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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS Maringá 2010 EDITORA DA UNIvERSIDADE ESTADUAl DE MARINgá Reitor Prof. Dr. Décio Sperandio Vice-Reitor Prof. Dr. Mário Luiz Neves de Azevedo Diretor da Eduem Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor-Chefe da Eduem Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini CONSElHO EDITORIAl Presidente Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor Associado Prof. Dr. Ulysses Cecato Vice-Editor Associado Prof. Dr. Luiz Antonio de Souza Editores Científicos Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Prof. Dr. João Fábio Bertonha Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini Prof. Dr. Manoel Messias Alves da Silva Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Prof. Dr. Ronald José Barth Pinto Profa. Dra. Rosilda das Neves Alves Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis EqUIpE TéCNICA Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanamati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Edilson Damasio Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing Marcos Cipriano da Silva Comercialização Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima Maringá 2010 História e conHecimento introdução aos estudos Históricos Angelo Priori (Organizador) 1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Copyright © 2010 para o autor Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2010 para Eduem. Introdução aos estudos históricos / Angelo Priori, organizador. - Maringá : Eduem, 2010. 118p. 21cm. (História e Conhecimento; n. 1). ISBN 978-85-7628-250-1 1. História - Pesquisa. 2. Estudos históricos. 3. História e historiador. 4. Historiografia - Pesquisa documental. I. Priori, Angelo, org. CDD 21. ed. 901 I61 HISTÓRIA E CONHECIMENTO Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Tania Braga Guimarães Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio Júnior Bianchi Eliane Arruda Endereço para correspondência: Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br 3 Sobre os autores Apresentação da coleção Apresentação do livro Capítulo 1 A história e o ofício do historiador Angelo Priori Capítulo 2 O tempo da história Silvia Helena Zanirato Capítulo 3 Documentos: a ampliação dos materiais de pesquisa utilizados pela historiografia Verônica Karina Ipólito / Angelo Priori / Silvia Maria Amâncio Capítulo 4 Memória individual, memória coletiva Silvia Maria Amâncio / Angelo Priori / Verônica Karina Ipólito Capítulo 5 A pesquisa com documentos orais: algumas considerações e umas poucas conclusões Paula Silva Rollo / José Henrique Rollo Gonçalves > 5 > 7 > 9 > 11 > 21 > 33 > 45 > 55 umárioS INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 4 Capítulo 6 Concepção de história da escola rankeana e da escola prussiana, século xix Bárbara Natalia Gómez Capítulo 7 A escola metódica e a crítica documental Silvia Maria Amâncio / Verônica Karina Ipólito / Angelo Priori Capítulo 8 Marx e a História Angelo Priori / Andrey Minin Martin Capítulo 9 A Escola dos Annales Verônica Karina Ipólito / Silvia Maria Amâncio / Angelo Priori > 81 > 91 > 103 > 69 5 Andrey Minin Martin Graduado em História pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Angelo Priori Graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Bárbara Natália Gomez Licenciada em História e mestre em História pela Universidade Nacional de Missiones (Argentina), é professora na mesma instituição. José Henrique Rollo Gonçalves Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor do Curso de História e pesquisador do Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História (Tulha) da Universidade Estadual de Maringá. Paula Silva Rollo Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense, é membro do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) daquela universidade. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Silvia Helena Zanirato Graduada em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP), é professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. obre os autoresS INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 6 Silvia Maria Amâncio Graduada em História e mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Verônica Karina ipólito Graduada em História e mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. 7 presentação da ColeçãoA A coleção História e Conhecimento é composta de 42 títulos, que serão utiliza- dos como material didático pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatura em História, Modalidade a Distância, da Universidade Estadual de Maringá, no âmbito do sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que está sob a responsabilidade da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES). A utilização desta coleção pode se estender às demais instituições de Ensino Su- perior que integram a UAB, fato que tornará ainda mais relevante o seu papel na for- mação de docentes e pesquisadores, não só em História mas também em outras áreas na Educação a Distância, em todo o território nacional. A produção dos 42 livros, a qual ficou sob a responsabilidade da Universidade Estadual de Maringá, teve 38 títulos a cargo do Departamento de História (DHI); 2 do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP); 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE); e 1 do Departamento de Letras (DLE). O início do ano de 2009 marcou o começo do processo de organização, produção e publicação desta coleção, cuja conclusão está prevista para 2012, seguindo o cro- nograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Num primeiro momento, serão impressos 294 exemplares de cada livro para atender à demanda de material didático dos que ingressaram no Curso de Graduação em História a Distância, da UEM, no âmbito da UAB. O traço teórico geral que perpassa cada um dos livros desta coleção é o compro- misso com uma reconstrução aberta, despreconceituosa e responsável do passado. A diversidade e a riqueza dos acontecimentos da História fazem com que essa reconstru- ção não seja capaz de legar previsões e regras fixas e absolutas para o futuro. No entanto, durante a recriação do passado, ao historiador é dado muitas vezes descobrir avisos, intuições e conselhos valorosos para que não se repitam os errosde outrora. No transcorrer da leitura desta coleção percebemos que os livros refletem várias matrizes interpretativas da História, oportunizando ao aluno o contato com um ines- timável universo teórico, extremamente valioso para a formação da sua identidade intelectual. A qualidade e a seriedade da construção do universo de conhecimento desta coleção pode ser tributada ao empenho mais direto por parte de cerca de 30 organizadores e autores, que se dedicaram em pesquisas institucionais ou até mesmo INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 8 em dissertações de mestrado ou em teses de doutorado nas áreas específicas dos livros que se propuseram a produzir. Esta coleção traz um conhecimento que certamente marcará positivamente a for- mação de novos professores de História, historiadores e cientistas em geral, por meio da Educação a Distância, o qual foi fruto do empenho de pesquisadores que viveram circunstâncias, recursos, oportunidades e concepções diferentes, temporal e espacial- mente. Como corolário disso, seria justo iniciar os agradecimentos citando todos aqueles que não poderiam ser nominados nos limites de uma apresentação como esta. Roga- mos que se sintam agradecidos todos aqueles que direta, indireta ou mesmo longin- quamente, quiçá os mais distantes ainda, contribuíram para a elaboração deste rico rol de livros. Além do agradecimento, registramos também o reconhecimento pelo papel da Rei- toria da UEM e de suas Pró-Reitorias, que têm contribuído não apenas para o êxito desta coleção mas também para o de toda a estrutura da Educação a Distância da qual ela faz parte. Agradecemos especialmente aos professores do Departamento de História do Cen- tro de Ciências Humanas da UEM pelo zelo, pela presteza e pela atenção com que têm se dedicado, inclusive modificando suas rotinas de trabalho para tornar possível a maioria dos livros desta coleção. Agradecemos à Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aper- feiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), e ao Ministério da Educação (MEC) como um todo, especialmente pela gestão dos recursos e pelo empenho nas tramitações para a realização deste trabalho. Outrossim, agradecemos particularmente à Equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe técnica. Despedimo-nos atenciosamente, desejando a todos uma boa e prazerosa leitura. Moacir José da Silva Organizador da coleção 9 Os textos que compõem esse livro foram pensados para servir aos alunos do primeiro semestre do curso de graduação em História. Esta edição foi realizada, exclusivamente, para os alunos matriculados em cursos de História da Universidade Aberta do Brasil (UAB). A nossa preocupação central é a de iniciar o estudante nas concepções mais usuais do trabalho historiográfico e encorajá-lo a praticar aquilo que Marc Bloch chamou, oportunamente, de o “ofício do historiador”. Nesse sentido, os capítulos foram elaborados para marcar as trajetórias da pro- dução historiográfica nos últimos dois séculos, desvendando, como os profissionais da história, ao longo do tempo, formularam uma definição de história, elaboraram métodos e técnicas de pesquisa e conceberam os preceitos das principais correntes historiográficas. Enfim: os textos servem para mostrar como os historiadores trilha- ram o caminho da pesquisa histórica e da produção do conhecimento. Ao ler o livro, o estudante leitor irá encontrar dois conjuntos de textos. No pri- meiro conjunto, formado pelos cinco capítulos iniciais, o eixo temático essencial foi uma reflexão sobre temas cruciais para o ofício do historiador tais como: a formação do conceito de história; a relevância da noção de tempo; os métodos e materiais de trabalho; a importância dos documentos e das fontes históricas; o lugar da memória e do esquecimento. O segundo conjunto de textos, formado pelos quatro últimos capítulos, é um passeio pelas principais correntes historiográficas formuladas pelos historiadores nos séculos XIX e XX. Naturalmente, diante de milênios de evolução do pensamento humano, o traba- lho de centenas de gerações construindo suas idéias, seria um conteúdo desmesura- do para os limites de um livro de caráter introdutório aos estudos históricos de uma coleção que contará com 42 títulos. No afã de evitar a redundância de conteúdos, nosso recorte temático recaiu especialmente sobre os últimos dois séculos. Dessa forma, o estudo de historiadores da Antiguidade, da Idade Média, do Iluminismo e, mesmo pesquisas recentes do estruturalismo e da história cultural, serão objetos de abordagem em outros livros dessa coleção. Ainda no intuito de evitar a sobrepo- sição de conteúdos e focalizar os pontos mais essenciais, no âmbito da Introdução aos Estudos Históricos, neste livro nos detivemos na noção de método de histó- ria em Marx, sem nos aprofundarmos nas diferentes vertentes marxistas pós-Marx. presentação do livroA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 10 Seguindo este raciocínio, na abordagem da escola dos Annales, priorizamos o seu desenvolvimento intelectual que precedeu as últimas duas décadas. Este livro é coletivo. Foi escrito por historiadores que estão em diversos momen- tos de sua carreira. Há textos de historiadores já talhados pela lida historiográfica, como de jovens historiadores, que constituirão o futuro da produção historiográfica brasileira. Por fim, uma última observação. O organizador desse volume escolheu os extra- tos de documentos e formulou as reflexões de aprendizagem apresentadas em cada capítulo, visando atender a um procedimento comum da coleção. Desejamos uma boa leitura a todos e esperamos que este livro possa ser útil para que os novos estudantes possam trilhar os caminhos emocionantes da história e descobrir o “ofício do historiador”. Angelo Priori Organizador 11 Angelo Priori “O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, ou se eu não pergunto a mim mesmo, eu o sei; mas se alguém me pergunta e eu quero explicar, eu não o sei mais” (Santo Agostinho). INTRODUÇÃO A preocupação de Santo Agostinho, em relação ao tempo, exposta na epígrafe aci- ma, pode ser assinalada em relação à questão: “O que é história?”. Estamos diante de uma pergunta simples. Porém, as respostas são complexas, difíceis e variadas. Quando essa pergunta foi realizada por um professor a um grupo de estudantes, no primeiro dia de aula na universidade, muitas foram as respostas: “Tudo que já passou, aconteceu. Basicamente falando, o passado”, disse um. “É tudo aquilo que aconteceu e que está acontecendo”, enfatizou outro. “É o estudo do tempo e o espaço pelos homens”, revelou um terceiro. “São os fatos e acontecimentos passados, com diversos graus de relevância para o homem”, analisou o quarto. “É o conhecimento dos fatos que já foram pesquisados e relatados ao decorrer do tempo”, sentenciou um quinto aluno. A complexidade se acentua ainda mais, quando pensamos a palavra “história” no idioma português. Se buscarmos a definição em um bom dicionário de língua portu- guesa, vamos encontrar respostas como: “a história é o conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar, a época, o ponto de vista es- colhido”, “a história é a ciência que estuda os eventos passados, com referência a um povo, país, período ou indivíduo específico” (HOUAISS, 2001, p. 1543). Logo se percebe o duplo sentido da palavra história: em primeiro lugar, ela apa- rece como ciência, ou como um conjunto de conhecimentos; em segundo lugar ela aparece como os eventos passados, os acontecimentos vividos pela humanidade. Dois sentidos, uma mesma palavra. Mas essa complexidade não é privilégio da língua portuguesa. Com a Francesa A história e o ofício do historiador 1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 12 ocorre o mesmo. Mesmo em inglês(story/history) ou em italiano (istoria/storia), que existem duas palavras diferentes, elas não são suficientes para explicar essas ambigui- dades, já que as primeiras estão dotadas muito mais do sentido de narrarem eventos fictícios, fantasiosos ou inacreditáveis do que fatos realmente acontecidos. O mesmo ocorre com a palavra “estória” em português. No idioma alemão existem duas palavras para diferenciar os significados: uma para tratar da realidade histórica – os aconteci- mentos propriamente ditos (Geschichte) e outra para designar o conhecimento histó- rico, ou seja, a análise dos acontecimentos realizada pelo historiador (Historie). Diante da dificuldade de se achar palavras diferentes para significados diferentes, os historiadores e professores de história não se intimidaram em responder à pergun- ta: o que é história? E muitos o fizeram, ao longo do tempo, tomando como referência as suas próprias experiências e as suas reflexões metodológicas.1 Marc Bloch diz que, “seguramente, desde que surgiu, já há mais de dois milênios, nos lábios dos homens, ela [a palavra história] mudou muito de conteúdo. É a sorte, na linguagem, de todos os termos verdadeiramente vivos” (2001, p. 51). Na primeira frase de seu brilhante livro “Histórias”, Heródoto já sinaliza o que ele pretende: “Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens não se desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes e maravilhosas empresas, realizadas quer pelos Helenos, quer pelos Bárbaros; e, sobretudo, a razão porque entraram em guerra uns com os outros” (HERÓDOTO, 1994, p. 53). Outros escritores, bem mais contemporâneos do que Heródoto, também buscaram uma definição. Tolstoi, no epílogo de Guerra e Paz, dizia que o “objeto da história é a vida dos povos e da humanidade” (1992, p. 1557); Collingwood analisava que história é “uma investigação para o auto-conhecimento humano” (1981, p. 17); Marrou enfa- tizava que a “história é o conhecimento do passado humano” (1978, p. 28); Carr en- sinava que a história é “um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado” (2006, p. 65); e Bloch enfatizava: “o objeto da história, é por natureza, os homens” (2001, p. 54), destacando o plural. Investigação, pesquisa, conhecimento: eis as palavras mágicas. Se buscarmos a eti- mologia da palavra história, iremos encontrar exatamente isso: investigação, pesquisa, informação, relato, narração. Não é à toa que o chamado “pai da história” já nos colo- cava: “esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso”, para dizer 1 Nos capítulos 6, 7, 8 e 9, apresentaremos as características centrais das principais escolas historiográficas que tiveram importância significativa na formulação dos pressupostos teórico- metodológicos de trabalho do historiador, no decorrer dos séculos XIX e XX. 13 que o seu livro, o seu relato, a sua narrativa, isto é, a sua exposição, era resultado da sua pesquisa, da sua observação, ou seja, da sua investigação. Enfim, qual a melhor definição de história? O já esquecido historiador francês Jean Glénisson nos recomendava, exigindo bom senso, que cada um é quem deve respon- der por si mesmo, após seus estudos universitários; e acrescentava: para ter uma maior segurança, é bom realizar algumas atividades de pesquisa antes (GLENISSON, 1983, p. 12). Mesmo seguindo o conselho de Glénisson, vamos tentar realizar alguns exercícios no sentido de chegar a uma definição de história que seja plausível. Poderíamos tomar como exemplo qualquer definição dos historiadores acima. No entanto, vamos partir da definição de história de Marrou, que de certa forma contem- pla todos os vetores colocados pelos demais: “a história é o conhecimento do passado humano” (MARROU, 1978, p. 78). Talvez essa definição nos sirva para compreender melhor as preocupações que ora suscitamos. Primeiro ponto: a história é conhecimento. No entanto, para se conhecer algo, devemos pesquisar, investigar. Mas que tipo de pesquisa, que espécie de investigação? Não é qualquer pesquisa, evidentemente; é pesquisa científica, elaborada através de um rigor metodológico e pressupostos teóricos bem definidos. Vejamos alguns aspectos. 1) Para realizar pesquisa científica devemos ter claro quais as formas de pensa- mento que nos permitem fazer perguntas e responder essas indagações. E o que é mais importante: para fazer ciência (pesquisa científica) não basta apenas reunir aquilo que já conhecemos e organizá-lo; é preciso buscar mais, descobrir aquilo que não conhecemos. Evidentemente, que as coisas já conhecidas nos são úteis (elas nos servem como um farol na escuridão), mas o faro do historia- dor deve ir para além, buscando o desconhecido; presença onde há ausência; e luz onde há escuridão. 2) A história é explicação. Como veremos nos capítulos seis e sete, foi muito co- mum, durante praticamente todo o século XIX, dizer que a tarefa da história, ou do historiador, era “mostrar o que realmente se passou”, para usar uma expres- são de Leopold Von Ranke. A história não deve só mostrar o que se passou (isto os jornais, as revistas, as TVs, a Internet fazem com bastante propriedade). É função do historiador explicar o que se passou. Como nos lembra o historia- dor italiano Carlo Ginzburg, citando o filósofo antiquário, Francesco Robortello: “O historiador não inventa: explica. O historiador é aquele que explica as ações que os próprios homens fazem” (GINZBURG, 2007, p. 25). No entanto, essa explicação, esse conhecimento, tem que ser verdadeiro. A história deve ser o resultado do mais rigoroso, do mais sistemático dos esforços para se aproximar A história e o ofício do historiador INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 14 da verdade. A história é o conhecimento cientificamente elaborado. Em história, quando se fala em ciência, é preciso falar grego. História não no sentido de “epistéme” (conhecimento vulgar da experiência cotidiana), mas sim de “tékhnê” (conhecimento elaborado em função de um método sistemático e ri- goroso, aquele que se mostra capaz de representar o fator optimum da verdade). 3) Toda investigação requer escolha. Esse é um problema de ação do historiador. Logo, cabe ao historiador, por dever de ofício, definir o que é história ou o que é um fato histórico. Claro está que alguns fatos não mudam. Eles são, digamos, a espinha dorsal da história. Não é possível negar, sobre a história do Brasil, que a proclamação da República ocorreu em 1889 e que o golpe militar ocorreu em 1964. Mas isso não quer dizer muita coisa. O historiador não deve ter dúvidas sobre isso. A exatidão é um dever do historiador e não uma virtude. Como nos diz E. H. Carr: “Elogiar um historiador por sua exatidão é o mesmo que elogiar um arquiteto por usar a madeira mais conveniente ou o concreto adequada- mente misturado” (2006, p. 46). Dessa forma, vamos deixar claro uma coisa. Quando falamos que o golpe militar brasileiro ocorreu em 1964, o que é fato, isso não quer dizer que ele fala por si. Naturalmente isso não é possível. “Os fatos falam apenas quando o historiador os aborda: é ele quem decide quais os fatos que vêm à cena em que ordem ou contexto” (CARR, 2006, p. 47). É o historiador, portanto, que irá definir quais os fatos que explicam o golpe mi- litar: uma reação conservadora contra as políticas de reformas de base do gover- no Goulart; o “medo” do comunismo; a ameaça do chamado “inimigo interno”; uma reação contra a livre organização dos trabalhadores urbanos e rurais; um freio nos movimentos sociais, estudantis e intelectuais; a interferência externa dos Estados Unidos; a vocação golpista dos militares conservadores brasileiros, entre tantas outras explicações possíveis. O historiador é um selecionador. Essa ideia de que os fatos históricos existem independentementeda interpretação do historiador é uma falácia, mas sabemos o quanto é difícil erradicá-la. Segundo ponto: conhecimento do passado. O passado é o objeto do historia- dor. Porém, não qualquer passado. O passado humano. E quando falamos em passa- do humano queremos dizer “dos homens que vivem em sociedade”, pois afinal não existe homem no mundo, por mais isolado, que não tenha uma relação direta com a sociedade, com a humanidade. Quando falamos em passado humano nos referimos também aos fatos humanos do passado, já que todos os fatos históricos são realizados ou influenciam diretamente os homens e mulheres desta terra. 15 Mesmo uma catástrofe climática - como uma enchente, uma chuva de granizo, uma geada, um vendaval, um terremoto, que aparentemente não tem a participação do ho- mem, por ser um acontecimento natural (nestes tempos de destruição ambiental sabe- mos que essa verdade já não existe mais) – interfere diretamente na vida dos homens. Pode-se citar o exemplo da grande geada de 1975, ocorrida nos estados de São Paulo e Paraná, com rescaldo em alguns outros estados que dizimou as plantações de cafezais, ao acelerar o seu processo de erradicação e fortalecer o de mecanização do campo. Ge- ada, portanto, com consequência direta na vida de milhares e milhares de trabalhadores rurais, que tiveram de migrar em busca de trabalho nas grandes cidades ou se deslocar para novas áreas de fronteiras nos estados do Mato Grosso, Rondônia, Goiás e Pará. O “passado humano”, no sentido amplo da expressão, significa as ações, os pensa- mentos, os sentimentos, os comportamentos dos homens e das mulheres; e também todas as suas obras, suas criações materiais e espirituais, suas experiências e culturas, realizadas em suas comunidades, sociedades, civilizações, enfim, nos locais onde a vida cotidiana exercita a sua plenitude (MARROU, 1978; THOMPSON, 1981). Terceiro ponto: conhecimento do passado humano. Vimos no item anterior o que é passado humano. Mas como se conhece o passado humano? Eis a pergunta que precisa ser feita e que não é tão fácil de ser respondida. Conhecer o passado humano significa dizer conhecer o homem (ou “os homens”, no plural, como nos ensina Marc Bloch) de ontem, de outrora, de antigamente. Mais enfaticamente: conhecer o passado humano não é só pensar o ser humano, mas as suas ações no tempo.2 Nesse sentido, é importante enfatizar que o passado tem um significado impor- tante para nós, tanto individual quanto socialmente. Nos dias atuais, é quase impen- sável vivermos sem as tecnologias que facilitam e infernizam nossas vidas. Todavia, só podemos desfrutar dessas tecnologias porque outros homens, que viveram antes de nós, conseguiram deixar esse legado. Portanto, esse passado, próximo ou longínquo, ajuda-nos a compreender melhor a sociedade na qual vivemos hoje, saber o que de- fender e o que preservar, saber o que mudar ou que destruir. A história tem uma relação ativa com o passado, pois o passado está presente em todas as esferas da vida dos homens. Como nos diz Jean Chesneaux, a relação coletiva com o passado, o conhecimento ativo do passado é, ao mesmo tempo, uma exigência e uma necessidade. O passado pesa. Mas precisa-se romper com ele. Precisamos fazer “tábula rasa do passado” (CHESNEAUX, 1995). A quem cabe fazer “tábula rasa do passado”? Ou para usar uma expressão mais 2 No segundo capítulo, trabalhamos com maior ênfase o conceito de tempo, procurando pensá- lo ao longo da história. A história e o ofício do historiador INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 16 do senso comum: a quem cabe passar o passado a limpo? Resposta curta e direta: o historiador! O historiador é o profissional que tem formação teórico-metodológica para passar a limpo o passado. Portanto, o historiador deve lançar sobre o passado um olhar racional para compreendê-lo e explicá-lo. Só o conhecimento elaborado desse passado, nas condições empíricas e lógicas faz com que esse passado se torne história. Já em 1910, o historiador americano Carl Becker enfatizava: “os fatos da história não existem para qualquer historiador, até que ele os crie” (BECKER apud CARR, 2006, p, 57). No mesmo sentido escrevia o historiador inglês M. Oakeshott, em 1933: “A história é a experiência do historiador. Ela não é feita por ninguém, exceto pelo historiador: escrever a história é a única maneira de fazê-la” (OAKESHOTT apud CARR, 2006, 58). Mas esse olhar racional que o historiador lança sobre o passado é um olhar do pre- sente. Quando um historiador escreve sobre um fato do passado, ele o faz tomando como referência o tempo presente. O historiador pertence à sua época e a ela está conectado pelas condições de sua existência. Portanto, é o presente que nos possibi- lita formular questões para compreender o passado. Temos que inverter essa relação passado/presente. Não é o passado que comanda, que dá lições, que julga do alto do seu tribunal. É o presente que questiona, que faz as intimações, que faz as perguntas. A análise sobre os fatos passados é diretamente influenciada pelos fatos do presen- te. Basta uma rápida olhada sobre a produção historiográfica recente sobre o terroris- mo, para ver como essas análises estão influenciadas pelos ataques às torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001. O historiador não pertence ao passado, mas ao presente. Portanto, a história é a relação, a conjunção, estabelecida por iniciativa do historiador entre dois planos da humanidade: “o passado vivido pelos homens de outrora; e o presente, onde se desen- volve o esforço de recuperação desse passado em benefício do homem [atual] e dos homens que virão” (MARROU, 1978, p. 32). Quarto ponto: o conhecimento do passado humano se faz com documentos. Todo pesquisador necessita de um método de trabalho e de materiais. O químico quando está no seu laboratório utiliza-se de diversos reagentes para fazer as suas ex- periências. O biólogo busca na natureza (plantas, animais, fungos, insetos, etc.) os materiais necessários para as suas pesquisas. Com o historiador não é diferente. Ele necessita de um conjunto de documentos (fontes históricas) para realizar as suas pes- quisas, para produzir o seu conhecimento.3 Mas, enfim, o que é um documento? Fustel de Coulanges (1901), um dos principais 3 Nos capítulos 3, 4 e 5 discutiremos o conceito de documento e a ampliação do debate sobre fontes históricas. 17 historiadores positivistas da segunda metade do século XIX, dizia que eram os “textos escritos”, como as leis, as cartas, as fórmulas, as crônicas, os tratados militares e diplo- máticos, embora também reconhecia que onde faltassem os documentos escritos, os historiadores deveriam buscar outras alternativas, como “escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos de imaginação [...]. Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história” (1901, p. 245). Lucien Febvre era ainda mais enfático: A história se faz “com textos, evidentemente: mas não apenas os textos”. Mas também “um poema, um quadro, um drama: docu- mentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, saturados de pensa- mento e de ação em potência” (FEBVRE, 1985, p. 24). Enfim, documentos são todos os vestígios deixados pelos homens, escritos ou não, que contemplem as suas ações, as suas realizações, as suas ideias, as suas atitudes e as suas experiências sociais e culturais. Portanto, pode ser uma carta, uma fotografia, uma pintura, uma lista de supermer- cado, um diário de adolescente, um blog, um perfil em um sítio de relacionamento na internet ou uma reclamação em um órgão de defesa do consumidor contestando que um serviço público não funciona adequadamente. Marrou sintetiza: “Constitui um documento toda fonte de informação de que o espírito do historiador sabe extrair alguma coisa para o conhecimento do passado hu-mano, considerando sob o ângulo da questão que lhe foi proposta” (1978, p. 62). Por fim, cabe registrar: os documentos são de toda espécie: escritos, estatísticos, imagéti- cos, esculturais, arquitetônicos, orais, gestuais, sonoros, digitais etc e trazem muitas informações. Mas isto apenas não basta. O historiador precisa saber interpretar esses documentos. Formular as questões adequadas para obter as respostas adequadas às suas perguntas. A história e o ofício do historiador INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 18 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. CARR, Edward Hallet. Que é história? 9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995. COLLINGWOOD, R. G. A idéia da História. 5. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1981. COULANGES, Fustel. Une leçon d’ ouverture et quelques fragments inédits. Revue de Synthése Historique, Paris, n. 6, p. 241-263, 1901. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. 2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1985. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007. GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 4. ed. São Paulo: Difel, 1983. HERÓDOTO. Histórias: livro 1. Lisboa: Edições 70, 1994. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. KI-ZERBO, J. Para quando a África?: entrevista com René Holestein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. MARROU, Henri-Irénée. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. THOMPSON, E. P. O termo ausente: experiência. In: ______. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p. 180-201. Referências 19 TOLSTOI, Leon. La Guerre et la paix (epílogue). Paris: Gallimard, 1992. 1) Extrato de documentos para leituras: “A história anda sobre dois pés: o da liberdade e o da necessidade. Se considerarmos a história na sua duração e na sua totalidade, compreenderemos que há, simultaneamente, continuidade e ruptura. Há períodos em que as intervenções se atropelam: são as fases da liberdade criativa. E há momentos em que, porque as contradições não foram resolvidas, as rupturas se impõem: são as fases da necessidade. Na minha compreensão da história, os dois aspectos estão ligados. A liberdade representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para diante rumo a novas opções, adições, descobertas. E a ne- cessidade representa as estruturas sociais, econômicas e culturais que, pouco a pouco, vão se instalando, por vezes de forma subterrânea, até se imporem, desembocando à luz do dia numa configuração nova. De uma certa maneira, a parte da necessidade da história escapa- nos, mas pode-se dizer que, mais cedo ou mais tarde, ela há de se impor por si própria. Assim, não podemos separar os dois pés da história – a história-necessidade e a história- invenção -, como não podemos separar os dois pés de alguém que anda: os dois estão com- binados para avançar. Como a história tem esse pé da liberdade, que antecipa o processo, existe sempre uma grande porta aberta para o futuro. A história-invenção reclama o futuro; incita as pessoas a se impelirem para algo inédito, que ainda não foi catalogado, que não foi visto em parte alguma e que, subitamente, é estabelecido por um grupo. Isto significa que nem tudo está fechado a cadeado pela história-necessidade: continua a haver sempre uma abertura”. [Definição de História elaborada pelo historiador africano Joseph Ki-Zerbo, extraído da seguinte referência: KI-ZERBO, J. Para quando a África?: entrevista com René Holestein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. p. 17.] 2) Reflexão para aprofundamento temático: Tomando como referência o extrato documental apresentado, bem como as argumenta- ções ao longo do capítulo, elabore uma definição de história, contemplando termos como tempo, homem e sociedade. Fontes e referenciais para o aprofundamento temático A história e o ofício do historiador Anotações INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 20 Anotações 21 Como e por que o tempo nos incomoda tanto? Por que temos a necessidade de en- contrar explicações para seu acontecer? Essa indagação por vezes perpassa a nossa vida e nos vemos sem argumentos. Em busca de uma resposta a essa questão acabamos por nos reportar às considerações formuladas pelo jornalista, Adauto Novaes, por ocasião do ciclo de conferências Tempo e História - Caminhos da Memória, Trilhas do Futuro, em 1992, ocasião em que se comemorava quinhentos anos da chegada de Colombo a América. Segundo Novaes “tempo é memória, é experiência vivida. Esquecer o passa- do é negar toda efetiva experiência de vida; é negar o futuro e abolir a possibilidade do novo a cada instante”. Mais ainda, para ele, sem um entendimento a respeito do tempo, as ideias de justiça, liberdade, alteridade, “tornam-se abstrações vazias no es- paço e tempo, a partir do momento em que qualquer ação já sabe eternamente feita e absolutamente irreparável” (NOVAES, 1992, p. 9-17). Se considerarmos que para o historiador, “tudo começa, tudo acaba pelo tempo [...] o tempo imperioso do mundo” (BRAUDEL, 1992, p. 72), temos que as reflexões sobre o tempo são, necessariamente, reflexões de historiadores. Em face disso é que a discussão sobre o tempo e a história se torna relevante; faz-se necessário investigar mais detalhadamente a relação existente entre tempo e história, verificar a associação estabelecida por teóricos que se propuseram a refletir sobre esse assunto e tornar menos complexas as explicações para o acontecer histórico. Um dos primeiros aspectos a ser destacado diz respeito à natureza do tempo. O entendimento do tempo é algo natural no homem ou resultado de um processo de aprendizagem? A resposta a essa pergunta não é tão fácil e inquieta os filósofos há tempos. Isaac Newton, por exemplo, dizia que o tempo é um dado objetivo do mundo e que não se distingue dos demais objetos da natureza. Não muito diferente era o entendimento de René Descartes para quem o entendimento do tempo é uma forma de conhecimento que precede qualquer experiência humana. Kant também afirmava que o tempo é uma O tempo da história 2 Silvia Helena Zanirato INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 22 experiência a priori da consciência humana. Tais concepções tinham em comum o pressuposto de que o tempo é uma forma inata de experiência, um dado não modificável da experiência humana. Ou ele é um dado objetivo, que independe da realidade humana, ou é uma simples representação subjetiva, enraizada na natureza humana (ELIAS, 1998, p. 9). Norbert Elias, numa perspectiva oposta a essas, defendeu que o conhecimento do tempo não é inato ao homem, mas sim resultado de um longo processo de aprendi- zagem, uma vez que o indivíduo não tem capacidade de forjar, por si só, tal conceitu- ação. O entendimento sobre o tempo é um conhecimento que foi construído, assimi- lado e transmitido socialmente e que remonta a momentos em que o homem sentiu necessidade de explicar os movimentos da natureza, as posições e trajetórias que se apresentam sucessivamente: o nascer e pôr-do-sol, as estações do ano, as mudanças da lua, etc. Para Elias, essas sequências recorrentes serviram como unidade de referência e meios de comparação que permitiram aos homens explicar a natureza a sua volta. (ELIAS, 1998). O tempo, para Elias, é uma forma de orientação criada pelo homem no decorrer do desenvolvimento das sociedades humanas, que traz imbricada a interdependência entre natureza, sociedade e indivíduo (ELIAS, 1998, p. 17). No interior da sociedade, os indivíduos aprendem e transmitem seus conhecimentos, entre os quais o do tempo, que é uma instituição social, cujo aprendizado se faz de forma coercitiva, de modo que todo sujeito, desde criança, vai se habituando, autodisciplinando-se,e modelando a sua sensibilidade em relação a essa compreensão. Trata-se de uma coerção exercida de fora para dentro do indivíduo, num processo de internalização de hábitos sociais, ou aquilo que Norbert Elias denominou processo de civilização. Por isso mesmo, George Woodcok afirma que tanto para os antigos gregos e chi- neses, quanto para os nômades árabes ou para o peão mexicano de hoje, o tempo é considerado “pelos processos cíclicos da natureza, pela sucessão dos dias e das noites, pela passagem das estações” (1981, p. 120). Sociedades não sujeitas às compreensões civilizatórias interpretam o passar do dia pelo amanhecer e pelo crepúsculo e dos anos pelos períodos de plantar e colher, das folhas que caem e do gelo que derrete nos lagos e rios. De acordo com Woodcock, até a Modernidade, o transcorrer do tempo era conside- rado um processo natural de mudança e os homens não se preocupavam em medi-lo com exatidão. Daí que “em nenhum lugar do Mundo Antigo ou da Idade Média havia mais do que uma pequeníssima minoria de homens que se preocupavam realmente em medir o tempo em termos de exatidão matemática” (1981, p. 120). O calendário e o relógio consistem em formas de expressar o entendimento das 23 sequências recorrentes as quais chamamos dias, meses, anos. Ambos são símbolos do nosso entendimento das sequências de acontecimentos. O relógio surgiu no século XI para regular os sinos do monastério em intervalos regulares (WOODCOCK, 1981, p. 121). Essa criação adequou-se de tal maneira à realidade que cada vez fica mais difícil distingui-la dessa mesma realidade. Hoje confundimos as sequências de acontecimen- tos que balizam a vida, com a relação construída pela humanidade para explicar essas sequências, ou seja, com os símbolos instituídos como o relógio e o calendário (ELIAS, 1998). A forma como passamos a conceber o tempo, pelo passar dos ponteiros do relógio fez com que o tempo, como duração, perdesse sua importância “e os homens começa- ram a falar em extensões do tempo como se estivessem falando em metros de algodão” (WOODCOCK, 1981, p. 122). O relógio marca o passar dos dias, o calendário o passar dos anos. Por meio desses instrumentos determinamos a idade das pessoas, os processos sociais, situamos os acontecimentos em um período e procuramos explicá-los. Para ser entendida, a histó- ria do ser tem que estar inserida num calendário. Feitas essas considerações, podemos nos voltar para as discussões acerca da proble- mática do tempo na escrita da história, ou de como os historiadores procuram explicar as ações humanas inscritas no tempo. Entre elucidações sobre o assunto, retomamos a concepção cunhada na Antiguida- de grega. Em sua discussão sobre a física dos corpos, Aristóteles afirma que o tempo é um contínuo e que não se pode tratá-lo independente da história humana. Para ele, a compreensão do ser, a sua definição, depende de se descobrir em cada fenômeno, a sua causa. (As causas: eficiente – o que provoca o movimento, formal - o que torna um ser ele mesmo, material – a matéria da qual o ser é feito e final – o fim para onde o ser se dirige). Para Aristóteles o Universo é único e finito, eterno, seu movimento é circular, é passagem em atos sucessivos. Não tem início, meio ou fim. O tempo também se coloca nessa concepção, é eterno, isto é, existe sempre, e as coisas é que são temporais, ha- vendo um tempo para cada gênero ou espécie. Cada ser tem um tempo: nascimento, desenvolvimento, morte. O mundo e o universo são finitos, hierarquizados, gover- nados pela finalidade. Nesse universo não existe uma ideia de um deus regulador de todos os fenômenos ou o criador. Tudo tem um sentido, imutável e eterno, uma vez que as mudanças de cada ser se repetem na natureza com inexorável precisão (ARIS- TOTELES, 1987). Até o Renascimento, essa visão de mundo imperou como um modelo de conheci- mento sobre o tempo, ainda que concorrendo com as explicações fundamentadas nas O tempo da história INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 24 concepções judaico-cristãs, que passaram a mostrar o tempo em outra perspectiva. Segundo os judeus, Moisés recebeu as Tábuas das Leis num lugar e numa data certa: isso se constituiu em um evento histórico, irreversível, a partir do qual a intervenção de Deus se fez constante na história, revelando sempre Sua vontade através dos even- tos (REIS, 1994, p. 11). Influenciados por essa forma de pensar, o tempo e a história passaram a ser vistos como uma sucessão iniciada com a Criação Divina e predestinada a terminar com o Juízo Final. Traçou-se uma linha voltada para frente, o tempo tornou-se linear e pro- gressivo, seu movimento direcionado para o fim. O nascimento de Cristo foi um marco nessa linha que unia a Criação ao Juízo Final e, sem romper com a concepção linear, o tempo continuou a ser visto em série, uma sucessão, uma cadeia do antes e do depois. Tal compreensão provocou uma mudança epistemológica em relação à concepção grega de um tempo circular. O tempo tornou-se linear, singular, irreversível, com um sentido e uma finalidade. Alimentada pelas crenças judaico-cristãs essa visão do tempo permaneceu por sé- culos propagando um desenrolar da vida humana mediada pelo bem e pelo mal. O caminho a ser seguido pela humanidade apontava para a participação ou não no para- íso, onde não mais haveria o pecado e a opressão. As ideias religiosas passaram a ser colocadas em termos absolutos e inquestionáveis, sob forma de dogmas e com uma rígida moral. As explicações históricas seguiram tais determinações. Calcado nessa visão teológica do mundo, um pensador medievalista como Santo Agostinho, ao elaborar uma das primeiras filosofias da história atribuiu-lhe um sentido teológico (ciência de Deus, de suas relações com o mundo e com o homem), concluin- do que a história da humanidade era a história da vontade divina. Para isso, retomou o pensamento aristotélico e adaptou-o para conciliá-lo com o cristianismo, afirmando que o tempo era algo estabelecido por Deus. Ainda que sejam suas as palavras: “Se ninguém me pergunta o que é o tempo, acre- dito que sei, todavia se tiver que responder ou explicar a quem me perguntar, tenho que responder que já não sei” (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 218), na verdade ele se empenhou em definir o tempo na história. Segundo ele, haveria um tempo longo, que se refere ao passado, e um tempo breve. O tempo longo seria o tempo de Deus, o tempo breve o dos homens, um mero intervalo da eternidade. A história sagrada se escreveria nesse tempo longo, num desenrolar submetido à história bíblica. A história secular, produto da vida dos homens e resultante do pecado original caminharia em outro tempo. A história sagrada seria aquela revelada pelo próprio Deus e indicadora da salvação, ao passo que a história secular se inscreveria nessa história através dos atos destinados a conduzir a os homens à salvação (BIGNOTO, 1992). 25 Santo Agostinho entendia que “todo o universo foi criado por Deus a partir do nada”, de tal forma que “o tempo não existe para Deus, só passa a existir a partir da criação do universo e se encerra com o fim deste” (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 211). As concepções de Santo Agostinho se fizeram numa conjuntura na qual o conheci- mento não poderia contradizer as ideias religiosas. Não havia como encontrar a certe- za do conhecimento fora das regras eternas e imutáveis da ciência divina. Nesse tipo de explicação, a História não era mais do que o desenvolvimento do plano providencial. Influenciados por essa concepção, historiadores procuraram estabelecer uma con- cordância entre a cronologia e a história santa, narrada pela Bíblia. A escrita voltou-se particularmente para o sagrado, para a história da vida dos santos; era uma escrita que privilegiava personagens como o clero e outros personagens não eram objetos desse tipo de história (ÀRIÉS, 1989, p. 103).A partir do Renascimento ocorreram mudanças significativas no campo do conheci- mento que se fizeram sentir na explicação histórica e no entendimento sobre o tempo. Fundou-se um paradigma explicativo para o saber que excluía a explicação conjectural e exigia um rigor “científico” e que se sobrepôs à religião e acarretou o antagonismo entre a fé e a razão. Um outro entendimento de ciência se fez e nele a ideia do conhecimento se fazia de forma progressiva, linear, em direção à perfeição. O progresso aparecia ligado ao conhecimento de tal modo que seria o homem, ele próprio, não mais Deus, quem encontraria a salvação nesse mundo e em plena história (REIS, 1994, p. 12). A história, como um campo de conhecimento procurou se adequar a esses princí- pios, sem romper com o pressuposto de um tempo linear e progressivo. Nessa nova forma de pensar, o passado passou a ser explicado como algo isolado do presente, como um objeto em si. Immanuel Kant, por exemplo, defendeu que o entendimento do tempo era algo próprio da racionalidade humana. O tempo era uma construção humana e a faculdade de sua compreensão advinha da racionalidade, posto que nenhum outro ser é dotado da capacidade de compreender abstratamente o que se denomina tempo. Para Kant, só os homens são capazes de perceber o tempo transcorrido, de verificar as diferenças entre o passado, o presente e o futuro. Essa percepção dimensional é algo estrita- mente humano e, ainda que haja essas dimensões, o tempo é sempre uniforme e as diferenças “são apenas partes do mesmo tempo” (KANT, 1987, p.44). Augusto Comte, expressão dessa concepção de tempo e história, adotou uma posi- ção antimetafísica (do ser e das causas do ser) e antiteológica no que se refere ao co- nhecimento científico. Em sua concepção a história era o desenvolvimento progressivo da humanidade, um processo contínuo de conhecimento que ocorria dentro de uma O tempo da história INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 26 ordem absoluta, modulada por leis invariáveis. Sempre linear, a história implicava em aprimoramento, não em ruptura ou revolução. Seu sentido era predeterminado em direção ao progresso e o tempo linear, contínuo, irreversível e progressivo (FURET, 199-). De acordo com tal modo de pensar, a história era essencialmente política, sua es- crita deveria ser a mais objetiva possível e retratar os fatos “como eles se passaram realmente”. Esta escrita se fazia através de uma narrativa dos acontecimentos funda- mentados exclusivamente em documentos, na qual os registros oficiais eram enfatiza- dos. Concentrada nos ‘grandes’ feitos dos ‘grandes’ homens, o resto da humanidade permanecia destinado a um papel secundário na história. Em meados do século XIX começou a ganhar corpo uma outra forma de explicação sobre o de tempo e a história. De acordo com teóricos desse novo pensar, o tempo tinha uma existência objetiva, seu curso era marcado pela cadeia de atos de porvir que exprimiam as mudanças sucessivas dos acontecimentos (CARDOSO, 1991, p. 29). Karl Marx e Frederich Engels, principais representantes desse pensamento, afirma- ram a existência de uma evolução necessária e necessariamente progressiva do mundo natural. Para eles, o sentido da história era o sentido do progresso e esse era contínuo. A história era um processo unilinear e progressivo, que levava, através da luta de clas- ses, para a sociedade sem classes, para a sociedade perfeita (MARX, 1982). A partir de então, as explicações históricas passaram a falar em sucessão de etapas, cada uma geradora de elementos constitutivos da etapa seguinte, cada qual qualita- tivamente superior à antecessora, de modo tal que seria possível alcançar cotas de liberdade cada vez mais elevadas. O tempo, tal qual a história, era considerado line- ar, progressivo; as ações do homem, numa evolução constante através dos tempos, garantiriam um futuro melhor, onde não haveria mais dominantes e dominados. A finalidade que orientaria o conjunto do desenvolvimento histórico seria um bem viver neste mundo, onde se pressupunha um homem liberado da produção e do trabalho. Essa forma de pensar foi duramente criticada nas décadas iniciais do século XX por Walter Benjamim (1994), de modo especial o tempo linear e contínuo e a crença no progresso. Estarrecido em face dos movimentos totalitários, Benjamim questionou a ideia de progresso, a convicção de que a história caminhava evolutivamente em dire- ção ao bem estar da humanidade. Também, nas primeiras décadas do século XX, surgiu uma outra forma de se ex- plicar a história, conhecida posteriormente por “Nova História”. Os defensores des- se pensar propagaram que a história não deveria ser explicada como a narrativa dos povos e indivíduos produtores de eventos grandiosos que avançavam em direção à liberdade. O que propagavam era uma escrita que fosse além do acontecimento, que 27 não fosse vista como uma história contínua, progressiva e irreversível da realização de uma consciência humana, mas que buscasse ser total. Para eles, o tempo histórico deveria ser visto em diferentes sintonias, até mesmo simultâneas, o que até então era inconcebível em face da defesa da irreversibilidade do tempo humano. O conceito de longa duração formulado por Fernand Braudel introduziu a ideia de um tempo de repetição, de permanência, contrapondo-o a um entendimento antes limitado à irreversibilidade, à mudança. Para os historiadores que se identificam com essa forma de conceber a história era necessário pensar em sucessão sem mudança, em repetição em permanências, em mudanças lentas (REIS, 1994, p. 20). Imbuídos por essa concepção, rejeitaram as explicações ancoradas na defesa do progresso da humanidade. A história não poderia ser explicada como tendendo assin- tomaticamente uma direção a um ideal final, pois ela não se explica de forma teleoló- gica, já que suas direções são múltiplas. O conhecimento da duração do tempo não poderia ser dado antecipadamente na pesquisa, mas sim constatado na observação dos fenômenos históricos, pois os desdobramentos do tempo não são uniformes. Sua topologia não está definida, preestabelecida. São exatamente os processos que, ao se desenvolver, realizam sua direção. O tempo na história não é pressuposto especulati- vamente; mas sim construído conceitualmente e verificado empiricamente. Tal concepção de história passou a recusar a hipótese de um tempo linear, cumu- lativo e irreversível e se criou uma topologia global complexa, uma sequência de ci- clos. Ciclos de crescimento, estagnação, declínio e retomada de crescimento. O tempo na história passou a ser visto não mais como progressivo, mas pluridirecionado, não global, mas múltiplo, no qual os acontecimentos devem se explicados numa tripla duração: a curta duração do evento; a média duração da conjuntura na qual ocorreu o evento (com múltiplos ritmos) e a longa duração das estruturas nas quais se situa o evento (BRAUDEL, 1992, p. 47). Assim também Michel Foucault postulou: “a história não deve ser entendida como a coleta das sucessões de fatos, tais como se constituíram; ela é o modo de ser funda- mental das empiricidades, aquilo a partir de que elas são afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis” (FOUCAULT, 1999, p. 300). Abriram-se então possibilidades de pensar o tempo histórico não linear, não neces- sariamente simultâneo, não com um final, pois não há garantia alguma do ponto final na história. As consequências das decisões tomadas no passado têm implicações no presente e este prepara, para o bem ou para o mal, o futuro. Nas últimas décadas do século XX, uma nova preocupação se fez presente na escrita O tempo da história INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 28 da história e implicou em um outro olhar para o tempo. O surgimento das preocupa- ções com a deterioraçãodo meioambiente, com os riscos decorrentes do modo como o homem se relacionou com a natureza favoreceram a busca de explicações fundadas na história ambiental. Esse tipo de escrita requer “unidades de tempo e prazos estra- nhos à moderna cultura ocidental, mais afins, talvez, aos intervalos imprecisos das narrativas míticas” (DRUMMOND, 1991, p. 179). Dessa forma, passou-se a pensar no tempo da natureza, que não é tão e somente o tempo social. A história voltou-se a um tempo no qual “a cultura humana é uma pequena frase ao fim de uma nota de rodapé na última página do longo compêndio da vida do planeta” (DRUMMOND, 1991, p. 181). Enfim, a escrita da história tornou- se preocupada com o tempo da “história natural” e com o tempo da “história social”. Pode-se dizer que o entendimento que se tem hoje é o de que é necessário, para a compreensão do tempo na história, a sua reconstrução teórica e formal. São os histo- riadores, com suas problematizações singulares, com documentos específicos, teorias e conceitos particulares que devem definir essa duração sem se esquecer de que o tempo, no acontecimento histórico, é assimétrico, pluridirecional e heterogêneo. Ele não se reduz a uma sucessão de fatos, não é uma infinidade de fatos como uma régua geométrica que contém uma infinidade de pontos (ÀRIÉS, 1989, p. 225). O passado não pode ser visto como algo isolado do presente, mas sim abordado a partir do presente, pois é dele que partem as perguntas sobre o passado. Passado e presente são diferentes, são momentos singulares do tempo histórico que informam um ao outro estabelecendo uma relação de conhecimento recíproco. O presente não é superior ao passado, é somente um outro momento (REIS, 1994, p. 27). Sobre tais concepções se assenta a formulação de Alfredo Bosi sobre o tempo. Citando as datas de 1492, 1822, 1922 e 1992, Bosi indaga: O que são datas? Datas, responde o autor, são pontas de icebergs. O navegador que singra a imensidão do mar, bendiz a presença dessas pontas emersas, pois sabe que tem de evitar que a navegação se despedasse indo de encontro às massas submersas que não se veem. E o que é que se encontra por debaixo da ponta que emerge? Se olharmos mais atentamente, prosse- gue Bosi, veremos que há ali uma estranha consistência, que precisa ser considerada, pois vai muito além do que se vê. As pontas não podem ser deslocadas das massas, pois se criam blocos erráticos, que vagam nas águas, chocam-se uns com outros e se destroem nas ondas do mar” (BOSI, 1992, p. 19-32). As datas, pontas do tempo, como as pontas dos icebergs, dão o que pensar. 29 ÀRIÉS, Philipe. O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural. 1987. (Os pensadores). BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1). BIGNOTO, Newton. O círculo e a linha. In: Novais, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1992. p. 177-190. BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: Novais, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Cia da Letras, 1992. p. 19-32. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992. CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1991. DRUMMOND, José Augusto. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 8. p. 177-197, 1991. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FURET, François. A oficina da História. Lisboa: Gradiva, [199-]. KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1987. MARX, Karl. O Capital. 8. ed. São Paulo: Difel, 1982. v. 1. NOVAES, Adauto. Sobre tempo e História. In: Novais, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1992. p. 9-17. Referências O tempo da história INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 30 REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e tempo histórico. São Paulo: Ática, 1994. SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1987. WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: LPM, 1981. 1) Extrato de documentos para leituras: “A história tem início quando os homens começam a pensar na passagem do tempo, não em termos de processos naturais – o ciclo das estações do ano, a duração da vida humana –, mas de uma série de acontecimentos específicos em que os homens estão consciente- mente envolvidos, e que podem ser conscientemente influenciados pelos homens. [...] A história é a longa luta do homem, através do exercício de sua razão, para compreender seu meio ambiente e atuar sobre ele. Mas a época moderna ampliou a luta de uma maneira re- volucionária. Agora o homem procura compreender o seu próprio meio ambiente e sobre ele atuar, assim como a si mesmo; isto acrescentou, por assim dizer, uma nova dimensão à razão e uma nova dimensão à história. A época atual é, entre todas as épocas, a de maior consciência histórica. O homem moderno tem um grau sem precedentes de autoconsciên- cia e, portanto, de consciência histórica. Ele olha para trás na esperança de encontrar um resto de luz capaz de iluminar a obscuridade para onde está indo; reciprocamente, suas aspirações e ansiedades sobre o que está à sua frente aguçam a sua percepção daquilo que fica para trás. Passado, presente e futuro estão todos ligados na corrente interminável da história”. [Extraído de: CARR, E. H. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. p. 168]. 2) Reflexão para aprofundamento temático: A partir do século XX, os historiadores formularam uma nova forma de explicar a história e o tempo. O tempo linear, cumulativo e cronológico passou a ser fortemente criticado. Surgiu um tempo assimétrico, pluridirecional e heterogêneo. Tomando como referência esse capítulo e o extrato documental, faça uma análise de como os historiadores atuais abordam a relação passado/presente. Fontes e referenciais para o aprofundamento temático 31 Anotações O tempo da história INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 32 Anotações 33 Veronica Karina ipólito/ Angelo Priori/ Silvia Maria Amâncio Em toda a parte a monumentalidade se difunde, se irradia, se condensa, se concentra. Um momento vai além de si próprio, de sua fachada (se tem uma), de seu espaço interno. A monumentalidade pertence, em geral, a altura e a profundidade, a amplitude de um espaço que ultrapassa seus limites materiais (Henri Lefbvre). INTRODUÇÃO O documento é a matéria-prima do historiador. No entanto, o seu uso varia, no tempo e no espaço, conforme a trajetória pessoal e cultural do profis- sional de história. Mesmo com as diferenças históricas no trato com o documento, o historiador, tanto do presente quanto do passado, deveria explorar a erudição e a sensibilidade das fontes, pois delas dependiam a construção de seus argumentos e o convencimento de sua pesquisa. Nesse sentido, pelo menos duas questões seriam fundamentais: qual a relevância dos documentos para a construção do discurso dos historiadores? Qual a importância dos documentos e como os historiadores os incor- poraram em sua escrita? Os primeiros registros da vida humana podem ser vistos nas paredes das cavernas, com a arte rupestre (desenhos e pinturas), que se constituíram nas fontes primárias dos historiadores. Essas sociedades ágrafas deixaram indícios e permitiram que an- tropólogos, arqueólogos, etnólogos, dentre outros cientistas, elaborassem hipóteses sobre diferentes povos. A questão do uso do documento pelos historiadores é algo que nos remete a di- versas concepções. Desde o momento em que a História se constitui como disciplina Documentos: a ampliação dos materiais de pesquisa utilizados pela historiografia 3 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOSHISTÓRICOS 34 acadêmica, na segunda metade do século XIX, alguns modelos metodológicos cien- tificistas rigorosos foram construídos, o que permitiu elaborar diretrizes avaliadoras de autenticidade documental. A concepção dominante na historiografia daquele mo- mento defendia que a comparação de documentos possibilitava a reconstituição de acontecimentos do passado, desde que fossem coligados a uma explicação de causas e consequências. Ao mesmo tempo, influenciados pelos princípios do racionalismo, os filósofos afir- mavam que o destino da humanidade estaria marcado pelo progresso e evolução. Logo, os historiadores incorporaram esse pensamento e conceberam a história, so- bretudo na Escola Metódica predominante no século XIX, como essencialmente po- lítica. Sua escrita deveria ser a mais objetiva possível e retratar os fatos como “eles se passaram realmente”. Essa escrita se fazia através de uma narrativa de acontecimentos fundamentados exclusivamente em documentos oficiais. “Concentrado nos grandes feitos e nos grandes homens, o resto da humanidade permanecia destinado a um pa- pel secundário da história” (ZANIRATO, 1999, p. 94). No entanto, no século XX, houve uma verdadeira revolução sobre o que se en- tendia por documento (LE GOFF, 1992). Peter Burke (1992) ressaltou essa mudan- ça e afirmou que a historiografia do século XX (sobretudo a francesa, representada pelos Annales) questionou a objetividade e a autenticidade relegada ao documento escrito pelos integrantes da Escola Metódica (Positivista) no século XIX. E enfatizou que a história dos “grandes homens” era uma história “vista de cima”, e por isso não contemplaria todas as esferas e grupos sociais. O resultado desse embate foi um sig- nificativo aumento das possibilidades de fontes a serem utilizadas pelos historiadores em suas pesquisas. Além disso, a subjetividade na escrita da história foi reconhecida e constatou-se a existência de história “das massas”, “vista de baixo” e até, como propôs Harvey Kaye (1989, p. 201), uma história “vista de baixo para cima”. O DOCUMENTO NAS DIFERENTES ESCOlAS HISTORIOgRáFICAS Antes de tornar-se uma ciência propriamente dita, a história era repassada grosso modo pela tradição oral por meio de estudiosos amadores, conhecidos como “antiquá- rios”. Com o Renascimento e o Iluminismo, nos séculos XVI e XVII, a preocupação se centra na elaboração de um método que dê fundamento à pesquisa científica. Sem ele, o campo de conhecimento não poderia ser considerado ciência. Essa nova preocupação trouxe mudanças na narrativa histórica, eliminando a ex- plicação conjectural e exigindo um rigor “científico”. Rompeu-se com a religião e a fé deu lugar à razão. Houve mudanças na noção de ciência como também na explicação histórica. Os conceitos da história começam a se adequar aos pressupostos racionais. 35 O tempo passa a ser linear, progressivo e irreversível, sendo o passado considerado um objeto em si e, portanto, visto isolado do presente. Entre os séculos XVIII e XIX surge a Escola Positivista, de August Comte. Visando adequar os estudos sociais ao conceito de ciência proposto de acordo com o modelo iluminista, Comte elege o documento como método. Buscando a objetividade científica, essa vertente adotou como mecanismo de estudo o documento em sua forma sequencial, descritiva e oficial. Essa narrativa dos acontecimentos políticos e militares, apresentada como a “histó- ria dos grandes feitos e de grandes homens”, passou a ser a forma predominante na es- crita da história. Por volta do século XVIII, alguns intelectuais e estudiosos começaram a se preocupar com a “história da sociedade”. Leovold Von Ranke, considerado um positivista, fugiu da perspectiva política e trabalhou com a Reforma e Contra-Reforma sem rejeitar a história da sociedade, da literatura, da arte ou da ciência. Jacob Bur- ckhardt analisou a história como um campo em que interagiram três forças: o Estado, a religião e a cultura. Jules Michelet defendia uma história por meio da visão das classes subalternas (BURKE, 1997). Essas perspectivas colocaram em questão o enfoque e o método da produção historiográfica. O desenvolvimento do capitalismo comercial-industrial, as revoluções liberais da Inglaterra e da França ocorridas, respectivamente, nos séculos XVII e XVIII e a inde- pendência norte-americana, ocorrida também no século XVIII, destacaram o papel da burguesia e do Estado na defesa de posições imperialistas e na adesão do liberalismo como política governista. A considerada “voracidade em acumular capital” rendeu de- bates, nos quais o assunto central era a exploração da recém-formada classe operária. As condições de vida desses trabalhadores influenciaram o pensamento de Karl Marx e o levou a escrever “O Capital”, obra em que defende a concepção de que a estrutura econômica é a base da sociedade. Opondo-se ao liberalismo, a teoria do materialismo dialético de Marx defende que as lutas entre as classes dominantes e dominadas dão sentido à história. Oferecendo um paradigma histórico alternativo ao de Comte, Karl Marx argu- mentava que as causas essenciais da mudança histórica deveriam ser localizadas nas tensões existentes no interior das estruturas socioeconômicas. Para isso, o marxismo iniciou um tratamento diferenciado em relação às fontes. Segundo essa concepção, o documento deveria ser analisado de acordo com um processo histórico, no qual fosse possível trabalhar as perspectivas de dominantes e dominados (luta de classes). Ao contrário do positivismo comtiano, o marxismo infundiu a crítica à especulação filosófica e procurou demonstrar, na análise das fontes, os interesses e aspirações das classes trabalhadoras. Como enfatiza Janotti, foi sob a influência desse modelo, que se Documentos: a ampliação dos materiais de pesquisa utilizados pela historiografia INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 36 desenvolveu a pesquisa em Sociologia e Economia: a coleta e interpretações de fontes – antes focada na área política e na atuação de grandes personagens – para documentos sobre atividades econômicas, de- vassando-se cartórios, processos judiciais, censos, contratos de trabalho, movi- mentos de portos, abastecimento e outros de cunho coletivo e reivindicatório. A historiografia social e econômica sobrepujou a política na preferência dos historiadores que investigaram as estruturas básicas sobre as quais a política se assentava ( JANOTTI, 2005, p. 11). A abordagem do documento no modelo marxista reforçava a importância em trabalhar com as estruturas, ignorando as intenções dos indivíduos. Nesse modelo, os mecanismos econômicos deveriam ser identificados. Acreditavam que eles dariam conta de organizar as relações sociais e, portanto, de articular as formas de discurso. Em comum, tanto Comte como Marx, decretaram às fontes uma existência obje- tiva em que o curso do tempo é marcado pela cadeia de atos que exprimem as mu- danças sucessivas dos acontecimentos. Tal como no positivismo, o tempo continua linear, evolutivo e com uma direção pré-determinada (passado, presente e futuro). Já em fins do século XIX, a historiografia francesa expôs questionamentos a essas escolas. Tais contestações frutificaram principalmente na década de 1920, momento em que as críticas a esses modelos historiográficos eram particularmente agudas e as sugestões para a sua substituição bastante férteis. Foi a partir de 1929, com a fundação da revista Annales d’histoire économique et sociale, que a utilização do documento como fonte sofreu mudanças significativas. O tempo histórico ultrapas- sou os fatos e começou a ser visto numa “longa duração”. Esse conceito, formulado por Fernand Braudel (1978), introduz na escrita da história, a ideia de repetição e permanência, sendo, nesse sentido, necessário pensar em sucessão sem mudança, em repetição, criando permanênciaonde se articulam as mudanças lentas. Com o movimento dos Annales houve uma considerável ampliação no campo documental: fontes orais, objetos, ícones etc., superaram a exclusividade do teste- munho escrito no âmbito das fontes. Os sujeitos analisados nessa perspectiva não são somente os dominantes e os dominados, mas também os marginalizados (pros- titutas, mendigos, ladrões etc.), abrindo uma maior possibilidade de diálogo entre o historiador e a fonte. Essa subjetividade é vista pelas gerações dos Annales como um ponto positivo e enriquecedor na narrativa histórica, pois permite ao historia- dor questionar, problematizar e confrontar as fontes de pesquisa. Por isso, para essa nova história, o passado não se isola do presente, mas é abordado a partir das questões levantadas por ele. 37 A CRíTICA AOS DOCUMENTOS: A REvOlUÇÃO DOCUMENTAl Os integrantes da Escola dos Annales não aceitavam os pressupostos baseados na superficialidade dos fatos elaborados pela historiografia política tradicional. Contra- pondo essa perspectiva, desenvolveram o método da História-problema, que consistia na busca e interpretação das fontes segundo as hipóteses que partiam do historiador. Todas as ações do homem e na sua vida em sociedade eram consideradas da mesma importância. A reconstrução do passado, nesse sentido, tornou-se mais rica em virtude da ex- pansão da noção de documento. Lucien Febvre (1985) nos deixa explícito em sua obra “Combates pela história”, a mudança no trato com o documento, partindo da interpre- tação e da possibilidade em explorar vários tipos de fontes: A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo, o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de boi. Com exames de pedras por geólogos e análises de espada de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que pertence ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (FEBVRE, 1985, p. 249). A partir da crítica feita aos documentos, a escola historiográfica dos Annales inovou na ampliação das fontes de pesquisa. Um exemplo disso foi a utilização da história oral, introduzida na pesquisa histórica principalmente nos anos de 1950, sobretudo nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. A história oral, a exemplo dos outros tipos de fontes adotadas nesse momento, manifestou-se no seio dos movimen- tos sociais, procurando dar voz aos marginalizados e excluídos. Jacques Le Goff (1992) afirma que não basta haver uma diversidade documental na pesquisa histórica. Abordando diretamente a postura do historiador, Le Goff defende a crítica em profundidade iniciada pelos fundadores dos Annales, que puseram em discussão o documento como tal. Nesse sentido, o historiador não deve assumir o papel de ingênuo. Compete a ele problematizar o documento, não isolando-o de sua realidade. Por isso, Le Goff afirma que todo documento não é inofensivo. Trata-se, evidente- mente, de um instrumento de poder. A escolha do historiador em selecionar um do- cumento em detrimento de outro, atribui um “valor de testemunho”, que garante, ao contrário do que os positivistas pensavam, uma escolha pessoal e, portanto, subjetiva. Os documentos, que outrora falavam aos positivistas, hoje murmuram nos ouvidos Documentos: a ampliação dos materiais de pesquisa utilizados pela historiografia INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 38 dos pesquisadores. Desmistificar o significado aparente do testemunho vai muito além da simples compilação dos escritos. Exige do profissional da história, uma preparação e adequação com os preceitos de interpretação, análise e problematização da discipli- na histórica. UM NOvO SENTIDO pARA AS FONTES (E pARA A HISTÓRIA) O documento, para a Escola Metódica do fim do século XIX e início do século XX, era considerado o fundamento do fato histórico e apresentado como prova histórica. A concepção de documento muda, substancialmente, com a Escola dos Annales. Antes, apenas o documento manuscrito era considerado fonte histórica. Hoje, essa ideia foi ampliada. “Não há história sem documentos [...]. Há que tomar a palavra documento no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, imagem, ou de qualquer outra maneira” (SAMARAN apud LE GOFF, 1992, p. 540). Desde a Idade Média e, principalmente com o Renascimento, houve uma preo- cupação com a busca da autenticidade. Essa procura recebe novo direcionamento quando Paul Zumthor estabelece a relação documento/monumento. Foi Zumthor que identificou o que transforma o documento em monumento, “a sua utilização pelo poder” (LE GOFF, 1992, p. 543). Logo, todo documento permanece como monumen- to. Revestindo-se em documento arquitetônico, escultural, escrito ou iconográfico, o monumento é utilizado como testemunho de poder. Esse poder é perpetuado pela memória coletiva, a qual tenta recordar as futuras gerações sobre sua existência, ins- truindo-as e avisando-as sobre a importância e força que possui. Buscando as origens etimológicas das palavras “documento” e “monumento”, Le Goff (1992) apresenta as maneiras distintas como esses conceitos foram utilizados pelos historiadores durante o desenvolvimento da ciência histórica. Sobre o monumento, Le Goff afirma: A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-européia men, que ex- prime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (meminí). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recorda- ção, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis [Philippicae, XIV, 41], designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado. Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc.; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte (1992, p. 536, grifos no original). Antes do século XX, as escolas historiográficas concebiam os monumentos como “atos escritos”, ou seja, documentos jurídicos e políticos, ou eram representados por 39 coleções de documentos, glorificando a história de um país ou de um povo. Tanto que até a primeira metade do século XIX, não são raras as coletâneas como Monumenta Germaniae historica, Monumenta historiae patrie, Monumenti di storia patria delle provincie modenesi, dentre outras. Por isso, muito mais do que propor uma “revo- lução documental”, a concepção de documento/monumento direciona o historiador a uma crítica dos documentos enquanto patrimônio de uma sociedade, defendendo uma história-problema, como proposta pelos Annales. O documento como monumento é submetido à crítica interna, sendo analisado pelas condições de sua produção histórica e pela intencionalidade inconsciente de seu autor. Ao lançarmos nosso olhar crítico sobre fontes de diversas naturezas, estamos resgatando o cotidiano de uma época, a experiência de personagens muitas vezes esquecidos ou marginalizados pela história tradicional. Afinal, se a história é a ciência que problematiza a vida, compete ao historiador compreendê-la e não julgá-la. Seu ofício, a partir dos Annales, passou a ser a inaceitabi- lidade das coisas como são dadas. É preciso ter em mente a elaboração de problemas
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