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Edmund Husserl, a Fenomenologia como Filosofia Transcendental e a Redução Fenomenológica Excerto adaptado de: CURVELLO, F. V. A Gestalttheorie e a fenomenologia de Edmund Husserl: uma investigação acerca de seus antecedentes intelectuais comuns e suas relações metodológicas e conceituais. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2014. Como visto em nossos últimos passos no estudo do pensamento husserliano, a fenomenologia dispõe de diferentes técnicas descritivas, das quais a ‘redução eidética’ é apenas um primeiro exemplo. Por meio dela, operamos uma redução das manifestações factuais de um objeto à essência, i.e., ao eidos, deste mesmo objeto – aos seus traços universais, necessários. Uma vez que isso esteja claro, é necessário passarmos à segunda técnica descritiva do método, i.e., à chamada ‘redução fenomenológica’ ou ‘transcendental’. Poucos anos após a publicação das Investigações Lógicas, mais precisamente em 1905, Husserl elaborou um manuscrito que seria posteriormente conhecido como as Folhas de Seefeld, no qual já dava indícios de que seu pensamento se movia no sentido de uma radicalização do distanciamento requerido entre as disposições do fenomenólogo em sua atividade descritiva e aquelas do observador ordinário. Seria, contudo, apenas nas cinco lições oferecidas na Universidade de Göttingen, em 1907, e posteriormente compiladas sob o título de A Ideia da Fenomenologia, que Husserl formularia claramente o projeto de uma ‘Fenomenologia Transcendental’ e introduziria o novo recurso descritivo ao seu método. Este movimento é importante a ponto de marcar uma nova definição de Fenomenologia, que a distancia de seus referenciais psicológico-descritivos iniciais e a situa no terreno de uma ‘Filosofia Transcendental’ de inspiração kantiana.1 Vejamos, portanto, o que quer dizer o novo procedimento redutivo e como a Fenomenologia pode ser redefinida a partir dele. 1. As atitudes natural e fenomenológica e a redução transcendental: A redução em questão consiste no trânsito entre duas ‘atitudes’ ou ‘orientações’ específicas de nossa experiência: a primeira delas, mais basal e que marca as nossas vivências quotidianas, acríticas, é a chamada ‘atitude natural’; a segunda, eminentemente filosófica, crítica e inacessível sem um franco empenho intelectual por parte do sujeito, é a ‘atitude fenomenológica’. A adequada compreensão deste novo recurso descritivo, portanto, requer a especificação destas duas atitudes. A ‘atitude natural’ é marcada por todas aquelas características que a investigação psicológico- descritiva da fenomenologia primitiva já buscava contornar, tal como vimos em nossa breve passagem pelas Investigações Lógicas. Ela é a atitude na qual nos encontramos em toda e qualquer experiência de nossa vida ordinária, na qual não refletimos propriamente acerca do que vivemos, mas simplesmente vivemos. Trata-se da experiência em que nos voltamos espontânea, imediatamente aos objetos dos atos que realizamos – i.e., em que acompanhamos o direcionamento objetivo de nossa experiência e deixamos que ela se consume nos objetos visados. Estamos, portanto, vivendo no sentido mais ingênuo e natural possível, atentos aos objetos que percebemos ao nosso redor, às pessoas com as quais nos deparamos e interagimos, aos episódios de que nos lembramos casualmente, aos episódios que antecipamos e cremos poderem ocorrer em 1 É importante que recuperemos aqui, no interesse de situarmos melhor o sentido desta mudança, a definição de Filosofia Transcendental oferecida por Kant na Introdução à Segunda Edição de sua Crítica da Razão Pura (1781) – definição que se aplica também ao pensamento husserliano deste momento em diante: “Chamo transcendental a todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que de nosso modo de os conhecer, na medida em que este deva ser possível a priori.” (Kant, 1781/2001, p. 53) nossas vidas etc. Viver na atitude natural significa viver direcionado para o mundo, tomado por seus eventos, habitantes e ocorrências. Este mundo que se abre a partir de nós e no qual vivemos toda sorte de experiências é chamado por Husserl de ‘mundo circundante natural’. O mundo circundante natural é habitado por sujeitos que têm um trato fundamentalmente interessado com as diversas coisas ou acontecimentos que se encontram ao seu redor, avaliando aquilo que aparece não de modo neutro ou distanciado, mas de modo a submetê-lo a uma trama previamente ordenada de sentidos e propósitos particulares, em sua maioria voltados a necessidades práticas. O que nos aparece, portanto, aparece de modo a espelhar as condições concretas e factuais de nossa experiência, enquanto indivíduos específicos, e contingentemente situados. Nas palavras de Held (2006): “Como espaço de possibilidades de julgamento e ação, um horizonte limitado também libera a visão das possibilidades nele contidas. Cada mundo particular permite ao homem ver aquilo que vem ao seu encontro em acontecimentos no interior desse mundo particular. [...] O que uma pessoa vê em seu mundo particular, aparece-lhe na luz dos interesses que eventualmente o conduzem. Por isso o seu olhar não se mantém naquilo que o fenômeno (o que aparece) é em si, porém, vai imediatamente além do fenômeno, direcionando-se para aquilo ao qual ele é útil.” (p. 109) Além disso, há uma outra característica especialmente relevante desta disposição da consciência perante o mundo sobre a qual a redução transcendental incidirá com maior gravidade. Trata-se, de acordo com Husserl, da manutenção da chamada ‘tese da existência do mundo’. Para a experiência irrefletida, tudo quanto vem a se mostrar como correlato de nossos atos conscientes é entendido como algo que existe em plena independência destes mesmos atos – existe em si mesmo, como coisa ou acontecimento mundano situado entre outras coisas ou acontecimentos de mesmo caráter. Em vez de tomarmos o que aparece apenas tal como aparece, vivenciamos nossos atos como se eles se voltassem ao que existe em si e por si. Eles parecem voltar-se ao que já está lá, perante nós, existindo objetivamente, em independência completa de nossas diferentes perspectivas. O ato parece apenas ‘iluminar’ um correlato real, que não depende de nossa consciência em nada para ser o que é. Trata-se, a rigor, de uma espécie de decisão metafísica, inerente à experiência natural, quanto ao ser dos objetos visados por nossa consciência – uma decisão de caráter realista.2 Nas palavras de Husserl (1913/2006), a tese da existência do mundo pode ser definida da seguinte maneira: “[...] encontro constantemente à disposição, como estando frente a frente comigo, uma efetividade espaço-temporal da qual eu mesmo faço parte, assim como todos os outros homens que nela se encontram e que de igual maneira estão a ela referidos. Eu encontro a ‘efetividade’, como a palavra já diz, estando aí, e a aceito tal como se dá para mim, também como estando aí.” (p. 77) Essa crença realista, vista com atenção, é sem fundamentos. É um pré-juízo ou um pré-conceito. Não temos como afiançá-la, justificá-la e, muitas vezes, sequer nos damos conta de que ela anima e orienta a nossa experiência natural. Nós a tomamos como pressuposto, como ponto estável ou já decidido em nossa apreensão do mundo. Justamente por se tratar de algo injustificado e que muda tão decisivamente o caráter de nossa experiência, Husserl sustenta que é uma tarefa 2 Podemos recorrer aqui à descrição oferecida por Morente (1980) acerca da resposta realista à pergunta metafísica fundamental ‘O que existe?’. De acordo com o autor: “Há uma resposta a essa pergunta, que é a resposta mais natural [...]: aquela que a natureza em nós mesmos [...] nos dita imediatamente, a mais óbvia, a mais fácil, aquela que ocorre a qualquer um. Quem existe? Pois muito simples: esta lâmpada,este copo, esta mesa, estas campainhas, este giz, eu, esta senhorita, aquele cavalheiro, as coisas e dentre as coisas, como outras coisas, como outros entes, os homens, a terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios; isso é o que existe. Esta resposta é a mais natural de todas, a mais espontânea e é aquela que a humanidade repetidas vezes e constantemente tem enunciado. Muitos séculos demorou a humanidade a mudar de modo de pensar sobre esta pergunta, e ainda que tenha mudado o modo de pensar dos filósofos, continua pensando dessa forma todo aquele que não é filósofo. Mais ainda: continuam pensando dessa forma os filósofos enquanto não o são; [...] enquanto não são filósofos, espontânea e naturalmente, vivem na crença de que o que existe são a coisas, entre as quais, naturalmente e sem distinção, estamos nós.” (p. 67; grifos nossos). fenomenológica relevante que ‘suspendamos’ a tese, i.e., que a neutralizemos, deixemos fora de atuação. A essa operação, que reconhece a ilegitimidade de nossas convicções realistas e afasta a tese de nossa compreensão do mundo, Husserl chama έπολή (epoché) filosófica. Ela consta como o meio de acesso à outra atitude indicada no início dessa exposição, i.e., a ‘atitude fenomenológica’, sobre a qual devemos discorrer na sequência. Antes disso, no entanto, tentemos resumir a atitude natural a alguns de seus caracteres centrais. Ela é caracterizada pela: (i) manutenção do que Husserl chamou nas Investigações Lógicas de ‘atitude de consumação dos atos conscientes’ – i.e., do voltar-se direta e irrefletidamente ao mundo que nos surge como correlato de nossos diferentes atos da consciência; (ii) subordinação do que aparece a interesses que ofuscam seu sentido próprio e fazem dele uma simples expressão das contingências vividas pelo sujeito de experiência enquanto um ‘eu’ factual; (iii) a adesão ingênua à tese da existência dos objetos visados como coisas existentes em independência dos atos que as visam. A ‘atitude fenomenológica’ busca contornar todos estes pontos, mas tem seu aspecto fundamental na oposição à tese da existência do mundo e na consequente redução do fenômeno à simples condição de fenômeno – i.e., ao simples mostrar-se de um objeto à consciência subjetiva. Trata- se de uma dissolução daquele assentimento imediato e involuntário da experiência banal, uma simples retirada de seu valor positivo que não deve, contudo, ser confundida com a sua substituição por qualquer outra crença aparentada. Retirar isto a que assentimos do espaço de validade que lhe conferimos tão gratuitamente e colocar em um espaço de invalidade ou de maior ou menor possibilidade, é operar em relação ao seu conteúdo variações tão estéreis ao pensamento filosófico quanto a própria atitude de assentimento que está em causa. A neutralização de uma tese não implica a assunção da tese oposta ou de variações probabilísticas da tese original. ‘O mundo é dado para além de meus atos’, ‘O mundo não é dado para além de meus atos’ e ‘É possível que, em tais e tais circunstâncias, o mundo seja dado para além de meus atos’ são afirmações que, a despeito de sua óbvia diferença de sentido e conteúdo, não deixam de se ombrear em termos de valor teórico – um valor, com efeito, nulo. Trata-se, para o fenomenólogo, de assumir uma atitude de plena abstenção de juízos acerca do problema; trata-se de sua desconsideração sumária, posto que ele não constitui etapa necessária ou sequer relevante para a realização do verdadeiro propósito da investigação fenomenológica. Ainda, como diz Husserl (1913/2006) frequentemente, trata-se de uma ‘retirada de circuito’ ou de uma ‘colocação entre parênteses’: “[...] a tese é um vivido, mas dele não fazemos ‘nenhum uso’ [...]: trata-se antes, nesta como em todas as expressões paralelas, de designações indicativas de um determinado modo específico de consciência, que vem se juntar à simples tese originária [...] e que modifica de maneira específica o seu valor. Essa modificação de valor cabe a nossa inteira liberdade e se opõe a todas as tomadas de posição do pensamento que possam estar em coordenação com a tese [...].” (p. 79 e 80) Podemos nos perguntar, assim, o que resta, então, da nossa experiência natural quando retiramos o inadequado sustento a elas conferido pelo nosso realismo tácito. A resposta é simples, mas profundamente relevante quando a tarefa é estudar os fenômenos na consciência: restam os mesmos objetos que já visávamos, mas reduzidos à condição de puros correlatos intencionais, i.e., reduzidos ao seu ser-para-uma-consciência. De coisa real, existente em si e por si, o que nos aparece é levado à condição de pura unidade de sentido, i.e., puro fenômeno, não mais marcado por pressupostos metafísicos. O que Husserl chama de ‘redução transcendental’ ou ‘fenomenológica’, portanto, é justamente o estudo crítico desta experiência depurada, possibilitado pela epoché, i.e., pela passagem da atitude natural à fenomenológica. Uma consequência de grande relevância deste procedimento é o fato de ele sustar não apenas a apreensão ingênua, irrefletida e realista dos fenômenos, mas toda e qualquer possibilidade de se experimentar mundo a partir da redução de seus objetos à disponibilidade e ao estar-aí anteriormente considerados. Isso inclui, por razões óbvias, toda ciência natural ou humana, uma vez que seus diferentes domínios de investigação buscam compreender e explicitar as leis que governam eventos naturais, presumidamente reais. Nenhuma espécie de procedimento científico, bem como nenhuma tese vinculada às ciências pode ser considerada relevante para qualquer etapa do exame fenomenológico. Se, em algum momento deste exame, ocorrer um tal recurso, por menos relevante que ele seja, a redução terá sido desfeita e a fenomenologia não estará mais em curso. Husserl (op. cit.) afirma: ‘Tiro, pois, de circuito todas as ciências que se referem a esse mundo natural, por mais firmemente estabelecidas que sejam para mim, por mais que as admire, por mínimas que sejam as objeções que pense lhes fazer: eu não faço absolutamente uso algum de suas validades. Não me aproprio de uma única proposição sequer delas, mesmo que de inteira evidência, nenhuma é aceita por mim, nenhuma me fornece um alicerce – enquanto, note- se bem, for entendida tal como nessas ciências, como uma verdade sobre realidades deste mundo. Só posso admiti-la depois de lhe conferir parênteses. Quer dizer: somente na consciência modificante que tira o juízo de circuito, logo, justamente não da maneira em que é proposição na ciência, uma proposição que tem pretensão à validez, e cuja validez eu reconheço e utilizo.’ (p. 81) Esta operação, contudo, não é efetuada apenas em relação ao que nos aparece, mas também em relação a nós mesmos. Se a experiência natural tem por sede uma subjetividade concreta, particular, situada em meio a contingências, que se compreende como ente psicofísico em interação com um mundo real, a experiência purificada pela suspensão fenomenológica deve encontrar algum sustentáculo subjetivo que não seja mundano, que possa prescindir de tudo aquilo que encontramos como característico do ‘eu natural’. Por meio da atitude filosófica, descortina- se um ‘eu’ que é pura condição do que aparece, unidade responsável por atos de variado tipo que definem toda a diversidade da vida intencional, o ‘ser-objeto’ de todo objeto. De acordo com Husserl em suas Conferências de Paris, ao realizar a redução fenomenológica: “Eu não me ganho a mim próprio, digamos, como um pedaço do mundo, dado que pus universalmente o mundo fora de validade, não como eu singularizado, mas antes precisamente como o eu em cuja consciência o mundo no seu todo e eu próprio enquanto objeto mundano, como homem que é no mundo, recebem por vez primeira o seu ser e a sua validade de ser.” (Husserl, 1929/2010a, p. 20) Em oposição ao ‘eu’ natural, portanto, o ‘eu’reflexivo é fundamentalmente desinteressado, ou ainda, se se quiser preservar a palavra ‘interesse’ em sua caracterização, interessado apenas nos próprios atos desempenhados pelo ‘eu’ natural (Morujão, 2002). Quando esse afastamento é operado, nada do que o ‘eu’ visa muda em termos de conteúdo: a experiência continua sendo esta experiência, deste objeto específico, desdobrando-se em tais e tais aspectos e perfis, da mesma maneira como seria caso a vivêssemos ingênua e acriticamente. A única coisa que se altera é o assentimento natural que damos à existência do visado como independente de nossos atos, como objetos mundanos. Altera-se, e aqui sim de maneira radical, a pureza da experiência: “A percepção da casa, mesmo quando inibo a atividade da crença perceptiva, é, tomada tal como a vivo, precisamente percepção desta e justamente desta casa, aparecendo desta e daquela maneira, mostrando-se com precisamente estas determinações, de lado, de perto ou de longe. Do mesmo modo que a recordação, clara ou vaga, é recordação da casa clara ou vagamente representada, ou que o juízo, por mais falso que seja, é um visar judicativo deste e daquele estado de coisas visado etc.” (Husserl, 1929/2010a, p. 24) As duas grandes conquistas da redução transcendental ou fenomenológica, portanto, estão em, após a epoché, estudar essa subjetividade pura a partir da qual toda experiência objetual e mesmo os meus próprios traços subjetivos empíricos se constituem. Referências bibliográficas: HELD, K. Edmund Husserl. Fenomenologia transcendental: evidência e responsabilidade. In: M. Flescher (org.). Filósofos do século XX: uma introdução. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006. pp. 107-124. (Coleção História da Filosofia). HUSSERL, E. Conferências de Paris. In: E. Husserl. Meditações cartesianas. Conferências de Paris. Tradução de Pedro M. S. Alves. Lisboa: CFUL, 1929-2010. pp. 13-48. (Coleção Phainomenon: Clássicos de Fenomenologia) ______. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida: Idéias & Letras, 1913-2006. (Coleção Subjetividade Contemporânea). KANT, I. Crítica da razão pura. 5ª edição. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1781-2001. (Coleção Textos Clássicos). MORENTE, M. G. Fundamentos de filosofia: lições preliminares. 8ª edição. Tradução de Guilhermo de La Cruz Coronado. São Paulo: Mestre Jou, 1980. MORUJÃO, A. F. Estudos filosóficos, vol I. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2002. (Coleção Estudos Gerais – Série Universitária).
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