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Teorias da Aprendizagem Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Renan de Almeida Sargiani Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco Revisão Técnica: Prof.ª Me. Cássia Souza Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem • Discutir as principais dificuldades e problemas de aprendizagem com especial atenção para o respeito às diferenças individuais e à diversidade nos contextos educacionais. • Conhecer os principais transtornos e dificuldades de aprendizagem, refletindo sobre o ex- cesso de diagnósticos equivocados e a medicalização da educação. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Diversidade e Diferenças Individuais no Processo de Aprendizagem; • Problemas de Ensino e Dificuldades de Aprendizagem; • Transtornos Específicos de Aprendizagem e Outros Transtornos do Neurodesenvolvimento; • Patologização e Medicalização da Educação. UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Diversidade e Diferenças Individuais no Processo de Aprendizagem Ciente de que a aprendizagem é um fenômeno complexo e que ao longo da his- tória diferentes pesquisadores criaram teorias sobre o que é e como ocorre a apren- dizagem e tais teorias influenciaram e ainda influenciam nas políticas educacionais, objetivos de aprendizagem e práticas de ensino (ILLERIS, 2013), podemos afirmar que a aprendizagem é um processo de aquisição de competências, conhecimentos, valores, atitudes, comportamentos e habilidades e que tem como marcador neuro- biológico as mudanças de conexões entre os neurônios, as chamadas sinapses, que ocorrem graças à neuroplasticidade do cérebro. Na evolução da espécie, o cérebro humano foi biologicamente selecionado para funcionar como uma espécie de “máquina de aprendizagem”, no sentido de que é al- tamente preparado para aprender. Os bebês humanos nascem com poucos recursos, mas aprendem muito rapidamente e continuamos aprendendo por toda a vida. No entanto, não aprendemos tudo com a mesma facilidade e nem aprendemos todos na mesma velocidade ou com a mesma eficiência (LEFRANÇOIS, 2017). As pesquisas mostram que a neuroplasticidade é maior na infância, fazendo dessa uma etapa crucial para o estabelecimento de uma boa arquitetura cerebral e a otimiza- ção de aprendizagens futuras. Nos primeiros anos de vida, as crianças aprendem muito rapidamente sobre todas as coisas ao seu redor. Os adultos, por sua vez, têm menos neuroplasticidade, mas aprendem com maior profundidade do que as crianças que aprendem rapidamente, mas de modo superficial. Além disso, cada pessoa tem suas próprias experiências de vida que facilitam ou dificultam determinadas aprendizagens. Essas variações na aprendizagem são normais e esperadas. Além disso, não é a mesma coisa aprender a amarrar os sapatos e aprender a ler e escrever. Cada aprendizagem demandará tempos e pré-requisitos diferentes. Mas, nas instituições educacionais existem objetivos de aprendizagem padronizados e espera-se que todos alunos, com suas diferentes bagagens aprendam relativamente no mesmo ritmo e com a mesma eficiência. As expectativas, avaliações e prazos na escola são os mes- mos para todos. Assim, nas escolas fica mais evidente como as diferenças individuais influenciam na aprendizagem. Na maioria dos casos essas diferenças são comuns, mas em outras podem ser um problema acentuado que requer ajuda específica. Assim, nesta Unidade discutiremos o impacto das diferenças individuais típicas e atípicas na aprendizagem. Toda aprendizagem sempre depende de condições in- ternas e externas para ocorrer. As internas podem incluir fatores biológicos e expe- riências prévias, existem, por exemplo, distúrbios específicos de aprendizagem que implicam em dificuldades de origem neurobiológica. Por outro, lado, muitas vezes observam-se casos de problemas de aprendizagem que na verdade são devido às condições externas como a escola, os professores e suas metodologias de ensino. 8 9 Em todos os casos, precisamos ser cuidadosos e não nos esquecermos de que todos podem aprender, desde que lhes sejam dadas condições apropriadas de ensino. Quando fazemos uma teoria precisamos criar abstrações generalistas sobre o mundo real. Ao tratarmos de crianças, adultos, aprendizes, estudantes em qualquer teoria, referimo-nos sempre a uma abstração da realidade, de uma representação média de várias pessoas que foram estudadas em diferentes pesquisas. A realidade, contudo, é muito diversificada, não existem duas pessoas iguais. Mesmo irmãos gê- meos têm trajetórias diferentes e vivências específicas que influenciam seu modo de ser, viver e pensar, e sua forma de aprender. Assim, ao sair da teoria para a prática sempre nos depararemos com uma realidade complexa que implica analisar diversos fatores e buscar entender cada caso. Uma teoria nunca explicará tudo o que a rea- lidade apresenta, mas lançará os caminhos para a melhor análise e entendimento. É fato que todos aprendemos com o mesmo tipo de cérebro humano e é fato também que somos limitados em nossa condição humana. Por mais esforço que se faça, um ser humano não pode desenvolver asas e aprender a voar, como também não poderá aprender a correr mais rapidamente do que a velocidade de um carro, mesmo com muito treino. Todos somos limitados por nossa natureza biológica em algum aspecto. A essas condições dadas pela biologia de nossa espécie chamamos de filogênese ou filogenia, que se refere ao que é possibilitado a um organismo de acordo com a evolução de sua própria espécie (MARTINS; VIEIRA, 2010). Nós, humanos, falamos e pensamos, como peixes nadam e pássaros voam. Os humanos nascem com muito pouco, além de uma base biológica que lhes per- mite aprender muito e mudar quase tudo à sua volta, até mesmo criando máquinas e equipamentos que lhes permitam voar, nadar e se transportar velozmente. Mas, embora tenhamos potencial biológico para muitas coisas, não aprendemos todas as coisas que nos são possíveis. Podemos aprender a caçar, a nadar, a falar múltiplas línguas, a dirigir um carro veloz ou inventar e pilotar um avião. Esse potencial é pos- sibilitado pela filogênese, mas se manifesta a partir da nossa experiência de vida, de modo que aprendemos de acordo com nossas histórias e assim chamamos esse tipo de desenvolvimento de ontogênese ou ontogenia. Além disso, nossa aprendizagem é também mediada por uma cultura. O que aprendemos em nossa ontogênese dependerá em boa parte da cultura em que es- tamos. Comportamentos, conhecimentos e valores podem ser muito diferentes nas diversas culturas existentes. O que é valorizado em uma cultura, pode ser rejeitado em outra. Usar o sinal de positivo com o polegar, sinal comum para brasileiros, pode ser ofensivo em outras culturas, como mostrar o dedo médio em algumas culturas pode ter outros significados que não tão ofensivos quanto na cultura brasileira. A cultura é um produto da história filogenética do homem, enquanto espécie e da soma das diversas histórias ontogenéticas que possibilitaram a criação de conheci- mentos específicos que depois foram socializados. Assim, um bebê traz consigo uma organização biológica que é produto da história filogenética, mas mesmo antes de nascer já está inserido em um ambiente sociocultural, que o modifica e é modificado por ele (MARTINS; VIEIRA, 2010). 9 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Nesse sentido, mais recentemente temos discutido muito também sobre o con- ceito de epigenética ou epigênese, isto é, a relação entre a genética e os fatores ambientais. Esse conceito ajuda a avançar a compreensão da ação de genes, pro- teínas, neurônios e do ambiente (incluindo a cultura) no desenvolvimento humano. O que somos está previsto em nosso código genético, nosso ácido desoxirribonu- cleico (DNA), mas em verdade o que lá está é só a receita de um bolo – e não o bolo inteiro. Nosso DNA se expressa na interação com o meio ambiente. Fatoresexternos como estresse, calor, frio, fome etc., podem influenciar não só no desenvolvimento embriológico ainda no ventre materno, como por toda a nossa vida. As pressões ambientais promovem mudanças em nosso organismo e isso tem sido cada vez mais estudado (MARTINS; VIEIRA, 2010). A importância dessa discussão é alertar que biologia também não é destino, não é porque nascemos com uma dada condição como, por exemplo, um distúrbio de aprendizagem, que nada podemos fazer para mudar. Podemos sim, e muito do que sabemos hoje é que a educação tem um importante papel em promover mudanças que facilitem a aprendizagem mesmo em situações adversas. É importante compreender que há uma grande diversidade de culturas, de saberes e de características individuais. Somos todos da mesma espécie, mas as possibilida- des de aprendizagem são muito diversificadas. Alguns nascem com mais potencial cognitivo do que outros, e podem aprender melhor, enquanto outros podem ter mais dificuldades e mesmo assim ter vantagens em outros aspectos. Algumas crianças autistas podem ter vantagens na dimensão cognitiva, mas dificuldades com as habi- lidades socioemocionais. Enquanto crianças com síndrome de Down podem ter difi- culdades cognitivas e facilidade com habilidades socioemocionais. Mas todos somos diferentes em alguma medida e todos podem aprender desde que lhes sejam dadas condições apropriadas de ensino. Problemas de Ensino e Dificuldades de Aprendizagem Antes de ingressar nas escolas a maioria das crianças não tem dificuldades de aprendizagem acentuadas. Muitas diferenças passam despercebidas pelas famílias, pois as aprendizagens acontecem de forma incidental e sem avaliações. É comum que os pais observem que um filho aprendeu a falar ou andar antes do outro, mas isso normalmente não é motivo de preocupação a menos que sejam diferenças muito marcantes, como uma criança que ainda não aprendeu a falar aos 3 anos de idade, já que normalmente as crianças começam a falar por volta do primeiro aniversário. Contudo, a maioria das crianças passa a enfrentar problemas de aprendizagem quando ingressa na escola e se compara a outras crianças, esperando que as aprendizagens ocorram de forma semelhante (CIASCA, 2003). 10 11 A aprendizagem infantil está intimamente ligada ao desenvolvimento da criança e pode ser influenciada tanto pelo ambiente de aprendizagem formal, isto é, a escola ou os professores, quanto por condições orgânicas, condições emocionais e a pró- pria estrutura familiar. Existem diversas características individuais que influenciam na aprendizagem, desde síndromes genéticas, distúrbios específicos de aprendizagem, condições neurológicas e até mesmo características culturais, diferenças linguísticas e de conhecimentos básicos (PAULA et al., 2006). Em alguns casos as condições internas não podem ser completamente modificá- veis. Algumas crianças possuem distúrbios neurológicos ou síndromes genéticas que dificultam a aprendizagem. Mas, em muitos casos essas condições podem ser atenu- adas por processos educativos apropriados. Crianças autistas, por exemplo, podem apresentar muitas dificuldades para aprender a falar, mas com metodologias apro- priadas podem ter avanços importantes e se comunicarem de modo eficiente. Outras crianças podem precisar de ajustes nos materiais para que a aprendizagem ocorra. Crianças disléxicas, por exemplo, têm dificuldade acentuada de processamento de le- tras, de modo que aumentar o espaçamento entre as letras ou mudar as fontes pode facilitar a alfabetização de crianças disléxicas e seu desempenho em leitura. Em todos os casos, portanto, as condições externas podem facilitar ou dificultar os processos de aprendizagem. Algumas metodologias de ensino podem ser eficien- tes para algumas crianças e não a outras, assim como uma explicação do professor pode ser clara para alguns e não para outros. As diferenças individuais na escola são diluídas em um grupo na sala de aula. Muitas vezes o problema não está na criança, mas nas condições de ensino. Professores devem ficar atentos aos problemas de aprendizagem que cada criança apresenta, buscando entender se existem fatores externos que expliquem essas dificuldades, antes de hipotetizar que o problema seja inerente à criança. Esses fatores externos às vezes são relacionados ao tipo de conte- údo a ser aprendido, à forma como é ensinado, às relações interpessoais da criança na escola etc. É fundamental explorar essas alternativas antes de considerar que de fato a criança tenha algum tipo de problema de aprendizagem de origem biológica. Em alguns casos, as crianças já possuem um diagnóstico e é o caso de se pre- parar condições apropriadas de ensino. A perspectiva da Educação Inclusiva tem ganhado cada vez mais espaço e busca promover a integração de crianças com di- versos tipos de dificuldades em salas de aulas consideradas normais, junto a crianças com desenvolvimento típico. Essa prática contribui para a melhoria na socialização de todos, diminuição do preconceito e amplifica as possibilidades de aprendizagem. Contudo, corre-se também o risco de que em algumas escolas na realidade se faça uma exclusão velada, pois essas crianças não são realmente incluídas na turma regular. Elas estão apenas presentes no mesmo ambiente, mas ficam separadas nas salas e sem de fato conseguirem aprender (BEZERRA, 2017). Igualdade não significa equidade em educação. Não basta oferecer tudo igual para quem tem necessidades diferentes. Ofertar educação equitativa é dar mais a quem precisa mais. Se para aprender a ler uma criança precisa de óculos, então é preciso dar óculos para essa criança, não para todas as crianças. Nesse sentido, precisamos 11 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem entender que ao inserir crianças com necessidades especiais diferentes em uma mesma sala precisamos dar aquilo que cada uma precisa – e não apenas colocá-las junto às demais, correndo-se o risco de prejudicar e estigmatizar ao invés de ajudar essas crianças. Como uma professora pode lidar ao mesmo tempo com 25 crianças com desenvolvimento típico, mas características e necessidades individuais diversas, e mais uma criança com paralisia cerebral, uma criança surda, uma criança autista e uma criança com síndrome de Down em uma única sala? Essa professora precisa oferecer, pelo menos, cinco tipos diferentes de instruções para que possa garantir que todos estejam sendo de fato atendidos. Não basta ofertar apenas um tipo de instrução para todas essas crianças. Ademais, como saber se a professora tem recursos e conhecimentos para lidar com todos? Como saber se sabe, por exemplo, comunicar-se por Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) e fazer uso de comunicação alternativa e ampliada para crianças com paralisia cerebral e de ABA – Applied Behavior Analysis – para a criança autista? Uma aula tem aproximadamente 50 minutos, um período letivo tem cerca de 4 horas. Como dar conta de tudo isso em tão pouco tempo e sozinho? Esse é mais um dos desafios da educação brasileira: ensinar a todos com equidade e qualidade. Você, como especialista em aprendizagem, deve avaliar todo esse contexto quando estiver tentando entender uma situação-problema de aprendizagem. Intuitivamente, você talvez pensasse que em uma turma de 30 alunos, se só uma criança não aprende é porque esta tem problemas. Contudo, a realidade nos mostra que não, a metodolo- gia usada ou as explicações podem não ter sido suficientes para essa criança; a nossa primeira hipótese nunca é a de que o problema está na criança, mas sim em todos os fatores que podem influenciar na aprendizagem (CIASCA, 2003). Não podemos nos esquecer que mesmo quando as crianças têm desenvolvimento típico também podem ter mais dificuldades em aprender certos conteúdos. Aprender a ler não é o mesmo que aprender a falar, não é o mesmo que aprender Geografia e muito menos aprender a dançar. Diferentes aprendizagens implicam em diferentesnecessidades de recursos para essa aprendizagem. Quando vamos nos desenvolven- do vamos adquirindo uma série de conhecimentos e habilidades que podem facilitar algumas aprendizagens e não outras. As pessoas têm histórias de vida diferentes e essas experiências e conhecimentos proporcionam diferentes formas de aprender. Aprendemos a falar de modo relativamente simples, a linguagem oral está pré-programada em nosso código genético. Mesmo com pouca exposição à fala, aprenderemos a falar e desenvolveremos um vocabulário. Contudo, os estudos mostram que dependendo das interações que temos com as pessoas ao nosso redor essa aprendizagem pode ser muito diferente. Em um estudo particularmente interessante, Hart e Risley (1995) mostraram que famílias que têm melhores condições econômicas e mais anos de estudos (isto é, cursaram o Ensino Superior), conversam mais com seus filhos do que aqueles que têm menos recursos e escolarização. As diferenças nos 3 primeiros anos de vida das crianças é de cerca de 30 milhões 12 13 de palavras ouvidas a menos, fazendo com que as crianças mais pobres conheçam pouco mais da metade do vocabulário que as mais ricas. Essas diferenças não são apenas quantitativas, mas também qualitativas, o vocabulário também é mais variado e complexo quando se tem mais anos de escolarização. Agora, imagine o impacto dessas diferenças em todo o desenvolvimento cognitivo e nas possibilidades de ação dessas crianças. Ao chegar nas escolas de Educação Infantil as crianças aos 4 anos de idade já possuem muitos conhecimentos diferentes e há grande abismo entre as crianças que tiveram melhores oportunidades do que as outras. A escola precisa ser um promotor de equidade, precisa preencher esse vão o mais rapidamente possível, fazendo com que todos tenham condições de aprender a partir de uma base semelhante (SARGIANI; MALUF, 2018). Os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento infantil. Nos seis pri- meiros anos as crianças desenvolvem a arquitetura cerebral com base nas experiências e interações que têm com o ambiente. Experiências positivas fortalecem as conexões, criando uma estrutura sólida para as futuras aprendizagens. A neuroplasticidade é maior nesse período e ajudará, por exemplo, a contornar alguns possíveis problemas que poderiam ser mais complicados se a criança fosse mais velha. Quanto mais cedo as crianças receberem estimulação apropriada, melhor será para que tenham mais chances de acompanhar seus pares de idade (COSENZA; GUERRA, 2011). Na década de 1980, Keith Stanovich transpôs da Sociologia aos estudos de alfa- betização o conceito de efeito Matheus. A ideia originária vem da Bíblia, especifica- mente do livro de Matheus e diz que os ricos cada vez ficam mais ricos e os pobres cada vez ficam mais pobres. Nos estudos sobre a aprendizagem da leitura, Stanovich (1986) mostrou que as pequenas diferenças que separam bons leitores de maus leito- res no começo da escolarização se amplificam com o passar do tempo. Por exemplo, imagine a situação de uma criança com facilidade de aprendizagem e bom desempe- nho em leitura, pedirá para ler livros, gibis e revistas, será escolhida pela professora para ler e terá várias oportunidades para praticar e aperfeiçoar suas habilidades. Por outro lado, a criança que começa com dificuldades, sentirá que não é capaz e tentará evitar a leitura, dirá que não gosta de ler, abaixará a cabeça para não ser chamada para ler. Evitará ter contato com livros, gibis e revistas e a professora pro- vavelmente não a chamará para ler na frente da turma até para evitar expô-la. Mas isso tudo fará com que ao longo do tempo as diferenças mínimas sejam ampliadas a ponto de que o que era uma diferença entre saber ler poucas palavras também será uma diferença entre fluência em leitura, compreensão de textos e um vocabulário di- versificado e amplo, além de conhecimentos gerais obtidos pela leitura. Na Figura 1 está um esquema que ilustra o efeito Matheus. 13 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Ha bi lid ad es de le itu ra Idade/Escolaridade Maus leitores Bons leitores Figura 1 – Esquema representando o efeito Matheus, isto é, o aumento da diferença entre bons e maus leitores ao longo dos anos de escolaridade A educação deve, portanto, focar em oferecer condições apropriadas de apren- dizagem desde muito cedo para que todos tenham uma mesma base, e se possa diminuir ou evitar o efeito Matheus. Além disso, Tunmer (2013) mostrou que quando crianças têm poucas habilidades iniciais, por exemplo, de leitura, precisam de instru- ções mais explícitas e um esforço maior das professoras para que a aprendizagem ocorra. Se os alunos têm conhecimentos iniciais medianos, a professora terá um esforço mediano também. Ademais, quando as crianças trazem muitas experiências de base, não é necessá- rio que a professora tenha tanto esforço em suas ações, as crianças podem aprender a partir do que já sabem e com instruções mínimas da professora. Por exemplo, se a professora ensinar a ler e escrever e as crianças já souberem o alfabeto será mais fácil ensinar do que quando as crianças não souberem nenhuma letra. As crianças depen- derão menos do que a professora apresentará porque podem se basear em conheci- mentos que já possuem. Na Figura 2 existe um esquema ilustrando esta explicação. Alunos com bom repertório inicial cpmpensam o impacto do pouco ensino Aluno mediano + impacto mediano do professor Alunos com pouco repertório inicial, precisam mais do professor Contribuição do aluno Contribuição do aluno Contribuição do aluno Contribuição do professor Contribuição do professor Contribuição do professor Aprendizagem Figura 2 – Esquema representando a necessidade de esforço de professores e alunos para que a aprendizagem aconteça 14 15 O que acontece com a maioria das nossas crianças brasileiras? Trazem para a escola muito pouco e recebem menos ainda. As crianças chegam com poucos conhecimentos de base e se deparam com instruções pouco claras e diretivas. Nas escolas públicas há ênfase em proposições teóricas contrárias a materiais estruturados e que deixam as crianças livres para aprenderem ao seu modo. O problema é que só conseguiriam se tivessem uma base comum de partida, chegando com pouco apenas ficam em desvantagem ainda maior com quem recebe instrução diretiva em uma escola particular e já possuía bons conhecimentos de base (HAASE; JULIO- COSTA; SILVA, 2015). Não é difícil entender o porquê, então, muitas crianças passam a ter dificuldades de aprendizagem quando ingressam nas escolas, instituições estas exigentes de que a aprendizagem ocorra de modo relativamente igual para todos, mas nem todos têm as mesmas condições de aprender com as mesmas instruções. Muitas crianças, portanto, não têm dificuldades ou problemas patológicos de aprendizagem, mas sim problemas de “ensinagem”. Ou seja, o problema está no ensino que recebem, nas condições ex- ternas que afetam a aprendizagem. É claro que assim como não devemos culpabilizar as crianças, não estamos também culpabilizando os professores, mas apenas alertan- do para o fato de que na relação ensino-aprendizagem é preciso analisar também as questões do ensino que influenciam no processo de aprendizagem. Contudo, algumas crianças, mesmo que inseridas em um ambiente favorável, com acesso a todos os recursos necessários, explicações claras e metodologias apro- priadas, não conseguem aprender conteúdo específico, como a leitura, a escrita e os cálculos matemáticos. Nesses casos, a investigação pode revelar que se trata não de problemas comuns de aprendizagem, mas de distúrbio ou transtorno que requer atendimento especializado. Transtornos Específicos de Aprendizagem e Outros Transtornos do Neurodesenvolvimento Definir o que são distúrbios de aprendizagem não é uma tarefa simples, pois há diversos termos comumente usados para se referir aos problemas relacionados à aprendizagem, por exemplo,“dificuldades”, “distúrbios”, “problemas”, “discapacida- des” e “transtornos”. Como se trata de um tema de interesse interdisciplinar, diferen- tes profissionais, como médicos, educadores e psicólogos utilizam terminologias e enfoques distintos. Contudo, distúrbios e transtornos são tipicamente usados como sinônimos para se referir a uma manifestação clínica de uma disfunção do sistema nervoso central (SOUZA; SANTUCCI, 2009), persistindo mesmo com o ensino apropriado. Portanto, são diferentes os problemas de aprendizagem, podendo ser pontuais, de origem externa ao indivíduo e sanados com ensino apropriado. 15 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Os transtornos ou distúrbios de aprendizagem são alterações mais acentuadas do que os problemas de aprendizagem. Em geral, os transtornos de aprendizagem são consequências de alterações na organização funcional do sistema nervoso central, embora sua manifestação seja leve, pode trazer consequências para o futuro da criança, uma vez que dificultam sua aprendizagem de forma global. Nesse quadro, observa-se que os alunos têm dificuldades para aprender, apesar de adequada inte- ligência, visão, audição, capacidade motora e equilíbrio emocional. Muitas vezes os primeiros sinais são dificuldades motoras ou psicomotoras, de atenção, memorização, compreensão, desinteresse, escassa participação e problemas de comportamento. A etiologia dos distúrbios da aprendizagem ainda não está plenamente elucidada, mas a hipótese mais forte é de que são causados por uma diferença na estrutura do cérebro presente desde o nascimento e em alguns casos são hereditários. Existem estudos que apontam para fatores genéticos envolvidos nos principais transtornos de aprendizagem, tal como a dislexia. Os transtornos de aprendizagem são mais frequentes em meninos do que em meninas e estima-se que no Brasil há incidência entre 3 e 5% da população geral (CIASCA, 2003). O diagnóstico de um transtorno de aprendizagem não é simples e envolve um olhar multidisciplinar. Além disso, é inicialmente preciso excluir todas as outras pos- síveis causas que expliquem o desempenho abaixo do esperado, como as metodolo- gias de ensino adotadas. Em geral, a queixa de dificuldades de aprendizagem aparece quando a criança ingressa na escola e o diagnóstico é feito por volta dos oito anos de idade, quando as habilidades acadêmicas são mais demandadas. Antes dessa idade o diagnóstico pode não ser muito preciso, provocando ansiedade desnecessária nos pais e na criança. Na Educação Infantil, as crianças variam muito em suas habili- dades e se desenvolvem rapidamente, tornando difícil um diagnóstico preciso em alguns casos. O diagnóstico apropriado é muito importante. Crianças com distúrbios de apren- dizagem que não tenham sido diagnosticadas podem ser erroneamente classificadas como tendo inteligência abaixo da média, preguiça, insolência, falta de interesse ou serem desmotivadas e desatentas. Normalmente são muito cobradas pelos pais e professores, o que acaba sendo um fator estressante que dificulta ainda mais a apren- dizagem, gerando sentimentos negativos e crença de incapacidade (CIASCA, 2003). As dificuldades ou problemas de aprendizagem diferem dos distúrbios ou transtor- nos, pois quando se oferece oportunidades apropriadas de ensino, a aprendizagem ocorre normalmente. Assim, avaliar as condições externas é muito importante, pois ajuda a diferenciar dificuldades de aprendizagem de transtornos de aprendizagem. Um bom professor aliado a uma metodologia apropriada de ensino poderá solu- cionar as dificuldades da maioria de seus alunos utilizando diferentes estratégias de ensino. Caso o aluno não aprenda mesmo assim, nesses casos poderemos ter um real transtorno de aprendizagem. As dificuldades de aprendizagem, portanto, ao contrário dos distúrbios, não têm uma relação direta com alterações no sistema ner- voso central (PAULA et al., 2006). 16 17 Segundo o Manual de diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013), os transtornos de aprendizagem estão classificados como transtornos do neurodesenvolvimento na classificação mais atual do DSM-V. Os transtornos de neurodesenvolvimento englobam alterações dos processos iniciais do desenvolvimento cerebral que persistem ao longo da vida. Têm sua origem no período gestacional ou na infância e envolvem déficits na interação social e nas habilidades de comunicação que dificultam, dentre outras coisas, a aprendizagem dentro e fora das escolas. Os principais transtornos de neurodesenvolvimento são Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH); Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtornos Específicos de Aprendizagem (TEAp) (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). As pesquisas indicam que os transtornos do neurodesenvolvimento têm origem genética, embora não se tenha claro ainda quais são os genes responsáveis para cada transtorno. Além disso, as origens desses transtornos podem também ter rela- ção com alterações ou fatores de riscos ambientais que acontecem ainda nos perío- dos iniciais do desenvolvimento, tal como a interação com agentes teratogênicos, isto é, substância, organismo, agente físico ou estado de deficiência, que podem causar alterações durante a vida embrionária ou fetal, tais como rubéola, síndrome da imu- nodeficiência adquirida (Aids), álcool e drogas. Além disso, exposição ao estresse, a toxinas, a determinados medicamentos, prejuízos no período perinatal, baixo peso ao nascimento e prematuridade também podem estar relacionados. A prevalência de transtornos do neurodesenvolvimento é maior para meninos do que para meninas e o início dos sintomas geralmente ocorre nos primeiros anos de vida e persistem por todo o desenvolvimento. É muito comum que esses transtornos sejam identificados quando as crianças vão para a escola e passam a ser observadas em situações que demandam algumas habilidades como a atenção e a linguagem e são comparadas com outras crianças com a mesma idade. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) O TDAH é um dos transtornos do neurodesenvolvimento mais conhecidos, e se caracteriza por prejuízos no controle da atenção e no controle motor. Frequen- temente, existe um prejuízo também no controle emocional. Os sintomas incluem dificuldades de concentração em atividades e desatenção para detalhes. Dadas as ca- racterísticas dos sintomas, muitas crianças são erroneamente rotuladas como tendo TDAH quando, na verdade, ainda estão desenvolvendo funções executivas – como o controle inibitório. As crianças que realmente têm TDAH apresentam dificuldades em manter a atenção nas atividades e no controle do corpo, por exemplo, batendo a perna frequentemente como se estivessem entediadas. Têm dificuldades em esperar e manifestam inquietação, podendo levar a sentimentos de raiva intensa, descontrole emocional e impulsividade. 17 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Do ponto de vista neurobiológico, observa-se prejuízos na maturação e no de- senvolvimento do córtex pré-frontal, área responsável pelas funções executivas e or- questração das diferentes áreas do córtex motor, áreas relacionadas às emoções, aos pensamentos e à atenção. O TDAH pode ocorrer em comorbidade com outros trans- tornos específicos da aprendizagem, como a dislexia (MOUSINHO; NAVAS, 2016). Transtorno do Espectro Autista (TEA) O autismo é outro transtorno bastante conhecido e dada a diversidade das carac- terísticas dos autistas e o nível de complexidade, atualmente se considera como um transtorno do espectro do autismo. Em síntese, o TEA se caracteriza por alterações no desenvolvimento neurológico marcado por três características fundamentais: pre- juízos na comunicação, dificuldades de socialização e padrão de comportamento restritivo e repetitivo. As primeiras manifestações, no comportamento das crianças em geral, ocorrem no final do primeiro ou segundoano de vida. Como se trata de um espectro, alguns autistas podem desenvolver linguagem adequadamente, mas mesmo assim ocorrem prejuízos na comunicação social não verbal, o que inclui a compreensão de gestos, pistas sociais e leitura do ambiente social. Apresentam dificuldades com a compreensão simbólica, por exemplo, tendo limitações em compreender a linguagem figurada. Muitos autistas podem ter inteligência normal ou até acima da média, com um interesse predominante por diferentes temas, tais como dinossauros, carros, trens e animais. Podem apresentar estereotipias comportamentais, comportamentos repetitivos, alterações sensoriais e preferência por rotinas que, se quebradas, levam a reações emocionais. Podem apresentar ecolalia, que é a repetição de palavras (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). Existem pessoas com TEA que apresentam fala e comunicação verbal apropria- das e com bom desenvolvimento nas escolas. Contudo, apresentam dificuldades qua- litativas na comunicação e aproximação social, na leitura do ambiente e do contexto social, na percepção das emoções, interesses restritos e alterações sensoriais. Dada a diversidade do espectro autista, as pesquisas ainda são variadas, mas do ponto de vista neurobiológico se percebe alterações nas conexões entre diferentes áreas do cérebro, em especial nas ligadas aos pensamentos e funções cognitivas superiores. Transtornos Específicos de Aprendizagem (TEAp) Conforme já explicado, os transtornos específicos de aprendizagem são classifica- dos como um dos transtornos do neurodesenvolvimento e podem ser subdivididos em função do tipo de dificuldade: leitura, escrita e capacidade matemática. Em geral, as crianças com TEAp possuem um bom desempenho em medidas intelectuais como o QI – Quociente de Inteligência –, mas dificuldades específicas na aprendizagem e desempenho nesses domínios acadêmicos (MOUSINHO; NAVAS, 2016). 18 19 • Dislexia: é um dos subtipos mais conhecidos e se refere a uma dificuldade acentuada na aprendizagem da leitura (decodificação) de palavras isoladas, nor- malmente refletindo insuficiência do processamento fonológico. Ainda não se sabe exatamente quais os mecanismos envolvidos na dislexia, mas a hipótese mais vigorosa é de um déficit no processamento fonológico dificultaria também o processamento de letras em paralelo; • Disgrafia: é a dificuldade específica em relação à escrita, sendo manifestada com dificuldades de ortografia e caligrafia. Como muitas crianças apenas são consideradas como tendo a “letra feia”, esse transtorno acaba sendo menos diagnosticado do que a dislexia e é menos conhecido; • Discalculia: é o transtorno específico da Matemática e não está relacionado à total falta de habilidades matemáticas, mas sim na maneira como a pessoa usa esse conhecimento, por exemplo, para fazer cálculos. Os transtornos específicos de aprendizagem são dificuldades acentuadas de ad- quirir conhecimentos ou habilidades e são especialmente relacionados às dificuldades escolares, mas não se resumem a elas. Quando a criança ingressa no processo de escolarização é que se espera a aprendizagem formal da leitura, da escrita e do racio- cínio lógico-matemático, por isso fica mais nítido quando uma criança tem alguma dificuldade nesse processo. Contudo, podemos observar dificuldades acentuadas de aprendizagem em todos os âmbitos da vida – há crianças com dificuldades em apren- der a falar, a andar, a ter coordenação motora e concentração (CIASCA, 2003). Considerando que todos temos dificuldades em alguma coisa, pense em alguma dificuldade de aprendizagem que você teve. Por que você teve essa dificuldade? Quais eram os fatores envolvidos? Como você resolveu? Patologização e Medicalização da Educação O cérebro humano é altamente eficiente para aprender. Se esse processo não ocorre de forma fácil, certamente podemos encontrar alguma razão. Antigamente, a primeira hipótese sempre recaia sobre a própria criança, suas condições internas e estrutura familiar. Contudo, nas últimas décadas muito progresso foi feito e as análises revelam que na maioria dos casos os problemas de aprendizagem estão, na realidade, no ambiente externo à criança. As condições de ensino são muito importantes para entender os processos de aprendizagem que não acontecem com sucesso. Essa perspectiva é importante para evitar a simples rotulação de crianças e a patologização dos processos educacionais (MEIRA, 2012). 19 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem No primeiro sinal de alterações da aprendizagem, é muito comum que pais e professores busquem descobrir as causas e as possíveis soluções para essas dificuldades (CIASCA, 2003). Contudo, muitas vezes o primeiro olhar é ainda para como a criança pode ter algum tipo de desvio da normalidade, uma patologia ou outra condição psicológica que influencie na sua forma diferente de aprender. Assim, várias crianças chegam a psicólogos com queixas escolares relacionadas à aprendizagem. Mas, quando se examina a fundo, percebe-se que a maioria apenas enfrenta um problema em função de situações externas – como as condições de ensino. Um olhar mais acurado deve, portanto, considerar que a relação ensino-apren- dizagem envolve muitos fatores que são externos à criança. É preciso investigar o contexto social no qual a criança está inserida, a metodologia de ensino utilizada pela escola e pelo professor e as relações que se estabelecem dentro da sala de aula e na escola, antes que possamos considerar que uma criança imediatamente tenha um problema de aprendizagem. Em muitos casos, as crianças podem apenas não aprender com o método utilizado pelo professor, por estarem sofrendo bullying ou terem um ambiente familiar que não ofereça estimulação apropriada. Nesses casos, a mudança necessária não está diretamente na criança, mas sim em seu ambiente. Pode ser difícil de mudar todo o ambiente ao redor da criança, mas é preciso explorar todas as possibilidades ao invés de apenas rotular uma criança como tendo dificuldade de aprendizagem ou algum tipo de patologia. A rotulação de crianças com problemas de aprendizagem é comum e antiga (ANTUNES, 2003), isso causa uma série de marcas nas crianças e afeta suas relações interpessoais presente e futuras. As crianças rotuladas deixam de ter um nome e passam a ser o rótulo de uma patologia sem que tenham condições de mudar a própria condição. Independentemente de ter ou não uma determinada patologia, os rótulos são sempre negativos. As crianças não são o “autista da turma B”, ou o “disléxico da pro- fessora Helena”. As crianças têm nome, história e merecem respeito. Faz parte do processo educativo instruir as demais crianças sobre isso também. Deve-se ensiná- -las a não fazer bullying ou usar esses termos como formas de ataque às crianças ou segregação. Os efeitos cognitivos e socioemocionais dessas rotulações podem ser muito diversos e graves. Assista ao filme “Preciosa – uma história de esperança” –, de 2010 e dirigido por Lee Daniels. Assista ao trailer: https://youtu.be/06ZF3zw1gHs Nos últimos anos tem havido um crescente número de crianças que são medica- das a partir de diagnósticos questionáveis e que não consideram toda a complexidade dos processos de aprendizagem. Não é incomum, por exemplo, observar relatos de crianças que tenham dificuldades de concentração na idade infantil. Muitos professo- res e até mesmo psicólogos acabam desconsiderando o desenvolvimento das funções executivas que acontece principalmente após os seis anos de idade e acreditam que 20 21 crianças com quatro anos deveriam ficar sentadas por quatro horas sem se mexer, prestando contínua atenção em uma aula. Isso não é possível e nem desejável. Rotu- lar essas crianças como tendo TDAH é um risco enorme e que leva à estigmatização em sala de aula e na vida de modo geral, além do encaminhamento errado da situa- ção e do uso de medicamentos como a Ritalina, podendo, inclusive, prejudicar todoo restante do desenvolvimento neurológico. Vários educadores, psicólogos, médicos e pesquisadores têm criado movimen- tos que lutam para a não medicalização da educação. Pelo reconhecimento de que existem diferenças individuais e diversos fatores que podem influenciar a aprendi- zagem e que não são patológicos, nem carecem de medicação. Além do mais, a medicalização dos processos educacionais pode trazer mais danos do que soluções nos casos em que não seria necessário qualquer tipo de medicação. Muitas crianças que tomam remédios acabam tendo comprometimentos em seu desenvolvimento neuropsicológico (MEIRA, 2012). Quem são as crianças que são encaminhadas para atendimento psicológico? Se- gundo Souza (2015), uma análise de prontuários de queixas escolares mostrou que a média de idade das crianças atendidas era de 9,3 anos, sendo que 70% eram meninos. O motivo mais frequente de encaminhamento era o que os educadores denominam problemas de aprendizagem atrelados a problemas de atitudes em sala de aula (26%), ou somente problemas de aprendizagem (24%), ou ainda problemas de atitudes (19%). Ou seja, a soma dos motivos de encaminhamento mostra que 69% das crianças apresentavam problemas na aprendizagem ou atitudes consideradas inadequadas em sala de aula. Quais são os tipos de problemas de aprendizagem? Quais são os comportamentos da criança em sala de aula que são motivos de encaminhamento psicológico? Como são descritos pelos educadores? Marilene S ouza (2015) identificou dois tipos princi- pais de problemas, os problemas de aprendizagem e os problemas de compor- tamento. Segundo essa pesquisadora, os chamados problemas de aprendizagem são descritos da seguinte maneira: [...] “troca de letras”, “dificuldade em ler as palavras”, “não consegue ler e escreve tudo amontoado”, “ainda está na fase dos rabiscos”, “não consegue copiar da lousa”, “dificuldade na coordenação motora fina”, “troca letras, não acentua palavras e não sabe quando tem que escrever uma letra mai- úscula”, “não sabe ler e escrever, somente copia, [...] só conhece a letra A», «omite palavras, sílabas e letras em ditados e cópias e comete erros grama- ticais», «não acerta as contas», «vai mal em Matemática”, “baixo rendimento escolar”, “é lento”, “não está acompanhando o ritmo das outras crianças”, “repetiu duas vezes a primeira série em função de disritmia”, “é distraído”, “tem dificuldade em fazer a lição de casa”. (SOUZA, 2015, p. 137) Enquanto os chamados problemas de comportamento ou de atitudes, são des- critos como por Souza (2015, p. 138) como: [...] “não responde às chamadas e às perguntas”, “sai da classe várias vezes”, “recusa-se a realizar tarefas determinadas, como leitura, por exemplo”, 21 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem “compreende, mas não obedece a instruções”, “esquece as regras e fala baixo”, “não apresenta ordem em seu caderno”, “não conseguia ficar sentado assistindo às aulas”, “é muito agressivo”, “briga e faz bagunça”, “é insuportável na escola: pegou um estilete para abordar as meninas, para aprontar”, “é calado”, “não fala com a professora, não conversa com os outros, não pede para ir ao banheiro”, “é facilmente enganado pelas outras crianças”, “não se interessa pela escola”, “só quer saber de brincar na escola”, “a professora falou que qualquer coisa ele chora”, “não presta atenção ao que a professora fala”, “não tem interesse por nada na escola”, “muito nervoso, não aceita aprender por medo de errar”, “sempre foi o primeiro da classe, brigou com a professora de Matemática e tirou nota vermelha”, “não teve integração com os professores”, “professora não consegue colocar limites”. Essas queixas escolares, para Souza (2015), sumarizam um pouco dos principais motivos de encaminhamento de crianças para serviços de atendimento psicológico e revelam que, em sua grande maioria, as queixas ainda são atribuídas às crianças. São as crianças que trocam letras, elas que não aprendem, brigam com os colegas, desobedecem a regras estabelecidas, são nervosas ou choram muito, não sabem se defender ou se defendem até demais. Essas queixas ignoram a importância e o papel dos professores e das escolas nessa relação de ensino-aprendizagem. Outro problema apontado por Souza (2015) é que muitas escolas acabam pra- ticamente obrigando os pais a buscarem ajuda psicológica para seus filhos, sem considerar seu próprio papel diante da aprendizagem. Isso leva os pais a procurarem diversas alternativas e profissionais para entender o que acontece com seus filhos, o que pode levar também a uma medicalização do processo de escolarização. Além disso, tantas investigações que eximem o papel da escola só podem concluir que o problema está na criança – e não na escola. A medicalização da Educação é um problema atual bastante grave, no qual as diferenças individuais são patologizadas e as crianças medicadas sem a necessidade real. O uso desses medicamentos pode causar ainda mais danos do que ajudar efe- tivamente, lembrando que na infância essas crianças estão desenvolvendo o sistema nervoso e nem todas as funções estão plenamente estabelecidas. O normal se torna patológico pela incompreensão do que é de fato uma aprendizagem e de todos os fatores que influenciam nesse processo (MEIRA, 2012). Assim, é fundamental que você entenda que existem transtornos de aprendizagem, mas não são a maioria em uma sala de aula. Precisamos investigar todas as opções possíveis antes de definir que as crianças têm de fato um transtorno – e nesses casos buscar alternativas que nem sempre serão medicamentosas, mas sim educacionais. 22 23 Em Síntese Com esta Unidade completamos nossa aprendizagem das principais teorias clássicas e contemporâneas da aprendizagem, visando lhe introduzir neste campo instigante de estudos que nos revela que a aprendizagem não acontece apenas nas escolas, mas em todos os lugares e o tempo todo. Além disso, para aprender precisamos considerar o nos- so corpo todo, o que certamente inclui o cérebro como o centro do processo da aprendi- zagem. Somos seres biopsicossociais e precisamos entender que todas essas dimensões afetam na aprendizagem. O mundo está mudando e precisamos considerar essas mudanças nos processos de ensino-aprendizagem. Precisamos considerar os diferentes tipos de aprendizagem e as diferenças individuais que podem afetar a aprendizagem. Entendendo que nem sem- pre essas dificuldades são patológicas, na maioria dos casos ocorrem apenas devido a diferenças individuais e são influenciadas por questões ambientais, como a escola e os professores. Bons docentes podem fazer a diferença ao oferecer condições apropriadas de ensino para todos. Esse entendimento é importante para evitar a rotulação e a patologização dos processos educacionais, e a medicalização da educação pode trazer mais prejuízos do que benefí- cios. Contudo, não podemos nos enganar e esquecer de quem de fato precisa de trata- mento específico. Existem transtornos do neurodesenvolvimento e mais especificamen- te transtornos de aprendizagem que necessitam ser identificados apropriadamente e tratados para que todos possam ter condições de aprendizagem. Evitar a patologização e a medicalização não pode levar à descrença nas evidências e ao negacionismo de dis- túrbios que afetam a vida de milhares de crianças e que podem ser tratados apropriada- mente, oferecendo melhores condições de vida. Para concluir, nunca se esqueça de que todos podem aprender, desde que lhes sejam dadas condições apropriadas de ensino. Que você possa continuar sempre aprendendo por toda a sua vida! 23 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Na vida Dez, na Escola Zero CARRAHER, T. N.; CARRAHER, D. W.; SCHLIEMANN, A. D. Na vida dez, na escola zero. São Paulo: Cortez, 1988. Por que o Construtivismo não funciona? Evolução, Processamentode Informação e Aprendizagem Escolar HAASE, V. G.; JULIO-COSTA, A.; SILVA, J. B. L. Por que o construtivismo não funciona? Evolução, processamento de informação e aprendizagem escolar. Psicol. Pesq., Juiz de Fora, MG, v. 9, n. 1, p. 62-71, jun. 2015. Filmes Como Estrelas na Terra: toda Criança é Especial O jovem Ishaan tem muita dificuldade para se concentrar nos estudos, e mal consegue escrever o alfabeto. Depois de diversas reclamações da escola, o pai, que acredita que Ishaan não faz as tarefas por falta de comprimisso, decide levá-lo a um internato, o que leva o menino a entrar em depressão. Mas, um professor substituto de artes, Nikumbh, logo percebe o problema de Ishaan, e entra em ação com seu plano para devolver a ele a vontade de aprender e, sobretudo, viver. https://youtu.be/ImK0Ncl3xuI Preciosa – uma história de Esperança 1987, Nova York, bairro do Harlem. Claireece “Preciosa” Jones (Gabourey Sidibe) é uma adolescente de 16 anos que sofre uma série de privações durante sua juventude. Violentada pelo pai (Rodney Jackson) e abusada pela mãe (Mo’Nique), ela cresce irritada e sem qualquer tipo de amor. O fato de ser pobre e gorda também não a ajuda nem um pouco. Além disto, Preciosa tem um filho apelidado de “Mongo”, por ser portador de síndrome de Down, que está sob os cuidados da avó. Quando engravida pela segunda vez, Preciosa é suspensa da escola. A sra. Lichtenstein (Nealla Gordon) consegue para ela uma escola alternativa, que possa ajudá-la a melhor lidar com sua vida. Lá Preciosa encontra um meio de fugir de sua existência traumática, se refugiando em sua imaginação. https://youtu.be/06ZF3zw1gHs 24 25 Referências AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-V). 5th ed. Arlington, VA, USA, 2013. ANTUNES, M. A. M. Psicologia e Educação no Brasil: um olhar histórico-crítico. In: MEIRA, M. E. M.; ANTUNES, M. A. M. (Org.). Psicologia escolar: práticas críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. BEZERRA, G. F. A inclusão escolar de alunos com deficiência: uma leitura baseada em Pierre Bourdieu. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 22, n. 69, p. 475-497, jun. 2017. COSENZA, R.; GUERRA, L. B. Neurociência e educação: como o cérebro apren- de. Porto Alegre, RS: Artmed, 2011. CIASCA S. M. Distúrbios de aprendizagem: proposta de avaliação interdisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. HAASE, V. G.; JULIO-COSTA, A.; SILVA, J. B. L. Por que o construtivismo não funciona? Evolução, processamento de informação e aprendizagem escolar. Psicol. Pesq., Juiz de Fora, MG, v. 9, n. 1, p. 62-71, jun. 2015. HART, B.; RISLEY, T. R. Meaningful differences in the everyday experience of young american children. [S.l.]: Paul H. Brookes, 1995. ILLERIS, K. (Org.). Teorias contemporâneas da aprendizagem. Porto Alegre, RS: Penso, 2013. LEFRANÇOIS, G. R. Teorias da aprendizagem: o que o professor disse. São Paulo: Cengage Learning, 2017. MARTINS, G. D. F.; VIEIRA, M. L. Desenvolvimento humano e cultura: integração entre filogênese, ontogênese e contexto sociocultural. Estud. psicol. Natal, RN, v. 15, n. 1, p. 63-70, abr. 2010 MEIRA, M. E. M. Para uma crítica da medicalização na educação. Psicol. Esc. Educ. Maringá, PR, v. 16, n. 1, p. 136-142, jun. 2012. MOUSINHO, R.; NAVAS, A. L. Mudanças apontadas no DSM-5 em relação aos transtornos específicos de aprendizagem em leitura e escrita. Revista Debates em Psiquiatria, p. 38-46, maio/jun. 2016. PAULA, G. R. et al. Neuropsicologia da aprendizagem. Rev. Psicopedag., São Paulo, v. 23, n. 72, p. 224-231, 2006. SARGIANI, R. de A.; MALUF, M. R. Linguagem, cognição e Educação Infantil: con- tribuições da Psicologia Cognitiva e das Neurociências. Psicol. Esc. Educ., Maringá, PR, v. 22, n. 3, p. 477-484, dez. 2018. 25 UNIDADE Diversidade, Dificuldades e Transtornos de Aprendizagem SOUZA, M. P. R. de. Formação de psicólogos para o atendimento a problemas de aprendizagem: desafios e perspectivas. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 5, n. 9, p. 97-104, 108-111, 2015. STANOVICH, K. E. Matthew effects in reading: some consequences of individual differences in the acquisition of literacy. Reading Research Quarterly, v. 21, p. 360-406, 1986. TUNMER, W. E. Como a Ciência Cognitiva forneceu as bases teóricas para a re- solução do “grande debate” sobre métodos de leitura em ortografias alfabéticas. In: MALUF, M. R.; CARDOSO-MARTINS, C. (Org.). Alfabetização no século XXI: como se aprende a ler e a escrever. Porto Alegre, RS: Penso, 2013. p. 124-137. 26
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