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Referência bibliográfica: Introdução ao estudo do direito / Paulo Nader. – 41. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019. Capítulo 39 O NORMATIVISMO JURÍDICO Sumário: 218. O Significado da Teoria Pura do Direito. 219. A Teoria Pura do Direito. 220. A Pirâmide Jurídica e a Norma Fundamental. 221. Crítica à Teoria Pura do Direito. 218.O SIGNIFICADO DA TEORIA PURA DO DIREITO Na Filosofia do Direito contemporânea, a teoria normativista do austríaco Hans Kelsen (1881-1973) tem sido um divisor de águas: de um lado os kelsenianos e, de outro, os antikelsenianos. A Teoria Pura reduz a expressão do Direito a um só elemento: norma jurídica. Separando o mundo do ser, pertinente às ciências naturais, da ordem do dever-ser, Kelsen situou o Direito nesta última. A ordem jurídica formaria uma pirâmide normativa hierarquizada, onde cada norma se fundamentaria em outra e a chamada Norma Fundamental legitimaria toda a estrutura normativa. O objeto da Ciência do Direito seria o estudo apenas da norma jurídica. Qual o significado dos fatos e dos valores para Kelsen? Aqui está um ponto onde vários expositores têm vacilado, como observou Josef Kunz (1890-1970), que foi o seu principal seguidor na América do Norte.1 Ao depurar a Ciência do Direito dos elementos oriundos da Sociologia, Psicologia, Economia, Ética e outras ciências, a intenção de Kelsen não foi relegar a importância dos fatos sociais e dos valores jurídicos, tanto é assim que escreveu obras sobre Sociologia, Justiça e Direito Natural. Para ele, os fatos e os valores seriam objetos da Sociologia Jurídica e da Filosofia do Direito, respectivamente. Seu intento maior foi criar uma teoria que impusesse o Direito como ciência e não mais fosse abordado como seção da Sociologia ou simples capítulo da Psicologia. Essa preocupação de Kelsen se justifica historicamente, de vez que a sua teoria foi elaborada em uma fase crítica do pensamento jurídico, “en una situación de crisis de la Cultura, del Derecho y del Estado”, como expõe Luño Peña.2 Uma visão concreta da Ciência do Direito antes de Kelsen é fornecida por Miguel Reale: “Quando Hans Kelsen, na segunda década deste século, desfraldou a bandeira da Teoria Pura do Direito, a Ciência Jurídica era uma espécie de cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788530985028/epub/OEBPS/Text/48_chapter39.xhtml?favre=brett#pg366fne0c1 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788530985028/epub/OEBPS/Text/48_chapter39.xhtml?favre=brett#pg366fne0c2 sociólogos. Cada qual procurava transpor os muros da Jurisprudência, para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.”3 219.A TEORIA PURA DO DIREITO Kelsen adotou uma ideologia essencialmente positivista no setor jurídico, desprezando os juízos de valor, rejeitando a ideia do Direito Natural, combatendo a metafísica. A teoria que criou se refere exclusivamente ao Direito Positivo. É uma teoria nomológica, de vez que compreende o Direito como estrutura normativa. O Direito seria um grande esqueleto de normas, comportando qualquer conteúdo fático e axiológico. Assim, o Direito brasileiro seria tão Direito quanto o dos Estados Unidos da América do Norte ou o da Rússia. Kelsen rejeitou a ideia da justiça absoluta. Admitiu, porém, como conceito de justiça, a aplicação da norma jurídica ao caso concreto. A justiça seria apenas um valor relativo. A sua teoria não pretende expressar o que o Direito deve ser, mas sim o que é o Direito. Não expõe qual deve ser a fonte do Direito, mas indica as fontes formais do Direito. Kelsen abandonou, assim, a axiologia, bem como o elemento sociológico. Daí, porém, não se pode concluir, com acerto, que para ele a Moral e a Sociologia não tivessem importância. A sua ideia, porém, é que as considerações de ordem valorativa estão fora da Ciência do Direito. O centro de gravidade da Teoria Pura localiza-se na norma jurídica. Esta pertence ao reino do Sollen (dever-ser), enquanto a lei da causalidade, que rege a natureza, pertence ao reino do Sein (ser). O Direito é uma realidade espiritual e não natural. Se no domínio da natureza a forma de ligação dos fatos é a causalidade, no mundo da norma, é a imputação. A norma jurídica expressa, pela versão definitiva de Kelsen, um mandamento, um imperativo: “Se A é, B deve ser”, em que “A” constitui o suposto e “B”, a consequência. 220.A PIRÂMIDE JURÍDICA E A NORMA FUNDAMENTAL A estrutura normativa, objeto da Ciência do Direito, apresenta-se hierarquizada. As normas jurídicas formam uma pirâmide apoiada em seu vértice. Eis a graduação: constituição, lei, sentença, atos de execução. Isto significa, por exemplo, que uma sentença, que é uma norma jurídica individualizada, se fundamenta na lei e esta, por seu lado, apoia-se na constituição. Acima desta, acha-se a Norma Fundamental, ou Grande Norma, ou ainda Norma Hipotética, que pode ser uma outra constituição anterior ou uma revolução triunfante. E a primeira constituição, onde se apoiaria? A primeira constituição, diz Dourado de Gusmão, não é um fato histórico, mas hipótese necessária para se fundar uma teoria jurídica. Como expõe Ángel Latorre, a norma fundamental é um dos pontos mais obscuros da Teoria Pura. Kelsen eliminou vários dualismos no campo jurídico: Direito/Estado, Direito objetivo/subjetivo, Direito interno/internacional. O Estado não seria mais do que a personalização da ordem jurídica porque não é mais do que uma ordem coativa da conduta humana, ordem que é jurídica. Kelsen nega a existência do direito subjetivo, de vez que a possibilidade de agir é apenas uma consequência da norma jurídica. O que se denomina por https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788530985028/epub/OEBPS/Text/48_chapter39.xhtml?favre=brett#pg367fne0c1 direito subjetivo, interpreta Lacambra, “não é mais do que o mesmo Direito objetivo que, em certas condições, coloca--se à disposição de uma pessoa”. Negou também o dualismo de Direito interno e internacional. Defendeu a tese de que não são dois sistemas jurídicos independentes e nem contrapostos, mas um sistema único, com prevalência das normas internacionais. Em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado, defende a tese de que o Direito Internacional é que legitima o Direito nacional. Entre os seguidores da Teoria Pura do Direito, destacam-se: A. Verdross e Josef Kunz, no Direito Internacional; Merkel, no Direito Administrativo; Kaufmann e Fritz Schreier, na Teoria Geral do Direito. Aderiram também à Teoria Pura: o tcheco F. Weir, o polaco S. Rundstein, o iugoslavo Pitamic, o húngaro Horvath, o dinamarquês Ross, o japonês Otaka. Na Argentina, pontifica-se o jusfilósofo Carlos Cossio, autor da Teoria Egológica do Direito,4 enquanto o professor Lourival Vilanova, da Universidade Federal de Pernambuco, foi o principal analista e expositor do pensamento kelseniano, no Brasil. 221.CRÍTICA À TEORIA PURA DO DIREITO Várias são as restrições ao pensamento jurídico de Kelsen. Conforme expressão de Ángel Latorre, as críticas apresentam duas vertentes. Uma se refere a pontos concretos de sua doutrina, como, por exemplo, a obscuridade do conceito da norma fundamental. Outra restrição nessa vertente é em relação à identidade entre Direito e Estado, que se considera perigosa. A outra série de restrições refere-se ao sentido global de sua doutrina, ao pretender, principalmente, isolar o fenômeno jurídico dos demais fenômenos sociais. O Jurista, diz Miguel Villoro Toranzo, não deve lamentar o relacionamento do Direito com outras ciências, “pelo contrário, nisso reside a grandeza da ciência jurídica, em oferecer uma síntese humanista, sob o signo da justiça, sobre os diversos aspectos da conduta social humana”.5 BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL Ordem do Sumário: 218 – Miguel Reale, Filosofia do Direito; Luño Peña, História de la Filosofía del Derecho; 219 – Hans Kelsen, Teoria Purado Direito e Teoria Geral das Normas; Josef L. Kunz, La Teoría Pura del Derecho; 220 – Luis Legaz y Lacambra, Filosofía del Derecho; Paulo Dourado de Gusmão, Introdução ao Estudo do Direito; 221 – Ángel Latorre, Introducción al Derecho; Miguel Villoro Toranzo, Introducción al Estudio del Derecho. https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788530985028/epub/OEBPS/Text/48_chapter39.xhtml?favre=brett#pg368fne0c1 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788530985028/epub/OEBPS/Text/48_chapter39.xhtml?favre=brett#pg368fne0c2 Capítulo 40 A TRIDIMENSIONALIDADE DO DIREITO Sumário: 222. A Importância de Reale no Panorama Jurídico Brasileiro. 223. A Teoria Tridimensional do Direito. 222.A IMPORTÂNCIA DE REALE NO PANORAMA JURÍDICO BRASILEIRO Uma concepção integral do fenômeno jurídico encontramos formulada na Teoria Tridimensional do Direito, especialmente na chamada fórmula Reale. Apesar de o tridimensionalismo estar implícito na obra de vários autores, como a de Emil Lask, Gustav Radbruch, Roscoe Pound e em todas as concepções culturalistas do Direito, é justamente com Miguel Reale que encontra a sua formulação ideal e que o credencia como rigorosa teoria. O fenômeno jurídico, qualquer que seja a sua forma de expressão, requer a participação dialética do fato, valor e norma. A originalidade do professor brasileiro está na maneira como descreve o relacionamento entre os três componentes. Enquanto para as demais fórmulas tridimensionalistas, denominadas por Reale genéricas ou abstratas, os três elementos se vinculam como em uma adição, quase sempre com prevalência de algum deles, em sua concepção, chamada específica ou concreta, a realidade fático-axiológico-normativa se apresenta como unidade, havendo nos três fatores uma implicação dinâmica. Cada qual se refere aos demais e por isso só alcança sentido no conjunto. As notas dominantes do fato, valor e norma estão, respectivamente, na eficácia, fundamento e vigência. O principal nome de nossa Filosofia do Direito atual, e de todos os tempos, é o de Miguel Reale (1910-2006), que alcançou projeção mundial, notadamente, por sua famosa Teoria Tridimensional do Direito, reconhecida, entre outros jusfilósofos, por Luis Legaz y Lacambra e Luis Recaséns Siches. A influência de Miguel Reale na filosofia brasileira, de um modo geral, e em particular na Filosofia do Direito, tem as suas causas, em primeiro lugar, na precisão, rigor lógico e originalidade de sua extensa produção científica1 e, de outro, por sua intensa participação na vida cultural brasileira, seja na condição de presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia, seja como professor titular de Filosofia do Direito e ex-Reitor da https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788530985028/epub/OEBPS/Text/49_chapter40.xhtml?favre=brett#pg370fne0c1 Universidade de São Paulo. Esse conjunto de fatores levou-o a uma ascendência natural sobre os pensadores nacionais, sobretudo a partir do terceiro quartel do séc. XX. Em função de Reale, o pensamento jurídico-filosófico brasileiro começou a depender menos das fontes externas de conhecimento e a explorar mais o seu potencial criador. Como a demonstrar o fato de que os filósofos não limitam a sua atuação, necessariamente, ao campo das especulações, Miguel Reale participou, decisivamente, na produção do Código Civil de 2002, na condição de coordenador da comissão elaboradora. 223.A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO Para Miguel Reale toda experiência jurídica pressupõe sempre três elementos: fato, valor e norma, ou seja, “um elemento de fato, ordenado valorativamente em um processo normativo”. O Direito não possui uma estrutura simplesmente factual, como querem os sociólogos; valorativa, como proclamam os idealistas; normativa, como defendem os normativistas. Essas visões são parciais e não revelam toda a dimensão do fenômeno jurídico. Este congrega aqueles componentes, mas não em uma simples adição. Juntos vão formar uma síntese integradora, na qual “cada fator é explicado pelos demais e pela totalidade do processo”. As Lebenverhaltnis – relações de vida – são a fonte material do Direito. Ao disciplinar uma conduta, o ordenamento jurídico dá aos fatos da vida social um modelo, uma fórmula de vivência coletiva. Seja uma norma jurídica: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador” (art. 548 do C. Civil). O fato – uma dimensão do Direito – é o acontecimento social referido pelo Direito objetivo. É o fato interindividual que envolve interesses básicos para o homem e por isso enquadra-se dentro dos assuntos regulados pela ordem jurídica. No exemplo citado, o fato é a circunstância de alguém, possuidor de bens, desejar promover a doação de seu patrimônio a outrem, sem reservar o suficiente para o custeio de suas despesas. O valor é o elemento moral do Direito; é o ponto de vista sobre a justiça. Toda obra humana é impregnada de sentido ou valor. Igualmente o Direito. No caso analisado, a lei tutela o valor vida e pretende impedir um fato anormal e que caracterizaria uma situação sui generis de abuso do direito. A norma consiste no padrão de comportamento social, que o Estado impõe aos indivíduos, que devem observá-la em determinadas circunstâncias. No exemplo do art. 548, a norma expressa um dever jurídico omissivo. A conduta imposta é de abstenção. Fato, valor e norma acham-se intimamente vinculados. Há uma interdependência entre os três elementos. A referência a um deles implica, necessariamente, a dos demais. Somente por abstração o Direito pode ser apreciado em três perspectivas: a) o Direito como valor do justo: pela Deontologia Jurídica e, na parte empírica, pela Política Jurídica; b) como norma jurídica: Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito; no plano epistemológico, pela Filosofia do Direito; c) como fato social: História, Sociologia e Etnologia Jurídica; Filosofia do Direito, no setor da Culturologia Jurídica. O Direito, para Reale, é fruto da experiência e localiza-se no mundo da cultura. Constituído por três fatores, o Direito forma-se da seguinte maneira: Um valor – podendo ser mais de um – incide sobre um prisma (área dos fatos sociais) e se refrata em um leque de normas possíveis, competindo ao poder estatal escolher apenas uma, capaz de alcançar os fins procurados. Um valor, para Miguel Reale, pode desdobrar-se em vários dever-ser, cabendo ao Estado a escolha, a decisão. O jusfilósofo salienta que toda lei é uma opção entre vários caminhos. Contesta, porém, o decisionismo, que erra ao exagerar o poder de escolha. Em relação ao fato, acentua que nunca é um fato isolado, mas um “conjunto de circunstâncias”. Em sua concepção, o fenômeno jurídico é uma realidade fático-axiológico-norma-tiva, que se revela como produto histórico-cultural, dirigido à realização do bem comum. Ao mesmo tempo que rejeita o historicismo absoluto, não admite valores meta-históricos. A pessoa humana, fundamento da liberdade, é um valor absoluto e incondicionado. A ênfase que dá à experiência não exclui uma concepção de Direito Natural em termos realistas. Apesar de sua natureza dinâmica, o Direito possui um núcleo resistente, uma constante axiológica, invariável no curso da história. O autor da Teoria Tridimensional definiu o Direito como “realidade histórico--cultural tridimensional, ordenada de forma bilateral atributiva, segundo valores de convivência”. O Direito é fenômeno histórico, mas não se acha inteiramente condicionado pela história, pois apresenta uma constante axiológica. O Direito é uma realidade cultural, porque é o resultado da experiência do homem. A bilateralidade é essencial ao Direito. A bilateralidade-atributiva é específica do fenômeno jurídico, de vez que apenas ele confere a possibilidade de se exigir um comportamento. BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL Ordem do Sumário: 222 – Paulo Douradode Gusmão, O Pensamento Jurídico Contemporâneo; 223 – Miguel Reale, Filosofia do Direito e Teoria Tridimensional do Direito; Luis Recaséns Siches, Introducción al Estudio del Derecho; Luis Legaz y Lacambra, Revista Brasileira de Filosofia, Fasc. 81.
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