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ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA E DIREITOS HUMANOS Enir Cigognini A existência humana desafiada Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Discutir as ambiguidades das crises moral e ética atuais. Explicar as perspectivas unilaterais e excludentes da visão holística do homem. Definir a visão humanizada e responsável da antropologia cristã. Introdução Existir, humanamente falando, é viver um desafio. Esse desafio não se deve apenas às ameaças que cercam a própria existência, mas à questão de viver ser uma aventura cheia de descobertas. Existem incertezas que, ao longo da trajetória do ser humano, elucidam-se, de forma que ele acaba evoluindo tanto no âmbito pessoal quanto social. Neste capítulo, você vai ter a oportunidade de, a partir da antro- pologia teológica, olhar para a existência humana desafiada. Você vai, em primeiro lugar, verificar as ambiguidades das crises morais e éticas atuais e, em segundo lugar, olhar para as perspectivas excludentes da visão holística de ser humano. A partir disso, você vai fazer uma reflexão tendo como base uma visão humanizada e responsável, que se origina da antropologia cristã. Ambiguidades morais e éticas Antes de mais nada, refl ita sobre uma distinção que é muito mais didática do que real. Quando se fala em ética e moral, você sabe o que elas signifi cam? Se você pesquisar, vai encontrar inúmeras defi nições, aproximações e distinções, que poderão deixar certa confusão no ar. Para que isso não ocorra, podemos utilizar a visão pedagógica elaborada por Vázquez (2008) para uma primeira aproximação. Quando se fala em moral, para esse autor, está se fazendo referência à toda normatividade de conduta humana, seja ela escrita ou não, excetuando-se, nesse caso, os códigos jurídicos, que podem conter normas morais ou não. Já quando se fala em ética, trata-se da ciência da conduta da moral dos seres humanos, conforme aponta Vázquez (2008). Assim, o campo da moral é o campo das normas de conduta de um povo, e a ética é a ciência, ou seja, a reflexão técnica realizada sobre esse campo de normas. É por isso que a ética nem sempre é normativa, já que, nessa pers- pectiva, não cabe a ela normatizar a conduta humana. Antes, ela deve colocar os parâmetros pelos quais determinado indivíduo ou determinada sociedade possa guiar suas tomadas de decisão. Ao falar em ética, a título de introdução, ao menos dois conceitos são fundamentais: isonomia — princípio jurídico que garante a igualdade de todos perante a lei — e liberdade — possibilidade de escolher e, com isso, ser responsável por suas ações. A ética e a moral ficam comprometidas quando não é reconhecida a igualdade entre as pessoas e quando é negada a liberdade. Sem igualdade, não há relação humana dialógica, apenas autoritária e impositiva, e, sem liberdade, não há responsabilidade moral. A seguir, acompanhe a reflexão de um filósofo contemporâneo chamado Alasdair MacIntyre. Segundo ele, há na sociedade atual um desacordo mo- ral (MACINTYRE, 2001). Isso porque, depois que a modernidade operou, conceitualmente falando, uma ruptura com a tradição, deixando o sujeito desconectado de sua história e, na perspectiva do autor, de sua identidade, restou para o indivíduo utilizar como critério para suas escolhas morais a si mesmo, já que não dispunha mais dos elementos da tradição para efetuar tais deliberações. A partir dessa perspectiva, contemporaneamente, o campo moral se tornou uma arena de debates intermináveis, em que ficou impossível dialogar na busca de um objetivo comum (MACINTYRE, 2001). Isso estaria na base da ética chamada emotivista (MACINTYRE, 2001). As decisões precisam levar em conta as emoções — entretanto, para o autor, não apenas elas devem ser consideradas. Se você for analisar argumentos sobre, por exemplo, o aborto, verá argumentos logicamente construídos com boa argumentação a favor, mas com posições inconciliáveis. Agora, imagine alguém precisando decidir sobre o que é correto fazer e encontrando posições contrárias e, às vezes, contraditórias sobre o mesmo assunto. Nesse sentido, o autor propõe um resgate da ética racional das virtudes, com base no de- senvolvimento de Aristóteles. Não se trata de um retorno ao autor, mas um resgate, especialmente da tradição da ética das virtudes. A existência humana desafiada2 Outro autor contemporâneo, Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard, autor da obra Justiça — O que é fazer a coisa certa?, apresenta quatro teorias éticas contemporâneas dominantes. A primeira delas é a ética utilita- rista, teoria segundo a qual o critério da moralidade se encontra na aquisição da máxima felicidade para o maior número de pessoas. Tal princípio, aplicado em sistemas ditos democráticos, funciona perfeitamente, visto que o que está em jogo é o bem-estar da maioria. A teoria passa a ser questionada quando não consegue dar conta das problemáticas ligadas a minorias (SANDEL, 2014). A segunda teoria é o que Sandel chama de ideologia libertária. Essa teoria defende a existência de um Estado mínimo, pois se alicerça em uma visão bastante centrada na liberdade individual. Assim, para o libertarianismo, um indivíduo poderia não optar pela contribuição da previdência social, pois prefere passar trabalho na velhice e ter mais dinheiro agora. Entende, ainda, que a economia deve pautar-se pelo livre mercado e que o Estado deve atuar para fazer cumprir os contratos firmados entre indivíduos. Um dos pontos questionados é a ideia da propriedade de si mesmo, que pode chegar a exageros, como aceitar participar como vítima de um banquete para canibais (SANDEL, 2014). O ponto mais crítico da teoria consiste em questionar a real liberdade dos indivíduos, por exemplo, na celebração dos contratos. A terceira teoria é oriunda especificamente da filosofia moral de Immanuel Kant (1724–1804), segundo a qual a ação justa deve ser justificada racional- mente, sem recorrer a elementos externos ao sujeito. Isso leva ao desenvolvi- mento da chamada ética do dever, cuja formulação bastante conhecida é agir de modo que essa ação possa ser tomada como lei universal. Ainda que bastante convincente, do ponto de vista da racionalidade, essa teoria encontra certas dificuldades, especialmente com relação ao tipo de sujeito que vai desenvolver esse raciocínio — para alguns críticos, parece tratar-se de um eu desconectado da realidade. Na sequência, Sandel apresenta uma reinterpretação de Kant, levada a cabo por John Rawls, na obra Uma teoria da justiça. Segundo este, por meio de um experimento mental, a justiça poderia ser alcançada se um grupo de pessoas pensasse os critérios do justo sem que soubessem o lugar a ser ocupado na sociedade (SANDEL, 2014). A ética aristotélica é a quarta teoria apresentada. Nessa perspectiva, compete ao indivíduo empreender um esforço pela aquisição das virtudes e pelo processo educacional, de tal forma que possa tornar o seu caráter exce- lente. Nessa perspectiva, classicamente, é sustentada a ideia de meritocracia. Analogicamente, a melhor flauta deve ser entregue ao melhor flautista. Claro que, em Aristóteles, existe o empenho pessoal pela excelência, e a questão meritocrática pode aqui ser questionada (SANDEL, 2014). 3A existência humana desafiada Enfim, a partir do exposto acima, você pode perceber que dizer que tal ação é antiética pode ser muito mais complexo do que parece. Esse contexto coloca o ser humano do tempo presente em um universo que pode gerar certa angústia e, ao mesmo tempo, uma aparente insustentabilidade dos valores religiosos. A teoria ética proposta por John Rawls é uma das mais aceitas, muito embora alguns autores — por exemplo, Denis Coitinho, em sua obra Contrato & Virtudes: por uma teoria moral mista — proponham teorias morais mistas, acolhendo contribuições de diversas teorias (COITINHO, 2016). Igualdade humana Na perspectiva católica, não existem elementos com base bíblico-teológicaque justifi quem uma possível hierarquia antropológica. Por hierarquia an- tropológica você pode entender a ideia segundo a qual alguns seres humanos seriam superiores aos demais. Nesse contexto, vamos de encontro a uma parte considerável do desacordo moral contemporâneo. A visão de ser humano que alguém possui pode levá-lo a tomar como correto práticas condenáveis. Assim, por exemplo, ao considerar pessoas de determinado país, língua ou etnia como inferiores à cultura estabelecida, as ações desses presumidos superiores são sempre imorais. A tradição católica, alicerçada na concepção de que o ser humano é criado por Deus à sua imagem e semelhança, rechaça toda e qualquer visão antropológica que negue a dimensão do ser pessoa. Dos muitos textos bíblicos que podem ser utilizados para ilustrar essa questão, propomos uma incursão pelo texto Lc 19, 1-10 (BÍBLIA, 1982). É o relato da conversão de Zaqueu, um cobrador de impostos. No tempo de Jesus, os cobradores de impostos eram responsáveis por recolher os tributos da população. Corria a fama de que cobravam mais do que realmente era devido e ficavam com o excedente, de tal sorte que não gozavam de boa estima entre os populares. Mais do que um cobrador de impostos, esse homem, Zaqueu, segundo o relato bíblico, era chefe dos cobradores de impostos; assim, provavelmente, não deveria ser muito amado (BÍBLIA, 1982). Em suma, motivos não faltavam para que ele fosse rejeitado por muitos. Ocorre que, ao passar pela região, Jesus se depara com aquele homem. O texto bíblico afirma que Zaqueu procurava ver quem era Jesus e não conseguia, A existência humana desafiada4 por causa da multidão, que não devia suportar a sua presença, e pela sua baixa estatura. Daí que ele teria subido em uma árvore; ao vê-lo, Jesus manda que ele desça e afirma que quer ficar na sua casa. Para espanto geral, Jesus vai à casa de Zaqueu. Nisso, aquele pequeno homem, de pé diante de Jesus, diz: “Senhor, eis que eu dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado” (BÍBLIA, 1982, p. 8, Lucas 19). Ao que Jesus responde que a salvação entrou naquela casa e acrescenta: “[...] porque também este homem é filho de Abraão. Com efeito o Filho do Homem veio para procurar e salvar o que estava perdido” (BÍBLIA, 1982, p. 9-10, Lucas 19). Dois elementos aqui chamam a atenção. O primeiro deles é o conceito de filho de Abraão — isso significa que há naquele homem uma dignidade radical, que não pode ser removida, e que, mesmo as supostas práticas criminosas que porventura tenham sido praticadas, ainda que totalmente condenáveis, não diminuem essa dignidade. O segundo elemento é a marca registrada de Jesus, que vem como Filho do Homem para salvar o que estava perdido. Muitos outros exemplos podem ser exauridos da tradição bíblica para justificar a visão unitária da antropologia cristã. O ser pessoa, além de portar essa dignidade, abre-se para o cultivo da relação do ser humano consigo mesmo e dele com todos os seres humanos, defendendo aí a importância da alteridade. Alteridade essa que possui uma dimensão pessoal, cósmica (relação com a natureza) e transcendente (relação com a alteridade absoluta — o totalmente outro: Deus). É por essas razões que visões antropológicas que não oferecem essa dimen- são holística da existência não podem ser uma base sólida para a construção de um mundo mais justo e solidário. É o caso das muitas visões de homem, como a que o compreende como um simples organismo biológico ou mesmo material, negando, com isso, sua capacidade de transcendência. A visão holística do ser humano, conforme preconizada pela tradição cristã, levou o missionário dominicano Antônio de Montesinos, em nome da comunidade dominicana, na atual República Dominicana, em 1511, a defender a dignidade e a igualdade entre nativos e espanhóis, mesmo que isso rendesse aos religiosos perseguição e calúnias. 5A existência humana desafiada Nesse sentido, Forte (2010, p. 7) afirma: “Se o protagonista da modernidade é o eu, o mundo da identidade tanto em seu aspecto subjetivo, como em seu aspecto absoluto, a questão da emergente e inquieta pós-modernidade é o outro. Diante da noite do eu, [...] resta indagar: onde e como o outro se apresenta?”. Muitas vezes, a tendência de condenação não leva em consideração a riqueza da misericórdia divina. Leia a obra Dives in Misericordia, de João Paulo II, disponível no link a seguir. https://goo.gl/HXCxx3 Humanismo responsável Aqui você vai refl etir sobre os desdobramentos da visão antropológica da tradição cristã-católica. A visão do ser humano como pessoa implica, primei- ramente, no reconhecimento da grandeza do Criador. Ele é a causa suprema da realidade. Isso leva a uma contemplação da própria realidade individual, pois o ser humano não é fruto do acaso ou da pura aleatoriedade. Um passo concomitante a esse ocorre no reconhecimento do outro humano e de toda a natureza criada. Aqui reside a dimensão social do ser humano. É o que bem reconheceram os padres conciliares, ao afirmarem na Gaudium et Spes (PAULO VI, 1965, documento on-line): A natureza social do homem torna claro que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absoluta- mente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus irmãos. Desse modo, reconhecer-se humano é assumir a responsabilidade dessa dimensão social inerente ao ser pessoa. E, dada a influência do meio social sobre as pessoas, o documento conciliar adverte para situações sociais que A existência humana desafiada6 podem afastar o ser humano da prática do bem (PAULO VI, 1965). Aqui está o ponto nevrálgico de aplicabilidade prática da dimensão social do ser pessoa: a prática do bem. Muitas vezes, as perturbações que levam os seres humanos à prática do mal, além da vontade não ordenada, podem ser oriundas das tensões estruturais nos campos econômico, político e social. De acordo com os padres conciliares: A interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum — ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição — se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem res- peito a todo o gênero humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana (PAULO VI, 1965, documento on-line). Dada a interdependência dos seres humanos entre si, estes devem ser respeitados e valorizados em sua singularidade e conclamados para a defesa da dignidade humana e da construção da justiça social. A justiça social deve, acima de tudo, buscar superar a ética individualista, comprometendo-se com a realidade social em que a pessoa vive. Enfim, ser cristão é reconhecer-se como pessoa e ser pessoa — basicamente, significa abertura. Abertura para a aceitação de si mesmo, para o cuidado com a natureza, para a fraternidade universal e para o totalmente outro: o Deus amor. Para mais informações sobre os temas trabalhados ao longo deste capítulo, acesse os materiais a seguir. Você pode ler um belíssimo texto do Papa Francisco sobre a questão ambiental. Ser cristão, afinal, implica cuidar da obra do Criador. https://goo.gl/kfJ39N Se você ficou interessado pelo debate sobre a justiça no campo educacional e filosófico, pode acompanhar uma entrevista de Jorge Pontual, da Globo News, com o filósofo de Harvard Michael Sandel. https://goo.gl/RN9tZc7A existência humana desafiada BÍBLIA. Bíblia sagrada. Centro Bíblico Católico. 34. ed. São Paulo: Ave Maria, 1982. COITINHO, D. Contrato & virtudes: por uma teoria moral mista. São Paulo: Edições Loyola, 2016. FORTE, B. À escuta do outro: filosofia e revelação. São Paulo: Paulinas, 2010. MACINTYRE, A. Depois da virtude. Bauru, SP: EDUSC, 2001. PAULO VI, Papa. Constituição pastoral: Gaudium et Spes sobre a igreja no mundo atual. 1965. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/ documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 30 jan. 2019. SANDEL, M. J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. VÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Leitura recomendada JOÃO PAULO II, Papa. Dives in Misericordia. 1980. Disponível em: http://w2.vatican.va/ content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_dives-in- -misericordia.html. Acesso em: 30 jan. 2019. A existência humana desafiada8
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