índios faziam de seus rendimentos, a saber, empilhar montanhas de cobertores da baía do H udson e outros artigos bizarros para doações colossais." Em 1881, o primeiro Agente Indígena enviou um relatório sobre o "estado apático" dos kwakiud, do qual ele "precisa esforçar-se para retirá-los"; a apatia dos índios, como a descreveu esse agente, consistia em eles ficarem "cercados por caixotes de bens, todos prontos para o potlatch" (Codere, 1950, p 82). Resumindo um amplo estudo desses documentos oficiais, Codere escreve: I~O •.•• CU~MVLVVln,-" Ao longo dos anos, os kwakiutl têm sido descritos como indus- triosos, mas não progressistas; como se colocando à altura de quase qualquer padrão de iniciativa, habilidade, adaptabilidade e produtividade, mas sem possuir essas valiosas qualidades em rela- ção aos objetivos adequados, ou em serem para elas inspirados por motivações apropriadas. É como se os kwakiut! pudessem explo- rar a nova cultura para seus próprios fins (... ). (Ibid., p. 8; cf. Fisher, 1977) Os potlatches que envolviam os cobertores da baía de Hudson expe- rimentaram uma escalada depois da criação do Forte Rupert, em 1849, atingindo um pico de 33 mil cobertores numa única transação, em 1933, mas incluindo gastos como 200 pulseiras de prata, 7 mil pulseiras de latão e 240 bacias numa distribuição em 1895 e, mais recentemente, coisas como
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